Iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil: implicações de mudanças do registro de cor/raça nos sistemas nacionais de informação em saúde no Brasil

Ethnic and racial iniquities in infant mortality: implications of changes in recording color/race in national health information systems in Brazil

Inequidades étnico-raciales en la mortalidad infantil: implicaciones de cambios del registro de color/raza en los sistemas nacionales de información en salud en Brasil

Aline Diniz Rodrigues Caldas Ricardo Ventura Santos Andrey Moreira Cardoso Sobre os autores

Resumos

Trata-se de estudo descritivo que teve como objetivo discutir as repercussões da mudança na metodologia de coleta da variável cor/raça no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) sobre as taxas de mortalidade infantil (TMI) segundo cor/raça no Brasil. Foram analisadas as variações anuais nas frequências de nascidos vivos e óbitos infantis por cor/raça entre 2009 e 2017. As TMI por cor/raça foram estimadas segundo três estratégias: (1) método direto; (2) fixando-se, em todos os anos, as proporções de nascidos vivos por cor/raça observadas em 2009; e (3) fixando-se, em todos os anos, as proporções de óbitos por cor/raça observadas em 2009. As estratégias visaram explorar o efeito isolado das variações nas proporções de nascidos vivos ou de óbitos por cor/raça sobre as estimativas de TMI antes e após a mudança da variável cor/raça no SINASC. De 2011 para 2012 (ano de mudança da variável cor/raça no SINASC), verificou-se súbito incremento das Declarações de Nascidos Vivos (DNV) de cor/raça preta, parda e indígena, acompanhado de redução de DNV de cor/raça branca, sem variações correspondentes nos óbitos. O incremento do denominador da TMI das categorias de cor/raça socialmente mais vulnerabilizadas resultou na atenuação das TMI de pretos e indígenas, no incremento da TMI de brancos e, consequentemente, na redução artificial das iniquidades na mortalidade infantil por cor/raça. A mudança da variável cor/raça no SINASC interrompeu a série histórica de nascidos vivos por cor/raça, afetando os indicadores que potencialmente dependem desses dados para seu cálculo, como a TMI. Argumenta-se que as TMI por cor/raça antes e após a mudança no SINASC são indicadores distintos e não comparáveis.

Palavras-chave:
Sistemas de Informação em Saúde; Mortalidade Infantil; Origem Étnica e Saúde; Desigualdades em Saúde; Estatísticas Vitais


This descriptive study aimed to discuss the repercussions of the change in the methodology for recording the color/race variable in the Brazilian Information System on Live Births (SINASC) on infant mortality rates (IMR) according to color/race in Brazil. Annual variations were analyzed in the rates of live births and infant deaths according to color/race from 2009 to 2017. The IMR according to color/race were estimated using three strategies: (1) direct method; (2) for every year, setting the same proportions of live births by color/race as observed in 2009; and (3) for every year, setting the same proportions of deaths by color/race as observed in 2009. The strategies aimed to explore the single effect of the variations in the proportions of live births or of deaths according to color/race on the estimated IMR before and after the change in the color/race variable in the SINASC database. Between 2011 and 2012 (the year of the change in the color/race variable in SINASC), there was a sudden increase in birthdates with black, brown, and indigenous color/race, along with a reduction in birthdates with white color/race, without no corresponding variations in deaths. The increase of more socially vulnerable color/race categories in the IMR denominator resulted in the attenuation of IMR for black and indigenous infants and in an increase in the IMR for white infants and consequently an artificial reduction in iniquities in infant mortality according to color/race. The change in the color/race variable in SINASC interrupted the historical series of live births by color/race, affecting indicators that potentially depend on these data for their calculation, in this case the IMR. The resulting argument is that infant mortality rates by color/race before versus after the change in the SINASC database are distinct and noncomparable indicators.

Keywords:
Health Information Systems; Infant Mortality; Ethnicity and Health; Health Status Disparities; Vital Statistics


