Sistemas alimentares: para onde caminhamos e o que esperamos?

Food systems: where are we heading and what do we expect?

Sistemas alimentarios: ¿hacia dónde nos dirigimos y qué esperamos?

Fernanda Ribeiro dos Santos de Sá Brito Sobre o autor
2022

Em um contexto de crise sanitária, social, política, econômica, vivenciamos um cenário extremamente preocupante para o campo da saúde coletiva: o recrudescimento da pobreza, da fome e da insegurança alimentar e nutricional. De maneira oportuna, o livro Sistemas Alimentares: Fome e Insegurança Alimentar e Nutricional no Brasil11. Salles-Costa R , Ferreira AA , Castro Júnior PCP, Burlandy L . Sistemas alimentares, fome e insegurança alimentar e nutricional no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. apresenta um panorama atualizado sobre uma temática fundamental para o campo da saúde coletiva.

Em uma linguagem acessível e de forma sucinta, como propõe a coleção, os autores trazem os conceitos de fome, desnutrição, segurança alimentar e nutricional, soberania alimentar e sistemas alimentares. Fazem um importante diálogo entre os dados atuais de insegurança alimentar e nutricional no Brasil e as desigualdades históricas, destacando as diferenças territoriais dos sistemas alimentares e outros sistemas que estruturam a sociedade e os processos de distribuição de recursos existentes. Deste modo, sinalizam que a insegurança alimentar e nutricional urbana está fortemente associada à distribuição desigual de recursos (educação, segurança pública, saúde), enquanto a insegurança alimentar e nutricional no meio rural esbarra numa diversidade de situações geográficas, políticas, raciais, socioculturais, sendo espaços marcados por conflitos de terra, fome, pobreza, violência, marginalização, e expropriação excessiva dos recursos naturais, que culminam em perdas irreparáveis para a cultura alimentar brasileira.

Cabe lembrar que tais desigualdades são reproduzidas em sistemas alimentares não sustentáveis, pautados no agronegócio, com consequências tanto para quem produz alimentos - os pequenos agricultores, que, de maneira paradoxal, estão sob constante ameaça de passar fome - quanto para quem consome, visto que é nos lares chefiados por mulheres e por negros que a fome aparece em maior proporção.

Nesse sentido, um aspecto importante ressaltado na obra remete à impossibilidade de se fortalecerem sistemas alimentares mais sustentáveis e diminuir situações de desigualdades e de insegurança alimentar e nutricional sem compreender o papel das grandes corporações alimentares. Os autores fazem um importante alerta sobre concentração de poder ao longo dos sistemas alimentares, influenciando diretamente no desenho de políticas públicas, definição de subsídios, regulação, renúncia fiscal, afetando o lugar da tomada de decisão sobre a produção de alimentos, que passa dos agricultores para a indústria de alimentos e setor varejista, do governo para o setor privado e as corporações multinacionais.

O livro também apresenta de forma sintética um panorama dos indicadores de fome e insegurança alimentar utilizados no Brasil, dentre eles, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), utilizada nas pesquisas de base populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e na recente pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), que denuncia o quantitativo atual de 33 milhões pessoas passando fome no Brasil. Ao discutirem os indicadores, os autores destacam sua importância como critério para acesso a diversas políticas públicas e para definição de prioridades. Destacam a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), porque configuram-se enquanto grandes impulsionadores de formulação e implementação de políticas e ações de enfrentamento da fome, da miséria, que vislumbrem uma agricultura mais sustentável.

Mas os autores também ressaltam os desafios de se dimensionar um problema tão complexo quanto a fome, enfatizando que são vidas valiosas singulares que estão por traz dos dados, o que constantemente fica menos evidente quando se lida com números.

Sobre a fome, tema tão discutido no decorrer das páginas, vale reconhecer que se trata de um problema persistente na sociedade brasileira, que Josué de Castro, há quase 100 anos, ajudou a desnaturalizar e compreender enquanto um problema social. Mas, ainda hoje, a discussão da fome como uma questão estrutural, que decorre de uma herança colonial e escravocrata, é pouco enfatizada. Desde a colônia, a agroindústria brasileira mantém uma vocação predominantemente econômica, priorizando o mercado exportador de matéria-prima (açúcar, tabaco, ouro, diamante, algodão, café) sobre o mercado interno (mandioca, feijão e milho), concentrando riqueza nas mãos de poucos proprietários 22. Campello T, Nascimento RC, Martins APB, Yamaoka M. Novas geografias: atuais e antigos dilemas da fome. Rev Segur Aliment Nutr 2022; 29:e022006., penalizando os mais pobres e, em geral, pessoas pretas, indígenas e seus descendentes.

