Fatores associados ao uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais entre homens que fazem sexo com homens no Brasil

Factors associated with inconsistent condom use among men who have sex with men in Brazil and their commercial sexual partners

Factores asociados al uso inconsistente del preservativo con las parejas comerciales entre los hombres que tienen sexo con hombres en Brasil

Jonatan da Rosa Pereira da Silva Daniela Riva Knauth Andréa Fachel Leal Laio Magno Ines Dourado Maria Amelia de Sousa Mascena Veras Ligia Regina Sansigolo Kerr Sobre os autores

Resumos

O objetivo foi analisar os fatores associados ao uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais entre homens que fazem sexo com homens (HSH) no Brasil. Foi feito um estudo transversal, com HSH adultos, recrutados por meio da técnica respondent-driven sampling (RDS), em 12 capitais brasileiras, em 2016. Os HSH responderam a um questionário sociocomportamental, que incluía questões sobre o comportamento sexual. O uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais foi mensurado por meio das relações sexuais anais insertivas e receptivas, ocorridas nos últimos seis meses e na última relação sexual. A associação entre as variáveis independentes e o uso inconsistente de preservativo foi mensurada utilizando o modelo de regressão de Poisson com variância robusta, com estimação de razões de prevalência ajustadas (RPa). Foram analisados dados de 461 HSH. A prevalência de uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais foi de 26% (IC95%: 19,0-34,3, n = 123). Pertencer às classes econômicas mais baixas (D/E), ter médio ou baixo conhecimento sobre HIV, ter praticado sexo anal insertivo e receptivo e nunca ter realizado teste para HIV na vida são fatores que estiveram associados ao uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais. As variáveis associadas ao uso inconsistente indicaram que o sexo comercial está sendo praticado em um contexto de maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV. Nesse sentido, são necessárias intervenções biomédicas e comportamentais, com foco no acesso e na utilização de estratégias de prevenção, aliadas a políticas públicas para a redução de desigualdades socioeconômicas entre HSH que praticam sexo comercial.

Palavras-chave:
Minorias Sexuais e de Gênero; Comportamento Sexual; Preservativos; Parceiros Sexuais; HIV


We aimed to analyze the factors associated with inconsistent condom use among men who have sex with men (MSM) and their commercial sexual partners in Brazil. This is a cross-sectional study with adult MSM who were recruited via respondent-driven sampling (RDS) in 12 Brazilian capitals in 2016. MSM answered a sociobehavioral questionnaire which included questions on their sexual behavior. The inconsistent use of condoms with their clientele was measured via insertive and receptive anal sex in the six months prior to our research and in their last sexual intercourse. The association between independent variables and the inconsistent use of condoms was measured via a Poisson regression model with robust variance and estimation of adjusted prevalence ratios (aPR). Data from 461 MSM were analyzed. We found a 26% prevalence of inconsistent condom use with their clientele (95%CI: 19.0-34.3, n = 123). Belonging to the lowest economic classes (D/E), having medium or low knowledge about HIV, having practiced insertive and receptive anal sex, and having never tested for HIV throughout their lives were associated with inconsistent use of condoms with their clientele. The variables associated with inconsistent use indicated that commercial sex is practiced in a context of greater vulnerability to HIV infection, referring to the need for biomedical and behavioral interventions which focus on access to and use of prevention strategies together with public policies to reduce socioeconomic inequalities among MSM who practice commercial sexual.

Keywords:
Sexual and Gender Minorities; Sexual Behavior; Condoms; Sexual Partners; HIV


El objetivo fue analizar los factores asociados al uso inconsistente del preservativo con las parejas comerciales entre los hombres que tienen sexo con hombres (HSH) en Brasil. Estudio transversal, con HSH adultos, reclutados a través de la técnica respondent-driven sampling (RDS), en 12 capitales brasileñas, en 2016. Los HSH respondieron a un cuestionario sociocomportamental que incluía preguntas sobre el comportamiento sexual. El uso inconsistente del preservativo con parejas comerciales se midió por las relaciones anales insertivas y receptivas que se produjeron en los últimos seis meses y por la última relación sexual. La asociación entre las variables independientes y el uso inconsistente del preservativo se midió mediante el modelo de regresión de Poisson con varianza robusta, con estimación de las razones de prevalencia ajustadas (RPa). Se analizaron los datos de 461 HSH. La prevalencia del uso inconsistente del preservativo con las parejas comerciales fue del 26% (IC95%: 19,0-34,3, n = 123). Pertenecer a las clases económicas más bajas (D/E), tener un conocimiento medio o bajo sobre el VIH, haber practicado sexo anal tanto insertivo como receptivo y no haberse sometido nunca a la prueba del VIH en su vida se asociaron con el uso inconsistente del preservativo con las parejas comerciales. Las variables asociadas al uso inconsistente indicaron que el sexo comercial se está practicando en un contexto de mayor vulnerabilidad a la infección por el VIH, refiriendo la necesidad de intervenciones biomédicas y conductuales, con un enfoque en el acceso y uso de estrategias de prevención, junto con políticas públicas para reducir las desigualdades socioeconómicas entre los HSH que practican el sexo comercial.

Palabras-clave:
Minorías Sexuales y de Género; Conducta Sexual; Condones; Parejas Sexuales; VIH


Introdução

Em todo o mundo, homens que fazem sexo com homens (HSH) permanecem desproporcionalmente afetados pela infecção do HIV. Mesmo em cenários em que a epidemia demonstra tendência de estabilidade ou declínio na população em geral, a incidência de HIV entre a população HSH continua crescendo, sugerindo que, nesse grupo, a epidemia permanece se expandindo 11. Beyrer C, Baral SD, van Griensven F, Goodreau SM, Chariyalertsak S, Wirtz AL, et al. Global epidemiology of HIV infection in men who have sex with men. Lancet 2012; 380:367-77..