Estudio descriptivo que tuvo como objetivo discutir las repercusiones del cambio en la metodología de recogida de la variable color/raza en el Sistema de Información sobre Nacidos Vivos (SINASC) sobre las tasas de mortalidad infantil (TMI), según color/raza en Brasil. Se analizaron las variaciones anuales en las frecuencias de nacidos vivos y óbitos infantiles por color/raza entre 2009 y 2017. Las TMI por color/raza se estimaron según tres estrategias: (1) método directo; (2) fijándose, en todos los años, las proporciones de nacidos vivos por color/raza observadas en 2009; y (3) fijándose, en todos los años, las proporciones de óbitos por color/raza observadas en 2009. Las estrategias tuvieron como objetivo explorar el efecto aislado de las variaciones en las proporciones de nacidos vivos o de óbitos por color/raza sobre las estimaciones de TMI antes y tras el cambio de la variable color/raza en el SINASC. De 2011 a 2012 (año de cambio de la variable color/raza en el SINASC), se verificó un súbito incremento de las Declaraciones de Nacidos Vivos (DNV) de color/raza negra, mestiza e indígena, acompañado de una reducción de DNV de color/raza blanca, sin variaciones correspondientes en los óbitos. El incremento del denominador de la TMI de las categorías de color/raza socialmente más vulnerabilizadas resultó en la atenuación de las TMI de negros e indígenas y en el incremento de la TMI de blancos y, consecuentemente, en la reducción artificial de las inequidades en la mortalidad infantil por color/raza. El cambio de la variable color/raza en el SINASC interrumpió la serie histórica de nacidos vivos por color/raza, afectando los indicadores que potencialmente dependen de esos datos para su cálculo, como la TMI. Se argumenta que las TMI por color/raza antes y después del cambio en el SINASC son indicadores distintos y no comparables.

Palabras-clave:
Sistemas de Información en Salud; Mortalidad Infantil; Origen Étnico y Salud; Desigualdades en la Salud; Estadísticas Vitales


Introdução

A inclusão da variável cor/raça nos sistemas nacionais de informações em saúde (SIS) na década de 1990 representou importante iniciativa para fins de análise das iniquidades étnico-raciais na área da saúde no país. Desde sua inclusão nos SIS, a variável cor/raça inclui as categorias branca, preta, amarela, parda e indígena 11. Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Manual de instruções para o preenchimento da Declaração de Óbito. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.,22. Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Manual de instruções para o preenchimento da Declaração de Nascido Vivo. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.,33. Departamento de Vigilância de Agravos e Doenças Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Nascidos vivos. Notas técnicas. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc//Nascidos_Vivos_1994_2012.pdf (acessado em 15/Out/2019).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/...
,44. Jorge MHPM, Laurenti R, Gotlieb SLD. Análise da qualidade das estatísticas vitais brasileiras: a experiência de implantação do SIM e do SINASC. Ciênc Saúde Colet 2007; 12:643-54.. De maneira geral, as análises indicam condições de saúde desfavoráveis para indivíduos classificados nas categorias preta, parda e indígena quando comparadas à categoria branca 55. Caldas ADR, Santos RV, Borges GM, Valente JG, Portela MC, Marinho GL. Mortalidade infantil segundo cor ou raça com base no Censo Demográfico de 2010 e nos sistemas nacionais de informação em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00046516.,66. Chor D, Lima CRA. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1586-594.,77. Travassos C, Williams DR. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saúde Pública 2004; 20:660-78.,88. Cardoso AM, Santos RV, Coimbra Jr. CEA. Mortalidade infantil segundo raça/cor no Brasil: o que dizem os sistemas nacionais de informação? Cad Saúde Pública 2005; 21:1602-8., espelhando um cenário de desigualdades produzido pela exclusão social.

Em âmbito nacional, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), ambos gerenciados pelo Ministério da Saúde, constituem SIS que consolidam dados sobre nascimentos e óbitos, respectivamente, e são fontes imprescindíveis na produção de estatísticas vitais no país 99. Oliveira MM, Andrade SSCA, Dimech GS, Oliveira JCG, Malta DC, Rabello Neto DL, et al. Avaliação do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos. Brasil, 2006 a 2010. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24:629-40.,1010. Pedraza DF. Qualidade do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC): análise crítica da literatura. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:2729-37.,1111. Ministério da Saúde. Portaria nº 116, de 11 de fevereiro de 2009. Regulamenta a coleta de dados, fluxo e periodicidade de envio das informações sobre óbitos e nascidos vivos para os Sistemas de Informações em Saúde sob gestão da Secretaria de Vigilância em Saúde. Diário Oficial da União 2009; 12 fev.. A Declaração de Nascido Vivo (DNV), instrumento de coleta de dados do SINASC, teve sua última modificação em 2011, passando a coletar a cor/raça da mãe do recém-nascido e não mais a da criança. Nessa ocasião, a variável cor/raça no SINASC foi excluída do bloco Identificação do Recém-Nascido e passou a compor o bloco sobre a Mãe. No ano seguinte, houve a recomendação de que a variável cor/raça do recém-nascido voltasse a ser coletada, de modo que, em princípio, as duas variáveis constassem na DNV 1212. Coordenação Geral de Informações e Análises Epidemiológicas, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Consolidação do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos - 2011. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/Consolida_SINASC_2011.pdf (acessado em 06/Mar/2018).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/...
.

