Botazzo C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec; 2013.

Wilza Vieira Villela Sobre o autor
2013

Bucalidade: a construção de um conceito e suas promessas para uma clínica ampliada

É alvissareira a leitura do novo trabalho de Carlos Botazzo, “Diálogos sobre a boca”. Concebido como uma coletânea de artigos produzidos pelo autor sobre o tema nos últimos 25 anos, uns inéditos e outros já publicados, alguns revisados ou atualizados, o livro oferece, ao leitor, a oportunidade de acompanhar o processo analítico-reflexivo que funda o conceito de bucalidade. Processo este construído e protagonizado por um coletivo de odontólogos (posteriormente, autointitulados “bucaleiros”) comprometidos com a reforma sanitária brasileira, do qual o autor foi um participante expressivo.

Marcado pela busca das articulações teóricas e políticas entre os sentidos historicamente atribuídos à boca, aos dentes e aos problemas aí localizados, e os modelos de organização das práticas voltadas para a atenção à saúde da boca, o volume pretende, ademais, inserir esta reflexão no conjunto mais amplo de questões que constituem e movem o campo da saúde coletiva brasileira. Pela análise das convergências e divergências que se estabelecem quando o objeto da prática é a boca (ou os dentes, melhor dizendo) ou qualquer outra parte do corpo, e dos desafios da oferta do cuidado, bucalidade vai se constituindo, ao longo dos ensaios que compõem a coletânea, como um conceito central para que se possa pensar uma “saúde bucal coletiva”.

Orientada pelos mesmos princípios que fundamentam e norteiam a saúde coletiva brasileira, dentre os quais a interdisciplinaridade, o rigor crítico e o compromisso político de aliar a reflexão acadêmica a propostas de ação, a saúde bucal coletiva teria como desafio observar as especificidades que, historicamente, orientaram as práticas sanitárias voltadas para os dentes, de modo a preservar as características do seu objeto que fizeram da odontologia algo distinto de uma “medicina dos dentes.”

Na perspectiva do autor, uma saúde bucal coletiva não deve ser tomada como um conjunto de proposições tecnológicas ou organizacionais visando a extensão de cuidados odontológicos para um grande número de pessoas. A boca não é apenas uma cavidade passiva onde se alojam os dentes, objetos da odontologia; ao mesmo tempo, os dentes devem ser considerados em relação ao sujeito em cuja boca estão alojados. Sujeitos portadores de histórias, desejos e carecimentos.

Tendo como pressuposto que a boca é a parte do corpo que medeia a relação do sujeito com o mundo, e assim o próprio processo de humanização, a saúde bucal coletiva seria a área do campo da saúde coletiva com a vocação de pensar a boca e seus mal-estares a partir de determinantes sociais e subjetivos. Ademais, construir uma área de pensamento e proposta de ação em relação à boca seria também um mote para se pensar a necessidade de uma clínica que, cada vez mais, incorpore a tentativa de capturar as nuances da relação sujeito-corpo-desejo, e suas repercussões sobre a experiência singular de sentir-se saudável ou doente. Esta ampliação da clínica exigiria igual ampliação da escuta, do olhar e da concepção sobre o fazer clínico, e o diálogo com saberes oriundos de campos distintos do da saúde.

O percurso de pensamento do autor na construção dos seus argumentos não é solitário. Como reiteradamente assumido ao longo dos textos, a elaboração das bases teórico-políticas de uma saúde bucal coletiva congrega o esforço de diversos odontólogos comprometidos com a reforma sanitária brasileira, como: Narvai, Frazão, Manfredini, Toledo e outros. A partir da experimentação de modelos de atenção à saúde bucal que pudessem melhor atender às necessidades da população, estes militantes foram se dando conta da insuficiência da tradução acrítica de algumas propostas teóricas gerais da saúde coletiva – como a diretriz epidemiológica, a ideia da programação subordinada à perspectiva do risco e outras – para esta área específica. Seria necessário demarcar melhor o objeto “boca”, para que pudesse haver uma apropriação mais adequada das proposições que alimentavam a consolidação daquele campo e da própria reforma sanitária brasileira.