No Brasil, estima-se que, entre 2007 e junho de 2021, foram notificados 266.360 casos de HIV entre homens, e que a população masculina corresponde a 69,8% dos casos notificados 22. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/Aids 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial.. No que tange à população HSH brasileira, estudos recentes apontam que a prevalência do vírus entre esse grupo específico passou de 12,1% (intervalo de 95% de confiança - IC95%: 10,0-14,5) em 2009 33. Guimarães MDC, Kendall C, Magno L, Rocha GM, Knauth DR, Leal AF, et al. Comparing HIV risk-related behaviors between 2 RDS national samples of MSM in Brazil, 2009 and 2016. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1):S62-8. para 18,4% (IC95%: 15,4-21,7) em 2016 44. Kerr L, Kendall C, Guimarães MDC, Salani Mota R, Veras MA, Dourado I, et al. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1):S9-15..

A concentração da epidemia de HIV entre a população HSH é resultante da combinação de fatores individuais, biológicos, comportamentais e estruturais, que atuam de forma sinérgica, potencializando a vulnerabilidade desse grupo à infecção pelo vírus, tornando necessária a conjugação de diferentes estratégias de prevenção 11. Beyrer C, Baral SD, van Griensven F, Goodreau SM, Chariyalertsak S, Wirtz AL, et al. Global epidemiology of HIV infection in men who have sex with men. Lancet 2012; 380:367-77.,55. World Health Organization. Consolidated guidelines on HIV prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. https://www.who.int/publications/i/item/9789241511124 (acessado em 26/Abr/2022).
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. Nesse contexto, mesmo em meio à introdução de novas tecnologias biomédicas, como as profilaxias pré-exposição (PrEP) e pós-exposição (PEP), o preservativo permanece uma importante ferramenta de prevenção a ser utilizada no âmbito da prevenção combinada, considerando sua eficácia, acessibilidade e custo-efetividade na prevenção do HIV e de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) 55. World Health Organization. Consolidated guidelines on HIV prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. https://www.who.int/publications/i/item/9789241511124 (acessado em 26/Abr/2022).
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,66. Dourado I, MacCarthy S, Reddy M, Calazans G, Gruskin S. Revisiting the use of condoms in Brazil. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 1:63-88..

Entretanto, a promoção do uso de preservativo entre HSH tem se mostrado um desafio para a saúde pública, uma vez que é grande a proporção de HSH que declara utilizar preservativo de forma inconsistente. Conforme um compilado de dados de mais de cem países, em apenas três destes, Benin, África do Sul e Uzbequistão, mais de 90% dos HSH entrevistados afirmaram ter utilizado preservativo em sua última relação sexual. Essa mesma publicação aponta que, no Brasil, entre 70% e 75% dos HSH afirmam terem utilizado preservativo na última relação sexual 77. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Prevention gap report 2016. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2016-prevention-gap-report_en.pdf (acessado em 26/Abr/2022).
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. Outros estudos apontam prevalências de 36,5% no uso inconsistente de preservativo entre HSH de 10 cidades do Brasil 88. Rocha GM, Kerr LRFS, Brito AM, Dourado I, Guimarães MDC. Unprotected receptive anal intercourse among men who have sex with men in Brazil. AIDS Behav 2013; 17:1288-95., de 41,9% e 29,7% entre HSH de 18-24 anos e de 29,7% entre HSH com mais de 25 anos 99. The Brazilian HIV/MSM Group; Rocha GM, Guimarães MDC, Brito AM, Dourado I, Veras MA, et al. High rates of unprotected receptive anal intercourse and their correlates among young and older MSM in Brazil. AIDS Behav 2020; 24:938-50..

Diferentes fatores podem influenciar o uso inconsistente de preservativo entre HSH. Entre eles, aspectos individuais como idade, escolaridade, situação conjugal e situação econômica 99. The Brazilian HIV/MSM Group; Rocha GM, Guimarães MDC, Brito AM, Dourado I, Veras MA, et al. High rates of unprotected receptive anal intercourse and their correlates among young and older MSM in Brazil. AIDS Behav 2020; 24:938-50.,1010. Cai Y, Lau JTF. Multi-dimensional factors associated with unprotected anal intercourse with regular partners among Chinese men who have sex with men in Hong Kong: a respondent-driven sampling survey. BMC Infect Dis 2014; 14:205.,1111. Li D, Li C, Wang Z, Lau JTF. Prevalence and associated factors of unprotected anal intercourse with regular male sex partners among HIV negative men who have sex with men in China: a cross-sectional survey. PLoS One 2015; 10:e0119977.,1212. Ramanathan S, Chakrapani V, Ramakrishnan L, Goswami P, Yadav D, Subramanian T, et al. Consistent condom use with regular, paying, and casual male partners and associated factors among men who have sex with men in Tamil Nadu, India: findings from an assessment of a large-scale HIV prevention program. BMC Public Health 2013; 13:827.,1313. Lachowsky NJ, Saxton PJW, Hughes AJ, Dickson NP, Summerlee AJS, Milhausen RR, et al. Younger gay and bisexual men’s condom use with main regular sexual partner in New Zealand. AIDS Educ Prev 2015; 27:257-74.; comportamentais, como a iniciação sexual, a prática durante a relação sexual, o número de parceiros sexuais ao longo da vida e o histórico de alguma IST 99. The Brazilian HIV/MSM Group; Rocha GM, Guimarães MDC, Brito AM, Dourado I, Veras MA, et al. High rates of unprotected receptive anal intercourse and their correlates among young and older MSM in Brazil. AIDS Behav 2020; 24:938-50.,1313. Lachowsky NJ, Saxton PJW, Hughes AJ, Dickson NP, Summerlee AJS, Milhausen RR, et al. Younger gay and bisexual men’s condom use with main regular sexual partner in New Zealand. AIDS Educ Prev 2015; 27:257-74.; e estruturais, como o acesso aos serviços de saúde e estratégias de prevenção e a participação em atividades de apoio social em organizações não governamentais (ONG) 11. Beyrer C, Baral SD, van Griensven F, Goodreau SM, Chariyalertsak S, Wirtz AL, et al. Global epidemiology of HIV infection in men who have sex with men. Lancet 2012; 380:367-77.,55. World Health Organization. Consolidated guidelines on HIV prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. https://www.who.int/publications/i/item/9789241511124 (acessado em 26/Abr/2022).
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,1414. Baral SD, Friedman MR, Geibel S, Rebe K, Bozhinov B, Diouf D, et al. Male sex workers: practices, contexts, and vulnerabilities for HIV acquisition and transmission. Lancet 2015; 385:260-73..