Devido a essas modificações na DNV, observou-se uma abrupta substituição de dados acerca da cor/raça da criança pela cor/raça da mãe no SINASC, em 2011, com um progressivo aumento na proporção de registros baseados na cor da mãe nos anos subsequentes. Por outro lado, os critérios de definição de cor/raça dos óbitos infantis no SIM (numerador) não sofreram alterações. Estudo anterior chamou atenção para prováveis implicações sobre a análise das iniquidades étnico-raciais a partir dos indicadores de saúde influenciados pela queda do registro da variável cor/raça da criança no SINASC em 2011 1313. Braz RM, Oliveira PTR, Reis AT, Machado NMS. Avaliação da completude da variável raça/cor nos sistemas nacionais de informação em saúde para aferição da equidade étnico-racial em indicadores usados pelo Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. Saúde Debate 2013; 37:554-62..

Considerando esse cenário, o presente trabalho teve por objetivo descrever as variações anuais nas frequências de nascidos vivos e óbitos infantis por cor/raça entre 2009 e 2017, período que engloba a mudança no quesito cor/raça no SINASC. Especificamente, são abordadas as repercussões dessa mudança na magnitude das taxas de mortalidade infantil (TMI) por cor/raça e nos padrões de iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil no país.

Métodos

Foram obtidas as frequências anuais de nascidos vivos e óbitos infantis segundo cor/raça, de 2009 a 2017, por meio das ferramentas de tabulação de dados em saúde TabNet 1414. Departamento de Informática do SUS. Nascidos vivos - Brasil. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinasc/cnv/nvuf.def (acessado em 01/Set/2021).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
,1515. Departamento de Informática do SUS. Óbitos infantis - Brasil. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/inf10uf.def (acessado em 01/Set/2021).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht...
e TabWin 1616. Departamento de Informática do SUS. Transferência de arquivos. https://datasus.saude.gov.br/transferencia-de-arquivos/ (acessado em 01/Set/2021).
https://datasus.saude.gov.br/transferenc...
do Departamento de Informática do SUS (DATASUS). Por meio da ferramenta TabWin, foram examinados os microdados do SINASC. Através do TabWin, é possível acessar todas as variáveis existentes no SINASC, incluindo a cor/raça da mãe e a cor/raça do recém-nascido, o que não é possível utilizando-se a primeira ferramenta (TabNet), que disponibiliza apenas uma variável denominada cor/raça, sem especificar se ela se refere à raça/cor da criança ou da mãe. Todos os dados utilizados são públicos e disponibilizados na Internet pelo DATASUS. Para fins das análises, conforme descritas a seguir, não se realizou o linkage entre os bancos de dados do SIM e SINASC.

Foram considerados todos os registros de óbitos e de nascidos vivos, de períodos anteriores e posteriores à mudança na coleta da variável cor ou raça no SINASC, considerando as definições de nascidos vivos e óbitos infantis conforme a Portaria nº 72, de 11 de janeiro de 2020, do Ministério da Saúde 1717. Ministério da Saúde. Portaria nº 72, de 11 de janeiro de 2020. Estabelece que a vigilância do óbito infantil e fetal é obrigatória nos serviços de saúde (públicos e privados) que integram o Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2020; 12 jan., que define o nascimento vivo como a expulsão ou extração completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente qualquer outro sinal de vida, tal como batimentos do coração, pulsações do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária, estando ou não cortado o cordão umbilical e estando ou não desprendida a placenta. Cada produto de um nascimento que reúna essas condições se considera como uma criança nascida viva; e como óbito infantil, aquele ocorrido em crianças nascidas vivas desde o momento do nascimento até um ano de idade incompleto, ou seja, 364 dias.

Com vistas a investigar a ocorrência de variações abruptas nas frequências de nascimentos e óbitos por cor/raça e suas possíveis repercussões sobre a TMI segundo cor/raça, foram inicialmente estimadas as proporções anuais de nascidos vivos e óbitos por cor/raça, bem como as respectivas variações relativas entre 2009 e 2017. A fim de verificar se a classificação de cor/raça da mãe em substituição à cor/raça da criança no SINASC a partir de 2011 ocorreu de forma diferenciada entre as regiões geográficas do país e entre níveis de instrução da mãe, foram obtidas as frequências de nascidos vivos por cor/raça segundo grandes regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-oeste) e instrução da mãe (nenhuma, 1-3 anos, 4-7 anos, 8-11 anos, 12 anos e mais e ignorada, seguindo a terminologia disponível no TabNet), em dois triênios, 2008-2010 (antes da mudança) e 2012-2014 (após a mudança), calculando-se as variações percentuais na classificação de cada categoria de cor/raça entre o primeiro e o segundo triênios.

