Epidemiologia crítica latino-americana em carta ao Senhor Futuro. Um outro mundo ainda é possível?

Critical Latin American epidemiology in a letter to Mr. Future. Is another world still possible?

Epidemiología crítica latinoamericana en una carta al Señor Futuro. ¿Es todavía posible otro mundo?

Helton Saragor de Souza Maria de Fátima Ferreira Queiróz Patrícia Martins Goulart Sobre os autores
2021

As reflexões de Jaime Breilh são impulsionadas por sua percepção das desigualdades sociais no Equador e se inserem na medicina social latino-americana nas décadas de 1970-1980. Após mais de quatro décadas, o autor representa o Sul global e epistêmico, particularmente a América Latina, em seu livro Critical Epidemiology and the People’s Health11. Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press; 2021. da coleção Small Books, Big Ideas in Population Health, a convite da Universidade de Oxford (Reino Unido). A ausência da bibliografia latino-americana nos círculos intelectuais do Norte é uma característica. Segundo Nancy Krieger (no prefácio do livro de Breilh 11. Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press; 2021.), as teorizações e os argumentos de Breilh parecem ser de “outro mundo” quando contrastados com a literatura epidemiológica norte-americana e europeia, mas a autora reconhece tal situação e percepção como limites dos meios intelectuais do Norte, visto que a epidemiologia crítica é enraizada em parte relevante do mundo. Essa perspectiva também é compartilhada pelo editorial da The Lancet, publicado recentemente, que se reporta à obra como “um magnífico desafio às tradições científicas ocidentais que sustentam a medicina e saúde pública22. Horton R. Offline: health’s intercultural turn. Lancet 2023; 401:12. (p. 12).

Longe de analisarmos a produção social do conhecimento epidemiológico e a circulação das ideias nos contextos intelectuais, vivemos em um mundo insistentemente pandêmico ou sindêmico, como denomina Breilh, em uma conjunção de crises humanitárias e ambientais sem precedentes para muitos povos e suas condições de vida. O interesse do Norte sobre a epidemiologia crítica não é mero exercício de erudição, mas se trata de contato com um acervo praxiológico, do enfrentamento dos impasses e desafios da saúde global.

O livro materializa a aposta de Breilh na mudança paradigmática para os caminhos da epidemiologia. Distintamente de obras anteriores - tais como Epidemiologia: Economia, Política e Saúde (1991) 33. Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1991. e Epidemiologia Crítica: Ciência Emancipadora e Interculturalidade (2006) 44. Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006., sendo o primeiro de fundamentação referenciada na economia política marxista e o segundo incorporando temáticas teóricas contemporâneas -, a obra aqui analisada sintetiza discussões anteriores para a proposição de uma epidemiologia alternativa. Consequentemente, emergem novos paradigmas e constructos da saúde pública e da ciência. O autor questiona qual epidemiologia caberia na contemporaneidade?

Breilh argumenta distintamente do evolucionismo e apologética do progresso do conhecimento; a ciência não caminha para o acúmulo técnico linearmente, ou seja, as inovações “técnicas” ou metodológicas operacionais não são exemplos das revoluções do conhecimento. A história da ciência demonstra rupturas paradigmáticas que retomam a formulação das revoluções científicas de Thomas Kuhn. No enfrentamento do mainstream, desenvolve-se a possibilidade de ofertar uma epidemiologia com outros recursos lógicos e instrumentais, superando os reducionismos quantitativos e qualitativos arraigados. Para tal empreita, Breilh constrói três capítulos com discussões encadeadas: o primeiro trata da história e fundamentos da epidemiologia crítica latino-americana enquanto uma tradição ético-científica; no segundo, o autor defende a epidemiologia crítica como uma ciência ética em uma sociedade insalubre e, sobretudo, como uma ferramenta fundamental para enfrentar as contradições históricas ambientais e sociais da contemporaneidade; por fim, no terceiro, advoga um novo método e a interculturalidade na construção do objeto de pesquisa e da ação.

Breilh discorre sobre os fundamentos da tradição científica e política da qual é protagonista e demonstra como os aspectos sociais, políticos e ambientais forjadores do arcabouço teórico da epidemiologia crítica estão presentes ao redor do mundo. Em outros termos, as mudanças no mercado de trabalho, com o peso do desemprego, da violência e das desigualdades, são elementos com os quais o pensamento latino-americano lidava em sua constituição. O desenvolvimento capitalista desde a crise da taxa de lucros de 1970 não levou a prosperidade do centro para a periferia, ao contrário, “importou” a ela formas de destituição de direitos, de exploração e de precariedade social. Contudo, observamos que a epidemiologia crítica hoje é distinta da originária. Primeiramente, surge como uma epidemiologia das classes sociais e do desgaste humano da exploração do trabalho, refutando o “biologismo” e a (não-)historicidade da epidemiologia tradicional. Tratava-se da distribuição de doenças e agravos pelas classes sociais nas determinações econômicas do estruturalismo marxista combinada com o uso dos instrumentos da epidemiologia tradicional. Contemporaneamente, os autores incorporaram a relevância das teorias dos modos de vida, fato oriundo da influência de Canguilhem 55. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 1982., aos autores clássicos da Saúde Coletiva brasileira. Em outra via, o próprio Breilh é responsável por complexificar a epidemiologia crítica a partir da década de 2000, mantendo o pressuposto filosófico da emancipação de Marx, todavia, dialogando com (trans)interculturalidade e decolonialidade, na perspectiva materialista, mas se afastando da concepção estruturalista.

