Financeirização do setor saúde no Brasil: desafios teóricos e metodológicos à investigação de empresas e grupos empresariais

Financialization of the health sector in Brazil: theoretical and methodological challenges to the investigation of companies and business groups

Financiarización del sector de salud en Brasil: desafíos teóricos y metodológicos para la investigación de empresas y grupos empresariales

Ligia Bahia Mario Dal Poz Eduardo Levcovitz Lais Silveira Costa Leonardo Vidal Mattos Lucas Salvador Andrietta Artur Monte-Cardoso Claudia Travassos Sobre os autores

Resumos

O artigo descreve a trajetória percorrida para responder aos desafios teóricos e metodológicos da pesquisa sobre empresas e grupos empresariais do setor saúde no Brasil que reorganizaram suas estruturas societárias, diversificaram atividades e ampliaram operações financeiras. Tais movimentos de concentração e expansão empresarial foram analisados mediante a aproximação do referencial da financeirização do capitalismo contemporâneo à análise de empresas e grupos empresariais selecionados. As estratégias empresariais foram classificadas em três dimensões: estrutura patrimonial societária, financeira contábil e influência na agenda pública. Seus respectivos indicadores orientam a organização de informações de distintas fontes para empresas e grupos empresariais no período de 2008 a 2017. O estudo traça um perfil do intenso e complexo processo de reorganização empresarial do setor saúde. Contudo, a natureza exploratória da investigação, bem como as dificuldades de acesso a informações e seleção de empresas e grupos empresariais tornam suas constatações necessariamente provisórias.

Palavras-chave:
Economia; Setor Privado; Privatização


The article describes the history of the response to the theoretical and methodological challenges in research on companies and corporate groups in the Brazilian health sector that reorganized their shareholding structures, diversified their activities, and expanded their financial operations. Such movements in corporate concentration and expansion were analyzed with an approach to the frame of reference for financialization in contemporary capitalism in the analysis of selected companies and corporate groups. Corporate strategies were classified in three dimensions: shareholding, financial, and accounting structure and influence on the public agenda and the respective indicators orienting the organization of information from diverse sources for companies and corporate groups from 2008 and 2017. The study provides a profile of the intense and complex process of corporate reorganization in the health sector. Still, the study’s exploratory design and difficulties in access to information and selection of companies and corporate groups mean that the observations are necessarily preliminary.

Keywords:
Economics; Private Sector; Privatization


El artículo describe la trayectoria recorrida para responder a los desafios teóricos y metodológicos de la investigación sobre empresas y grupos empresariales del sector de salud en Brasil, que reorganizaron sus estructuras societarias, diversificaron actividades y ampliaron operaciones financieras. Tales movimientos de concentración y expansión empresarial fueron analizados mediante la aproximación al marco de referencia de la financiarización del capitalismo contemporáneao, así como al análisis de empresas y grupos empresariales seleccionados. Las estrategias empresariales fueron clasificadas en tres dimensiones: estructura patrimonial societaria, financiera contable e influencia en la agenda pública, así como sus respectivos indicadores que orientan la organización de la información de las distintas fuentes en empresas y grupos empresariales durante el período 2008 a 2017. El estudio traza un perfil del intenso y complejo proceso de reorganización empresarial del sector de salud. No obstante, la naturaleza exploratoria de la investigación, así como las dificultades de acesso a la información, selección de empresas y grupos empresariales convierten sus constataciones en necesariamente provisionales.

Palabras-clave:
Economía; Setor Privado; Privatización


Introdução

O artigo sintetiza o percurso e os desafios de uma investigação sobre empresas e grupos empresariais do setor saúde que enfoca a natureza e as estratégias empresariais de expansão, e busca subsidiar o conhecimento sobre a geração e reprodução de desigualdades no acesso a ações e serviços de saúde. A temática selecionada para o desenvolvimento da pesquisa Complexo Econômico-Industrial da Saúde, Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil foi o crescimento de empresas de saúde no Brasil, inclusive as dedicadas precipuamente a atividades assistenciais, e suas relações com o Sistema Único de Saúde (SUS). A investigação concentrou-se em torno da produção de conhecimento sobre fluxos financeiros e de poder de empresas e grupos empresariais no Brasil, nos anos de 2008 a 2017, objetivando contribuir com a formulação de políticas regulatórias voltadas para a redução das desigualdades sociais no acesso ao cuidado de saúde.

Na primeira década dos anos 2000, organizações setoriais privadas, que durante suas longas trajetórias foram pouco relevantes para a economia nacional, adotaram estratégias de expansão, de diversificação e de concentração de suas atividades e passaram a integrar lugares destacados nos rankings das maiores empresas brasileiras 11. Melhores & Maiores 2016. As 1000 maiores empresas do Brasil. Revista Exame 2016; 25 mai. https://exame.com/videos/revista-exame/melhores-maiores-2016/.
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,22. 1000 maiores empresas e as campeãs em 25 setores e 5 regiões. Valor 1000 2016; Ed. Especial. https://www.valor.com.br/valor1000/2016 (acessado em 01/Jun/2018).
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. Esse processo de expansão empresarial ocorreu em um país com sistema de saúde universal e teve os seguintes marcos econômicos: taxas de crescimento relativamente baixas mas constantes; aumento do emprego formal e da renda; e estabilidade democrática 33. Boschi RR, Pinho CES. Crisis and austerity: the recent trajectory of capitalist development in Brazil. Contemporary Politics 2018; 25:292-312.. Posteriormente, na década de 2010, mesmo sob condições macroeconômicas desfavoráveis, empresas e grupos econômicos do setor seguiram ampliando suas receitas e oferta de bens de serviços 44. Bahia L, Scheffer M, Tavares LR, Braga IF. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00154015.. Trata-se de uma capacidade de expansão, portanto, que requer explicações para além daquelas que associam automaticamente o crescimento econômico com aumento do consumo privado de bens e serviços de saúde.