Em seguida, estimou-se a TMI (óbitos/1.000 nascidos vivos) por cor/raça no mesmo período por meio de três diferentes estratégias: (1) cálculo direto, com óbitos e nascidos vivos oriundos, respectivamente, do SIM e SINASC; (2) cálculo utilizando-se como numerador as frequências anuais de óbitos por cor/raça registradas no SIM (ou seja, dados reportados) e como denominador as frequências anuais de nascidos vivos registradas no SINASC, mas distribuídas por cor/raça com base nas proporções verificadas em 2009 (ou seja, mantendo as mesmas proporções verificadas por cor/raça em ano anterior à mudança do quesito de cor/raça na DNV); e (3) cálculo utilizando-se como numerador as frequências anuais de óbitos registradas no SIM, mas distribuídas por cor/raça com base nas proporções verificadas em 2009 (ou seja, mantendo as mesmas proporções de óbitos verificadas por cor/raça em ano anterior à mudança do quesito de cor/raça na DNV) e como denominador as frequências anuais de nascidos vivos por cor/raça registradas no SINASC (ou seja, dados reportados). Para o cálculo da TMI pelas três estratégias mencionadas, utilizaram-se as frequências anuais reportadas de óbitos e nascidos vivos registradas, respectivamente no SIM e no SINASC (cálculo direto), alterando-se a distribuição proporcional dos óbitos ou nascidos vivos segundo raça/cor conforme descrito nas estratégias 2 e 3. Essas estratégias buscaram averiguar separadamente as influências do numerador e do denominador da TMI na magnitude das TMI ao longo dos anos de análise e verificar, portanto, os efeitos da mudança na variável cor/raça na DNV sobre as TMI segundo cor/raça e sobre as iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil no país.

Por fim, foram calculadas, para o período de 2009 a 2017, as razões entre as TMI de crianças classificadas nas categorias preta, parda, amarela e indígena e branca, esta última considerada como referência.

Resultados

A frequência de nascidos vivos variou de 2.881.581, em 2009, a 2.923.535, em 2017, o que corresponde a um incremento de 1,5% (Tabela 1). A variação percentual da frequência de nascidos vivos segundo cor/raça no período foi negativa para os classificados como brancos e ignorados (sem cor/raça informada), ao passo que foi positiva para as demais categorias, atingindo 55,5% em indígenas e 244,7% em pretos. Nessas duas categorias, as maiores variações foram observadas entre 2011 e 2012.

Tabela 1
Frequências absolutas e variações percentuais de nascidos vivos segundo cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.

A frequência de óbitos infantis variou de 42.642, em 2009, a 36.223 em 2017, o que corresponde a uma redução de 15,1% (Tabela 2). A variação percentual da frequência de óbitos no período foi negativa para todas as categorias de cor/raça; a menor variação ocorreu entre os indígenas, com redução de 4,3%. Não foi observado um padrão de variação em anos específicos da série analisada.

Verifica-se uma estabilidade na distribuição proporcional dos óbitos infantis por cor/raça entre 2009 e 2017 (Tabela 3). Por outro lado, a distribuição proporcional dos nascidos vivos por cor/raça sofre variação mais pronunciada entre 2010 e 2012, de modo que é mais destacada nas categorias preta (1,5% para 5,3%) e branca (44,8% para 37,5%).

Tabela 2
Frequências absolutas e variações percentuais de óbitos segundo cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.
Tabela 3
Distribuição proporcional dos nascidos vivos e óbitos infantis segundo cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.

As variações percentuais de nascidos vivos segundo cor/raça, por triênios (2008-2010 e 2012-2014), foram negativas para as categorias branca (-17,1%) e ignorada (-17,2%), e positivas para as categorias preta (234,3%), amarela (103,7%), parda (11,7%) e indígena (39,1%). Em todas as regiões do país, verificou-se redução da frequência de nascidos vivos brancos e incremento da frequência de nascidos vivos pretos e indígenas, ao passo que pardos e amarelos sofreram incremento em praticamente todas as regiões, com exceção, respectivamente, do Nordeste e Norte. Foi observada redução de nascidos vivos brancos e incremento de nascidos vivos pretos em todas as faixas de instrução da mãe, enquanto, para amarelos, pardos e indígenas, o aumento ocorreu a partir das faixas de instrução intermediárias até as mais elevadas (Tabela 4). Demais informações sobre as variações percentuais por triênios encontram-se no Material Suplementar (http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00101721_6665.pdf).

