Doenças raras na agenda da inovação em saúde: avanços e desafios na fibrose cística

Rare diseases on the agenda for innovation in health: progress and challenges with cystic fibrosis

Enfermedades raras en la agenda de la innovación en salud: avances y desafíos en la fibrosis quística

Marise Basso Amaral Sergio Rego Sobre os autores

Resumo:

O presente artigo se propõe a discutir as muitas complexidades envolvidas na incorporação de novas tecnologias em saúde para doenças raras, tomando como foco central da discussão o caso da fibrose cística. Tal escolha acontece por ser essa uma doença rara, genética, autossômica recessiva, considerada a mais comum entre as doenças raras. Também por ser uma doença que tem se beneficiado imensamente dos investimentos em pesquisa no campo da biologia molecular, feitos principalmente nos Estados Unidos, mas também em grupos de pesquisa europeus que resultaram no registro e comercialização de quatro novos medicamentos. Esses novos fármacos atuam, pela primeira vez, no defeito básico da fibrose cística. Numa perspectiva que entende as doenças raras como um campo de pesquisa tecido entre muitos outros, o presente texto tenta problematizar, com base em uma perspectiva mais centrada nas pessoas com fibrose cística, a dualidade de testemunhar de longe a molecularizaçao da vida, o surgimento de medicamentos de última geração que interrompem, em nível molecular, a cascata de erros e portanto sintomas e evolução de sua doença. O texto busca trazer para o debate os vários elementos que atravessam a complexa realidade local dos pacientes brasileiros com fibrose cística, num contexto global de inovação tecnológica e de quebra de paradigma em seus tratamentos. Baseando-se no campo das doenças raras, passando pela apresentação da fibrose cística em tempos da medicina de precisão, aliado a discussões sobre biopolíticas num contexto de inovação em saúde e medicamentos de alto custo, o artigo tenta dar visibilidade aos desafios e possibilidades do tempo presente.

Palavras-chave:
Fibrose Cística; Inovação; Doenças Raras

Abstract:

The article proposes to discuss the many complexities involved in the incorporation of new health technologies for rare diseases, with a central focus on the case of cystic fibrosis. Cystic fibrosis was chosen because it is a autosomal recessive genetic disorder, considered the most common of the rare diseases. The disease has also benefited greatly from investments in research in the field of molecular biology, mainly in the United States, but also among European research groups, which resulted in the registration and marketing of four new drugs. These new drugs act for the first time on the basic defect in cystic fibrosis. From a perspective that views rare diseases as a field of research woven among many others, the article aims to problematize cystic fibrosis from a more person-centered approach, the duality of witnessing from afar the molecularization of life, the emergence of last-generation drugs that interrupt, at the molecular level, the cascade of errors and thus the symptoms and evolution of the disease. The article aims to bring various elements to the debate that traverse the complex local reality of Brazilian cystic fibrosis patients in a global context of technological innovation and with a break in the treatment paradigm. Based on the field of rare diseases, including the presentation of cystic fibrosis in the age of precision medicine, alongside discussions on biopolitics in a context of health innovation and high-cost drugs, the article aims to shed light on the current challenges and possibilities.

Keywords:
Cystic Fibrosis; Innovation; Rare Diseases

Resumen:

El presente artículo se propone discutir las diversas complejidades implicadas en la incorporación de nuevas tecnologías en salud para enfermedades raras, centrando la discusión en el caso de la fibrosis quística. Tal elección se produce por ser esta una enfermedad rara, genética, autosómica recesiva, considerada la más común entre las enfermedades raras. También por ser una enfermedad que se ha beneficiado inmensamente de las inversiones en investigación en el campo de la biología molecular, realizadas no sólo en los Estados Unidos, sino también en grupos de investigación europeos que resultaron en el registro y comercialización de cuatro nuevos medicamentos. Estos nuevos fármacos actúan, por la primera vez, en el defecto básico de la fibrosis quística. Desde una perspectiva que entiende las enfermedades raras, como un campo de investigación tejido entre muchos otros, el presente texto intenta problematizar, a partir de una perspectiva más centrada en las personas con fibrosis quística, la dualidad de testimoniar de lejos la molecularización de la vida, el surgimiento de medicamentos de última generación que interrumpen, a nivel molecular, la cascada de errores y por tanto síntomas y evolución de su enfermedad. El texto busca presentar en el debate los diferentes elementos que atraviesan la compleja realidad local de los pacientes brasileños con fibrosis quística, en un contexto global de innovación tecnológica y de quiebra de paradigma en sus tratamientos. A partir del campo de las enfermedades raras, pasando por la presentación de la fibrosis quística en tiempos de la medicina de precisión, junto a discusiones sobre biopolíticas en un contexto de innovación en salud y medicamentos de alto coste, el artículo intenta dar visibilidad a los desafíos y posibilidades del tiempo presente.

Palabras-clave:
Fibrosis Quística; Innovación; Enfermedades Raras

Introdução

Palestras, discussões e artigos na mídia sobre doenças raras geralmente iniciam apresentando uma definição do tema que, tal como o nome propõe, sugere uma baixa prevalência na população. Assim, o campo das doenças raras, embora entrelaçado por diversos saberes e interesses, é ainda apresentado em muitas instâncias por meio de uma razão matemática a qual traduz uma determinada incidência. Tal perspectiva reducionista está muito presente no currículo dos vários profissionais de saúde, resultando numa invisibilidade da categoria “doenças raras” ou numa associação perniciosa e automática entre ela e o lobby da indústria farmacêutica e a judicialização da saúde, sem as muitas problematizações necessárias. Assim, escrever sobre esse tema é enfrentar o fato de lidar com uma complexidade de difícil tradução. Embora solidamente estabelecida no campo estatístico, a categoria “doenças raras”, para aqueles que dela se ocupam - gestores públicos, associações de pacientes, médicos, pesquisadores, indústria farmacêutica, sociólogos, historiadores, advogados e pacientes - é construída numa interseção de muitos campos e interesses, objeto de muitas disputas e dilemas diante de tratamentos cada vez mais avançados, personalizados, efetivos e caros.

O Ministério da Saúde define doença rara como “aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas para cada 2.000 indivíduos11. Ministério da Saúde. Doenças raras: o que são, causas, tratamento, diagnóstico e prevenção. http://saude.gov.br/saude-de-a-z/doencas-raras (acessado em 19/Ago/2020).
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. Nos Estados Unidos, são definidas pela Lei das Doenças Raras de 2002 [Rare Diseases Act of 2002] aquelas que acometem pequenas parcelas da população, “tipicamente populações menores de 200.000 indivíduos22. GovTrack.us. H.R. 4013 (107th): Rare Diseases Act of 2002. https://www.govtrack.us/congress/bills/107/hr4013/text (acessado em 19/Ago/2020).
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. Na Europa, segundo a Comissão Europeia, qualquer doença que afetar menos de cinco pessoas em 10 mil indivíduos é considerada rara 33. Comissão Europeia. Rare diseases. https://ec.europa.eu/health/non_communicable_diseases/rare_diseases_pt (acessado em 19/Ago/2020).
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, levando-se em conta que de 6-8% da população europeia possui alguma doença rara o que, em números absolutos, significa que 27 a 36 milhões de pessoas vivem com alguma delas. Governos, pacientes, sistemas públicos de saúde, famílias e indivíduos afetados vêm aprendendo que a diferença nesses valores (1/1.500, 1/2.000 ou 1,3 indivíduo para 2.000 pessoas) tem impactos significativos quando olhadas em sua coletividade. Em sua particularidade, receber um diagnóstico de uma doença rara na família é frequentemente narrado como uma experiência disruptiva, desnorteadora, extremamente desafiadora em que o próprio senso de identidade e pertencimento dos sujeitos envolvidos é colocado em questão 44. Aureliano WA. Trajetórias terapêuticas familiares: doenças raras hereditárias como sofrimento de longa duração. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:369-79.,55. Moreira MCN. Trajetórias e experiências morais de adoecimento raro e crônico em biografias: um ensaio teórico. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3651-61.,66. Gomes JS. Como a sociologia do diagnóstico pode contribuir com pesquisas no contexto de vida de pessoas com doenças raras? In: Moreira MCN, Nascimento MAF, Campos DS, Albernaz LV, organizadores. Crianças e adolescentes com doenças raras: narrativas e trajetória de cuidados. São Paulo: Editora Hucitec; 2019. p. 285-308.. Assim, para entrar efetivamente no campo das doenças raras é necessário buscar conhecer o que os números não contam 77. Huyard C. How did uncommon disorders become ‘rare diseases’? History of a boundary object. Sociol Health Illn 2009; 31:463-77..