Sinteticamente, duas vertentes interpretativas procuram compreender o crescimento, a conglomeração e a globalização de empresas nas últimas décadas. A primeira e mais difundida enfatiza movimentos transnacionais de instituições internacionais, empresas multinacionais, bem como a existência de mercados e fluxos de capitais globais. Assim, a presença de conglomerados transnacionais, inclusive na saúde, tem sido frequentemente atribuída à desregulamentação da atuação de empresas e capitais 55. Krech R, Kickbusch I, Franz C, Wells N. Banking for health: the role of financial sector actors in investing in global health. BMJ Glob Health 2018; 3 Suppl 1:e000597. A segunda linha de interpretação, relativa à concentração de empresas e centralização de capitais em curso, enfatiza as iniciativas políticas pró-finanças, como as alianças de núcleos centrais governamentais com instituições internacionais e empresas financeiras, além de mudanças na divisão internacional do trabalho 66. Cale G, Roll LS. Financialization and social theory: an interview with Dr. Greta Krippner. disClosure: A Journal of Social Theory 2015; 24:11.. A exportação de capital e de segmentos do processo de produção que sucederam a desintegração de regimes socialistas na Europa oriental e a intensificação da concorrência em nível global entre os setores econômicos de países industrializados da Europa e Japão impuseram desafios ao domínio de empresas transnacionais norte-americanas e estimularam avanços tecnológicos, a reestruturação do mercado de trabalho e o enfraquecimento do poder dos sindicatos 77. Teixeira A. O ajuste impossível: um estudo sobre a desestruturação da ordem econômica Mundial e seu impacto sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 1994.

Ainda que os dualismos sejam inerentemente reducionistas, sob a primeira vertente interpretativa, os Estados nacionais são apresentados como agentes passivos aos quais resta a emissão de políticas para se adaptarem à atração de investimentos internacionais. Sob a segunda matriz explicativa, a que valoriza mudanças nas relações entre capital e trabalho, a ênfase recai sobre as trajetórias que os diferentes países adotaram no processo de transformação de manufaturas em grandes empresas globalizadas e suas estratégias contemporâneas de expansão 88. Braga JC. Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças. Estudos Av 2009; 23:89-102. Ambas as perspectivas de análise se desdobram em estudos com distintos focos: de um lado, os baseados em investidores institucionais e oportunidades de investimentos e, de outro lado, os que conjugam singularidades sociais econômicas e políticas de cada país com diferentes tipos de propriedade das empresas, interações e conflitos empresariais, modelos de gestão e barreiras e oportunidades para inovação tecnológica 99. Krippner GR. The financialization of the American economy. Socioecon Rev 2005; 3:173-208..

Em relação às empresas de saúde, que ocupam papel destacado e reconhecido no cenário das finanças globais 1010. Guia onde investir. 10 grandes investidores revelam suas ações favoritas para 2019. InfoMoney 2019; https://lp.infomoney.com.br/onde-investir-2019 (acessado em 20/Jun/2020).
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, a literatura setorial tem sido marcada por duas abordagens: reformas de sistemas de saúde universais europeus e economia da saúde. Recomendações de expansão de coberturas para países em desenvolvimento e afluentes, bem como perspectivas de retornos financeiros elevados são apontadas como responsáveis pela presença e crescimento de multinacionais na área de serviços de saúde 1111. Lethbridge J. Health care reforms and the rise of global multinational health care companies. briefing paper. https://www.psiru.org/sites/default/files/2015-05-H-healthcarereforms&riseofglobalhealthcarecompanies.pdf (acessado em 05/Jun/2020).
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. Por sua vez, a economia da saúde enfatiza riscos e gastos com saúde (mudanças demográficas, epidemiológicas, custos crescentes, organização dos mercados, relações entre financiadores e provedores e impacto financeiro das novas tecnologias) com pouca ou nenhuma perspectiva política e histórica 1212. Lethbridge J. Understanding multinational companies in public health systems, using a competitive advantage framework. Global Health 2011; 7:19.,1313. Jasso-Aguilar R, Waitzkin H, Landwehr A. Multinational corporations and health care in the United States and Latin America: strategies, actions and effects. In: Mackintosh M, Koivusalo M, editors. Commercialization of health care. London: Palgrave Macmillan; 2005. p. 38-50..