Além disso, o tipo de parceiro sexual também se configura como um importante determinante para o uso inconsistente de preservativo, uma vez que algumas características que se conjugam com essa decisão estão intimamente relacionadas ao tipo de parceiro com o qual a relação sexual ocorre, como por exemplo, a confiança e a intimidade, no caso de parceiros regulares 1010. Cai Y, Lau JTF. Multi-dimensional factors associated with unprotected anal intercourse with regular partners among Chinese men who have sex with men in Hong Kong: a respondent-driven sampling survey. BMC Infect Dis 2014; 14:205.,1111. Li D, Li C, Wang Z, Lau JTF. Prevalence and associated factors of unprotected anal intercourse with regular male sex partners among HIV negative men who have sex with men in China: a cross-sectional survey. PLoS One 2015; 10:e0119977., ou a troca de dinheiro ou bens materiais, no caso de parceiros comerciais 1212. Ramanathan S, Chakrapani V, Ramakrishnan L, Goswami P, Yadav D, Subramanian T, et al. Consistent condom use with regular, paying, and casual male partners and associated factors among men who have sex with men in Tamil Nadu, India: findings from an assessment of a large-scale HIV prevention program. BMC Public Health 2013; 13:827.,1313. Lachowsky NJ, Saxton PJW, Hughes AJ, Dickson NP, Summerlee AJS, Milhausen RR, et al. Younger gay and bisexual men’s condom use with main regular sexual partner in New Zealand. AIDS Educ Prev 2015; 27:257-74.,1515. Lau JTF, Cai W, Tsui HY, Cheng J, Chen L, Choi KC, et al. Prevalence and correlates of unprotected anal intercourse among Hong Kong men who have sex with men traveling to Shenzhen, China. AIDS Behav 2013; 17:1395-405..

Embora alguns estudos já tenham investigado como o uso de preservativo se relaciona com o tipo de parceiro sexual, a maior parte dessas pesquisas foi realizada em outros países, e, na maioria, se referem a parceiros regulares 1010. Cai Y, Lau JTF. Multi-dimensional factors associated with unprotected anal intercourse with regular partners among Chinese men who have sex with men in Hong Kong: a respondent-driven sampling survey. BMC Infect Dis 2014; 14:205.,1212. Ramanathan S, Chakrapani V, Ramakrishnan L, Goswami P, Yadav D, Subramanian T, et al. Consistent condom use with regular, paying, and casual male partners and associated factors among men who have sex with men in Tamil Nadu, India: findings from an assessment of a large-scale HIV prevention program. BMC Public Health 2013; 13:827. e/ou casuais 1212. Ramanathan S, Chakrapani V, Ramakrishnan L, Goswami P, Yadav D, Subramanian T, et al. Consistent condom use with regular, paying, and casual male partners and associated factors among men who have sex with men in Tamil Nadu, India: findings from an assessment of a large-scale HIV prevention program. BMC Public Health 2013; 13:827.. O uso de preservativo com parceiros comerciais e os fatores que o condicionam é uma temática ainda pouco explorada, sobretudo no contexto brasileiro 66. Dourado I, MacCarthy S, Reddy M, Calazans G, Gruskin S. Revisiting the use of condoms in Brazil. Rev Bras Epidemiol 2015; 18 Suppl 1:63-88..

Diante do exposto, este estudo tem como objetivo analisar os fatores associados ao uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais entre HSH no Brasil.

Métodos

Os dados analisados são provenientes da Pesquisa Nacional de Vigilância Biológica e Comportamental do HIV, Sífilis e Hepatites B e C entre HSH no Brasil, um estudo transversal, conduzido entre junho e dezembro de 2016, utilizando a técnica respondent-driven sampling (RDS) para o recrutamento dos HSH.

A coleta de dados foi realizada em 12 capitais, que representaram as cinco regiões do Brasil: São Paulo, Belo Horizonte (Minas Gerais) e Rio de Janeiro - Região Sudeste; Curitiba (Paraná) e Porto Alegre (Rio Grande do Sul) - Região Sul; Brasília (Distrito Federal) e Campo Grande (Mato Grosso do Sul) - Região Centro-oeste; Fortaleza (Ceará), Recife (Pernambuco) e Salvador (Bahia) - Região Nordeste; e Belém (Pará) e Manaus (Amazonas) - Região Norte. Os critérios de inclusão foram: ser homem cisgênero, ter no mínimo 18 anos, ter praticado sexo oral ou anal com outro homem nos 12 meses que antecederam a coleta e morar, trabalhar e/ou estudar em uma das cidades onde o estudo estava sendo desenvolvido 1616. Kendall C, Kerr L, Mota RS, Guimarães MDC, Leal AF, Merchan-Hamann E, et al. The 12 city HIV Surveillance Survey among MSM in Brazil 2016 using respondent-driven sampling: a description of methods and RDS diagnostics. Rev Bras Epidemiol 2019; 22:e190004..