Geralmente, as doenças raras são crônicas, progressivas e incapacitantes, podendo ser degenerativas e também levar à morte, afetando a qualidade de vida das pessoas e de suas famílias 88. Coordenação Geral de Média e Alta Complexidade, Departamento de Atenção Especializada e Temática, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Diretrizes para atenção integral às pessoas com doenças raras no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.. Outra característica marcante é a carência de tratamento específico para a maioria dessas condições 44. Aureliano WA. Trajetórias terapêuticas familiares: doenças raras hereditárias como sofrimento de longa duração. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:369-79.,99. Lima MAFD, Gilbert ACB, Horovitz DDG. Redes de tratamento e as associações de pacientes com doenças raras. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3247-56., restando apenas tratamentos paliativos 1010. Šimić G. Rare diseases and omics-driven personalized medicine. Croat Med J 2019; 60:485-7.,1111. Tabor HK, Goldenberg A. What precision medicine can learn from rare genetic disease research and translation. AMA J Ethics 2018; 20:E834-40.. Esses tratamentos demandam acompanhamento clínico especializado e complexo, e envolvem várias áreas do campo da saúde, como fisioterapia, fonaudiologia, psicoterapia, entre outras. Algumas dessas doenças, no entanto, têm se beneficiado dos avanços na pesquisa e na biotecnologia. Um exemplo é a fibrose cística, considerada a doença autossômica recessiva mais comumente fatal entre a população caucasiana 1212. Barrett PM, Alagely A, Topo EJ. Cystic fibrosis in an era of genomically guided therapy. Hum Mol Genet 2012; 21(R1):R66-71.. Outras são extremamente raras, reunindo poucos casos no mundo inteiro, dificultando a alocação de recursos para pesquisa e desenvolvimento de fármacos 1313. Novas C. Orphan drugs, patient activism and contemporary healthcare. Quaderni 2008-2009; 68:13-23.. Assim, cabe dizer que além da baixa prevalência em relação às demais doenças, o que as doenças raras têm em comum é sua grande heterogeneidade.

Talvez seja nesse sentido que Huyard 77. Huyard C. How did uncommon disorders become ‘rare diseases’? History of a boundary object. Sociol Health Illn 2009; 31:463-77. se refere às doenças raras como uma categoria que se transforma em um objeto de fronteira. Ainda segundo a autora, a potência dessa categoria é justamente chamar atenção para os múltiplos e divergentes atores, espaços sociais, significados e usos que a forjaram como tal 77. Huyard C. How did uncommon disorders become ‘rare diseases’? History of a boundary object. Sociol Health Illn 2009; 31:463-77.. No Brasil, o documento que deu materialidade às muitas discussões em torno do campo das doenças raras foi a Portaria nº 199/201488. Coordenação Geral de Média e Alta Complexidade, Departamento de Atenção Especializada e Temática, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Diretrizes para atenção integral às pessoas com doenças raras no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (PNAI-PDR). Esse documento foi elaborado pelo Ministério da Saúde com a participação de representantes de sociedades/especialistas e de associações de pacientes. Ele é considerado pela comunidade das pessoas com doenças raras como uma grande conquista e foi resultado de um trabalho árduo, de debates, de negociações entre os muitos sujeitos envolvidos com o tema. Ainda assim, a efetivação das diretrizes, bem como o financiamento das ações previstas, além do financiamento diferenciado dos centros de referência cadastrados seguem como um grande desafio 1414. Aureliano WA. A pesquisa antropológica com pessoas com doenças raras no Brasil: desafios e possibilidades. In: Moreira MCN, Nascimento MAF, Campos DS, Albernaz LV, organizadores. Crianças e adolescentes com doenças raras: narrativas e trajetória de cuidados. São Paulo: Editora Hucitec ; 2019. p. 185-207.,1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50.,1616. Cordovil C. Os desafios da implementação da Portaria 199/2014: um balanço. https://academiadepacientes.com.br/os-desafios-de-implementacao-da-portaria-199-2014-um-balanco/ (acessado em 23/Ago/2020).
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. Apesar da visibilidade que as doenças raras têm conquistado nos últimos anos, as pessoas com estas doenças seguem enfrentando muitos obstáculos: a falta de conhecimento dos profissionais de saúde em geral, incluídos os médicos; a falta de investimentos específicos e financiamento de projetos e de pesquisas; e a dificuldade em se obter um diagnóstico correto 1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50.,1717. D’Ippolito PIMC, Gadelha CAG. O tratamento de doenças raras no Brasil: a judicialização e o Complexo Econômico Industrial da Saúde. Saúde Debate 2019; 43(n.esp 4):219-31.. Além de tudo isso, os pacientes vivem em constante insegurança medicamentosa, ou seja, muitas vezes eles têm de enfrentar a falta dos medicamentos, já distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) 1818. Biehl J, Petryna A. Bodies of rights and therapeutic markets. Social Research 2011; 78:359-86., que, por múltiplas razões administrativas, frequentemente faltam nas prateleiras das farmácias dos centros especializados. Ser paciente raro no Brasil ainda significa ter de lutar, por exemplo, pela realização da triagem neonatal, já disponibilizada pelo SUS desde 2001, mas que, em alguns estados brasileiros, apresenta problemas na sua efetiva execução. Em meados de 2016 no Rio de Janeiro, a triagem neonatal foi descontinuada, sendo regularizada apenas em 2017 1919. Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro. Reunião do Conselho Estadual de Saúde debate teste do pezinho. https://www.cremerj.org.br/informes/exibe/3594 (acessado em 20/Ago/2020).
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,2020. Nascimento TA, Cruz AC, Machado CS, Monteiro E. Precarização da triagem neonatal no Estado do Rio de Janeiro. J Bras Pneumol 2019; 45 Suppl 1R:R24-5.. No Ceará, Pará, Paraíba e Mato Grosso do Sul, levantamentos feitos também por associação de pacientes destes estados demonstraram demora na entrega de resultados 2121. Unidos pela Vida - Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística. Relatório parcial. Mapeamento da situação do diagnóstico da fibrose cística no Brasil. Curitiba: Unidos pela Vida - Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística; 2019..

À luta pela efetivação e manutenção dos direitos já conquistados somam-se os esforços para garantir uma agenda de incorporação de inovações tecnológicas para pacientes com doenças raras 99. Lima MAFD, Gilbert ACB, Horovitz DDG. Redes de tratamento e as associações de pacientes com doenças raras. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3247-56.,1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50., além das reivindicações pela melhoria no cuidado com essa parcela da população nos serviços públicos de saúde. Essa é uma realidade extenuante para a maioria dos pacientes raros e seus familiares 44. Aureliano WA. Trajetórias terapêuticas familiares: doenças raras hereditárias como sofrimento de longa duração. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:369-79.,99. Lima MAFD, Gilbert ACB, Horovitz DDG. Redes de tratamento e as associações de pacientes com doenças raras. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3247-56.,1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50.,1717. D’Ippolito PIMC, Gadelha CAG. O tratamento de doenças raras no Brasil: a judicialização e o Complexo Econômico Industrial da Saúde. Saúde Debate 2019; 43(n.esp 4):219-31., e desconhecida pela sociedade brasileira.

É nosso objetivo acessar essa complexidade tomando como objeto de análise uma doença rara em particular, a fibrose cística. Essa aproximação tem camadas e camadas de intimidade, uma vez que a autora M.B.A. investiga narrativas de pessoas com fibrose cística 2222. Amaral MB, Rego S. Relatos de vida no contexto de uma doença rara e crônica. Saúde Redes 2020; 6 Suppl 3. (no prelo). e também participa da Associação Carioca de Assistência à Mucoviscidose (ACAM-RJ). As discussões tecidas pretendem dar espaço às múltiplas discussões, atores, embates e contextos que se apresentam para aqueles que habitam a vida também nessa dimensão do adoecimento crônico.