Tabela 4
Frequência de nascidos vivos de 2008-2010 e variação relativa para o período 2012-2014 segundo instrução da mãe e regiões geográficas. Brasil, 2008 a 2014.

A TMI no Brasil pelo cálculo direto (estratégia 1) apresentou redução de 16,3% (de 14,8 para 12,4/1.000) no período de análise (Figura 1a). Tal variação mostrou-se heterogênea entre as categorias de cor/raça. As TMI de indígenas foram as mais elevadas em todo o período, a despeito de uma queda pronunciada em 2011. Por sua vez, a partir desse ano, pretos e pardos passaram a apresentar valores de TMI inferiores àqueles de brancos. De 2011 em diante, pretos e amarelos apresentaram as menores TMI, ao passo que a categoria branca sofreu um discreto incremento, permanecendo como a segunda maior TMI.

Figura 1
Taxas de mortalidade infantil segundo cor/raça, por cálculo direto (estratégia 1), com denominadores proporcionais ao ano de 2009 (estratégia 2) e com numeradores proporcionais ao ano de 2009 (estratégia 3). Brasil, 2009 a 2017.

A adoção da estratégia 2 - que fixou a distribuição proporcional de nascidos vivos por cor/raça equivalente à distribuição observada em 2009, atenuando assim o efeito da mudança da variável cor/raça no SINASC - gerou valores de TMI relativamente estáveis em todas as categorias de cor/raça, exceto pelo incremento da TMI de indígenas a partir de 2012 (Figura 1b). As demais categorias de cor/raça mantiveram discreta redução anual da TMI, sem mudança na ordem de magnitude entre categorias. Pretos permaneceram com a segunda maior TMI em todo o período, seguidos de pardos e brancos, que apresentaram taxas similares, e amarelos.

A TMI calculada fixando a distribuição proporcional de óbitos por cor/raça equivalente à distribuição observada em 2009 (estratégia 3 - Figura 1c) revela que é a variação do denominador que afeta drasticamente as TMI por cor/raça em relação à estratégia 2. A similaridade entre as Figuras 1a e 1c é uma forte evidência de que a variação das TMI segundo as categorias de cor/raça observada pelo cálculo direto decorre da mudança no denominador da TMI, ou seja, da variação ocorrida na frequência de nascidos vivos a partir de 2011.

Tomando como referência a estratégia 1 (cálculo direto da TMI), as razões de TMI entre categorias de cor/raça, tendo as crianças brancas como referência, revelam que as taxas de crianças amarelas e pardas foram significativamente menores a partir de 2010, com redução progressiva no período (Tabela 5). As TMI de crianças pretas foram significativamente maiores (cerca de 70%) que a de brancas até 2010, com súbita reversão desse padrão em 2011, quando passaram a ser significativamente menores (64% menor em 2017). Crianças indígenas permaneceram com TMI significativamente maiores em todo o período, ainda que a magnitude da razão tenha sofrido expressiva redução (RT 2009: 3,11, IC95%: 2,28-3,36; RT 2017: 1,81, IC95%: 1,67-1,96).

Tabela 5
Razões entre as taxas de mortalidade infantil (TMI) por cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.

Discussão

Os resultados do presente estudo evidenciam que as alterações no procedimento de classificação de cor/raça no SINASC - ou seja, o uso da cor/raça da mãe em substituição à cor/raça da criança - impactaram de forma expressiva as frequências de nascidos vivos por cor/raça e, consequentemente, as magnitudes das TMI por cor/raça obtidas diretamente dos SIS. Nesse sentido, a atribuição da cor/raça da mãe (variável disponível no SINASC a partir de 2011) ao recém-nascido resultou em incremento substancial na frequência de nascidos vivos classificados como pertencentes às categorias de cor/raça preta, parda, amarela e indígena. Ou seja, ao se implementar a cor/raça da mãe como critério de classificação do recém-nascido, ocorreu uma modificação na distribuição proporcional de nascimentos por cor/raça devida à alteração conceitual no procedimento classificatório. Uma vez que a definição de cor/raça dos óbitos (numerador) permaneceu inalterada, ocorreram variações expressivas nas TMI segundo cor/raça, com abrupta e inesperada alteração nos padrões de iniquidades, o que pode ser atribuído às mudanças no critério de classificação de cor/raça do nascidos vivos. Em decorrência, revelaram-se alterações nos padrões de iniquidades na mortalidade infantil por cor/raça, padrões não somente pouco consistentes, como também bastante distintos daquele que predominava até 2011. Surpreendentemente, a TMI de brancos, por exemplo, passou a ser mais elevada que as de crianças pretas e indígenas.