A pergunta do segundo capítulo é como constituir a epidemiologia ética como ferramenta de enfrentamento na civilização contemporânea insalubre. De acordo com Breilh, o ponto de partida analítico-crítico são as características do capitalismo contemporâneo. A ganância financeira das grandes corporações associada às alterações tecnológicas da Quarta Revolução Industrial desenvolveu um modo rápido de produzir, viver, adoecer e morrer no compasso da aceleração dos lucros. O controle corporativo da agricultura, da indústria e das finanças e a estratégia dos recursos digitais propiciam a sistemática regressão humana, social e ambiental de direitos. A vida não saudável é um modo “fast track” da sociedade contemporânea. Para o exercício de uma epidemiologia comprometida eticamente, Breilh retoma quatro princípios denominados como “os quatro S’s”: sustentabilidade; soberania; solidariedade; e segurança da vida.

A constituição de um novo método para a produção do conhecimento e ação é a temática do terceiro capítulo, também denominado por Breilh como “despertar intercultural”. O autor propõe a ruptura com a lógica cartesiana da ciência moderna na epidemiologia. Breilh elenca cinco rupturas necessárias com os seguintes pilares: causalidade linear; conjunção externa (variável externa); análise dual empírica quantitativa e qualitativa; a estratificação social e epidemiológica; e a geografia da saúde positivista.

Nesse sentido, o autor desenvolve a impossibilidade do exercício da epidemiologia enquanto um campo de conhecimentos isolados; ou melhor, formula a transdisciplinaridade e a interculturalidade combinadas na teoria e sobretudo na prática em saúde com caráter radicalmente transformador. Na discussão metateórica, advoga pela conformação de novas metodologias e políticas de saúde. Essa modificação é visível em relação ao estudo de uma população ou sociedade, não enquanto toma-se estas como um objeto de estudo inerte e distanciado do epidemiólogo (“object-based”), mas sim ao propor uma relação diferenciada entre sujeito e objeto da metodologia empirista, formulando uma metodologia de participação/construção comunitária (“community-building approach”).

O autor aprofunda a crítica do cerne da ciência atual, mirando o empirismo constitutivo da epidemiologia moderna da Inglaterra, sem renunciar ao rigor e efetividade necessários à epidemiologia. Ele avança na discussão de sujeito-objeto na produção do conhecimento, propondo sair do lugar do “cientista” e “estudioso” produtor do conhecimento para se deparar com a sabedoria do “outro”, muitas vezes objeto inerte de estudo, mas que na realidade é fonte de sabedoria popular que não pode ser ignorada. Em nossa visão, Breilh nessa passagem retoma uma relação dialética na qual abordagens marxistas se amparam, mas o fazem mais no instrumental tradicional da epidemiologia do que na discussão filosófica de Marx. As experiências com movimentos sociais e comunidades agregaram nessa formulação, logo conhecimento e sabedoria populares são componentes vitais de pesquisa e ação em concepção praxiológica.

Breilh opta por não aprofundar o debate sobre a produção epidemiológica recente. Essa escolha poderia contribuir para a refutação ou apropriação do instrumental: novos modelos estatísticos, modalidades de inferência causal e tecnologias do campo, fortalecendo os apontamentos de Breilh em direção a uma epidemiologia rigorosa e efetiva com sentido ético-político. Além disso, a proposta de uma metacrítica para superação dialética ou a transformação paradigmática da epidemiologia são questões a serem debatidas.

Trata-se de uma obra fundamental por suas potencialidades de perspectiva emancipatória e por abrir uma agenda de pesquisa e reflexões a partir de necessidades prementes no momento atual; ou melhor, é uma obra que abre muitas avenidas de trabalho a ser percorridas por toda uma geração de pesquisadores(as). O pensamento de Breilh teve caminho próprio, com influência recíproca ao campo da Saúde Coletiva no Brasil, e é talvez o único expoente do pensamento social latino-americano que transitou por toda constituição desse campo de conhecimentos. Logo, compreender a sua produção mais recente é fundamental para se situar nas discussões epidemiológicas contemporâneas, mas significa sobretudo projetar quais são os possíveis caminhos da epidemiologia e da teoria na saúde coletiva brasileira inseridas na América Latina, conduzindo-nos a uma esperança ativa: a de que um outro mundo ainda é possível.

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  • 1
    Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press; 2021.
  • 2
    Horton R. Offline: health’s intercultural turn. Lancet 2023; 401:12.
  • 3
    Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1991.
  • 4
    Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.
  • 5
    Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 1982.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Aceito
    27 Jan 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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