Da crise psiquiátrica à crise psicossocial: noções presentes nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis

From the psychiatric to the psychosocial crisis: the views present in the Child and Adolescent Psychosocial Care Centers

De la crisis psiquiátrica a la crisis psicosocial: notas presentes en los Centros de Atención Psicosocial Infantojuvenil

Beatriz Rocha Moura Marianna de Francisco Amorim Alberto Olavo Advincula Reis Thelma Simões Matsukura Sobre os autores

Resumos

Este artigo tem como objetivo identificar as noções de crise presentes nos discursos de trabalhadores e gestores de Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSij), à luz dos paradigmas vigentes no campo, indicando possíveis impasses e avanços da atenção psicossocial de crianças e adolescentes. Serão apresentados os resultados articulados de três estudos exploratórios de natureza qualitativa, que abordam o tema da crise nos CAPSij da cidade de São Paulo, Brasil. Foram utilizados como instrumentos de coleta de dados: questionário, roteiros de entrevistas semiestruturadas e grupo focal. Para análise de dados utilizou-se a Análise de Conteúdo Temática, identificando duas categorias principais: crise psiquiátrica e crise psicossocial. A noção de crise psiquiátrica se refere à presença de sintomas agudos e discute-se o quanto essa concepção é insuficiente para responder à complexidade das situações de crise. A noção de crise psicossocial inscreve o sofrimento como uma experiência singular e social, revelando a importância dos contextos microssociais (família, escola, assim como outras instituições e comunidades) e macrossociais (dimensões sociais, históricas, culturais, políticas e econômicas) na compreensão da crise. A presença de ambas as noções evidencia a coexistência dos paradigmas psiquiátrico e psicossociai, além de revelar o processo de transição paradigmática em que esses serviços se encontram. Por fim, reiteramos que a produção do sofrimento psíquico em crianças e adolescentes é complexa e, na mesma medida, seus recursos e respostas também deverão ser, protegendo-os, assim, de processos que produzem mais sofrimento como a institucionalização, a patologização, a medicalização e a estigmatização.

Palavras-chave:
Saúde Mental; Serviços Comunitários de Saúde Mental; Intervenção na Crise; Criança; Adolescente


This article aims to identify the signs of crisis present in the discourses of Child and Adolescent Psychosocial Care Centers (CAPSij) workers and managers, in the light of the current paradigms in the field, indicating possible impasses and advances in psychosocial care for children and adolescents. We present the results of three exploratory and qualitative studies, which address the theme of the crisis in the CAPSij in the city of São Paulo, Brazil. We used as data collection instruments: a questionnaire, semi-structured interview scripts, and a focus group. We used the Thematic Content Analysis for data analysis, identifying two main categories: psychiatric crisis and psychosocial crisis. The notion of psychiatric crisis refers to the presence of acute symptoms and discusses how insufficient this conception is to respond to the complexity of crisis situations. The notion of a psychosocial crisis inscribes suffering as a singular and social experience revealing the importance of micro (family, school, other institutions, and community) and macro-social (social, historical, cultural, political, and economic) contexts in understanding the crisis. It is understood that the presence of both notions evidences the coexistence of psychiatric and psychosocial paradigms, revealing the process of paradigmatic transition in which these services are inserted. Finally, it is reiterated that the production of psychic suffering in children and adolescents is complex and that, to the same extent, their resources and responses should also be complex, thus protecting them from processes that produce more suffering such as institutionalization, pathologization, medicalization, and stigmatization.

Keywords:
Mental Health; Community Mental Health Services; Crisis Intervention; Child; Adolescent


El presente artículo tiene como objetivo identificar las nociones de crisis presentes en los discursos de los trabajadores y gestores de los Centros de Atención Psicosocial Infantil y Juvenil (CAPSij), a la luz de los paradigmas actuales en el campo, indicando posibles impasses y avances de la atención psicosocial de niños y adolescentes. Se presentan los resultados articulados de tres estudios exploratorios y de naturaleza cualitativa que abordan el tema de la crisis en los CAPSij de la ciudad de São Paulo, Brasil. Se utilizaron como instrumentos de recogida de datos: cuestionario, guiones de entrevistas semiestructuradas y grupo de discusión. Para el análisis de los datos se utilizó el Análisis de Contenido Temático, identificando dos categorías principales: crisis psiquiátrica y crisis psicosocial. La noción de crisis psiquiátrica se refiere a la presencia de síntomas agudos y se discute cómo este concepto es insuficiente para responder a la complejidad de las situaciones de crisis. La noción de crisis psicosocial inscribe el sufrimiento como una experiencia singular y social, revelando la importancia de los contextos microsocial (familia, escuela, otras instituciones y comunidad) y macrosocial (dimensiones sociales, históricas, culturales, políticas y económicas) en la comprensión de la crisis. Se entiende que la presencia de ambas nociones pone de manifiesto la coexistencia de los paradigmas psiquiátrico y psicosocial, revelando el proceso de transición paradigmática en el que se encuentran estos servicios. Finalmente, se reitera que la producción de sufrimiento psicológico en los niños y adolescentes es compleja y que, en la misma medida, sus recursos y respuestas deben ser también complejos, protegiéndolos de procesos que producen más sufrimiento como la institucionalización, la patologización, la medicalización y la estigmatización.