A fibrose cística: desafios e apostas

É frequente na literatura a referência à fibrose cística como a doença rara mais comum da infância. Nessa afirmação ainda aparece um traço histórico de um tempo em que poucos pacientes com fibrose cística chegavam à vida adulta. Nos países economicamente mais desenvolvidos essa realidade já foi superada. Em países como o nosso, com profundas desigualdades sociais e econômicas, organizar centros de tratamento para adultos tem sido mais um dos muitos desafios vividos pelos pacientes e profissionais de saúde que trabalham com essa doença. Apesar dos enormes avanços acumulados nos tratamentos desenvolvidos para fibrose cística, a média de vida no nosso país continua próxima aos 20 anos, variando muito de acordo com a idade no diagnóstico e o acesso e a qualidade dos tratamentos recebidos ao longo do tempo. Higa 2323. Higa LYS. Sobrevivência e fatores de risco para mortalidade identificados ao diagnóstico na coorte de pacientes com fibrose cística do centro de referência do Rio de Janeiro (Brasil) [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2011. investigou a sobrevivência dos pacientes com fibrose cística e os fatores de risco associados à sua redução no Rio de Janeiro em um intervalo de dez anos (1999 a 2009), tendo observado uma mediana de sobrevivência de 20,8 anos. No último Registro Brasileiro de Fibrose Cística2424. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística. Registro brasileiro de fibrose cística. Relatório anual, 2017. http://portalgbefc.org.br/site/index.php (acessado em 21/Ago/2020).
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, organizado pelo Grupo Brasileiro de Estudos da Fibrose Cística (GBEFC), realizado em 2017, a média de idade dos óbitos registrados foi de 17,4 anos. As associações de fibrose cística pelo país têm reiterado junto aos centros de referência e às equipes médicas a preocupação com essa realidade. Apesar das melhorias conquistadas nos tratamentos disponíveis e do empenho das equipes de saúde, a expectativa de vida de um paciente brasileiro ainda é a metade do tempo da expectativa de vida de um paciente estadunidense 2525. Cystic Fibrosis Foundation. Cystic Fibrosis Foundation patient registry highlights, 2019. https://www.cff.org/Research/Researcher-Resources/Patient-Registry/Cystic-Fibrosis-Foundation-Patient-Registry-Highlights.pdf (acessado em 21/Ago/2020).
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, canadense ou europeu. Considerando as dimensões continentais do nosso país, ressaltamos que o acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado na fibrose cística guarda heterogeneidades e descontinuidades, principalmente no que diz respeito às regiões Norte e Nordeste 44. Aureliano WA. Trajetórias terapêuticas familiares: doenças raras hereditárias como sofrimento de longa duração. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:369-79.,66. Gomes JS. Como a sociologia do diagnóstico pode contribuir com pesquisas no contexto de vida de pessoas com doenças raras? In: Moreira MCN, Nascimento MAF, Campos DS, Albernaz LV, organizadores. Crianças e adolescentes com doenças raras: narrativas e trajetória de cuidados. São Paulo: Editora Hucitec; 2019. p. 285-308.,99. Lima MAFD, Gilbert ACB, Horovitz DDG. Redes de tratamento e as associações de pacientes com doenças raras. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3247-56.,1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50.,2121. Unidos pela Vida - Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística. Relatório parcial. Mapeamento da situação do diagnóstico da fibrose cística no Brasil. Curitiba: Unidos pela Vida - Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística; 2019..

Cientes desse cenário, um grupo de trabalho foi formado por integrantes do GBEFC com o compromisso de equalizar o itinerário de diagnóstico e de tratamento a ser adotado nacionalmente. Como resultado do trabalho, foi publicado, em 2017, as Diretrizes Brasileiras de Diagnóstico e Tratamento da Fibrose Cística2626. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EFA, et al. Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. J Bras Pneumol 2017; 43:219-45.. Esse material atesta em sua introdução os avanços no diagnóstico e no tratamento dos sintomas, bem como na sobrevida e na qualidade de vida dos pacientes. Porém, destaca uma grande heterogeneidade no acesso aos métodos diagnósticos (teste do pezinho e teste do suor) e terapêuticos entre as diferentes regiões brasileiras 2626. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EFA, et al. Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. J Bras Pneumol 2017; 43:219-45.. As diretrizes pretendem uniformizar as condutas terapêuticas e encaminhamentos realizados, tendo como foco as regiões mais distantes do eixo Sul-Sudeste, onde estão a maioria dos centros de referência 99. Lima MAFD, Gilbert ACB, Horovitz DDG. Redes de tratamento e as associações de pacientes com doenças raras. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3247-56.,1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50. para o tratamento de doenças raras e de fibrose cística.

A fibrose cística é descrita em diversos trabalhos como uma doença genética autossômica, recessiva, caracterizada pela disfunção do gene cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR) que codifica a proteína responsável pela formação do canal transmembranar de conductância de cloro 2626. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EFA, et al. Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. J Bras Pneumol 2017; 43:219-45.,2727. Castro MCS, Firmida MC. O tratamento na fibrose cística e suas complicações. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ 2011; 10:82-108.,2828. Lopes-Pacheco M. CFTR modulators: the changing face of cystic fibrosis in the era of precision medicine. Front Pharmachol 2020; 10:1662.,2929. Cutting GR. Cystic fibrosis genetics: from molecular understanding to clinical application. Nat Rev Genet 2015; 16:45-56.. Esse canal é responsável pela regulação do transporte do cloro e bicarbonato na superfície das células epiteliais do pulmão e demais órgãos 2828. Lopes-Pacheco M. CFTR modulators: the changing face of cystic fibrosis in the era of precision medicine. Front Pharmachol 2020; 10:1662.. Defeitos nessa regulação acarretam o comprometimento do clearance mucociliar no epitélio pulmonar 3030. Derichs N. Targeting a genetic defect: cystic fibrosis transmembrane conductance regulator modulators in cystic fibrosis. Eur Respir Rev 2013; 22:58-65.. Essa situação vai se agravando gradualmente provocando a obstrução das vias aéreas de pequeno calibre, infecções bacterianas recorrentes, inflamações crônicas e o aparecimento de bronquiectasias 3030. Derichs N. Targeting a genetic defect: cystic fibrosis transmembrane conductance regulator modulators in cystic fibrosis. Eur Respir Rev 2013; 22:58-65.. Esse quadro ao longo do tempo provoca danos irreversíveis aos pulmões, sendo este desfecho a primeira causa de morbidade e mortalidade da doença 3030. Derichs N. Targeting a genetic defect: cystic fibrosis transmembrane conductance regulator modulators in cystic fibrosis. Eur Respir Rev 2013; 22:58-65.,3131. Cogen JD, Oron AP, Gibson RL, Hoffman LR, Kronman MP, Ong T, et al. Characterization of inpatient cystic fibrosis pulmonary exacerbations. Pediatrics 2017; 139:e20162642.,3232. Mendoza JL, Schmidt A, Li Q, Caspa E, Barrett T, Bridges RJ, et al. Requirements for efficient correction of ΔF508 CFTR revealed by analyses of evolved sequences. Cell 2012; 148:164-74.,3333. Condren ME, Bradshaw MD. Ivacaftor: a novel gene-based therapeutic approach for cystic fibrosis. J Pediatr Pharmacol Ther 2013; 18:8-13.. Esse muco pegajoso e mais denso também se acumula nos aparelhos digestório e reprodutivo, prejudicando seu funcionamento normal. Aqui ganha destaque a secreção defeituosa de enzimas digestivas no pâncreas, o que acarreta quadros severos de má absorção de gorduras e vitaminas lipossolúveis, acarretando uma série de problemas gastrointestinais 3030. Derichs N. Targeting a genetic defect: cystic fibrosis transmembrane conductance regulator modulators in cystic fibrosis. Eur Respir Rev 2013; 22:58-65..