A literatura científica brasileira recente sobre a organização, reorganização e crescimento de empresas setoriais é escassa 1414. Hiratuka C, Rocha MA, Sarti F. Financeirização e internacionalização no setor de serviços de saúde: impactos sobre o Brasil. Blucher Engineering Proceedings 2016; 3:575-600.,1515. Sestelo JA. Dominância financeira na assistência à saúde: a ação política do capital sem limites no século XXI. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2027-34.,1616. Sestelo JA, Cardoso AM, Braga IF, Mattos LV, Andrietta LS. financeirização das políticas sociais e da saúde no Brasil do século XXI: elementos para uma aproximação inicial. Economia e Sociedade 2017; 26:1097-126., embora estudos seminais da área de saúde coletiva nos anos 1970 e 1980 1717. Cordeiro H. As empresas médicas: as transformações capitalistas da prática médica. Rio de Janeiro: Graal; 1984.,1818. Donnangelo MCF. Medicina e sociedade. São Paulo: Pioneira; 1975. tenham se dedicado ao exame de empresas e empresários da saúde. As principais dificuldades de reflexão sobre o tema são similares às elencadas no âmbito internacional. Existem esforços para compreender a estrutura e dinâmica do setor saúde no país 1919. Gadelha CA. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciênc Saúde Colet 2003; 8:521-35, mas ainda predominam descrições fragmentadas que acentuam a importância de investidores institucionais.

A ênfase nos investimentos e investidores e o ocultamento de parte das relações entre empresas e órgãos governamentais refletem-se na disponibilidade de informações. As fontes de informações sobre movimentos pró-finanças de grandes corporações que originalmente pertencem ao setor saúde ou estenderam suas atividades à saúde, mesmo quando oficiais, são diversificadas e de difícil acesso. As estatísticas de governos nacionais e organizações multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), concentram-se em torno do financiamento de sistemas de saúde, da produção médico-hospitalar pública e privada e do dimensionamento da oferta de serviços e equipamentos, bem como de médicos, enfermeiros e farmacêuticos. As tradicionais fontes de informações sobre sistemas de saúde não incluem dados sobre empresas privadas do setor.

As lacunas e a dispersão de informações oficiais sobre as empresas setoriais contribuem para que as principais fontes de dados sobre o desempenho e reorganização empresarial no setor saúde sejam as instituições especializadas em investimentos e o noticiário de revistas, como a Forbes, Fortune etc. Instituições financeiras como Morgan Stanley Capital Internacional (MSCI) divulgam o MSCI World Health Index (índice criado em 1968 para avaliar o desempenho do mercado de ações de empresas de saúde, considerando 23 países desenvolvidos, situados na América do Norte, Oriente Médio, Oceania e Japão). Esse índice estima retornos dos investimentos em negócios relativos à saúde superiores àqueles registrados para o geral da economia. Entre o início de 2004 (ano base = 100) e 2019, o crescimento total acumulado foi de 65% e, para a saúde, de 71% 2020. Morgan Stanley Capital Internacional. MSCI World Health Care Index (USD). https://www.msci.com/documents/10199/c41a73d1-9037-4dbd-a175-703d3bb77ae6 (acessado em 05/Jun/2020).
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As dificuldades para acessar dados sobre movimentos e reorganização empresarial são diferenciadas entre os países. Nos Estados Unidos, registros governamentais sobre fusões e aquisições de empresas e estudos de entidades como a Associação Médica Americana (American Medical Association - AMA) 2121. American Medical Association. Competition in health insurance: a comprehensive study of U.S. markets. https://www.ama-assn.org/system/files/2019-09/competition-health-insurance-us-markets.pdf (acessado em 29/Mai/2020).
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permitem reflexões sistematizadas sobre concentração e concorrência 2222. Wege EVD, Gottlieb TB. US Healthcare Financing Reform: the consolidation of the health insurance industry. Healthcare for all Colorado Foundation Reports, 2017. https://www.hcacfoundation.org/us-healthcare-financing-reform (acessado em 29/Mai/2020).
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. Adicionalmente, as grandes reorganizações empresariais são registradas pelo noticiário. Fatos como a aquisição pela Consumer Value Store (CVS), empresa líder de farmácias e cosméticos da Aetna, uma das maiores seguradoras de saúde, bem como a criação de um empreendimento não lucrativo para o atendimento de saúde dos empregados da Amazon, a JP Morgan e Berkshire Hathaway (originadas como empresas dos ramos de comércio eletrônico, financeiro e têxtil, respectivamente), foram divulgados pela imprensa comercial 2323. The New York Times. CVS Health and Aetna $69 billion merger is approved with conditions. The New York Times 2018; 10 out. https://www.nytimes.com/2018/10/10/health/cvs-aetna-merger.html.
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,2424. Wingfield N, Thomas K, Abelson R. Amazon, Berkshire and JPMorgan Team up to try to disrupt health care. The New York Times 2018; 30 jan. https://www.nytimes.com/2018/01/30/technology/amazon-berkshire-hathaway-jpmorgan-health-care.html.
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No Brasil, intenções e resultados de negociações empresariais que envolvem atividades de saúde são pouco conhecidos. Segundo empresas de auditoria como a KPMG, a saúde ocupou o quinto lugar em seus rankings setoriais de transações entre 2016 e 2018. A maioria das operações de reorganização empresarial foi classificada como doméstica 2525. KPMG Brasil. Fusões e aquisições 2018 - 4º trimestre. https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2019/02/fusoes-e-aquisicoes-4-trimestre-2018.html (acessado em 05/Jun/2020).
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. Documentos oficiais contendo informações sobre a reorganização empresarial de empresas e grupos empresariais na saúde são raros e não sistemáticos. Órgãos governamentais como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), envolvidos com a regulação das atividades empresariais do setor saúde, não divulgam informações regulares sobre movimentação institucional de empresas e investimentos. Uma exceção é o estudo publicado pelo CADE em 2018 sobre atos de concentração nos mercados de planos de saúde, hospitais e medicina diagnóstica 2626. Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Cadernos do CADE: atos de concentração nos mercados de planos de saúde, hospitais e medicina diagnóstica. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública; 2018..