No Brasil, desde a década de 1990, iniciativas governamentais têm promovido a inclusão de variáveis relacionadas ao pertencimento étnico-racial nos SIS 44. Jorge MHPM, Laurenti R, Gotlieb SLD. Análise da qualidade das estatísticas vitais brasileiras: a experiência de implantação do SIM e do SINASC. Ciênc Saúde Colet 2007; 12:643-54., o que em parte se associa a demandas da sociedade civil. Após mais de duas décadas, estudos sobre as iniquidades étnico-raciais em saúde continuam relativamente escassos, ainda que tenham se expandido em anos recentes 1818. Chiavegatto Filho ADP, Laurenti R. Disparidades étnico-raciais em saúde autoavaliada: análise multinível de 2.697 indivíduos residentes em 145 municípios brasileiros. Cad Saúde Pública 2013; 29:1572-82.. A respeito disso, tem sido crescente o interesse em pesquisas acerca da variável cor/raça nos SIS, o que se alinha aos debates relacionados a melhorias dos serviços de saúde visando à redução das iniquidades étnico-raciais em saúde 1919. Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Araújo TM, Dias AB, Oliveira LOA. A utilização da variável raça/cor em saúde pública: possibilidades e limites. Interface (Botucatu) 2009; 13:383-94.. Do ponto de vista metodológico, uma questão central nas investigações sobre iniquidades étnico-raciais em saúde se refere às formas de classificação da variável cor/raça, sendo a autoclassificação, em geral, a mais recomendada 2020. Bastos JL, Peres MA, Peres KG, Dumith SC, Gigante DP. Diferenças socioeconômicas entre autoclassificação e heteroclassificação de cor/raça. Rev Saúde Pública 2008; 42:324-34.. No entanto, a depender das características específicas do evento de interesse a ser registrado nos SIS e da faixa etária do indivíduo acometido pelo evento, como é o caso dos óbitos e dos nascimentos, torna-se inviável cumprir tal recomendação, sendo empregadas outras formas de classificação 2121. Ministério da Saúde. Portaria nº 344, de 1º de fevereiro de 2017. Dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde. Diário Oficial da União 2017; 2 fev.. Inquestionavelmente, a disponibilidade de uma variável sobre a cor/raça da mãe do recém-nascido no SINASC é de vital importância para fins de análise e monitoramento de uma série de questões, como aquelas relacionadas aos determinantes sociais da mortalidade infantil, incluindo o acesso à assistência ao pré-natal, ao parto e aos cuidados com o bebê, dentre outras. A iniciativa de inclusão da variável cor/raça da mãe no SINASC em 2011, ao que parece, seguiu essa lógica, o que ocorreu concomitantemente à supressão da variável de cor/raça do recém-nascido. No mesmo ano de 2011, talvez devido ao reconhecimento dos impactos da supressão da variável de cor/raça do recém-nascido na consistência da série histórica de dados, houve uma nova recomendação de alteração metodológica, de que a variável cor/raça do recém-nascido voltasse a ser coletada, de modo que, em princípio, passar-se-ia a se dispor das duas variáveis na DNV 1212. Coordenação Geral de Informações e Análises Epidemiológicas, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Consolidação do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos - 2011. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/Consolida_SINASC_2011.pdf (acessado em 06/Mar/2018).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/...
. Entretanto, observa-se que o modelo de DNV vigente permaneceu apenas com a variável cor/raça da mãe. O fato é que, na prática, ao se acessar a tabulação direta de dados de nascimentos no sítio do DATASUS por meio da ferramenta TabNet, constata-se a existência de uma única variável relativa à cor/raça, sem indicação de que se refere ao recém-nascido ou à sua mãe. O passo adicional de comparação entre as variáveis cor/raça disponibilizadas no TabNet e cor/raça da mãe existente no TabWin revela uma elevada concordância, o que sugere que a variável disponível para análises étnico-raciais a partir de 2011 no SINASC corresponde à cor/raça da mãe. Desse conjunto de informações se deriva que não se efetivou a reinclusão da variável cor/raça do recém-nascido no SINASC, apesar da recomendação feita em 2011.