Nas últimas décadas, o tratamento dos sintomas da fibrose cística evoluiu ganhando destaque a suplementação nutricional, a reposição de enzimas pancreáticas, a fisioterapia respiratória diária associada à nebulização prévia com mucolíticos, além do uso recorrente de antibióticos (orais, inalatórios e venosos) e anti-inflamatórios 2727. Castro MCS, Firmida MC. O tratamento na fibrose cística e suas complicações. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ 2011; 10:82-108.,3131. Cogen JD, Oron AP, Gibson RL, Hoffman LR, Kronman MP, Ong T, et al. Characterization of inpatient cystic fibrosis pulmonary exacerbations. Pediatrics 2017; 139:e20162642.. Lopes-Pacheco destaca também que embora a expectativa de vida desses pacientes tenha aumentado em função do diagnóstico precoce e da melhora no tratamento dos sintomas, “a qualidade de vida dos pacientes, mesmo assim, permanece limitada, uma vez que estão sujeitos a consideráveis ônus clínicos, psicossociais e econômicos2828. Lopes-Pacheco M. CFTR modulators: the changing face of cystic fibrosis in the era of precision medicine. Front Pharmachol 2020; 10:1662. (p. 2).

Pesquisas desenvolvidas sobre a doença nos últimos anos têm se dedicado a entender a biologia molecular e o funcionamento do gene CFTR e de suas variantes, objetivando a produção de moléculas que possam corrigir os diversos erros que impedem a proteína CFTR de atuar normalmente na superfície da célula 2929. Cutting GR. Cystic fibrosis genetics: from molecular understanding to clinical application. Nat Rev Genet 2015; 16:45-56.,3232. Mendoza JL, Schmidt A, Li Q, Caspa E, Barrett T, Bridges RJ, et al. Requirements for efficient correction of ΔF508 CFTR revealed by analyses of evolved sequences. Cell 2012; 148:164-74.,3333. Condren ME, Bradshaw MD. Ivacaftor: a novel gene-based therapeutic approach for cystic fibrosis. J Pediatr Pharmacol Ther 2013; 18:8-13.,3434. Deeks ED. Lumacaftor/Ivacaftor: a review in cystic fibrosis. Drugs 2016; 76:1191-201.. Como diferentes mutações acarretam diferentes erros nas várias etapas de formação da proteína, essas moléculas atuam de forma específica e em algumas dessas mutações, ora corrigindo e aumentando a produção da proteína, ora auxiliando no seu trânsito correto por dentro da célula até a membrana, ora potencializando o funcionamento do canal iônico. Essas moléculas podem ser combinadas para garantir a correção e a potencialização da proteína defeituosa. Tais moléculas receberam o nome de moduladores do CFTR e constituem a base de quatro novos medicamentos para a fibrose cística, os primeiros a endereçar diretamente o defeito-base da doença 2828. Lopes-Pacheco M. CFTR modulators: the changing face of cystic fibrosis in the era of precision medicine. Front Pharmachol 2020; 10:1662..

Considerando as informações disponíveis no registro estadunidense de pacientes com fibrose cística 2525. Cystic Fibrosis Foundation. Cystic Fibrosis Foundation patient registry highlights, 2019. https://www.cff.org/Research/Researcher-Resources/Patient-Registry/Cystic-Fibrosis-Foundation-Patient-Registry-Highlights.pdf (acessado em 21/Ago/2020).
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, sabe-se que dos 31.199 pacientes registrados em 2019, cerca de 25 mil eram elegíveis para algum dos novos moduladores da proteína CFTR. Desses, 18 mil já recebiam alguns desses novos fármacos naquele ano. Ainda resta um número expressivo de pacientes que não são elegíveis para nenhum dos quatro moduladores disponíveis.

Pacientes brasileiros acompanham pelas redes sociais relatos de vida real dos pacientes estrangeiros em uso dessas novas medicações desde a aprovação da primeira delas, pela Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA), em 2012. São depoimentos que narram o ganho expressivo de peso e de função pulmonar, a diminuição de exacerbações, de internações e de infecções. Também estão lá questões mais subjetivas que revelam assombro diante de uma vida que agora pode ser vivida a plenos pulmões. Conseguem ver, como uma possibilidade concreta, que o futuro pode não ser mais tão ameaçador.

Nos países em desenvolvimento como o Brasil, essa realidade ainda precisa ser conquistada. Pessoas com fibrose cística e seus familiares, em meio a uma rotina diária pesada de tratamento, trabalham para articular projetos pessoais de vida. Como a fibrose cística é uma doença crônica e progressiva e os tratamentos aqui disponíveis apenas ajudam a contornar seus sintomas, é justamente entre a adolescência e a vida adulta que algumas comorbidades adquiridas com a doença podem se estabelecer: osteoporose 3535. Aris RM, Renner JB, Winders AD, Buell HE, Riggs DB, Lester GE, et al. Increased rate of fractures and severe kyphoses: sequelae of living into adulthood with cystic fibroses. Ann Intern Med 1998; 128:186-93., diabetes relacionada à fibrose cística 3636. Alves C, Della-Manna T, Albuquerque CTM. Cystic fibrosis-related diabetes: an update on pathophysiology, diagnosis, and treatment. J Pediatric Endocrinol Metab 2020; 33:835-43., alterações hepatobiliares 3737. Bhardwaj S, Canlas K, Kahi C, Temkit M, Molleston J, Ober M, et al. Hepatobiliary abnormalities and disease in cystic fibrosis: epidemiology and outcomes through adulthood. J Clin Gastroenterol 2009; 43:858-64., entre outras. É também nesse período que a doença pulmonar começa a se agravar, demandando mais internações para ciclos de antibiótico venoso e mais tempo dedicado às fisioterapias respiratórias. Geralmente, nessa fase a maioria dos pacientes evolui para infecções crônicas por um ou mais agentes, a mais comum delas é a Pseudomonas aeruginosa3838. Gilligan PH, Kiska DL, Appleman MD. Cystic fibrosis microbiology. Washington DC: ASM Press; 2006., aumentando o número de exacerbações. Devido ao reduzido repertório de antibióticos disponíveis, a resistência a eles é um relato frequente.

Portanto, para esses pacientes, conciliar um tratamento cada vez mais exigente com as demandas de estudos, de uma formação plena visando à construção de uma carreira, ou a ocupação de um cargo de trabalho, é um desafio imenso. O futuro para esses pacientes e seus familiares é conquistado duramente e ainda, para muitos, é uma aposta improvável.

Aqui cabe uma reflexão sobre inovações tecnológicas e doenças raras. Atualmente, consta no protocolo clínico de diretrizes terapêuticas (PCDT) da fibrose cística 3939. Ministério da Saúde. Portaria Conjunta nº 8, de 15 de agosto de 2017. Aprova os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas da fibrose cística - manifestações pulmonares e insuficiência pancreática. Diário Oficial da União 2017; 4 set. apenas um antibiótico, a tobramicina inalatória. O pedido de incorporação desse medicamento ao SUS foi feito pelo poder Judiciário Federal de Sergipe. O processo foi avaliado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias pelo SUS (Conitec) em dezembro de 2015 e recebeu parecer inicial desfavorável 4040. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde. Relatório de recomendação - antibiótico inalatório tobramicina para colonização das vias aéreas em pacientes com fibrose cística. Brasília: Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde; 2016.. Após consulta pública, a Conitec se reuniu novamente e em outubro de 2016 mudou o seu parecer e recomendou a incorporação da tobramicina inalatória, que passou a constar no PCDT da fibrose cística em 2017 e foi incluída na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) em 2020.

Um olhar apressado para essa situação poderia dizer que recentemente a fibrose cística teve uma incorporação de uma inovação tecnológica ao seu tratamento e que a comunidade foi atendida em suas necessidades. Sem desconsiderar a importância desse fato, gostaríamos de dizer que essa incorporação aconteceu com vinte anos de atraso. A tobramicina inalatória foi aprovada para uso das pessoas com fibrose cística em dezembro de 1997 4141. U.S. Food & Drug Administration. Tobi (tobramycin inhalation). https://www.accessdata.fda.gov/scripts/cder/daf/index.cfm?event=overview.process&ApplNo=050753 (acessado em 19/Ago/2020).
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, pela FDA, e em abril de 2003 foi aprovada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA). No Brasil, ela só foi possível diante da mobilização dos pacientes e de seus familiares. A consulta pública, na qual se aceitava contribuições da sociedade e contribuições técnicas, teve um total de 235 participações. Dessas, a maioria foi feita por familiares e cuidadores. Profissionais de saúde, farmacêuticos, médicos (contribuições técnicas) somaram 27 contribuições. Atualmente, pacientes que não respondem mais ao uso dessa medicação precisam buscar na justiça o direito à versão de formulação em pó seco (TOBI Podhaler), aprovada nos Estados Unidos em maio de 2013. O produto reduz o tempo de administração para pacientes em cerca de 70%, o que garante maior adesão.