A primeira fase da pesquisa ocorreu por meio de uma abordagem qualitativa formativa em cada cidade participante, com o objetivo de conhecer os aspectos organizacionais, geográficos e sociais da população HSH local. Após essa etapa, foram selecionados entre cinco e seis participantes, denominados sementes, para iniciar o recrutamento dos demais. A seleção das sementes foi realizada considerando aspectos socioeconômicos, demográficos e de sua rede social, visando obter uma amostra diversificada dos HSH de cada cidade.

Ao serem convidados para participar da pesquisa, cada semente recebeu três cupons numerados com códigos de barra para convidar novos participantes de sua rede de relacionamentos. Cada novo participante que compareceu a um dos locais de coleta, apresentando um cupom válido, e que preencheu os critérios de inclusão para participar do estudo, recebeu três novos cupons para dar sequência ao recrutamento. Esse processo foi repetido até que o tamanho amostral previamente estipulado para cada cidade fosse alcançado (350 HSH) 1616. Kendall C, Kerr L, Mota RS, Guimarães MDC, Leal AF, Merchan-Hamann E, et al. The 12 city HIV Surveillance Survey among MSM in Brazil 2016 using respondent-driven sampling: a description of methods and RDS diagnostics. Rev Bras Epidemiol 2019; 22:e190004..

A coleta de dados foi conduzida por equipe treinada, utilizando um sistema online criado especificamente para o estudo. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade Federal do Ceará (CAAE - 43133915.9.0000.5054, parecer nº 1.024.053) e das demais instituições envolvidas na pesquisa. Mais detalhes sobre os procedimentos metodológicos da pesquisa podem ser encontrados em publicação anterior 1616. Kendall C, Kerr L, Mota RS, Guimarães MDC, Leal AF, Merchan-Hamann E, et al. The 12 city HIV Surveillance Survey among MSM in Brazil 2016 using respondent-driven sampling: a description of methods and RDS diagnostics. Rev Bras Epidemiol 2019; 22:e190004..

Para esta análise, foram selecionados os HSH que reportaram relações sexuais anais com parceiros comerciais. Parceiro comercial foi definido como outro homem com quem o participante manteve relações sexuais mediante pagamento ou recebimento de dinheiro e/ou bens materiais. Os dados coletados sobre o comportamento sexual com esse tipo de parceiro dizem respeito ao período dos seis meses que antecederam a coleta de dados, procurando reduzir o viés de memória dos participantes e, ao mesmo tempo, obter um dado representativo do comportamento sexual destes indivíduos.

A variável de desfecho deste estudo foi o uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais, dicotomizada como “sim” ou “não”, considerando que a efetividade de prevenção do preservativo está relacionada ao seu uso consistente 55. World Health Organization. Consolidated guidelines on HIV prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. https://www.who.int/publications/i/item/9789241511124 (acessado em 26/Abr/2022).
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. O desfecho foi mensurado em dois momentos: nas relações anais insertivas e/ou receptivas ocorridas nos últimos seis meses, e na última relação sexual. O resultado foi considerado “sim” quando o participante respondeu da seguinte maneira, em pelo menos uma das seguintes perguntas:

a) Respondeu “quase sempre”, “metade das vezes”, “poucas vezes” ou “nunca” à pergunta: “Pensando nos últimos seis meses, com que frequência você usou camisinha quando penetrou o ânus de seus parceiros comerciais?”;

b) Respondeu “quase sempre”, “metade das vezes”, “poucas vezes” ou “nunca” à pergunta: “Pensando nos últimos seis meses, com que frequência seus parceiros comerciais usaram camisinha quando penetraram seu ânus?”;

c) Respondeu “não” à pergunta: “Pensando na sua última relação sexual com parceiro comercial, independentemente de você estar penetrando ou sendo penetrado, você usou camisinha?”.

As seguintes variáveis independentes foram selecionadas para a análise: (1) sociodemográficas e econômicas: idade (18-24 anos, ≥ 25 anos), cor de pele autodeclarada (branca, não branca), escolaridade (≤ Ensino Médio incompleto, ≥ Ensino Médio completo), classe econômica (A/B, C, D/E) classificada de acordo com o Critério Brasileiro de Classificação Econômica 1717. Associação Brasileia de Empresas de Pesquisa. Critério Brasil 2015 e atualização da distribuição de classes para 2016. https://www.abep.org/criterio-brasil (acessado em 26/Abr/2022).
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, identificação sexual (gay/homossexual, bissexual, heterossexual/outros), trabalhador do sexo (sim, não; mensurada por meio da seguinte pergunta “Você se identifica como trabalhador do sexo/prostituto/garoto de programa?”) e conhecimento sobre HIV (alto, médio e baixo; mensurado por meio do modelo logístico de dois parâmetros da teoria de resposta ao item 1818. Guimarães MDC, Magno L, Ceccato MGB, Gomes RRFM, Leal AF, Knauth DR, et al. HIV/AIDS knowledge among MSM in Brazil: a challenge for public policies. Rev Bras Epidemiol 2019; 22 Suppl 1:E190005.supl.1.); (2) relacionadas ao comportamento sexual: número de parceiros sexuais nos últimos seis meses (≤ 4 parceiros, 5-10 parceiros, 11-20 parceiros, ≥ 21 parceiros) e prática sexual (somente sexo anal insertivo, somente sexo anal receptivo ou sexo anal insertivo e receptivo); (3) relacionadas com o acesso aos serviços de saúde: obtenção de preservativo gratuito nos últimos 12 meses (sim, não), aconselhamento com profissional de saúde nos últimos 12 meses (sim, não), teste para HIV ao longo da vida (sim, não); e (4) participação em atividades de apoio social em ONG com ações direcionadas ao HIV (ONG HIV) (sim, não).