Tais limitações e especificidades para o estudo sobre as empresas e grupos empresariais requerem o equacionamento de duas ordens de desafios. O primeiro desafio é o reconhecimento das múltiplas facetas de um objeto que admite diversos ângulos de observação, desde a ideologia gerencial que orienta as empresas até as tendências de expansão e contração dos ciclos econômicos e respectiva repercussão sobre os negócios setoriais, envolvendo distintas definições de empresas, grupos empresariais e setor. Consequentemente, é necessário adotar uma orientação teórico-conceitual na qual a compreensão da dinâmica do capitalismo contemporâneo articule as relações entre produção material e finanças com a expansão das empresas setoriais. A segunda ordem de dificuldades é de natureza metodológica. A maior parte das fontes disponíveis no Brasil sobre as empresas não é oficial. Os dados existentes são pouco conhecidos, especialmente por pesquisadores da saúde e, portanto, a coleta, organização e análise dessas informações requerem a elaboração de procedimentos metodológicos específicos.

Sob o enfoque da dominância financeira, compreendida como um processo que afeta não apenas a composição dos ganhos patrimoniais e especulativos ou fictícios, mas também as empresas não financeiras e as famílias 2727. Carneiro R. Acumulação fictícia, especulação e instabilidade financeira. Parte I: um reflexão sobre a financeirização a partir de Marx, Keynes e Minsky. Economia e Sociedade 2019; 28:293-312, buscou-se avançar no conhecimento sobre empresas e grupos empresariais do setor saúde. Os passos definidos para a investigação, detalhados a seguir, sob um ordenamento racional em termos lógicos e temporais, resultaram de intensos debates no grupo de pesquisa para estudar, sob as lentes da saúde coletiva, um problema cuja natureza é inextricavelmente política e econômica.

Desafios teóricos

O referencial teórico da investigação é a economia política, especialmente a abordagem da economia como ciência social, ou seja, não apenas a formulação de proposições e leis a respeito de uma determinada realidade objetiva, mas um compromisso com a formulação teórica como prática por meio da qual os pesquisadores se inserem em sua própria realidade histórica e procuram modificá-la. A economia política tem atribuído distintos rótulos aos movimentos que caracterizam o capitalismo contemporâneo, incluindo políticas de restrição aos estados de bem-estar social, de desregulamentação, de ajuste fiscal, de monetarismo e de privatização. Um dos conceitos mais difundidos é o neoliberalismo 2828. Saad Filho A. Crise no neoliberalismo ou crise do neoliberalismo? Revista Crítica e Sociedade 2011; 1:6-19..

Neoliberalismo é um conceito abrangente, admite múltiplas interpretações, compreende um conjunto mais amplo de ideias e valores, tais como individualismo, laissez faire e livre escolha e está estreitamente vinculado aos princípios da economia neoclássica e do liberalismo econômico, em oposição ao paradigma econômico keynesiano do estado de bem-estar social. Na prática, o neoliberalismo direcionou um conjunto de políticas de desregulamentação de mercados, abertura de fronteiras comerciais, baixa inflação e estabilidade de preços 2929. Paulani LM. Neoliberalismo e individualismo. Economia e Sociedade 1999; 8:115-27.,3030. Larner WJ. Neo-liberalism: policy, ideology, governmentality. Stud Polit Econ 2000; 63:5-26..

Neoliberalismo e financeirização não são sinônimos. Referem-se a processos direcionados por distintos paradigmas econômicos, discursivos e práticas diversas 3131. Davis A, Walsh C. Distinguishing financialization from neoliberalism. Theory, Culture & Society 2017; 34:27-51.. A atual estrutura social de acumulação capitalista, aquela demarcada a partir dos anos 1970, tem como característica predominante a dominância financeira. A ênfase na geração de riqueza nos mercados financeiros, o foco nas finanças, a centralidade dos mercados financeiros na gestão econômica, a ortodoxia do valor para os acionistas e cálculos financeiros conduzem alianças entre setores industriais, financeiros e burocracias estatais 3232. Braga JC. A financeirização da riqueza: a macroestrutura financeira e a nova dinâmica dos capitalismos centrais. Economia e Sociedade 1993; 2:25-57.. Financeirização é também um conceito polissêmico, e não consensual. Assume conotação negativa ao designar o crescimento indevido da parcela “improdutiva” da produção capitalista, geradora de crises, e também conotação positiva, quando se refere a um estágio superior, no qual predominam relações de governança transparentes 3333. Zwan NV. Making sense of financialization. Socioecon Rev 2014; 12:99-129.. Portanto, financeirização não é um termo consensual 3434. da Conceição Tavares M, Guimarães SP, Fiori JL, Braga JC, Belluzzo LG. Mudanças nas relações internacionais e na inserção do Brasil. Cadernos do Desenvolvimento 2018; 1:61-118..