“Qual a sua mutação?”

A genética sempre foi um conhecimento chave no entendimento de como essa doença complexa funciona. Em 8 de setembro de 1989, o canadense John Richard Riordan, junto aos biólogos Francis Collins e Lap-Chee Tsui foram reconhecidos pela descoberta do gene CFTR e da mutação F508del, primeira variante descrita como causadora da fibrose cística 4242. Riordan JR, Rommens JM, Kerem B, Alon N, Rozmahel R, Grzelczak Z, et al. Identification of the cystic fibrosis gene: cloning and characterization of complementary DNA. Science 1989; 245:1066-73. e também a mais comum. Trinta anos depois, em outubro de 2019, Francis Collins 4343. Cystic Fribrosis Foundation. Plenary 2: entering the era of highly effective modulator therapy. Video: 1h34min. https://www.youtube.com/watch?v=vEYG3PCXyIc.
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anunciou, na Conferência Norte-Americana de Fibrose Cística, a aprovação do mais novo modulador do CFTR. Junto com outras três drogas já lançadas pela mesma companhia farmacêutica, a combinação elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor atende a pacientes com pelo menos uma cópia da mutação F508del. Os resultados obtidos nos ensaios clínicos foram muito expressivos, apontando para uma mudança importante na história natural dessa doença 4444. Middleton PG, Mall MA, Dřevínek P, Lands LC, McKone EF, Polineni D, et al. Elexacaftor-tezacaftor-ivacaftor for cystic fibrosis with a single Phe508del allele. N Engl J Med 2019; 381:1809-19.. Os demais moduladores foram lançados, respectivamente, nos Estados Unidos em 2012, 2015 e 2018, são eles: ivacaftor, lumacaftor/ivacaftor e tezacaftor/ivacaftor. Assim, é possível afirmar que, em termos de inovação tecnológica, vive-se hoje um momento único para os indivíduos com fibrose cística, já que é no nível molecular que novos agentes terapêuticos são selecionados, manipulados, combinados e testados 4545. Rose N. A política da própria vida - biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Editora Paulus; 2013..

Ousaríamos dizer que para as pessoas com fibrose cística, assim como já acontece com outras doenças raras, é no nível molecular que a vida pode ser revolucionada. Isso inaugura uma perspectiva mais identitária, centrada nos sujeitos e nas relações que eles estabelecem com a doença. Muitos pacientes têm suas mutações tatuadas em seus corpos como uma das marcas de sua biografia. A fibrose cística pode ser vista como um ótimo exemplo para muitas das discussões que vão articular estudos do campo das ciências humanas no encontro com a biotecnologia, biomedicina e genética. Ela materializa um empreendimento científico e econômico no campo da biomedicina, tecida entre genes, canais de cloro, moduladores, variantes, pacientes, pais, organizações de pacientes, pesquisadores, investidores, laboratórios e gestores.

Novos coletivos organizados em torno de uma característica biomédica compartilhada, de um fator de risco, ou ainda, em torno de doenças ou deficiências são grupos biossociais 4646. Hacking I. Genetics, biosocial groups & the future of identity. Daedalus 2006; 135:81-95.. Esses grupos buscam suporte mútuo, de produção e troca de conhecimento sobre suas condições e em torno de ações de advocacy e de ativismo, procurando influenciar agendas de pesquisas e de políticas públicas, com base em suas condições biológicas específicas. Seus integrantes, para além de sujeitos de pesquisa, querem ser efetivamente participantes ativos dos processos que as constituem e de seus resultados pleiteando um modelo de “engaged research4747. Bowman S, Morris K, Adshead M. A framework for engaged research. Society and higher education addressing grand societal challenges together. http://www.campusengage.ie/wp-content/uploads/2018/12/Framework_for_Engaged_Research_May_18_Web.pdf (acessado em 02/Dez/2020).
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. Rabinow 4848. Rabinow P. Artificiality and enlightenment: from sociobiology to biosociality. In: Crary J, Kwinter S, editores. Incorporations. New York: Zone Books; 1992. p. 179-93. foi quem primeiro cunhou o termo biossocialidade em 1992, para descrever, num contexto de fundação do projeto genoma humano, a possibilidade de construção de identidades individuais e coletivas em torno de genótipos específicos. Novas 4949. Novas C. The political economy of hope: patients’ organizations, science and biovalue. BioSocieties 2006; 1:289-305. afirma que a formação desses grupos que emergiram num contexto de aprofundamento dos conhecimentos genéticos, se organiza ao redor da esperança no desenvolvimento da cura ou de tratamentos cada vez mais eficazes para suas doenças. Assim, grupos de pacientes na promoção da saúde e do bem-estar daqueles que representam, envolvem-se em várias práticas: produzem e dividem informações atuais sobre as doenças e avanços em pesquisas, participam de congressos, organizam encontros de pacientes, promovem simpósios de discussão com experts e articulam encontros sobre advocacy e direitos em saúde. Ainda buscam ampliar a participação de pacientes e familiares nas instâncias reguladoras, além de estreitar a aproximação com representantes políticos. Algumas associações de pacientes são reconhecidas internacionalmente pela sua capacidade de gerenciar e interferir em pesquisas científicas 4949. Novas C. The political economy of hope: patients’ organizations, science and biovalue. BioSocieties 2006; 1:289-305.. Essas organizações controlam os registros de seus pacientes, bem como suas amostras biológicas (sangue, tecidos e DNA). Além disso, financiam pesquisas que as interessam, por meio de um trabalho intenso de doações e criação de fundos para estudos de suas doenças. Todas essas práticas constituem o que Novas 4949. Novas C. The political economy of hope: patients’ organizations, science and biovalue. BioSocieties 2006; 1:289-305. chamou de uma economia política da esperança. Assim, principalmente nas últimas duas décadas, associações de pacientes têm demandado um maior protagonismo nas decisões políticas e científicas.

Foucault 5050. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 1999. nos ensina que a partir da segunda metade do século XVIII, outra tecnologia de poder foi instalada, não mais centrada sobre o corpo individual, materializada nas práticas disciplinares sobre ele (vigilâncias, medições, classificações). Essa nova tecnologia de poder vai se debruçar sobre o próprio fenômeno da vida, dedicando-se ao conjunto de processos que regulam e controlam a população. A essa nova tecnologia de poder ele vai chamar de biopolítica. Informações traduzidas em taxas de nascimento, óbitos e fecundidade aliadas aos problemas econômicos e políticos irão constituir seus primeiros objetos de saber e de controle. A biopolítica considera a população como um problema ao mesmo tempo científico, político, biológico e um problema de poder 5050. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 1999..

Na política da vida, no século XXI, destaca-se uma profunda molecularização dos pensamentos, dos modelos, das intervenções e das respostas gestadas no campo biomédico 4545. Rose N. A política da própria vida - biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Editora Paulus; 2013.. Tal biopolítica molecular visualiza a vida em outro nível 4545. Rose N. A política da própria vida - biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Editora Paulus; 2013.. Baseando-se em novas descobertas no campo da genética e da biotecnologia, é nessa dimensão que a vida se torna aberta à política. As discussões sobre como “aumentar a vida, prolongar a sua duração, multiplicar suas possibilidades, desviar seus acidentes, ou então compensar suas deficiências5050. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 1999. (p. 295), agora são travadas também nesse novo espaço. Associações de pacientes vêm afirmando esse campo molecular como um campo de fazer viver. Assim, para Novas 4949. Novas C. The political economy of hope: patients’ organizations, science and biovalue. BioSocieties 2006; 1:289-305., a economia política da esperança cria uma “mutação” na biopolítica do nosso tempo, uma vez que grupos afetados por doenças genéticas estão diretamente envolvidos na promoção do bem-estar e da saúde de indivíduos e das populações afetadas pelas mesmas condições. Esses grupos contribuem diretamente para a produção do conhecimento biológico sobre elas, organizam a captação de recursos e contribuem na elaboração das normas de regulação da pesquisa científica nas quais estão envolvidos.