Palabras-clave:
Salud Mental; Servicios Comunitarios de Salud Mental; Intervención en la Crisis (Psiquiatría); Niño; Adolescente


Introdução

No contexto brasileiro das políticas públicas, a tomada de responsabilidade pela saúde mental infantojuvenil é recente, o que revela um processo de inserção tardia dessa pauta na agenda da saúde pública e no processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira 11. Vicentin MCG. Infância e adolescência: uma clínica necessariamente ampliada. Rev Ter Ocup 2006; 17:10-7.,22. Couto MC, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicol Clín 2015; 27:17-40.. Nesse sentido, a história da saúde mental infantojuvenil é marcada por uma lacuna assistencial no setor público, suprida por instituições, em sua maioria de natureza privada ou filantrópica 33. Ribeiro PRM. História da saúde mental infantil: a criança brasileira da Colônia à República Velha. Psicol Estud 2006; 11:29-38.,44. Rizzini I. Abordagem crítica da institucionalização infantojuvenil no Brasil. In: Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde, organizador. Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 31-6..

Apenas no início do século XXI, com a III Conferência Nacional de Saúde Mental, a saúde mental infantojuvenil foi encampada como pauta prioritária no processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira. Nessa circunstância, a criação dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSij) mostra-se como uma grande conquista 55. Ministério da Saúde. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da União 2002; 20 fev.. Os CAPSij são serviços comunitários de atenção diária destinados a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso. Estes serviços devem trabalhar de maneira intersetorial em parceria com os equipamentos da rede de saúde, educação e assistência social e articulado com os recursos do território 66. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..

De maneira geral, podemos compreender as mudanças no campo da saúde mental infantojuvenil a partir de uma dupla transição paradigmática. O primeiro eixo se refere à mudança do paradigma menorista tutelar, para o paradigma da proteção integral 11. Vicentin MCG. Infância e adolescência: uma clínica necessariamente ampliada. Rev Ter Ocup 2006; 17:10-7. e o segundo eixo se refere à mudança do paradigma psiquiátrico para o paradigma psicossocial 77. Yasui S. Vestígios, desassossegos e pensamentos soltos: atenção psicossocial e a reforma psiquiátrica em tempos sombrios [Tese de Livre Docência]. Assis: Universidade Estadual Paulista; 2016..

O paradigma menorista tutelar é marcado pela institucionalização da infância e adolescência pobre no país, respaldado pelas ideias higienistas e pelo Código de Menores de 1927, na qual crianças e adolescentes abandonadas, assim como delinquentes, tiveram como destino instituições de segregação e controle 33. Ribeiro PRM. História da saúde mental infantil: a criança brasileira da Colônia à República Velha. Psicol Estud 2006; 11:29-38.,44. Rizzini I. Abordagem crítica da institucionalização infantojuvenil no Brasil. In: Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde, organizador. Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 31-6.. É uma lógica que individualiza o sofrimento, medicaliza as questões sociais e culpabiliza a população pobre por suas mazelas. Desse modo, o primeiro eixo se refere a uma recente mudança na concepção de crianças e adolescentes não mais como objetos de repressão-tutela, mas sim como sujeitos autônomos, de direitos e responsabilidades. A mudança é marcada pela promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente88. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul., que inclui a população infantojuvenil como prioridade absoluta nas políticas públicas.

Com relação ao segundo eixo, é visto que no campo da saúde mental há a coexistência de dois paradigmas que se confrontam e disputam sua ascendência: o paradigma psiquiátrico e o paradigma psicossocial. O paradigma psiquiátrico é marcado pela redução do sofrimento humano ao simples objeto da doença mental, descolado do corpo social e da existência global dos sujeitos. Já o paradigma psicossocial considera o sofrimento humano em sua diversidade e complexidade, incluindo seus múltiplos planos singulares, familiares, comunitários, sociais, culturais e macroestruturais 77. Yasui S. Vestígios, desassossegos e pensamentos soltos: atenção psicossocial e a reforma psiquiátrica em tempos sombrios [Tese de Livre Docência]. Assis: Universidade Estadual Paulista; 2016.. Para o campo da saúde mental infantojuvenil, considera-se que processos históricos vivenciados por crianças e adolescentes como institucionalização em suas diversas formas, violação dos direitos fundamentais, patologização e medicalização da vida 44. Rizzini I. Abordagem crítica da institucionalização infantojuvenil no Brasil. In: Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde, organizador. Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 31-6.,99. Jerusalinsky J, Moreno MI, Pimentel FA. A era da palmatória química e da camisa de força tarja preta: medicalização versus reconhecimento do sofrimento psíquico da criança na polis. In: Catão I, organizadora. Mal-estar na infância e medicalização do sofrimento: quando a brincadeira fica sem graça. Salvador: Ágalma; 2020. p. 175-207. podem ser vistos como expressões do paradigma psiquiátrico.

Ao compreender que as noções assumidas pelas equipes refletem nas práticas de cuidado realizadas pelos serviços, o acolhimento à crise de crianças e adolescentes revela que, diante de situações-limite, as equipes comprometidas com o paradigma psicossocial passam a recorrer de expedientes originários do paradigma psiquiátrico. Desde modo, a crise em saúde mental infantojuvenil adquire relevância, podendo tanto ser estudada per se, quanto analisada como sinalizadora das ambiguidades ou hesitações em curso nos dispositivos estratégicos de cuidado em saúde mental.