Esse debate é essencial para avançarmos em mudanças efetivas, estruturais e sustentáveis, de uma realidade que perdura por toda a nossa história de país e é inaceitável. Tais mudanças se fazem a partir de políticas de Estado, que não oscilem de acordo com o governo em exercício em cada momento histórico, que não subsidiem mais a produção de commodities sem se preocupar com estratégias que efetivamente alimentem sua população com qualidade, quantidade e sustentabilidade, e sem políticas de enfrentamento do racismo estrutural com redistribuição da renda, acesso à terra e cidadania plena para todos. Tal como expresso no conceito de segurança alimentar e nutricional 33. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 18 set., é preciso garantir o acesso a outras necessidades básicas para que a alimentação seja de fato um direito, dentre outros direitos fundamentais para a construção de uma cidadania plena. Seguindo o alerta de Herbert de Souza (Betinho) 44. Souza H. A alma da fome é política. https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=FGV_HS_PI&pasta=HS%20pi%20Souza,%20H.%201993.09.12&pagfis=1682 (acessado em 11/Out/2022).
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, quando alguém chega a passar fome, é porque tudo o mais já lhe foi negado.

Somado a este contexto, vivenciamos nos últimos anos destruições políticas, institucionais e orçamentárias profundas na pauta da segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada (DHAA) 55. Alpino TMA, Santos CRB, Barros DC, Freitas CM. COVID-19 e (in)segurança alimentar e nutricional: ações do Governo Federal brasileiro na pandemia frente aos desmontes orçamentários e institucionais. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00161320., nos distanciando do próprio conceito de soberania alimentar, como bem trazido pelos autores, que diz respeito ao direito dos povos de decidir sobre quais alimentos querem produzir, consumir e comercializar.

Os autores fazem um relevante destaque, logo em suas páginas iniciais, apontando que esse cenário de fome é inadmissível, mas que, paradoxalmente, tem sido aceito ao longo de séculos pela sociedade brasileira. Vivenciamos atualmente um período oportuno de reconstrução democrática e reestruturação de instituições e políticas voltadas para a garantia da segurança alimentar e nutricional e DHAA. Nesse momento, nunca é demais ressaltar que a fome pode e precisa acabar, não nos basta mais só sair do mapa da fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Judith Butler nos ajuda a compreender tal fato, a partir da ideia de enquadramentos. Só aceitamos que determinadas vidas passem por situações tão sub-humanas porque produzimos enquadramentos sobre elas, fazendo com que não sejam consideradas como vidas, existindo uma distinção clara entre as vidas que importam e as que não importam. Sobre esses enquadramentos perpassam o racismo, o sexismo e o colonialismo, e se produz uma ética de violência sobre esses corpos 66. Butler J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 6ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2019..

Como desafios e perspectivas, os autores apontam para a necessidade da transição para sistemas alimentares agroecológicos, que tem por premissa que os povos das florestas sejam protagonistas. Neste ponto, pode-se ressaltar que o caminho deve passar pelo respeito e reconhecimento dos guardiões dessas florestas, que se relacionam com a natureza sob outras perspectivas, a partir de princípios cosmológicos menos extrativistas e mais recíprocos 77. Grosfoguel R. Del "extractivismo económico" al "extractivismo epistémico" y al "extractivismo ontológico": una forma destructiva de conocer, ser y estar en el mundo. Tabula Rasa 2016; 24:123-43.. Há tempos nos importamos demais com uma ideia de desenvolvimento que, sob outra perspectiva, pode ser pensada como o ato de se (des)envolver, deixar de se envolver, com tudo que é orgânico, com a natureza, e passamos a nos envolver demais com tudo que é sintético, com bens materiais. Então, o caminho, para Nego Bispo dos Santos, é que precisamos deixar de nos (des)envolver e começar a nos envolver com tudo que é orgânico 88. Santos AB. Colonização, quilombos: modos e significações. http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf (acessado em 11/Out/2022).
http://cga.libertar.org/wp-content/uploa...

Referências

  • 1
    Salles-Costa R , Ferreira AA , Castro Júnior PCP, Burlandy L . Sistemas alimentares, fome e insegurança alimentar e nutricional no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022.
  • 2
    Campello T, Nascimento RC, Martins APB, Yamaoka M. Novas geografias: atuais e antigos dilemas da fome. Rev Segur Aliment Nutr 2022; 29:e022006.
  • 3
    Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 18 set.
  • 4
    Souza H. A alma da fome é política. https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=FGV_HS_PI&pasta=HS%20pi%20Souza,%20H.%201993.09.12&pagfis=1682 (acessado em 11/Out/2022).
    » https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=FGV_HS_PI&pasta=HS%20pi%20Souza,%20H.%201993.09.12&pagfis=1682
  • 5
    Alpino TMA, Santos CRB, Barros DC, Freitas CM. COVID-19 e (in)segurança alimentar e nutricional: ações do Governo Federal brasileiro na pandemia frente aos desmontes orçamentários e institucionais. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00161320.
  • 6
    Butler J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 6ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2019.
  • 7
    Grosfoguel R. Del "extractivismo económico" al "extractivismo epistémico" y al "extractivismo ontológico": una forma destructiva de conocer, ser y estar en el mundo. Tabula Rasa 2016; 24:123-43.
  • 8
    Santos AB. Colonização, quilombos: modos e significações. http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf (acessado em 11/Out/2022).
    » http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2023
  • Aceito
    18 Fev 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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