As organizações de pacientes com fibrose cística nos Estados Unidos ilustram muito bem essa biopolítica molecular, embora o mesmo ainda não ocorra na América Latina, onde ainda impera a biopolítica tradicional. No Brasil, observa-se a deterioração progressiva do arremedo de Estado de bem-estar social que nunca foi efetivado realmente. Os investimentos para o atendimento aos direitos sociais decrescem inequivocamente. Esse panorama geral leva cada vez mais estudiosos a classificarem essa política como necropolítica: “uma política na qual a vida é objeto de cálculos, na qual se deixam morrer os não-rentáveis (dependentes, enfermos crônicos, idosos, deficientes)5151. Gefaell CV. De la necropolítica neoliberal a la empatía radical: violencia discreta, cuerpos excluidos y repolitización. Barcelona: Içaria & Mas Madera; 2015. (p. 22-3). Ainda a narrativa dos governos neoliberais e de seus aparatos de comunicação tem como objetivo despolitizar e fazer acreditar que os problemas socioeconômicos são fruto da má sorte e de responsabilidade individual. Desse modo, culpabiliza e despolitiza a pobreza, faz-se o mesmo com as doenças crônicas, com a deficiência, com a saúde mental, com as doenças raras, com os idosos 5151. Gefaell CV. De la necropolítica neoliberal a la empatía radical: violencia discreta, cuerpos excluidos y repolitización. Barcelona: Içaria & Mas Madera; 2015.. Esses cidadãos são apresentados para a sociedade como um “peso”, como um “fardo” cujo custo, injustamente, todos terão de arcar. Nas discussões sobre acesso e incorporação de novas tecnologias no tratamento de pacientes com doenças raras, esse argumento está presente, sendo frequentemente expresso na ênfase dada ao alto custo dos novos produtos sem que políticas públicas dedicadas ao enfrentamento da questão sejam sequer cogitadas. Inviabilizados ao serem rotulados como “raros” e “caros”, deixam de ser considerados como incluídos no preceito constitucional que determina que a saúde é um direito de todos.

Queremos aqui evidenciar os vários elementos que atravessam a complexa realidade local dos pacientes brasileiros com fibrose cística num contexto global de inovação e de ruptura de paradigma em seus tratamentos. Assim, não falar dessas realidades aparentemente opostas, numa discussão por acesso à inovação e aos novos e melhores tratamentos, é escolher ignorar que elas se conhecem, se interpelam e se olham o tempo todo, e aceitar a lógica discriminatória injusta do neoliberalismo.

A inovação e a pesquisa que acontecem lá fora são acompanhadas aqui por muitos pacientes em tempo real, por meio do acesso imediato que as tecnologias de comunicação contemporânea permitem. Pacientes brasileiros e suas famílias acompanham os pacientes estrangeiros que descrevem, a cada dia, sua melhora e evolução com o uso dos novos moduladores. Das quatro novas medicações, três moduladores têm registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): ivacfator (2018), lumacaftor/ivacaftor (2018) e tezacaftor/ivacaftor (2020); o último deles, a tripla combinação elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor, ainda não tem previsão de registro no nosso país. Nenhum deles, até a conclusão deste artigo, foi incorporado ao SUS.

Como dar acesso às esperanças dos pacientes brasileiros, uma vez que a ciência e a tecnologia desenvolvidas em outros países já “resolveram” o problema? Como isso conversa com as políticas públicas, com as discussões sobre investimentos em pesquisa, com as parcerias entre público e privado e parcerias de desenvolvimento e pesquisa? Como compatibilizar a sustentabilidade do SUS e ao mesmo tempo o direito universal à saúde? De que modo as demandas por tratamento e por acesso às inovações em tecnologia em saúde de cerca de 15 milhões de brasileiros com doenças raras estão sendo absorvidas, geridas e respondidas?

A fibrose cística na era da medicina de precisão

Para pacientes com doenças raras, o resultado de um diagnóstico genético pode significar não apenas o final da odisseia pelo diagnóstico, mas o início de uma nova; a odisseia terapêutica 1111. Tabor HK, Goldenberg A. What precision medicine can learn from rare genetic disease research and translation. AMA J Ethics 2018; 20:E834-40.. Conhecer a origem genética de uma determinada doença ou síndrome pode trazer alguma informação para os familiares sobre os riscos envolvidos em futuras gestações e, talvez, algum alívio em relação às incertezas sobre o prognóstico da doença em questão. Porém, poucas vezes apresenta um caminho terapêutico claro ou alguma alternativa preventiva. Esse descompasso entre a identificação de uma variante genética e a indicação de um caminho efetivo de tratamento tem sido objeto de crítica àqueles que depositaram muitas esperanças no mapeamento do genoma humano. Essa crítica torna-se mais contundente e necessária uma vez que metade das doenças raras afeta crianças que, a despeito de saberem o que têm, continuam morrendo antes de chegar à vida adulta 1111. Tabor HK, Goldenberg A. What precision medicine can learn from rare genetic disease research and translation. AMA J Ethics 2018; 20:E834-40..

Ainda assim, especialmente nas doenças monogênicas, avanços significativos têm sido alcançados. Para elas, é mais simples determinar alvos terapêuticos 5252. Klein C, Gahl WA. Patients with rare diseases: from therapeutic orphans to pioneers of personalized treatments. EMBO Mol Biol 2018; 10:1-3.. Alguns exemplos de avanços nos tratamentos produzidos com base nessa perspectiva de intervenção farmacêutica incluem terapias de reposição de enzimas para doenças metabólicas, antisense oligonucleotídeos para atrofia muscular espinhal ou pequenas moléculas (moduladores) para o tratamento da fibrose cística ou miastenia grave 5252. Klein C, Gahl WA. Patients with rare diseases: from therapeutic orphans to pioneers of personalized treatments. EMBO Mol Biol 2018; 10:1-3..

Embora as doenças raras forneçam inspiração para tratamentos terapêuticos personalizados, em todos os níveis ainda persistem grandes problemas e desafios 5252. Klein C, Gahl WA. Patients with rare diseases: from therapeutic orphans to pioneers of personalized treatments. EMBO Mol Biol 2018; 10:1-3.. Desenvolver terapias e medicamentos para doenças raras esbarra nas dificuldades em estabelecer ensaios clínicos randomizados, estudos duplo-cego, estudos de longa duração. Enfim, o padrão-ouro para a pesquisa terapêutica não é factível para muitas das doenças raras. Para atender as demandas de pesquisa e de inovação para essas doenças novos modelos para análise estatística são necessários. Além disso, existem muitos obstáculos regulatórios e altos custos associados aos ensaios clínicos. E os aspectos éticos envolvendo princípios de justiça distributiva e igualdade de acesso são, muitas vezes, silenciados ao longo do processo 5252. Klein C, Gahl WA. Patients with rare diseases: from therapeutic orphans to pioneers of personalized treatments. EMBO Mol Biol 2018; 10:1-3..

Mesmo assim, avanços no tratamento das doenças raras nunca foram tão significativos. A fibrose cística tem sido apontada como um caso exemplar desses avanços e vista como um modelo no desenvolvimento de terapias personalizadas 99. Lima MAFD, Gilbert ACB, Horovitz DDG. Redes de tratamento e as associações de pacientes com doenças raras. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3247-56.,2525. Cystic Fibrosis Foundation. Cystic Fibrosis Foundation patient registry highlights, 2019. https://www.cff.org/Research/Researcher-Resources/Patient-Registry/Cystic-Fibrosis-Foundation-Patient-Registry-Highlights.pdf (acessado em 21/Ago/2020).
https://www.cff.org/Research/Researcher-...
,2626. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EFA, et al. Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. J Bras Pneumol 2017; 43:219-45.,2727. Castro MCS, Firmida MC. O tratamento na fibrose cística e suas complicações. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ 2011; 10:82-108.,2929. Cutting GR. Cystic fibrosis genetics: from molecular understanding to clinical application. Nat Rev Genet 2015; 16:45-56.,4949. Novas C. The political economy of hope: patients’ organizations, science and biovalue. BioSocieties 2006; 1:289-305..