Com relação ao entendimento da crise pela perspectiva psicossocial, Dell’Acqua & Mezzina 1010. Dell'Acqua G, Mezzina R. Resposta à crise: estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: Amarante PD, organizador. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2005. p. 161-94. contribuem com essa reflexão ao apresentá-la como uma complexa situação existencial, que muitas vezes se encontra escamoteada pela simplificação de uma existência de sofrimento a expressão de sintomas. Para esses autores, os serviços territoriais apresentam potenciais recursos que permitem a sustentação da crise em seus locais de vida e em sua rede de relações, colocando-a no interior de uma série de nexos que são capazes de torná-la compreensível. Isso possibilita que o usuário possa atravessar essa experiência preservando sua continuidade existencial e histórica. No campo da saúde mental infantojuvenil, observa-se que a crise, a partir do paradigma psicossocial, ainda é um conceito em construção. Porém, a prática dos serviços territoriais e o campo de conhecimento têm revelado premissas que auxiliam a enunciar a crise nessa perspectiva:

A percepção de que o desenvolvimento infantojuvenil ocorre enlaçado com sua rede de relações e contextos de vida. Por essa razão o cuidado da crise deve incluir os cenários que compõem a vivência do sofrimento, como escola, família e comunidade;

A necessidade de incluir a interdisciplinaridade e a intersetorialidade, ampliando o olhar e as possibilidades de cuidado nas situações de crise;

As ações de cuidado devem respeitar radicalmente a posição de sujeito de direitos de crianças e adolescentes, preservando-os de toda e qualquer forma de institucionalização, violência e violação de seus direitos.

Especificamente sobre as noções de crise na infância e adolescência assumidas pelas equipes de CAPSij, os estudos de Moura 1111. Moura BR. A atenção à crise nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis [Dissertação de Mestrado]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2018. e Amorim 1212. Amorim MF. Atenção voltada à crise de crianças e adolescentes: noções e práticas [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2020. revelam que as equipes apresentam uma tendência a compreender a crise dentro de uma perspectiva psicossocial, mas aspectos do paradigma psiquiátrico ainda se fazem presentes. Os resultados do estudo de Pereira et al. 1313. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Uma onda que vem e dá um caixote: representações e destinos da crise em adolescentes usuários de um CAPSi. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:3733-42. salientam que a crise envolve forte sofrimento psíquico sinalizado tanto pelos adolescentes, quanto por pessoas próximas e, até mesmo, pelos próprios profissionais. O estudo de Rossi et al. 1414. Rossi LM, Marcolino TQ, Speranza M, Cid MFB. Crise e saúde mental na adolescência: a história sob a ótica de quem vive. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00125018. aponta que a vivência da crise é representada pelos adolescentes como sentimentos intensos de angústia, tristeza e desvalia, ideação e tentativa de suicídio, que são compreendidos e vivenciados como um problema individual; já para os familiares os sentimentos de medo, perplexidade e culpa se fazem presentes 1515. Rossi LM, Cid MFB. Adolescências, saúde mental e crise: a história contada por familiares. Cad Bras Ter Ocup 2019; 27:734-42..

Como observado, poucos são os estudos que focalizam o tema da crise na infância e adolescência, o que revela a necessidade de novas pesquisas que abordem a temática a partir da perspectiva psicossocial. Além disso, devido à carência de conceitos sobre crise na infância e adolescência, são necessários estudos que se debrucem a elucidar o tema, a partir das experiências, percepções e construções dos próprios trabalhadores e gestores dos serviços de saúde mental.

Objetivo

Esse artigo tem como objetivo identificar as noções de crise presentes nos discursos de trabalhadores e gestores de CAPSij, à luz dos paradigmas vigentes no campo, indicando possíveis impasses e avanços da atenção psicossocial de crianças e adolescentes.

Metodologia

Considerando o objetivo apresentado, este artigo é composto pelos resultados articulados de três estudos exploratórios de natureza qualitativa, que abordam o tema da crise na infância e adolescência nos CAPSij da cidade de São Paulo, Brasil. Os participantes foram trabalhadores e gestores de CAPSij II e CAPSij III, de diferentes regiões da cidade, com ambos os tipos de administração - Administração Direta pela Prefeitura Municipal de São Paulo e contratos de gestão com Organizações Sociais de Saúde. As três pesquisas se debruçaram sobre o mesmo objeto de estudo - atenção à crise nos CAPSij - e, em seus instrumentos de coleta de dados, tinham em comum a seguinte pergunta norteadora: “como você compreende crise na saúde mental infantojuvenil?”.

O Estudo 1 contemplou todos CAPSij de uma mesma Coordenadoria Regional de Saúde (CRS), contou com a participação de seis gestores dos CAPSij, que preencheram um questionário junto de suas equipes. Os resultados deste estudo estão identificados como CAPS A, CAPS B, CAPS C, CAPS D e CAPS E.

Já o Estudo 2 foi realizado em dois CAPSij de outra CRS, no qual foram feitos dois grupos focais em cada serviço, a fim de contemplar todas as perguntas do roteiro e se esgotarem as discussões naquele momento. Um grupo focal contou com 15 trabalhadores e o outro com 6 (nomeados como Equipe A e Equipe B) e duas entrevistas semiestruturadas com gestoras desses CAPSij (nomeadas como Gerente A e Gerente B).

Por fim, o Estudo 3 foi feito em seis CAPSij III de todas as CRS, contemplando o total de CAPSij III do município (na ocasião da coleta de dados). Uma entrevista semiestruturada foi realizada com cada um dos gestores desses serviços, com tempo de duração que variou de acordo com a necessidade de compartilhamento dos temas elencados no roteiro (nomeados como Gerente 1, Gerente 2, Gerentes 3, Gerente 4, Gerente 5 e Gerente 6).