Os dados de todas as cidades foram agrupados em um único banco de dados, e a amostra foi ponderada em função do tamanho da rede de relações dos participantes, a partir das estimativas realizadas por meio do software RDS Analyst versão 1.7-16 (http://www.respondentdrivensampling.org/main.htm), utilizando o estimador de Gile. Para incorporar a ponderação, todas as análises foram realizadas dentro do comando survey data analyses do software Stata 12.0 (https://www.stata.com).

As variáveis independentes de toda a amostra foram descritas por frequência absoluta e relativa e estratificadas de acordo com o uso inconsistente de preservativo (Tabela 1). Comparações quanto ao uso inconsistente de preservativo foram realizadas por meio do teste qui-quadrado de Rao-Scott, utilizando o cálculo de resíduos ajustados (Raj) quando necessário. Para mensurar a associação entre as variáveis independentes e o uso inconsistente de preservativo, o modelo de regressão de Poisson foi utilizado. Na primeira etapa, foram realizadas análises não ajustadas entre as variáveis independentes e o uso inconsistente (Tabela 2). Em sequência, para construção do modelo ajustado (análise multivariável) foram selecionadas variáveis com p < 0,15 1919. Dohoo I, Martin W, Stryhn H. Methods in epidemiologic research. Charlottetown: VER Inc.; 2012. na etapa anterior e aquelas com relevância epidemiológica para o desfecho. Os resultados foram expressos por razões de prevalências brutas (RPb) e ajustadas (RPa), com IC95%. Foram consideradas estatisticamente significativas as variáveis que apresentaram p < 0,05 no modelo ajustado (Tabela 2).

Tabela 1
Características sociodemográficas, de comportamento sexual, relacionadas ao acesso aos serviços de saúde e participação em atividades de apoio social em organizações não governamentais (ONG) HIV dos homens que fazer sexo com homens (HSH) que tiveram parceiros comerciais. Brasil (n = 461) *.
Tabela 2
Associação das variáveis sociodemográficas, de comportamento sexual, relacionadas ao acesso aos serviços de saúde e participação em atividades de apoio social em organizações não governamentais (ONG) HIV, com uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais entre homens que fazem sexo com homens (HSH). Brasil (n = 461) *.

Resultados

A amostra total da pesquisa que originou os dados foi composta por 4.176 HSH. Destes, 626 declararam ter praticado relações sexuais com ao menos um parceiro comercial nos seis meses que antecederam a entrevista. Entretanto, somente 461 HSH tinham os dados necessários para esta análise e foram incluídos no estudo. A prevalência de uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais foi de 26% (IC95%: 19,0-34,4; n = 123).

A Tabela 1 apresenta o perfil dos participantes do estudo. A maior parte dos HSH tinha ≥ 25 anos (54,4%), se autodeclarava não branca (82,3%), com escolaridade em Ensino Médio ou maior (60,7%), se identificava como bissexual (55,5%) e afirmou não se identificar como trabalhador do sexo (58,6%). Quanto à classe econômica, de acordo com o critério Brasil, quase 40% dos HSH pertenciam às classes mais baixas. No que tange ao conhecimento sobre HIV, 58% tinham conhecimento médio ou baixo sobre o vírus.

Quanto ao comportamento sexual, 34,6% dos HSH se relacionaram com até quatro parceiros comerciais nos últimos seis meses e 32,8% tiveram entre 5 e 10 parceiros. Além disso, quase 50% afirmaram que praticaram somente o sexo anal insertivo. Com relação aos serviços de saúde, a maioria dos HSH afirmou que obteve preservativo de forma gratuita nos últimos 12 meses (81,6%), mas não recebeu aconselhamento para HIV e outras IST com profissional de saúde (67,6%). Além disso, a maioria também afirmou que nunca havia realizado teste para HIV (59,4%). A participação em atividades de apoio social em ONG HIV foi pouco frequente entre os HSH deste estudo (19,7%).

A Tabela 1 apresentam a análise bivariável estratificada por uso inconsistente de preservativo entre os HSH. Foi identificado que os homens pertencentes às classes econômicas mais baixas (14,1%, p = 0,015, Raj > 1,96) e com baixo conhecimento sobre HIV (7,6%, p = 0,003, Raj > 1,96) fizeram mais uso inconsistente de preservativo. Além disso, o uso inconsistente também foi maior entre os HSH que praticaram sexo anal insertivo e receptivo (12,6%, p = 0,015, Raj > 1,96), os que não receberam aconselhamento sobre HIV e outras IST (19,8%, p = 0,013) e os que nunca haviam realizado teste para HIV (14,9%, p = 0,021).

Na análise não ajustada (Tabela 2), identificamos que a prevalência do uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais foi maior entre HSH das classes econômicas mais baixas (RPb = 2,1, IC95%: 1,1-4,4), entre os que apresentaram baixo conhecimento sobre HIV (RPb = 2,6, IC95%: 1,3-4,9), entre os que não receberam aconselhamento sobre HIV e outras IST com profissional de saúde nos últimos 12 meses (RPb = 1,5, IC95%: 1,1-2,1) e entre os que nunca haviam realizado teste para HIV (RPb = 1,9, IC95%: 1,1-3,4). Ademais, comparados aos que praticaram exclusivamente o sexo anal insertivo, HSH que praticaram tanto o sexo anal insertivo quanto receptivo apresentaram maior prevalência de uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais (RPb = 2,1, IC95%: 1,2-3,6).