Para a investigação de empresas e grupos empresariais, o conceito de financeirização foi considerado adequado às necessidades de elaborar hipóteses e encontrar mediações entre a produção de riquezas no Brasil e no setor saúde, desde que compreendido como parte do processo de transformação das relações entre Estado e mercados. Trata-se de um padrão sistêmico de riqueza, no qual as decisões de endividamento e gastos de empresas e famílias tornam-se sensíveis a variações nos estoques de riqueza, por sua vez suscetíveis aos preços dos ativos financeiros. A valorização da riqueza financeira assume o comando dos movimentos reais das empresas, integrando as engrenagens operacionais com as financeiras.

A financeirização não é sinônimo de crise, não é uma anormalidade ou doença do sistema capitalista. Tampouco deve ser interpretada como tendência do capitalismo à estagnação, mas como um aumento da instabilidade que lhe é característica 3232. Braga JC. A financeirização da riqueza: a macroestrutura financeira e a nova dinâmica dos capitalismos centrais. Economia e Sociedade 1993; 2:25-57.. Trata-se de um modo de produção lógica e historicamente determinado do capitalismo, um sistema de acumulação produtiva, acumulação financeira e acumulação de riqueza fictícia 3333. Zwan NV. Making sense of financialization. Socioecon Rev 2014; 12:99-129.. De modo simplificado, a riqueza fictícia é a capitalização decorrente de uma taxa de juros geral e de um fluxo de rendimentos esperados de um ativo. O cálculo do valor do capital contém expectativas, elementos arbitrários. A forma da riqueza torna-se abstrata, mas não prescinde das mercadorias. Logo, a riqueza fictícia não se contrapõe à acumulação produtiva.

Financeirização, portanto, é um modo de desenvolvimento capitalista em uma determinação lógico-histórica e um processo sistêmico:

As próprias corporações produtivas passam a ter como objetivo alcançar substancial poder financeiro ao lado do poder tecnológico para assegurar êxito na concorrência intercapitalista, que é marcada por uma luta de ‘vida ou morte’ entre as grandes empresas e grupos econômicos. Os sistemas financeiros vão se tornando verdadeiros supermercados das finanças, nos quais diferentes funções são executadas desde o crédito à produção e consumo até, no outro extremo, o crédito à especulação financeira que vai criando riqueza fictícia, entendida como aquela existente nos títulos financeiros que se valorizam em um ritmo independente daquele que se verifica nos ativos produtivos, operacionais (…)” 3535. Braga JC. Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2000. (Coleção Teses). (p. 286).

Com base nessas referências, a pergunta equacionada pela pesquisa foi a da inserção das empresas e dos grupos empresariais da saúde no processo de financeirização no Brasil. As empresas e grupos empresariais líderes mundiais inscritos no processo de financeirização atuam em vários territórios, operam em distintos ramos de produção e desempenham simultaneamente funções produtivas, comerciais e financeiras.

“[Nessas empresas], a atividade rentista de ‘novo tipo’, estratégica e plena de inovações financeiras, incorpora-se por meio das aplicações financeiras de lucros retidos ou de caixa e de utilização do crédito lato sensu como instrumento de alavancagem para ganhos de todo tipo. Portanto, o ‘novo’ rentismo não é mais ‘especialidade’ dos detentores de fortunas pessoais, do capital bancário ou das empresas do sistema financeiro3535. Braga JC. Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2000. (Coleção Teses). (p. 275).

A preponderância das finanças nas corporações torna-se um elemento determinante da reorganização institucional-corporativa expressa pela montagem de cadeias de valor articuladas de forma a garantir resultados globais positivos, pouco permeáveis à regulamentação de governos nacionais. Esse processo de reorganização empresarial compreende: (i) movimentos de entrada e saída de fundos de investimento globais em participações societárias; (ii) ofertas públicas (abertura) de ações em bolsas de valores; (iii) composição de holdings controladoras multissetoriais, multifuncionais e multinacionais (iv) hipertrofia dos departamentos financeiros em empresas não financeiras; (v) produção de resultados financeiros importantes a partir de bases operacionais não financeiras estáveis; (vi) crescente influência política na formulação de agendas setoriais e marcos legais ad hoc; (vii) crescente influência ideológica de seus think tanks corporativos financiados por recursos das empresas 3636. Sestelo JAF. Planos de saúde e dominância financeira. Salvador: Editora da UFBA; 2018..

Contudo, tal compreensão sobre as expressões da financeirização não pode ser automaticamente aplicada ao exame de empresas e grupos empresariais em um país que não é a sede das corporações responsáveis pelo núcleo e propagação das operações produtivas e financeiras mundiais. Embora se admita que os processos de reorganização empresarial do setor saúde, no Brasil, sejam contemporâneos aos de países centrais, é plausível supor que as diferenças de magnitude das transações financeiras confiram singularidade aos processos de financeirização nas empresas e grupos empresariais que atuam no país.