Cabe ressaltar que, uma das autoras foi trabalhadora e gestora de CAPS na cidade de São Paulo, compondo a equipe de um dos CAPSij participantes do Estudo 1, no entanto, ela não foi participante do estudo. Já os outros autores não tinham nenhum vínculo com os serviços pesquisados. Os materiais de campo dos três estudos foram gravados, transcritos e considerados em sua totalidade para análise, passando por um processo de categorização a posteriori. Todos foram analisados a partir da Análise de Conteúdo Temática 1616. Bardin L. Análise de conteúdo. 4ª Ed. Lisboa: Edições 70; 2011. em constante diálogo com a literatura disponível sobre o tema.

Todos os procedimentos adotados nos três estudos obedeceram aos critérios da ética em pesquisa com seres humanos conforme a Resolução nº 466/2012 do Ministério da Saúde, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) das universidades responsáveis pelos estudos (Universidade Federal de São Carlos - Estudo 1: CAAE 61243816.0.0000.5504 e Estudo 3: CAAE 12417719.5.0000.5504; Universidade de São Paulo - Estudo 2: CAAE 16621919.9.0000.5421), bem como pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (Estudo 1: CAAE 61243816.0.3001.0086; Estudo 2: CAAE 16621919.9.3001.0086; Estudo 3: CAAE 12417719.5.3001.0086).

Resultados e discussão

Múltiplas noções de crise em saúde mental infantojuvenil emergiram a partir da perspectiva de trabalhadores e gestores dos CAPSij estudados, evidenciando a complexidade e a densidade dessa temática. As noções são utilizadas para definir uma ideia ou um fenômeno, porém de maneira menos elaborada. Apesar de se relacionarem com os elementos de uma teoria, não possuem clareza e aprofundamento suficiente para alcançar o status de conceito. São utilizadas para descrever determinadas experiências que precisam de uma explicação que as aproxime do real 1717. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2014..

A partir da análise dos dados, identificaram-se duas categorias temáticas principais: crise psiquiátrica e crise psicossocial. Vale ressaltar que as noções de crise emergentes do campo apareceram muitas vezes concomitantemente nos discursos, evidenciando o intercruzamento e atravessamento do paradigma psiquiátrico e do psicossocial. São dois paradigmas que coexistem e estão presentes não somente no discurso, mas também nas práticas de cuidado dos CAPSij, revelando o processo de transição paradigmática em que esses serviços se encontram.

Costa-Rosa 1818. Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000; p. 141-68. alerta que, em um primeiro momento, os modos asilares e psicossociais podem ser entendidos como simples opostos, fazendo um convite para que as contradições sejam compreendidas não como disfunções ou desvios, mas como resultado de disputas entre grupos e interesses sociais presentes nas instituições.

A categorização visa apenas a discussão dos resultados e a escolha das autoras em refletir sobre os paradigmas presentes no campo, não objetivando reduzir os discursos dos participantes a uma única noção, nem produzir dicotomias no campo. Para fins didáticos, essas categorias serão apresentadas e discutidas separadamente.

Crise psiquiátrica

Uma categoria que emergiu dos discursos das equipes dos CAPSij é a noção de crise enquanto expressão e agudização de sintomas psiquiátricos:

A equipe compreende crise em saúde mental infantojuvenil quando os usuários estão com sintomas mais agudos, sofrimento mais intenso, agitação psicomotora, ideação suicida, abstinência, se colocando em risco, quando oferecem risco a outros e quando não sustentam outros espaços sociais” (CAPS A).

Quando está começando a responder um pouco mais agressivamente com as pessoas ou ficando mais introspectivo, se fechando em si ou tendo pensamentos mais de querer morrer e de se automutilar” (Gerente 1).

Eu acho que tem a crise mais do surto psicótico (...) de uma desorganização psíquica” (Equipe B).

Ferigato et al. 1919. Ferigato SH, Onocko-Campos R, Ballarin ML. O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP 2007; 6:31-44. apontam que a concepção psiquiátrica de crise reduz toda a complexidade desse fenômeno à agudização de sintomas, sendo entendido como um processo negativo e prejudicial que deve ser suprimido o mais rápido possível. Tal concepção é característica da lógica asilar e manicomial. Porém, vale ressaltar que considerar a presença de sintomas no fenômeno da crise não evidencia por si só a preponderância do paradigma psiquiátrico, pois essa manifestação sintomática também pode ser lida como expressões das dimensões psicossociais. Desse modo, os sintomas podem ser considerados, a partir da perspectiva do paradigma psiquiátrico, como um fenômeno reducionista e individualizante ou, pela perspectiva do paradigma psicossocial, de modo mais amplo e compreensivo, considerando os aspectos sociais que o compõem.

Entendendo que o manicômio não é apenas um lugar, mas um produto da ideologia psiquiátrica, também traduzida em outros cenários 2020. Saraceno B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidade possível. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Te Corá; 2001., percebe-se que o paradigma psiquiátrico está presente na lógica hegemônica vigente, expressado em toda sociedade. Portanto, vale destacar que mesmo que os serviços busquem operar na lógica psicossocial, a presença do paradigma psiquiátrico é revelada nos processos sociais e nas práticas de cuidado, evidenciando a coexistência de ambos os paradigmas.

Trazendo essa leitura para a infância e adolescência e considerando o manicômio para além de um lugar, mas como expressão de uma estrutura que se apresenta nos diversos mecanismos de opressão da sociedade (fábricas, instituições para “menores”, cárceres, entre outros espaços sociais) 2121. Conselho Regional de Psicologia - 6ª Região. Trancar não é tratar: liberdade é o melhor remédio. São Paulo: Conselho Regional de Psicologia - 6ª Região; 1997., reflete-se que toda e qualquer forma de institucionalização, violência, violação de direitos, medicalização, patologização e estigmatização de crianças e adolescentes é manicômio para essa população. Desse modo, compreende-se que as situações de crise entendidas somente como agudização de sintomas podem ampliar essas expressões manicomiais, que descontextualizam e individualizam o sofrimento e segregam crianças e adolescentes.