Na análise ajustada (Tabela 2), pertencer às classes econômicas mais baixas (RPa = 2,4, IC95%: 1,5-3,7), ter baixo (RPa = 2,9, IC95%: 1,8-4,7) ou médio (RPa = 1,5, IC95%: 1,1-2,3) conhecimento sobre HIV, nunca ter realizado teste para HIV (RPa = 1,7, IC95%: 1,1-2,6) e ter praticado sexo anal insertivo e receptivo com parceiros comerciais (RPa = 2,9, IC95%: 1,8-4,5) permaneceram significativamente associadas ao uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais.

Discussão

Este estudo teve o objetivo de identificar os fatores associados ao uso inconsistente de preservativo entre HSH no Brasil. Nesse sentido, os resultados demonstraram que um elevado percentual de HSH declaram uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais. Além disso, este desfecho esteve fortemente associado ao perfil de maior vulnerabilidade socioeconômica dos HSH, uma vez que a prevalência de uso inconsistente de preservativo foi maior entre aqueles pertencentes às classes econômicas mais baixas. Ainda, fatores comportamentais, como a prática realizada na relação sexual, e fatores relacionados ao conhecimento sobre HIV e realização de teste para HIV ao longo da vida também estiveram associados ao uso inconsistente de preservativo.

Apesar da grande prevalência de uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais encontrada neste estudo, essa estimativa é menor quando comparada à de outros estudos com HSH e seus parceiros comerciais em Tamil Nadu (49,2%) 1212. Ramanathan S, Chakrapani V, Ramakrishnan L, Goswami P, Yadav D, Subramanian T, et al. Consistent condom use with regular, paying, and casual male partners and associated factors among men who have sex with men in Tamil Nadu, India: findings from an assessment of a large-scale HIV prevention program. BMC Public Health 2013; 13:827. e Maharashtra (39,3%) 1919. Dohoo I, Martin W, Stryhn H. Methods in epidemiologic research. Charlottetown: VER Inc.; 2012., na Índia, e em Shenzhen (29,8%), na China 1515. Lau JTF, Cai W, Tsui HY, Cheng J, Chen L, Choi KC, et al. Prevalence and correlates of unprotected anal intercourse among Hong Kong men who have sex with men traveling to Shenzhen, China. AIDS Behav 2013; 17:1395-405.. Entretanto, essa comparação deve ser realizada com cautela, uma vez que a forma de recrutamento dos participantes e mensuração do uso de preservativo com parceiros comerciais não é uniforme entre os estudos. Além disso, o uso inconsistente de preservativo entre HSH no Brasil deve ser refletido em um contexto, vivenciado nos últimos anos, que sugere expansão da epidemia de HIV entre a população masculina em geral 22. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/Aids 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial. e entre grupos específicos, como os HSH 33. Guimarães MDC, Kendall C, Magno L, Rocha GM, Knauth DR, Leal AF, et al. Comparing HIV risk-related behaviors between 2 RDS national samples of MSM in Brazil, 2009 and 2016. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1):S62-8.,44. Kerr L, Kendall C, Guimarães MDC, Salani Mota R, Veras MA, Dourado I, et al. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1):S9-15.. Também cabe destacar que na época de coleta dos dados, 2016, o acesso à PrEP era pouco familiar aos HSH, pois ainda não estava estabelecido no Sistema Único de Saúde (SUS), e nem no sistema privado, tornando o preservativo a principal forma de prevenção disponível 22. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/Aids 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial..

O sexo comercial envolve um cenário de grande vulnerabilidade à infecção pelo HIV, uma vez que os indivíduos envolvidos usualmente se relacionam com um grande número de parceiros sexuais e nem sempre adotam comportamentos de prevenção, como o uso de preservativo. Além disso, muitos HSH se envolvem na prática do sexo comercial pela necessidade de dinheiro, alimentação e outros bens materiais, ou pela busca por substâncias psicoativas, tornando complexa a negociação sobre o uso de preservativo devido às relações assimétricas de poder estabelecidas com o parceiro que pode prover estes bens 1313. Lachowsky NJ, Saxton PJW, Hughes AJ, Dickson NP, Summerlee AJS, Milhausen RR, et al. Younger gay and bisexual men’s condom use with main regular sexual partner in New Zealand. AIDS Educ Prev 2015; 27:257-74.,2020. Bianchi FT, Reisen CA, Zea MC, Vidal-Ortiz S, Gonzales FA, Betancourt F, et al. Sex work among men who have sex with men and transgender women in Bogotá. Arch Sex Behav 2014; 43:1637-50..

Os resultados desta análise parecem refletir esse contexto de vulnerabilidade relacionado à prática do sexo comercial e à classe econômica dos HSH. Mais de 74% dos homens de nossa amostra pertenciam às classes econômicas média (35,3%, classe C) ou baixa (38,9%, classe D/E) do critério Brasil. Além disso, comparados aos pertencentes às classes econômicas mais altas, HSH das classes D/E apresentaram maior prevalência de uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais. Nesse sentido, esses resultados podem sugerir que HSH podem estar envolvidos no sexo comercial justamente por sua necessidade financeira e, por isso, enfrentam dificuldades na negociação quanto ao uso de preservativo. Ainda, cabe destacar que mais de 80% de nossa amostra se declarou não branca, e quase 40% apresentava grau de escolaridade em nível médio incompleto ou inferior, aspectos que também corroboram um perfil de maior vulnerabilidade entre os HSH deste estudo.