Essa mudança de escala abriu um outro mundo para a fibrose cística, o mundo dos pacientes “elegíveis” para os novos moduladores do CFTR, a partir do surgimento do ivacaftor, primeiro corretor da proteína CFTR, em 2012. Aqueles familiares e pacientes mais próximos das pesquisas em desenvolvimento passaram a falar, junto com muitos autores, que a fibrose cística tinha entrado na era de medicina genômica, medicina personalizada, medicina de precisão. Nessas denominações rebuscadas são depositadas camadas e camadas de apostas e esperanças. E de fato os novos tratamentos para fibrose cística estão sendo produzidos dentro desse novo modo de fazer ciência. Definitivamente, mudamos de cadência 4545. Rose N. A política da própria vida - biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Editora Paulus; 2013.. Mudaram os nomes também. Na verdade, não se fala mais em “novos tratamentos”, eles agora são “life changing drugs”. Pacientes e profissionais de saúde têm sido convocados a entender e dominar esse novo mundo molecular e suas apostas. Na fibrose cística essa medicina personalizada pode ser ainda mais precisa 5353. Manfredi C, Tindall JM, Hong JS, Sorscher EJ. Making precision medicine personal for cystic fibrosis. Science 2019; 365:220-1.. Os moduladores podem ser testados diretamente sobre mini-guts5454. Sain A. Cystic fibrosis patients benefit from mini guts. Cell Stem Cell 2016; 19:425-7. (organoides) formados a partir de células colhidas por biopsia retal e levadas a laboratório para o cultivo. Esses organoides com variantes não testadas para esses novos moduladores, agora possibilitam avaliar se aquela é uma mutação-alvo para aquele medicamento. Iriart 5555. Iriart JAB. Medicina de precisão/medicina personalizada: análise crítica dos movimentos da biomedicina no início do século XXI. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00153118. (p. 4) destacou que a medicina personalizada ou de precisão ganha fôlego num contexto em que “...a biologia não é mais vista como destino, mas como oportunidade de intervenção tecnológica”. Essa frase faz todo o sentido se colocada no contexto contemporâneo da fibrose cística. A crítica feita a essas novas questões alerta em relação à produção de novas desigualdades, exclusões, enfrentamento de biotecnologias cada vez mais caras, que irão onerar os serviços públicos de saúde. Essas discussões e outras sobre os desafios no desenvolvimento de novos fármacos e autonomia tecnológica do país em termos de pesquisa e inovação, frequentemente silenciam sobre as doenças raras. Apesar desse “abandono”, ou melhor, independentemente disso, pacientes com fibrose cística seguem conectados com as novas perspectivas advindas de todo esse investimento biotecnológico. Assim, se antes as perguntas mais comuns eram “Qual é a sua bactéria?”, “Qual a sua função pulmonar?”, agora a pergunta é: “Qual a sua mutação?”. Passou a ser vital saber “se a minha mutação é tratável”; “se a minha mutação pode ser consertada”.

Do mesmo modo, para os sistemas de saúde públicos, ter registro e informação confiáveis sobre o número de pacientes e suas mutações implica a previsibilidade em relação aos investimentos que as demandas pela incorporação dessas novas tecnologias podem suscitar. Implica também reconhecer que a falta de conhecimento e de informações organizadas sobre as pessoas com doenças raras no país, por parte dos gestores nos três níveis: municipal, estadual e federal, é um problema de saúde pública. O Registro Brasileiro de Fibrose Cística, gerenciado pelo GBEFC, é resultado do trabalho desenvolvido desde 2009 pelo grupo, inicialmente apoiado por oito laboratórios privados com atuação no país. Em 2016, o registro começou a trazer, com o apoio de um desses laboratórios, um levantamento mais completo da genotipagem da população brasileira que antes só contava com testes de painéis de mutações mais comuns feitos pelos poucos estados a incluí-las no programa de triagem neonatal (PTN), por projetos de pesquisa em universidades e instituições públicas como a Fiocruz ou pelo acesso a laboratórios particulares. Esse levantamento, feito com base no sequenciamento completo do gene CFTR, possibilitou que boa parte dos pacientes que ainda não conhecia suas variantes as identificasse. Mais do que levantar os possíveis conflitos de interesse nessa parceria, rapidamente apontados por parte dos gestores públicos, gostaríamos de ressaltar a ausência de possibilidade de realizar esse teste pelo SUS, com uma única exceção para o Estado do Rio Grande do Sul 5656. Rispoli T, Castro SM, Grandi T, Prado M, Filippon L, Dornelles CM, et al. A low-cost and simple genetics screening for cystic fibrosis provided by the Brazilian public health system. J Pediatr 2018; 199:272-7.. Além disso, demarcar que o conhecimento das mutações e das suas classes pode sim encaminhar tratamentos terapêuticos específicos 5757. Paranjape SM, Mogayzel PJ. Cystic fibrosis in the era of precision medicine. Paediatr Respir Rev 2018; 25:64-72., eficazes que retardam a progressão da doença e diminuem as dificuldades aliadas a um tratamento diário e exigente. Não há dúvidas de que o laboratório tem interesses relacionados com essa ação, mas eles não são menos legítimos que os interesses dos pacientes de serem tratados e dos governos de ponderarem seus gastos, mas há que se considerar também que os pacientes têm direitos constitucionais que o Estado deve prover e, para isto, deve envidar esforços para a formulação de políticas que garantam a integralidade do cuidado.

Essa testagem mais avançada também possibilitou a identificação de pacientes que eram tratados como “duvidosos”. Com o sequenciamento, alguns apresentaram uma variante em um único alelo ou mesmo nenhuma variante, mas ainda assim apresentam sintomas característicos e continuam em seguimento em busca de um diagnóstico diferencial. Na esfera coletiva, a inovação tecnológica e o impacto dos avanços nas pesquisas biomédicas já vêm demandando, das associações de pacientes, uma ação política cada vez mais qualificada na negociação com os vários sujeitos envolvidos. Pensar a categoria doenças raras como um objeto de fronteira, permite perceber que aqueles que precisam habitá-las intimamente experimentam o desconforto constante de precisar conhecer e dominar muitos territórios, sendo em cada um deles sempre um estrangeiro, sempre um outsider.

Mas afinal, quanto custa ser raro?

Se para pacientes e seus familiares ter à disposição um medicamento que trata o defeito base de sua doença não tem preço, para administradores e gestores públicos essas medicações têm custo, aliás, são medicações de altíssimo custo. Mas é exatamente o Estado que tem potencial para negociar preços e políticas. Pacientes com doenças raras vêm enfrentando nos últimos anos uma certa “responsabilização” por onerar o sistema público de saúde com demandas judiciais por medicamentos de alto custo que impactam o orçamento, mas a omissão é do Estado, que não busca soluções além de negar acesso às novas e dispendiosíssimas tecnologias. No contexto da judicialização da saúde 1717. D’Ippolito PIMC, Gadelha CAG. O tratamento de doenças raras no Brasil: a judicialização e o Complexo Econômico Industrial da Saúde. Saúde Debate 2019; 43(n.esp 4):219-31., os pacientes e seus familiares são frequentemente culpabilizados por impactar o orçamento do SUS.