É urgente reconhecer que o sofrimento de crianças e adolescentes não é linear e que a presença de sintomas está entrelaçada a vários fatores. Com isso, demandam-se intervenções complexas que considerem todas as dimensões da vida desses sujeitos e que não permita a redução do cuidado “a uma palmatória química e a uma camisa de força tarja preta99. Jerusalinsky J, Moreno MI, Pimentel FA. A era da palmatória química e da camisa de força tarja preta: medicalização versus reconhecimento do sofrimento psíquico da criança na polis. In: Catão I, organizadora. Mal-estar na infância e medicalização do sofrimento: quando a brincadeira fica sem graça. Salvador: Ágalma; 2020. p. 175-207. (p. 200). Saraceno 2020. Saraceno B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidade possível. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Te Corá; 2001. discute sobre a insuficiência do modelo psiquiátrico para explicar e intervir sobre o sofrimento psíquico, uma vez que ele está relacionado a uma constelação de variáveis, não necessariamente intrínsecas à doença. Na maioria das vezes o sofrimento se liga aos contextos microssociais (família e comunidade), pressupondo estratégias de manejo ambiental distantes das estratégias comuns propostas pelo modelo psiquiátrico biomédico.

Considerando que a atenção psicossocial de crianças e adolescentes se configura a partir de preceitos territoriais, comunitários, interdisciplinares e intersetoriais, observamos o quanto a noção psiquiátrica é insuficiente para responder à complexidade envolvida nas situações de crise vivenciadas por essa população.

Outro aspecto bastante presente nas falas dos gestores relaciona-se ao conceito de crise associado ao risco, a situações que envolvem perigo para si e para o outro, dando elementos que contribuem com a discussão de urgências e emergências e as situações de crise.

Ele pode ter alguma questão externa ou interna que faça ele ter uma resposta mais exacerbada ainda com aquele sofrimento, seja querer se automutilar, seja até mesmo tentar o suicídio ou partir para o ato de violentar, de agredir alguém” (Gerente 1).

Tem as crises psíquicas que chegam aqui quebrando tudo, desorganizados psiquicamente” (Gerente 6).

Ideias de urgência e emergência, apesar de próximas da noção de crise, são insuficientes para incluir a diversidade presente nas situações de crise 2222. Jardim K, Dimenstein M. Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica. Psicol Rev (Belo Horizonte) 2007; 13:169-90.. Dessa forma, nem toda crise deve ser entendida enquanto urgência ou emergência psiquiátrica, não demandando, necessariamente, um manejo com as mesmas tecnologias de cuidado dispensadas para tais eventos 2323. Dias MK, Ferigato SH, Fernandes ADSA. Atenção à crise em saúde mental: centralização e descentralização das práticas. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:595-602.. Para Jardim & Dimenstein 2222. Jardim K, Dimenstein M. Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica. Psicol Rev (Belo Horizonte) 2007; 13:169-90., relacionar o risco à crise justifica ações de supressão e favorece a reprodução de práticas manicomiais em serviços de urgência. As autoras sugerem que os serviços de urgência ofereçam uma atenção imediata à pessoa em crise, baseando-se em uma ética-cuidado e desconstruindo a ideia de urgência psiquiátrica. É importante considerar que em algumas situações específicas a crise pode se tornar uma demanda de urgência ou emergência, sendo oportuno acionar serviços que ofertem esse cuidado na Rede de Atenção Psicossocial 2424. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Diário Oficial da União 2011; 26 dez., principalmente em situações que envolvam riscos clínicos. Em tais contextos, deve-se considerar o risco potencial para vida e sua exigência de preservação, tornando-se essencial o acesso a esses serviços.

Vale relembrar que sempre há o risco de medicalização das situações de crise, reduzindo questões de ordem social a questões de ordem individual. Isso leva a procedimentos médicos que incidem sobre o sujeito na tentativa de aplacar um risco que muitas vezes envolve sobremaneira os contextos micro e macrossociais. Sendo assim, situações que envolvem risco devem ser analisadas e avaliadas por uma equipe interdisciplinar, diminuindo as chances de uma leitura reducionista sobre o fenômeno da crise e suas consequências no cuidado.

Nos resultados apresentados, a questão do risco aparece bastante relacionada a auto e heteroagressividade. Em estudo de Scivoletto et al. 2525. Scivoletto S, Boarati MA, Turkiewicz G. Emergências psiquiátricas na infância e adolescência. Rev Bras Psiquiatr 2010; 32:112-20., o comportamento agressivo é apontado como a principal causa de atendimento psiquiátrico emergencial na infância e adolescência. Situações que envolvem agressividade parecem se mostrar bastante desafiantes às equipes de CAPSij, uma vez que podem gerar sentimentos intensos (como medo, raiva, impotência, frustração e insegurança), fazendo com que a equipe reproduza intervenções desnecessárias, que incidem apenas sobre o sujeito, simplificam o sofrimento e não respondem às suas necessidades reais.