Por outro lado, considera-se que a associação entre classe econômica e o uso inconsistente de preservativo encontrada nesta pesquisa também pode refletir as desigualdades socioeconômicas no acesso aos serviços de saúde e às estratégias de prevenção ao HIV entre HSH, uma vez que o nível socioeconômico já foi apontado como uma barreira estrutural de acesso aos serviços de saúde entre esse grupo 2121. Philbin MM, Hirsch JS, Wilson PA, Ly AT, Giang LM, Parker RG. Structural barriers to HIV prevention among men who have sex with men (MSM) in Vietnam: diversity, stigma, and healthcare access. PLoS One 2018; 13:e0195000.. Essa hipótese também pode ser reforçada considerando a associação significativa entre a realização de teste para HIV e uso inconsistente de preservativo como uma proxy de acesso aos serviços de saúde, assim como em outros estudos com a população HSH 1818. Guimarães MDC, Magno L, Ceccato MGB, Gomes RRFM, Leal AF, Knauth DR, et al. HIV/AIDS knowledge among MSM in Brazil: a challenge for public policies. Rev Bras Epidemiol 2019; 22 Suppl 1:E190005.supl.1.,2222. Gomes RRFM, Ceccato MGB, Kerr LRFS, Guimarães MDC . Fatores associados ao baixo conhecimento sobre HIV/AIDS entre homens que fazem sexo com homens no Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00125515..

Ademais, no que tange à população de homens que fazem sexo com homens, também se pode considerar a discriminação relacionada à orientação sexual como um elemento que integra a relação dessa população com o acesso aos serviços de saúde. Conforme dados da pesquisa em 12 cidades do Brasil, de onde o presente estudo procede, entre os 4.176 HSH entrevistados, 65% afirmaram ter sido discriminados por sua orientação sexual nos últimos 12 meses. Além disso, 9% também afirmaram ter sido mal atendidos em serviços de saúde ou por profissionais de saúde 2323. Magno L, Dourado I, Silva LAV, Brignol S, Brito AM, Guimarães MDC, et al. Factors associated with self-reported discrimination against men who have sex with men in Brazil. Rev Saúde Pública 2017; 51:102.. Nesse sentido, as desigualdades socioeconômicas associadas ao perfil de maior vulnerabilidade já mencionado, somadas aos julgamentos relacionados à orientação sexual, podem atuar de forma sinérgica, limitando ainda mais o acesso dessa população aos serviços de saúde e às estratégias de prevenção ao HIV.

Assim como esses aspectos, as análises deste estudo indicaram que o grau de conhecimento sobre o HIV também pode ser um indicador do contexto de vulnerabilidade dos HSH que fazem uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais. Nossos resultados apontaram que HSH com nível de conhecimento médio ou baixo tiveram maior prevalência de uso inconsistente de preservativo. Resultados semelhantes foram encontrados por Guimarães et al. 1818. Guimarães MDC, Magno L, Ceccato MGB, Gomes RRFM, Leal AF, Knauth DR, et al. HIV/AIDS knowledge among MSM in Brazil: a challenge for public policies. Rev Bras Epidemiol 2019; 22 Suppl 1:E190005.supl.1., que concluíram que os HSH, participantes do estudo, envolvidos em alguma prática sexual na qual houve o recebimento de dinheiro apresentaram menos conhecimento sobre HIV/AIDS. Em pesquisas na Índia 1212. Ramanathan S, Chakrapani V, Ramakrishnan L, Goswami P, Yadav D, Subramanian T, et al. Consistent condom use with regular, paying, and casual male partners and associated factors among men who have sex with men in Tamil Nadu, India: findings from an assessment of a large-scale HIV prevention program. BMC Public Health 2013; 13:827. e Tailândia 2424. Mansergh G, Naorat S, Jommaroeng R, Jenkins RA, Stall R, Jeeyapant S, et al. Inconsistent condom use with steady and casual partners and associated factors among sexually-active men who have sex with men in Bangkok, Thailand. AIDS Behav 2006; 10:743-51. identificaram que HSH com menos conhecimento sobre os meios de transmissão e prevenção do HIV apresentaram mais chances de uso inconsistente de preservativo com parceiros regulares, casuais e comerciais.

A disseminação de informações sobre os meios de transmissão e prevenção do HIV pode ser importante ferramenta para a adoção de estratégias comportamentais de prevenção entre a população HSH. Entretanto, o acesso a essas informações não implica necessariamente a mudança do comportamento sexual, uma vez que existe certa relação interativa entre aspectos socioculturais, políticos e econômicos na transformação do conhecimento em práticas sexuais seguras 2222. Gomes RRFM, Ceccato MGB, Kerr LRFS, Guimarães MDC . Fatores associados ao baixo conhecimento sobre HIV/AIDS entre homens que fazem sexo com homens no Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00125515.. Nesse sentido, as associações entre classe econômica, teste para HIV e conhecimento sobre HIV indicadas neste estudo elucidam como os diferentes aspectos de vulnerabilidade dos HSH que praticam sexo comercial podem se traduzir em seu comportamento sexual. Dessa forma, a alta prevalência de uso inconsistente de preservativo entre esse grupo pode ser explicada tanto pelas condições socioeconômicas mais desfavoráveis quanto por suas próprias práticas sexuais de maior risco, já que mesmo envolvidos no sexo comercial, quase 60% dos HSH afirmaram nunca ter realizado teste para HIV.