Consequentemente, a primeira aproximação da financeirização à estrutura e dinâmica de empresas resultou na elaboração de um modelo explicativo que elenca as mediações entre a financeirização e suas possíveis expressões objetivas nas empresas do setor saúde no Brasil. Para fins deste estudo, a financeirização foi desdobrada em três dimensões: patrimonial societária, contábil-financeira e influência na agenda pública. Para cada dimensão, foram identificadas categorias analíticas que permitem registrar e quantificar expressões de financeirização nas empresas e grupos empresariais (Quadro 1).

Quadro 1
Modelo explicativo.

Relevância científica e social

Enfoques metodológicos e seus desafios

Para responder à pergunta sobre a inserção do setor saúde no Brasil no padrão de dominância financeira e produzir conhecimento que subsidie políticas para a redução de desigualdades sociais e geográficas, optou-se pelo desenvolvimento de uma investigação exploratória sobre movimentos de expansão de empresas e grupos empresariais em subsetores do setor saúde no Brasil no período de 2008 a 2017, com o uso de fontes documentais e informações disponíveis sobre a estrutura patrimonial, dinâmica contábil-financeira de empresas e grupos empresariais e agenda política de entidades empresariais. Os esforços para compatibilizar uma orientação teórica geral à análise de empresas e grupos empresariais concretos, ainda que exaustivos, requerem decantação e aprimoramentos conceituais e metodológicos que não se esgotam neste artigo.

A investigação enfocou empresas e grupos empresariais do setor saúde. Empresas foram definidas como organizações destinadas à produção ou comercialização de bens ou serviços, tendo por objetivo o lucro 3737. Sandroni P. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record; 2016. Grupo empresarial refere-se a um conjunto de empresas com personalidades jurídicas e atividades distintas que resultam no controle de uma ou umas sobre as outras, sob uma mesma direção (empresa controladora) 3636. Sestelo JAF. Planos de saúde e dominância financeira. Salvador: Editora da UFBA; 2018.. Convencionou-se ainda que empresas e grupos empresariais, por sua vez, admitem recomposição em subsetores e setores definidos como conjunto de empresas e grupos empresariais que utilizam insumos de trabalho, de capital e de bens e serviços para produzir bens e serviços de saúde expressos em atividades “típicas da saúde” 3838. Tepedino G. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Temas de Direito Civil 1999; 3:25.. Por último, setor saúde compreende empresas e grupos empresariais que desenvolvem atividades de produção e uso de insumos envolvidos com os cuidados à saúde. Assim, a expressão setor saúde acentua a natureza descritiva da investigação ao designar o conjunto de subsetores e delimitar a abrangência do estudo e estabelecer um parâmetro para comparação entre subsetores, com cada subsetor podendo ser referido ao setor. As definições de empresas, grupos empresariais e setor saúde, assinaladas acima, baseiam-se na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE - https://concla.ibge.gov.br/busca-online-cnae.html) e na concepção de setor saúde adotada para a elaboração das Contas Satélites da Saúde pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Na CNAE, a saúde humana é uma subseção das atividades que compreendem saúde e serviços sociais. Abrange serviços prestados em hospitais, ambulatórios, consultórios, clínicas, centros de assistência psicossocial, unidades móveis de atendimento a urgências e remoções e em domicílios, bem como as atividades de apoio à gestão dos estabelecimentos de saúde e as atividades de práticas integrativas e complementares 3838. Tepedino G. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Temas de Direito Civil 1999; 3:25.. As Contas Satélites da Saúde são elaboradas de acordo com um quadro de equivalência entre os códigos da Lista de Produtos da Indústria (PRODLIST-Indústria, https://concla.ibge.gov.br/classificacoes/por-tema/produtos/lista-de-produtos/prodlist-industria.html) e da CNAE e consideram o seguinte: fabricação de produtos farmacêuticos; fabricação de instrumentos e material médico, odontológico e óptico; comércio de produtos farmacêuticos, perfumaria e médico-odontológicos; saúde pública; saúde privada e saúde pública, educação e defesa 3939. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de saúde: Brasil: 2010-2015. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia Estatística; 2017..

A investigação foi orientada inicialmente pela identificação de subsetores, utilizando classificações do IBGE que agrupam “atividades do mesmo tipo”. Essas classificações subsidiaram a demarcação de subsetores, um conjunto de empresas que desenvolve atividades semelhantes. No entanto, as estatísticas oficiais excluem do setor saúde atividades como as de formação de profissionais, propaganda, entre outras. Embora essas atividades sejam reconhecidamente relevantes para dimensionar a abrangência do setor saúde, estão classificadas como integrantes de outros setores econômicos.

A composição do setor saúde, considerando seus subsetores tradicionais e ainda aqueles apontados pela equipe da pesquisa como relevantes para elucidar processos de reorganização empresarial, orientou o processo de seleção para a investigação. Os subsetores foram selecionados de acordo com três critérios: (i) a magnitude dos mercados compreendidos como loci de realização de contratos, compra e venda de produtos/atividades semelhantes; (ii) o destaque social e político; e (iii) o conhecimento prévio acumulado dentre os pesquisadores em relação a subsetores específicos.