As pessoas são os recursos mais importantes no cuidado em saúde mental. No entanto, essa intensidade nas relações, vivenciada principalmente em situações de crise, na mesma medida que produz potência para o cuidado também produz desafios. O uso exarcebado de si vivenciado pelas equipes de CAPSij pode levar a tensões, conflitos e sentimentos intensos que precisam ser cuidados pelo coletivo, a fim de que as equipes não se enredem em armadilhas manicomiais no processo de produção do cuidado de crianças e adolescentes.

Crise psicossocial

É importante considerarmos que a vivência da crise na infância e adolescência apresenta algumas especificidades. Crianças e adolescentes se encontram em condição peculiar de desenvolvimento, um processo que implica diretamente suas relações e contextos de vida. Nenhuma criança ou adolescente pode crescer e se desenvolver sem ter laços sociais assegurados em torno de si 11. Vicentin MCG. Infância e adolescência: uma clínica necessariamente ampliada. Rev Ter Ocup 2006; 17:10-7.. O fenômeno da crise em crianças e adolescentes revela uma complexidade, uma vez que envolve diversas dimensões - desenvolvimentais, subjetivas, familiares, sociais, históricas e culturais. Assim, uma situação de crise revela não somente o sofrimento de uma criança e de um adolescente, mas também toda a fragilidade e potência de sua rede de suporte 2626. Moura BR, Matsukura TS. Atenção à crise de crianças e adolescentes: estratégias de cuidado dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis sob a ótica de gestores e familiares. Physis (Rio J.) 2022; 32:e320113..

No campo da saúde mental infantojuvenil é essencial que os serviços se ocupem da criança, do adolescente e de tudo que envolve a produção do sofrimento nessa fase da vida (como sua família, sua escola e sua comunidade), compreendendo que o desenvolvimento é dinâmico e ocorre enlaçado com todos seus contextos e relações. Assim, considerando que a crise é caracterizada pela indissociabilidade entre suas dimensões individuais e coletivas 2727. Kaës R. Crisis, ruptura y superación. In: Kaës R, organizador. Análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Ediciones Cinco; 1979. p. 7-47., a perspectiva psicossocial inscreve o sofrimento como uma experiência que é singular mas também relacional, social, histórica e cultural. O trecho a seguir exemplifica a noção de crise psicossocial:

Adotamos o conceito de crise psicossocial. Considerando que situações de crise vão além dos sintomas patológicos, envolvendo por sua vez todo o contexto no qual a crise acontece” (CAPS D).

A crise psicossocial está relacionada aos contextos microssociais, família, escola e outras instituições e aos contextos macrossociais, que abarcam dimensões sociais, históricas, culturais, políticas e econômicas.

Os contextos microssociais encontram-se intrinsecamente interligados ao processo de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Dessa forma, as situações de crise poderiam emergir quando perdas significativas nesses contextos se evidenciam, como, por exemplo, dificuldades nos estudos, nas relações com os colegas, nas vivências de conflitos familiares e outras circunstâncias.

Acho que as crianças nesse sentido estão muito em relação à família, à escola, aos lugares onde ela está, né? (...) nessa rede de cuidados e na rede afetiva. Então, ela, muitas vezes, é um sintoma dessa rede também. A crise aparece bastante dessa forma” (Equipe B).

Jovens com a questão de vulnerabilidade social da família que não tá dando conta. Então a gente tem muito conflito familiar, eu acho que hoje o que mais implica é isso. Um ou outro é psicótico, um ou outro acontece, mas a grande maioria não é não” (Gestora B).

A família tem um papel central no cuidado à saúde mental de crianças e adolescentes. O contexto familiar é, de modo geral, o primeiro espaço de convivência, cuidado, desenvolvimento e pertencimento da criança, a partir do qual ela irá se constituir enquanto sujeito. No âmbito das políticas públicas de saúde mental, a família emerge como um ponto extremamente potente e importante para o cuidado territorial. Porém, é importante reconhecer que a família se apresenta tanto como unidade cuidadora quanto de cuidado. É essencial que os serviços reconheçam esses lugares, buscando construir estratégias que acolham, fortaleçam e oportunizem a vivência do protagonismo familiar.

Além da família, a escola se constitui como um importante lugar social da criança e do adolescente, seu lócus de desenvolvimento social, cognitivo, afetivo, de cidadania e de participação social. É um espaço de potência para articulação de novas formas de sociabilidade, modos de viver, estar e participar do mundo 2828. Souza CZ. Avanço à ação intersetorial: produção de saúde mental na escola. Brasília: Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde; 2010.. Os trechos a seguir revelam o lugar que as vivências escolares ocupam nas situações de crise:

Não consegue continuar estudando, continuar tendo as suas relações, fora da família, amigos e tudo o mais. (...) está tendo perdas, está começando ir mal na escola” (Gerente 1).

Eu acho que também as questões da escola, o ambiente escolar acaba favorecendo muito para a crise dos usuários” (Gerente 6).