As associações que brigam por seus pacientes há décadas não surgiram no contexto dessas novas tecnologias e não foram criadas pela indústria farmacêutica. Elas entendem que tanto para pacientes quanto para o governo, a incorporação de medicamentos de alto custo é o melhor caminho já que permitirá a negociação e consequente redução de preço dos medicamentos, regulação e fiscalização da sua utilização como é feito em outros países. Possibilita o acompanhamento dos pacientes e a produção, na vida real, de dados qualificados que complementam os existentes sobre eficácia e segurança, uma vez que devido ao universo reduzido dos pacientes os dados obtidos nos ensaios clínicos são sempre apontados como insuficientes. Essa é ainda outra questão relevante: avaliar drogas órfãs para doenças raras pelos mesmos critérios aplicados para as drogas usadas no tratamento das doenças prevalentes é negar a realidade destas doenças e de seus pacientes 5858. Cordovil C. Precisamos conversar sobre “utilitarismo” e “custo-efetividade”. https://academiadepacientes.com.br/precisamos-conversar-sobre-utilitarismo-e-custo-efetividade/ (acessado em 23/Ago/2020).
https://academiadepacientes.com.br/preci...
. Custo-efetividade, segurança e eficácia, padrões-ouro na Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) não contemplam as peculiaridades das doenças raras e nem de seus tratamentos. Muito recentemente essas questões passaram a ser apontadas e problematizadas para além dos grupos de pacientes e ativistas. Vivemos um momento em que os discursos circulantes sobre essas questões começam a reconhecer que o sistema de saúde precisa dar uma resposta efetiva à comunidade de doenças raras do nosso país. Abandonar pacientes à própria sorte ou delegar para a Justiça decisões em saúde deixou de ser uma escolha viável. Numa sociedade globalizada onde os avanços da nova genética e biomedicina cada vez mais fazem viver, simplesmente deixar morrer, embora seja uma estratégia da necropolítica atuante e poderosa como apontou Gefaell 5151. Gefaell CV. De la necropolítica neoliberal a la empatía radical: violencia discreta, cuerpos excluidos y repolitización. Barcelona: Içaria & Mas Madera; 2015., já não é mais tão simples assim. “Somos, raros, somos caros, mas não somos descartáveis5959. Movimento Minha Vida Não Tem Preço. Mobilização pela vida! Facebook 2020; 10 mar. https://www.facebook.com/1696165017371366/posts/2581627948825064/.
https://www.facebook.com/169616501737136...
, dizem os pacientes raros de várias formas em várias instâncias.

Uma possibilidade de ampliar esse debate diz respeito a um olhar sobre a saúde e inovação com base no Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) 6060. Gadelha CAG, Temporão J. Desenvolvimento, inovação e saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1891-902.. Discussões tecidas dentro desse referencial marcam o desenvolvimento econômico como um processo não linear e chamam a atenção para uma compreensão do campo da saúde como um campo estratégico de geração de emprego e renda. Nessa perspectiva, decisões econômicas constroem um modelo de sociedade, ao mesmo tempo em que um modelo de sociedade mais inclusivo e equânime vai demandar que os investimentos aconteçam no sentido de garantir uma relativa estrutura produtiva e autonomia tecnológica.

A recente expansão da indústria farmacêutica e o seu despertar para as atividades de inovação, não permitem ainda afirmar uma ruptura com a dependência tecnológica que sempre caracterizou o setor, expressão de um sistema passivo de aprendizagem e de inovação 6161. Delgado IJG. Sistemas de atenção à saúde, Estado e inovação na indústria farmacêutica. Cad Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00037415.. Cabe fazer uma ressalva importante. Todas essas discussões sobre a necessidade de inovação acontecem tendo como perspectiva as questões de saúde que mais afetam a população. Assim essas discussões são feitas, na maior parte das vezes, tendo as doenças prevalentes como demandante de investimentos em pesquisa e desenvolvimentos de novos serviços em saúde, novos instrumentos tecnológicos e novos fármacos. Pensar essas questões tendo como cenário também as doenças raras é um desafio ainda a ser enfrentado tanto teoricamente quanto materialmente, na concretude do dia a dia do CEIS e do SUS.

Desse modo, pacientes e seus familiares não têm outra alternativa a não ser brigar aqui pelo direito ao acesso às descobertas e inovações de lá. Essa briga guarda muitas assimetrias e desigualdades nas relações de poder entre os diversos atores e interesses envolvidos.

Recentemente, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs medidas para aumentar a transparência dos mercados de medicamentos, vacinas e produtos de saúde, enfatizando a necessidade de maior publicização das diversas etapas que compõem o preço final dos medicamentos. Luzzato et al. 6262. Luzzato L, Hyry HI, Schieppati A, Costa E, Simoens S, Schaefer F, et al. Outrageous prices of orphan drugs: a call for collaboration. Lancet 2018; 392:791-4. destacam que o preço dos medicamentos costuma lembrar os preços de bens de consumo, em que a prática vigente é ir atrás do preço mais alto que o mercado permitir. No entanto, ressaltam os autores, é absurdo considerar um paciente com uma doença grave ao longo da vida como um consumidor que vai escolher, livremente, qual carro comprar. A maioria das doenças raras não tem nenhum tipo de tratamento disponível. Aquelas que têm, na maioria das vezes, têm apenas uma droga disponível, criando as condições para uma situação de monopólio. Esse é mais um campo complexo de discussão e de disputa, estabelecer a melhor forma de avaliar o valor de um medicamento. Luzzato et al. 6262. Luzzato L, Hyry HI, Schieppati A, Costa E, Simoens S, Schaefer F, et al. Outrageous prices of orphan drugs: a call for collaboration. Lancet 2018; 392:791-4. apostam num trabalho colaborativo entre pacientes, médicos e governos como uma estratégia possível de estabelecimento de preços mais justos.

Pessoas com doenças raras existem e suas vidas importam. Gestores e especialistas precisam verdadeiramente entender isso e reconhecer a necessidade de construir outros caminhos. Nesse contexto, pensar outras alternativas e possibilidades na incorporação das drogas órfãs no tratamento de doenças raras é imprescindível. É um dever moral para governos e profissionais reconciliar pesquisas caras que levem a novos tratamentos com a capacidade de realmente fornecê-los aos pacientes afetados 6262. Luzzato L, Hyry HI, Schieppati A, Costa E, Simoens S, Schaefer F, et al. Outrageous prices of orphan drugs: a call for collaboration. Lancet 2018; 392:791-4.. Porém, como sempre, o ritmo das negociações, discussões com laboratórios, especialistas e governo nunca é o mesmo da necessidade dos pacientes. Esse é um fator que impacta profundamente pacientes e familiares, ignorado nas discussões e debates em torno do tema.

Considerações finais

O presente artigo buscou trazer a discussão da inovação em saúde, numa perspectiva das doenças raras, localizando as considerações com base no contexto de uma doença rara em especial, a fibrose cística. Baseando-se num entendimento da categoria doenças raras como um objeto de fronteira construído numa rede de significados envolvendo diferentes interesses, o trabalho tentou dar visibilidade à complexidade dos campos de conhecimento e dos vários atores envolvidos nessa discussão.

A ciência tem conseguido oferecer novas possibilidades terapêuticas para as doenças raras. Enfrentar o desafio de oferecer tratamentos mais avançados, efetivos, personalizados e caros demanda um compromisso coletivo com crianças e adultos com doenças raras que vivem sob ameaça constante de suas condições de saúde. As discussões no campo da saúde pública precisam abraçar essa complexidade, participando ativamente do debate, enfrentando ao lado dos pacientes os desafios da implantação de políticas diferenciadas de cuidado e de pesquisa que realmente viabilizem o acesso às novas tecnologias em saúde. A escassa publicação de artigos na coleção de Saúde Pública contemplando essas questões 1515. Iriart JAB, Nucci MF, Muniz TP, Viana GB, Aureliano WA, Gibbon S. Da busca pelo diagnóstico às incertezas do tratamento: desafios do cuidado para as doenças genéticas raras no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3637-50. reforça um sentimento comum às pessoas com doenças raras: quando se fala em nome da saúde da população, elas não estão naturalmente contempladas nesse coletivo. Companhias farmacêuticas também precisam se reposicionar nesse contexto, considerando tanto o bem-estar dos pacientes como o valor social dos medicamentos em pé de igualdade com os lucros.

Escrever um artigo que toca “nas bordas” de vários campos é assumir os riscos de muitas lacunas. Mesmo assim acreditamos que discussões feitas sobre inovação, tecnologia, doenças raras e acesso a novos tratamentos não devem e nem podem ser insuladas num campo só. Essas discussões são sociais, são científicas, são econômicas, são políticas, são morais e éticas. Nesse campo, especificamente, elas falam da possibilidade concreta de vida de muitos sujeitos nelas tramados e têm consequências contundentes na vida de todos que os cercam.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2020
  • Revisado
    19 Ago 2020
  • Aceito
    01 Out 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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