A presença de alguma condição acima, associada a condições operacionais da equipe de pesquisadores, resultou na escolha de sete subsetores: indústrias farmacêuticas, empresas de planos de saúde, farmácias, hospitais, serviços de diagnóstico e terapia, organizações sociais e escolas médicas. Essa seleção deixou de incluir subsetores como indústrias de equipamentos, distribuidores de insumos, clínicas oncológicas e oftalmológicas, empresas de informação, outras faculdades que desenvolvem cursos de graduação e pós-graduação para profissionais de saúde, entre os que sabidamente também passaram por processos de reestruturação empresarial.

A inclusão das organizações sociais de saúde (OSS) vinculadas ou não a outras organizações filantrópicas ou privadas decorreu, primeiro, da constatação de que, dentre as maiores empresas brasileiras, consta uma OSS 11. Melhores & Maiores 2016. As 1000 maiores empresas do Brasil. Revista Exame 2016; 25 mai. https://exame.com/videos/revista-exame/melhores-maiores-2016/.
https://exame.com/videos/revista-exame/m...
e, segundo, da pergunta consequente a essa constatação sobre a presença indireta de processos de financeirização nesse subsetor. Certamente as OSS não constituem um subsetor análogo aos demais, em termos da produção de bens e serviços. Entretanto, destacam-se como relevantes vetores para o delineamento da destinação do financiamento público para a saúde no país.

As empresas foram selecionadas por subsetor. Para a maioria dos subsetores, o principal critério de seleção de grupos empresariais e empresas foi similar ao das classificações de publicações empresariais que priorizam a magnitude das receitas/faturamentos auferidos por elas no território nacional. Contudo, tal balizamento foi adaptado em função da disponibilidade de informações e das características próprias de cada subsetor. O detalhamento dos critérios está exposto nos estudos específicos de cada subsetor, incluídos neste Suplemento Temático. Foram incluídos cerca de 10 empresas e grupos empresariais por subsetor, totalizando 71 empresas ou grupos empresariais. O Quadro 2 identifica as empresas e grupos empresariais que integraram a pesquisa.

Quadro 2
Empresas e grupos empresariais por subsetor.

Buscou-se apoio para a operacionalização da pesquisa na literatura das áreas de Direito, Economia Industrial, Contabilidade e Ciências Políticas. Considerando a rarefação de pesquisas anteriores sobre o tema, foi necessário investigar e avaliar várias fontes de informação potencialmente compatíveis para a análise das três dimensões da pesquisa. Esse exercício requereu o desenvolvimento de expertises específicas na localização de fontes e de dados, na avaliação da qualidade dos dados e no processamento e interpretação das informações obtidas.

O Quadro 3 apresenta uma sistematização das categorias analíticas e as principais fontes de informação consultadas que foram utilizadas para a operacionalização da investigação.

Quadro 3
Matriz operacional.

A dimensão patrimonial foi operacionalizada a partir de três categoriais analíticas: (a) estrutura organizacional, tomada como expressão institucional das estratégias de expansão e dos padrões competitivos das empresas, que podem ser mais ou menos centralizadas ou descentralizadas e dos processos de fusões e aquisições; (b) estrutura do capital e do financiamento, que se referem à composição societária e às principais fontes dos recursos para despesas correntes e investimentos; (c) diversificação, que compreende os movimentos empresariais multiprodutos. A dimensão contábil-financeira se desdobrou em quatro categorias analíticas: (a) porte, que é uma ordem de grandeza das transações realizadas pelas empresas e grupos empresariais; (b) desempenho econômico indicado pela relação entre liquidez e endividamento e rentabilidade; (c) situação patrimonial referente à relação entre ativos e passivos; e (d) relevância das aplicações financeiras, que sinaliza a priorização das finanças nas estratégias expansionistas de empresas e grupos econômicos. A dimensão agenda pública também conta com quatro categorias analíticas: duas voltadas à apreensão das propostas das empresas e movimentos de criação de entidades empresariais e duas relacionadas à incidência das pressões empresariais na legislação.

Documentos e dados foram coletados entre janeiro de 2017 e maio de 2018. Registros em formatos diversificados foram inicialmente compilados e posteriormente organizados em três bancos de dados, correspondentes às três dimensões da pesquisa: Banco de Dados sobre Empresariamento na Saúde (BDES)-A (relativo à dimensão patrimonial-societária) e BDES-B (relativo à dimensão contábil-financeira), catalogados por empresas ou grupos empresariais; BDES-C (correspondente à dimensão articulação da agenda pública pelos sete subsetores). Os três bancos de dados admitem atualização e relacionamento de informações entre si (Quadro 4).

Quadro 4
Coleta, processamento de informações e bancos de dados.

Foram utilizados dois planos para a análise dos dados. O primeiro contemplou cada dimensão da pesquisa, ou seja, um exame agregado para o conjunto dos subsetores, em uma perspectiva intersetorial. O segundo privilegiou o exame mais pormenorizado, intrassetorial, no qual as informações são utilizadas para escrutinar cada subsetor. Essas tarefas foram executadas simultaneamente, para buscar relacionar ambas as abordagens.