O estudo de Taño & Matsukura 2929. Taño BL, Matsukura TS. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Physis (Rio J.) 2019; 29:e290108. também revela que os coordenadores de CAPSij destacaram as escolas como produtoras de mecanismos de exclusão, como exigência de laudos e diagnósticos, rigidez institucional, entre outros. Outros estudos revelam que parte dos adolescentes usuários do CAPSij estavam desvinculados da escola 1111. Moura BR. A atenção à crise nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis [Dissertação de Mestrado]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2018.,3030. Fernandes ADSA, Matsukura TS. Adolescentes no CAPSi: relações sociais e contextos de inserção. Rev Ter Ocup 2015; 26:216-24.. Entre os motivos apontados, foram encontradas desde dificuldades em acompanhar os conteúdos formais até a impossibilidade de permanecer na escola em razão do sofrimento psíquico 3030. Fernandes ADSA, Matsukura TS. Adolescentes no CAPSi: relações sociais e contextos de inserção. Rev Ter Ocup 2015; 26:216-24.. Já para os que estavam inseridos no ambiente escolar foi identificada uma realidade de sofrimento e exclusão, apresentadas pelas dificuldades relacionadas ao processo de aprendizagem deficitário, socialização, bullying e estigma social, chegando a situações de expulsão escolar 1111. Moura BR. A atenção à crise nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis [Dissertação de Mestrado]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2018.. Apesar do direito à educação ser recomendado a todas as crianças e adolescentes 88. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul., vale ressaltar que é preciso garantir muito além do acesso à escola. É preciso viabilizar oportunidades reais de aprendizagem e socialização para todos, inclusive aos que estão em condição de sofrimento psíquico.

Com relação aos contextos macrossociais, os participantes apontam o quanto as questões sociais, como a falta de acesso aos direitos sociais, violência e vulnerabilidade social produzem sofrimento em crianças, adolescentes e suas famílias:

A crise (...) ela pode ser sintoma de uma questão social, ela pode ser sintoma de um contexto familiar difícil, pode ser a fome, a miséria... (...) Está muito ligada com a sociedade, com os problemas do nosso país, das pessoas não terem garantidos seus direitos básicos de moradia, de alimentação, de acesso à escola, à saúde e também às famílias que já vivenciaram isso provavelmente desde criança, é um ciclo assim de coisas difíceis, abandono (...). Eu vejo as crises muito ligadas a esses contextos sociais” (Gerente 4).

Em um país com acentuadas desigualdades estruturais (sociais, raciais e de gênero), se faz urgente a compreensão dos contextos macrossociais na produção das situações de crise nas diferentes infâncias e adolescências, rompendo com a lógica medicalizante e individualizante, ainda persistente em nossa sociedade. Desse modo, incluir os contextos macrossociais como ferramentas de compreensão do sofrimento psíquico é uma tarefa ética e política do campo da saúde mental infantojuvenil, já que determinadas condições sociais estruturais estão diretamente relacionadas com as diversas possibilidades ou impossibilidades de ser e estar no mundo.

Ao considerarmos a complexidade da realidade brasileira, é fundamental que o campo da saúde inclua em suas discussões o referencial teórico da determinação social da saúde, que estabelece uma relação entre o processo saúde-doença individual e coletivo, compreendendo seu caráter histórico-social 3131. Rocha PR, David HMSL. Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Rev Esc Enferm USP 2015; 49:129-35.. Nesta perspectiva os fatores econômicos e sociais, os fatores ambientais de convivência e trabalho e os fatores culturais e seus valores podem ampliar ou restringir as possibilidades de saúde de uma população 3232. Campos GWS. Clínica e saúde coletiva compartilhada: teoria Paidéia e reformulação do trabalho ampliado em saúde. In: Campos GWS , Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec Editora; 2009. p. 41-80.. Breilh 3333. Breihl J. Una perspectiva emancipadora de la investigación e incidencia basada en la determinación social de la salud. Ciudad de México: Universidad Autónoma Metropolitana de Xochimilco/Asociación Latinoamericana de Medicina Social; 2011. destaca a importância de incluir classe, gênero e etnia como categorias de análise da determinação social da saúde, compreendendo sua relação dialética com as estruturas de poder. Nesse sentido, as discussões sobre determinação social da saúde dialogam diretamente com o de interseccionalidade.

...é muito importante a gente pensar numa clínica mais da interseccionalidade, sabe? Que a gente possa pensar transversalmente essas questões de gênero, raça, condição socioeconômica, do jeito que está no mundo porque isso atravessa os processos de crise na infância e adolescência. ‘Pô, fulano sabe ler e eu não!’. ‘Fulano é preto e eu sou branco’. ‘Meu cabelo é ruim’. ‘Eu tenho um corpo de menina, mas me sinto num corpo de menino’. ‘Eu sou gay e minha família é evangélica’. ‘Transei com o meu namorado, mas a minha religião não permite’. Isso está muito nas histórias assim, que a gente recebe” (Gerente 5).

O conceito de interseccionalidade busca apresentar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação, sendo eles: o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios que criam desigualdades básicas, gerando posições relativas de gêneros, raças, etnias, classes e outras 3434. Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas 2002; 10:171-88.. Os eixos de poder são como vias de uma cidade, que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. Apesar de serem eixos distintos, frequentemente se sobrepõem e se cruzam, engendrando complexas intersecções. Grupos marcados por múltiplas opressões, localizam-se nessas intersecções e estão sujeitos a serem atingidos de forma intensa por todas essas vias, em razão de suas identidades específicas 3434. Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas 2002; 10:171-88..

Acredita-se que crianças e adolescentes em sofrimento psíquico se encontram nessas intersecções de vias de poder. Primeiramente pela questão da faixa etária que já as colocam em situação de desvantagem, no qual sua voz e seu lugar de sujeitos de direitos são atravessados pelo poder do adultocentrismo. Outro poder bastante presente é o biomédico e seus processos de medicalização e patologização do sofrimento, que produz socialmente o estigma do louco, perigoso e incapaz, criando barreiras para o acesso aos direitos e a convivência social. Além das questões de gênero, classe e raça, que geram mais desigualdades e complexificam ainda mais a experiência do sofrimento. Crianças e adolescentes dissidentes de gênero e sexualidade, negros, pobres, em sofrimento psíquico ou com deficiência vivenciam e são expostos a violências de todas as ordens.