Como não podia deixar de ser, os textos apresentam a elegância e o fino humor que caracterizam a produção literária de Carlos Botazzo, ao lado da erudição que também marca seus trabalhos. Neste particular, chama atenção a sua referência a autores brasileiros que contribuíram de forma substantiva para a construção do campo da saúde coletiva no país, como Donnangelo e Mendes-Gonçalves, dando ao leitor uma nova oportunidade de comprovar o vigor e a atualidade dos seus pensamentos. Ao lado destes, pensadores/ativistas contemporâneos da saúde coletiva dialogam com autores clássicos de diferentes campos do conhecimento, como: Althusser, Elias, Hobsbawn e Levi-Strauss. O resultado é um texto denso, embora de leitura fácil e agradável.

O percurso que o autor propõe se inicia com as suas reflexões a respeito do que poderia ser uma saúde bucal coletiva. Aí, o que é problematizado, ainda que de forma insipiente neste primeiro momento, é a relação entre a Odontologia e a Medicina. Esta reflexão, aparentemente, se fazia necessária para que fosse possível reivindicar uma saúde bucal coletiva como um campo autônomo em relação a uma saúde coletiva cuja construção estava fortemente marcada pela análise crítica da medicina como prática social e política. Sua âncora é a pergunta: Por que a Odontologia não se constituiu como uma especialidade médica, a exemplo do que seria a medicina dos diversos sistemas do corpo humano?

A resposta é buscada na análise historiográfica da construção dos seus respectivos objetos: ao ser destacável, o dente se apresenta como um elemento autônomo. Os conhecimentos e práticas que se organizam em torno dos dentes poucas relações estabelecem com uma medicina que se constitui desde a intervenção nos interiores dos corpos. Embora seus desenvolvimentos tenham muitas coisas em comum, em especial no que diz respeito à ideia de que a saúde, dos corpos ou dos dentes, se conquista pela rigorosa observância de normas higiênicas e da contenção dos excessos, odontologia e medicina se constroem a partir de historicidades distintas.

A partir desta linha de raciocínio, Botazzo defende que a especificidade da Odontologia exige uma especificidade semelhante de análise, visando a construção de um campo de saberes, práticas e proposições políticas que incorporem o cuidado com os dentes sem que a isto se restrinja, reconhecendo que os dentes fazem parte de uma boca, cujas múltiplas funções a colocam como central na constituição dos sujeitos.

Isto posto, e considerando o cuidado metodológico na utilização das impressões e observações das experiências vivenciadas como modos de produção de conhecimento, o autor avança. Não se trata mais de discutir a especificidade de uma saúde bucal coletiva, mas de aprofundar a reflexão teórica sobre a boca de modo a fundamentar a consolidação do campo da saúde bucal.

Aprofundamento que se apresenta no capítulo 4, em que o autor retoma, a partir da psicanálise, as funções eróticas primárias da boca, e as interdições/transformações deste erotismo para a constituição da linguagem e da subjetividade de cada um. Configuração subjetiva que vem desafiar a ideia de que a boca é apenas o lugar onde se alojam os dentes, objetos da odontologia. A boca é o lugar do desejo, da paixão, e o suporte para interação com o outro, por meio da fala. A partir daí está bem demarcada a distinção entre a odontologia e uma saúde bucal, que não prescinde de bons dentes para se realizar, mas que exige uma abordagem referida tanto às demais funções da boca, como também, e fundamentalmente, ao sujeito de quem cada boca faz parte.

A demarcação do campo da saúde bucal coletiva possibilita que o autor retome, com novo fôlego, temas atuais para a organização das práticas de saúde e a formação de profissionais, como a ideia de integralidade e suas possibilidades no interior da Estratégia Saúde da Família. Esta demarcação também permite o trânsito do conceito de bucalidade, que assim poderá ser pensado em relação a processos de produção de subjetividade e cidadania.

O caráter reiterativo de algumas ideias se deve à própria lógica de organização da coletânea, que, de algum modo, testemunha a construção do pensamento do autor. Para o leitor, esta reiteração é uma vantagem, pois permite uma familiarização progressiva com o complexo pensamento do autor, facilitando seu entendimento e consolidação.

Um pequeno reparo diz respeito à utilização, em quase todos os capítulos, do termo “homem” como sinônimo de sujeito universal, a despeito dos atuais esforços, por parte dos movimentos feministas e LGBT, de desconstrução deste paradigma desde a linguagem. Ao vanguardismo das ideias propostas no livro, talvez devesse se seguir um alinhamento linguístico mais contemporâneo.

Esta ressalva, entretanto, não compromete a riqueza das ideias que o livro pode sugerir a seus leitores, sejam do campo da saúde, em qualquer área, ou de qualquer outro campo, desde que curiosos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2014
  • Aceito
    06 Mar 2014
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