O cálculo da TMI, um importante indicador das condições de vida, a partir dos SIS, emprega como numerador os óbitos de menores de um ano de idade registrados no SIM e, como denominador, os nascidos vivos registrados no SINASC. Apesar das reconhecidas limitações - tais como a subnotificação de eventos vitais, o fato de a razão de óbitos/nascimentos por cor/raça não necessariamente considerar no numerador apenas indivíduos incluídos no denominador e a indisponibilidade de fatores de correção específicos por cor/raça 2222. Szwarcwald CL, Frias PG, Souza Júnior PRB, Almeida WS, Morais Neto OL. Correction of vital statistics based on a proactive search of deaths and live births: evidence from a study of the North and Northeast regions of Brazil. Popul Health Metr 2014; 12:16. -, estudos que utilizaram o SIM e o SINASC para explorar a TMI de acordo com a cor/raça demonstraram iniquidades em saúde com expressiva desvantagem e consequente violação de direitos, para pardos, pretos e indígenas 55. Caldas ADR, Santos RV, Borges GM, Valente JG, Portela MC, Marinho GL. Mortalidade infantil segundo cor ou raça com base no Censo Demográfico de 2010 e nos sistemas nacionais de informação em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00046516.,66. Chor D, Lima CRA. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1586-594.,88. Cardoso AM, Santos RV, Coimbra Jr. CEA. Mortalidade infantil segundo raça/cor no Brasil: o que dizem os sistemas nacionais de informação? Cad Saúde Pública 2005; 21:1602-8.. Desde 2004, o Ministério da Saúde divulga anualmente relatórios (Saúde Brasil) sobre a situação de saúde da população brasileira 2323. Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.,2424. Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2012: uma análise da situação de saúde e dos 40 anos do Programa Nacional de Imunizações. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.,2525. Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2013: uma análise da situação de saúde e das doenças transmissíveis relacionadas à pobreza. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.,2626. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2014: uma análise da situação de saúde e das causas externas. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.,2727. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2015/2016: uma análise da situação de saúde e da epidemia pelo vírus Zika e por outras doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.,2828. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2017: uma análise da situação de saúde e os desafios para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.. De 2012 em diante, os capítulos referentes às condições dos nascimentos com base no SINASC passaram a descrever as condições do parto segundo as características da cor/raça da mãe, quando anteriormente o foco das análises segundo recorte étnico-racial era o recém-nascido. Chama a atenção que, até o presente, são apresentados apenas indicadores de proporção de óbitos; ou seja, não há divulgação por parte de agências governamentais de taxas de mortalidade infantil por cor/raça no país, em que pesem as reconhecidas limitações para esse cálculo.

As análises deste trabalho apontam que, ao se tomar a cor/raça da mãe como classificação de cor/raça da criança, emergem padrões de iniquidades expressos na mortalidade infantil pouco consistentes diante dos padrões de desigualdades étnico-raciais que têm sido sistematicamente registrados no país. Portanto, ao se passar a utilizar a cor/raça da mãe como variável a ser analisada no SINASC, incorporam-se outras dimensões de complexidade, com implicações na interpretação do significado do indicador que expressa iniquidade étnico-racial na mortalidade infantil. O conjunto de alterações metodológicas ocorridas no início da década passada, que tiveram consequências no tocante à manutenção de critérios homogêneos na classificação de cor/raça no evento do nascimento, impactaram diretamente as características da série histórica de dados do SINASC relevantes para o cálculo da mortalidade infantil.