Por toda essa complexidade é que se faz necessário um olhar ampliado para o fenômeno da crise, analisando profundamente as intersecções que essas crianças e esses adolescentes estão submetidos. É urgente reconhecer que as infâncias e adolescências são singulares e plurais, a fim de compreender de forma crítica os processos de determinação social da saúde e a interseccionalidade e como eles afetam a vivência do sofrimento nos diferentes grupos. É necessário desinvisibilizar as diferenças e a construção de estratégias de cuidado e de luta pela garantia e acesso aos direitos que façam face às profundas desigualdades vivenciadas pelas crianças e adolescentes que enfrentam o sofrimento psíquico, em suas diferentes realidades sociais, culturais, políticas e econômicas.

De modo geral, as noções de crise apresentadas pelos participantes dos estudos abarcam a rede de relações (família, escola e o meio social em que vivem) dessas crianças e adolescentes. Tais achados evidenciam que as equipes apresentam noções complexas de crise pautadas nas situações de vida das crianças e adolescentes, o que poderia ser definido como crise psicossocial, ao considerar, além da dimensão individual, as dimensões familiares, históricas, sociais e culturais na complexa teia de fatores que constituem a vivência de sofrimento.

O trabalho na saúde mental infantojuvenil envolve, fundamentalmente, um trabalho com a família e as demais redes de circulação dessas crianças e adolescentes, marcando sua singularidade. De maneira geral, podemos pensar num intrincado entrelaçamento de crises familiares, institucionais e sociais, complexificando ainda mais todo esse cenário. Desse modo, compreende-se que os contextos micro e macrossociais compõem as situações de crise, podendo contribuir para produção de um maior sofrimento ou, ainda, para a produção de um maior cuidado e sustentação dessas experiências nas trajetórias de vida de crianças e adolescentes.

Frente a essa complexidade, defende-se que a intersetorialidade seja o caminho para a construção de um trabalho ampliado e em rede na infância e adolescência, tendo a potência de romper com o paradigma institucionalizante, medicalizante e excludente, tornando possível a construção de possibilidades de corresponsabilização para a produção do cuidado. Para Vicentin 3535. Vicentin MC. Criançar o descriançável. In: Núcleo de Apoio e Acompanhamento para Aprendizagem, Coordenadoria Pedagógica, Secretaria Municipal de Educação, organizador. Cadernos de debates do NAAPA: questões do cotidiano escolar. São Paulo: Coordenadoria Pedagógica, Secretaria Municipal de Educação; 2016. p. 35-43., é por meio de compromissos coletivos que somos capazes de sair da impotência e quebrar os feitiços sedativos que a exclusão tem sobre nós, reduzindo os efeitos das vulnerabilidades na vida de crianças e adolescentes.

A infância e adolescência reivindicam ações que extrapolam a dimensão individual, incluindo aspectos coletivos, como a garantia de laços sociais que sustentem as experiências vividas e uma rede de cuidados que promova proteção, garantia e acesso aos direitos. Por isso é tão importante que a compreensão da crise também esteja inscrita nessa lógica, que singulariza, amplia, complexifica e contextualiza as experiências de sofrimento vividas por crianças e adolescentes. Evitando-se, assim, a simplificação das histórias de sofrimento e a reprodução de processos de patologização e medicalização das infâncias e adolescências.

Considerações finais

Apesar da noção de crise ser amplamente utilizada nas políticas públicas e no cotidiano dos equipamentos de saúde mental, parece não haver um consenso sobre sua conceituação. É uma noção que abarca múltiplos e diversos sentidos, permitindo uma visão caleidoscópica. Essa multiplicidade de sentidos, ora complementares, ora opostos, desenhando-se a partir de várias dimensões, possibilitou a construção de duas categorias temáticas: crise psiquiátrica e crise psicossocial.

A noção de crise psiquiátrica é historicamente o conceito hegemônico presente no campo da saúde mental. Porém, o paradigma psicossocial propõe um rompimento dessa simplificação, compreendendo a crise como um fenômeno complexo e multifacetado, que inclui os contextos de vida e a rede de relações das pessoas em sofrimento psíquico. A presença da noção de crise psiquiátrica no relato das equipes aponta os desafios ainda presentes nesse campo e parece revelar o processo de transição paradigmática em que esses serviços se encontram, ora operando no paradigma psicossocial, ora no paradigma psiquiátrico.

O conceito de crise psicossocial, amplia e complexifica o entendimento da crise, sendo uma concepção alinhada aos princípios da atenção psicossocial de crianças e adolescentes. É um conceito que leva em consideração que o sofrimento psíquico é engendrado numa complexa teia que engloba dimensões micro e macrossociais, aproximando-se, assim, do paradigma psicossocial.

Nosso objetivo com essa reflexão foi apresentar que a produção do sofrimento psíquico em crianças e adolescentes é complexa e que seus recursos e respostas também deverão ser complexos, distanciando-se, assim, de qualquer explicação ou resposta reducionista. Por fim, reitera-se que proteger crianças e adolescentes de processos que produzem mais sofrimento como a institucionalização, a patologização, a estigmatização e a medicalização é um compromisso ético e político que deve compor o trabalho cotidiano junto a essa população.

Agradecimentos

Este artigo é composto de três estudos que contaram com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e é parte integrante das pesquisas de mestrado e doutorado de B. R. Moura e da pesquisa de mestrado de M. F. Amorim.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Revisado
    29 Set 2022
  • Aceito
    06 Out 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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