Portanto, a análise intersetorial voltou-se a cada dimensão da investigação: a patrimonial, a contábil-financeira e a influência sobre a agenda pública, considerando o setor saúde. A análise intrassetorial apoiou-se em informações sobre as três dimensões e valoriza as singularidades dos subsetores. Os ajustamentos dos planos analíticos ao referencial teórico foram objeto de uma reflexão sobre a financeirização e o setor saúde no Brasil.

Os bancos de dados permitem atualização e expansão da base de subsetores e empresas, e suas informações fornecem subsídios para a realização de estudos de casos e delineamento de tendências. Os resultados dessas análises integram este Suplemento.

Principais contribuições e limites

O estudo é pioneiro e permitiu desvelar um traçado bem mais complexo e multifacetado sobre o setor saúde do que o divulgado por empresas, entidades empresariais e instituições oficiais. Também evidenciou um padrão heterogêneo de inserção dos subsetores no processo de financeirização e um intenso processo de reorganização empresarial em curso. Determinados subsetores, empresas e grupos empresariais analisados apresentam traços mais salientes de financeirização tanto na análise intersetorial quanto intrassetorial. O conjunto das informações sobre o setor saúde não autoriza afirmar uma inserção no processo de financeirização diferenciada de outros grupos econômicos dos demais setores da economia.

As mudanças na estrutura e dinâmica das empresas e grupos empresariais são contemporâneas e estão em curso. É necessário assegurar a continuidade de estudos e a atualização sistemática de bases de informação que permitam acompanhar seus desenvolvimentos e desdobramentos. Para tanto, os bancos de dados organizados pela pesquisa são passíveis de atualização permanente e poderão ser utilizados para o seguimento da investigação e como fonte para outras publicações.

A principal limitação do estudo é o ajuste de um referencial teórico orientado para a compreensão do capitalismo contemporâneo à análise de um setor econômico no Brasil. As mediações utilizadas, dimensões e categoriais analíticas, criteriosamente dedicadas à investigação de empresas e grupos empresariais do setor saúde, permitem uma aproximação ao modelo explicativo. As mediações, que definiram o percurso metodológico da investigação, por sua vez, foram ajustadas à existência e extração de informações. Foi possível identificar traços de financeirização, mas é necessário persistir na realização de estudos sobre trajetórias empresariais para avançar o conhecimento sobre as relações entre capitalismo e empresariamento na saúde.

Em relação aos limites do universo pesquisado, destaca-se a restrição da abrangência e representatividade. As maiores empresas de determinados subsetores não podem ser tomadas como o conjunto de cada subsetor e expressam apenas uma aproximação parcial ao setor saúde no Brasil. A exclusão de empresas relativamente menores - exatamente aquelas que vêm sendo objeto de aquisições - reduz o ângulo de observação apenas aos movimentos das grandes empresas, ocultando iniciativas direcionadas pela busca de retornos financeiros com as vendas, e torna as comparações entre subsetores necessariamente provisórias.

Adicionalmente, os subsetores e as empresas e grupos empresariais selecionados são heterogêneos. Determinadas informações não estão disponíveis para os diferentes tipos de empresas, especialmente para aquelas classificadas como não lucrativas. Também não foi possível superar obstáculos relativos à identificação e descrição completa das empresas que integram alguns grupos empresariais. São inúmeras as formas sob as quais se materializam as relações econômicas entre empresas e sócios, as quais continuam dotadas de personalidade e patrimônio próprios, aparentemente independentes mas integrantes de um mesmo grupo societário. Tampouco logrou-se apreender movimentos societários e contábeis financeiros de algumas empresas pertencentes a grupos que não dispõem de informações discriminadas por seus componentes.

Parte desses entraves foi superada pelo esforço da equipe de pesquisa, que se dedicou à compreensão das relações entre capitalismo e saúde, simultaneamente buscou ativamente fontes de informações empresariais e aprendeu a extrair e analisar dados para avançar nos conhecimentos sobre a temática que envolve os processos de capitalização na saúde e seus possíveis rebatimentos sobre o SUS. Seus resultados permitem a identificação de processos de financeirização que escapam ao radar das atuais políticas regulatórias e sinalizam possibilidades de mobilizar políticas públicas que se contraponham às inter-relações empresariais e governamentais que reproduzem e ampliam desigualdades sociais. O estudo é também importante por estimular questionamentos sobre as políticas públicas para a saúde e contribuir para a identificação de agendas empresariais e recepção das demandas corporativas pelas instituições governamentais. Tanto os processos de expansão das empresas e grupos empresariais do setor saúde, intrinsicamente geradores de desigualdades, como seus suportes estatais são pouco conhecidos.

O conhecimento produzido sobre os processos contemporâneos de expansão de empresas e grupos empresariais do setor saúde contribui ainda para questionar as políticas de regulamentação vigentes e, assim, sinalizar rumos alternativos às ações governamentais. A magnitude e o ritmo acelerado de expansão de empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil, bem como a escassez de estudos sobre o tema conferem à investigação uma dupla relevância. Em termos científicos, avança o conhecimento sobre um tema pouco explorado academicamente. A inspiração teórica em referenciais da economia política restabelece a ponte entre os estudos seminais da área da saúde coletiva em seu diálogo com a literatura da economia.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo financiamento (processo 405077/2013-0).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2020
  • Revisado
    05 Ago 2020
  • Aceito
    17 Ago 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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