Assim como em outras pesquisas 1313. Lachowsky NJ, Saxton PJW, Hughes AJ, Dickson NP, Summerlee AJS, Milhausen RR, et al. Younger gay and bisexual men’s condom use with main regular sexual partner in New Zealand. AIDS Educ Prev 2015; 27:257-74.,2525. Deshpande S, Bharat S. Sexual partner mixing and differentials in consistent condom use among men who have sex with men in Maharashtra, India. Glob Public Health 2015; 10:103-18., as análises deste estudo indicaram importantes diferenças em relação ao uso de preservativo e à prática sexual durante a relação sexual. A prevalência de uso inconsistente de preservativo foi maior entre os HSH que praticaram sexo anal insertivo e receptivo quando comparados aos que praticaram somente sexo anal insertivo. Conforme sugerem pesquisas, muitos HSH encontram dificuldade em negociar a prática do sexo seguro quando desempenham um papel receptivo, devidos às relações assimétricas de poder construídas com base na posição sexual. A virilidade, o status de poder e a masculinidade, características atribuídas aos parceiros que praticam somente o sexo anal insertivo, conferem maior poder de negociação dentro da relação e, por consequência, a possibilidade de tomar decisões unilaterais sobre o uso de proteção 2525. Deshpande S, Bharat S. Sexual partner mixing and differentials in consistent condom use among men who have sex with men in Maharashtra, India. Glob Public Health 2015; 10:103-18.. Além disso, esses achados devem ser refletidos no contexto do sexo comercial e nas hipóteses de vulnerabilidade relacionadas à classe econômica já discutidas 1414. Baral SD, Friedman MR, Geibel S, Rebe K, Bozhinov B, Diouf D, et al. Male sex workers: practices, contexts, and vulnerabilities for HIV acquisition and transmission. Lancet 2015; 385:260-73.,2020. Bianchi FT, Reisen CA, Zea MC, Vidal-Ortiz S, Gonzales FA, Betancourt F, et al. Sex work among men who have sex with men and transgender women in Bogotá. Arch Sex Behav 2014; 43:1637-50., que podem indicar maiores dificuldades para a negociação do uso de preservativo entre HSH.

No âmbito da saúde pública, e em meio a um cenário que sugere expansão da epidemia de HIV entre a população HSH no Brasil 22. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/Aids 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial.,33. Guimarães MDC, Kendall C, Magno L, Rocha GM, Knauth DR, Leal AF, et al. Comparing HIV risk-related behaviors between 2 RDS national samples of MSM in Brazil, 2009 and 2016. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1):S62-8.,44. Kerr L, Kendall C, Guimarães MDC, Salani Mota R, Veras MA, Dourado I, et al. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1):S9-15., esses resultados também podem elucidar importantes vias para entender a disseminação de HIV entre a população HSH brasileira, uma vez que o risco de transmissão de HIV durante relações sexuais anais desprotegidas é até 18 vezes maior do que o risco de transmissão em relações sexuais vaginais, e que a possibilidade de variação das práticas sexuais entre homens, sexo anal insertivo (maior risco de infecção) e sexo anal receptivo (maior risco de transmissão) pode potencializar o risco de infecção 2626. Baral S, Sifakis F, Cleghorn F, Beyrer C. Elevated risk for HIV infection among men who have sex with men in low- and middle-income countries 2000-2006: a systematic review. PLoS Med 2007; 4:e339..

Os resultados deste estudo analisaram o uso inconsistente de preservativo com parceiros comerciais entre HSH de 12 cidades brasileiras e se somam à produção de conhecimento sobre o uso de preservativo entre esse grupo. Entretanto, algumas limitações devem ser mencionadas: devido ao caráter transversal, as análises não estabelecem relações de causalidade, apenas indicam associações entre as variáveis independentes e o uso inconsistente de preservativo. Além disso, a prática sexual durante a relação pode ser um importante determinante para uso de preservativo, em razão das relações de poder assimétricas já discutidas neste trabalho. Entretanto, nosso tamanho amostral não nos permitiu estratificar as análises de acordo com essa variável. Ainda, cabe destacar que o estudo foi realizado antes da implementação da PrEP no SUS, que foi um grande difusor do conceito de prevenção combinada entre a população HSH no Brasil. Nesse sentido, no momento atual, a prevalência de testagem e de conhecimento sobre o HIV pode ser mais elevada se comparada aos resultados deste estudo.

Por fim, o uso de preservativo mensurado por meio das relações sexuais dos últimos seis meses consiste em uma medida mais representativa do comportamento sexual adotado pelo HSH, pois possibilita a coleta de informações em mais de um momento. Entretanto, está mais sujeito ao viés de memória do participante. Por outro lado, o uso de preservativo na última relação sexual pode fornecer uma medida mais fidedigna nesse sentido, porém, não tão representativa. Para contornar esse problema e analisar esse desfecho o mais próximo possível da realidade dos HSH, as duas medidas foram combinadas em um único desfecho de uso inconsistente para aqueles que afirmaram não ter utilizado preservativo em alguma das ocasiões.

Conclusão

Pouco mais de um quarto dos HSH usaram preservativo de forma inconsistente com parceiros comerciais. Entre esse grupo, as condições socioeconômicas podem ser importantes determinantes para a adoção de práticas sexuais seguras e, nesse sentido, o sexo comercial parece estar sendo praticado em um contexto de maior vulnerabilidade ao HIV.

No âmbito da saúde pública, esses resultados sinalizam que a promoção da adoção de comportamentos de prevenção ao HIV entre a população de HSH que pratica o sexo comercial precisa avançar no sentido de conjugar intervenções biomédicas e comportamentais, com foco em prover insumos de prevenção e informações para melhorar a capacidade desses homens de gerenciar os riscos aos quais estão expostos. Ainda, devem ser pensadas políticas públicas direcionadas à redução de desigualdades sociais.

Agradecimentos

Ao Ministério da Saúde e ao Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) pelo financiamento; aos gays e outros HSH entrevistados e ao The Brazilian HIV/MSM Surveillance Group.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2022
  • Revisado
    15 Ago 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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