Que estratégias poderiam ser implementadas para remediar essas várias questões que, desde o início da década de 2010, trouxeram complicações adicionais para as análises da mortalidade infantil segundo cor/raça no país? Nesse sentido, um passo fundamental seria o efetivo registro das duas variáveis, quais sejam, a cor/raça da criança e da mãe, na DNV e, também, a disponibilização dessas variáveis de forma explícita e diferenciada em ambos os mecanismos de acesso aos dados do SINASC (TabNet e TabWin). Se o procedimento de classificação da cor/raça da mãe é bem estabelecido do ponto de vista metodológico (autoclassificação), caberia um aprofundamento das discussões acerca dos procedimentos de classificação da cor/raça do recém-nascido, com a subsequente pactuação e divulgação de normas técnicas específicas a serem utilizadas pelos profissionais de saúde. É sabido que, de maneira geral, questões relacionadas à classificação de cor/raça, em qualquer faixa etária, envolvem grande complexidade, uma vez que se relacionam a uma multiplicidade de fatores socioculturais, econômicos e demográficos, dentre os quais figuram a concordância ou não da cor/raça do pai e da mãe 2929. Muniz JO, Bastos JL. Volatilidade classificatória e a (in)consistência da desigualdade racial. Cad Saúde Pública 2017; 33 Suppl 1:e00082816.,3030. Muniz JO. Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades. Civitas - Revista de Ciências Sociais 2016; 16:e62-86.,3131. Miranda V. A resurgence of black identity in Brazil? Evidence from an analysis of recent censuses. Demogr Res 2015; 32:1603-30.. No caso de crianças recém-nascidas, inclusive pela impossibilidade da autoclassificação, o tema se reveste de uma ainda maior dificuldade conceitual e metodológica, como têm apontado pesquisas qualitativas 3232. Kabad JF, Bastos JL, Santos RV. Raça, cor e etnia em estudos epidemiológicos sobre populações brasileiras: revisão sistemática na base PubMed. Physis (Rio J.) 2012; 22:895-918.,3333. Ribeiro Corossacz V. O corpo da nação: classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2009.. Espera-se que as análises apresentadas neste estudo contribuam para as discussões sobre potenciais fontes de dados para estimar mortalidade infantil por cor/raça e as tendências das iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil, estimulando o retorno da variável cor do recém-nascido à ficha do SINASC e a geração de fatores de correção para subnotificação de nascimentos e óbitos infantis específicos por categoria de cor/raça. A melhoria na cobertura dos eventos e na completude das variáveis dos SIS pode viabilizar análises mais consistentes acerca das iniquidades na mortalidade infantil por cor/raça no Brasil, sobretudo se utilizadas estratégias de relacionamento de diferentes bases de dados, como SIM e SINASC, e o estabelecimento de recomendações sobre o uso da variável cor/raça e sua interpretação no debate sobre iniquidades étnico-raciais em saúde. A inclusão da variável cor/raça da mãe no SIM, no caso de óbitos infantis, poderia ser uma alternativa de mais curto prazo para produzir dados que permitam estimar de maneira mais consistente a TMI por cor/raça da mãe, de modo que não se necessite da realização dos procedimentos mais complexos de linkage de bases de dados. Adicionalmente, a qualificação e disponibilização de dados do Sistema de Atenção à Saúde Indígena e sua integração e compatibilização com os demais SIS do Ministério da Saúde, bem como a troca de experiências com o Instituto Brasileiro de Geogafia e Estatísticas, podem trazer importantes subsídios técnico-científicos para o estabelecimento de fontes de dados confiáveis para monitoramento das iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil no Brasil.

Como é amplamente reconhecido, há diversas dimensões de natureza histórica e sociopolítica que podem influenciar o que tem sido denominado de volatilidade da classificação étnico-racial no Brasil 2828. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2017: uma análise da situação de saúde e os desafios para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.. Uma dessas dimensões se vincula ao fato de que políticas públicas, incluindo as ações afirmativas, podem alterar a composição étnico-racial, em particular pela valorização de segmentos historicamente vulnerabilizados. Em anos recentes, já se observam os efeitos dessa volatilidade, percentualmente de reduzida magnitude, o que constitui, de todo modo, tema que deve ser considerado em conjunção com as futuras análises das iniquidades raciais a partir dos sistemas de informação, uma vez que podem impactar tanto os desfechos como as estimativas populacionais utilizadas nos denominadores.

Em conclusão, os elementos que foram trazidos no presente trabalho, ao mesmo tempo em que reforçam a centralidade da dimensão étnico-racial nas iniquidades ligadas à sobrevivência de crianças menores de um ano, mostram que alterações incluídas no SINASC tornaram o panorama das iniquidades inconsistentes. Diante da relevância do debate étnico-racial no país, caberia uma aprofundada discussão teórico-metodológica com vistas a rever a normatização dos procedimentos de coleta e classificação de cor/raça nos SIS com dados acerca de crianças menores de um ano.

Agradecimentos

A pesquisa que resultou neste artigo foi apoiada pelos seguintes financiamentos: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (nº 25388.000526/2017-70, de 2016/2018); Wellcome Trust (nº 203486/Z/16/Z); e Fiocruz-Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) (TED 175/2018 - nº 25380.102279/2018-04). R. V. Santos é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (nº 308798/2021-0).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2021
  • Revisado
    13 Set 2021
  • Aceito
    01 Out 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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