A Educação e o trabalho interprofissional alinhados ao compromisso histórico de fortalecimento e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS)

Marcelo Viana da Costa José Rodrigues Freire Filho Cláudia Brandão Jaqueline Alcântara Marcelino da Silva Sobre os autores

Historicamente o SUS é palco de lutas permanentes no intuito de implementar os princípios de integralidade, universalidade e equidade, comprometidos com direitos sociais democráticos. O movimento pelo fortalecimento e consolidação de um sistema de saúde ancorado nessas bases constitui um projeto político comprometido não apenas com a melhoria da qualidade de vida e saúde das pessoas, mas também com a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e humana.

Com esse compromisso, sujeitos sociais de todo o país lutam diariamente pela reorientação da formação e do trabalho em saúde, considerando as singularidades loco regionais do território, dos usuários e das comunidades. Tal militância pauta-se na resistência às forças hegemônicas - que valorizam princípios opostos ao projeto de uma sociedade voltada ao bem-estar social - buscando a redução das iniquidades, orientando-se pelas complexas e dinâmicas necessidades de saúde de usuários, famílias e comunidades na organização do processo de produção dos serviços de saúde e da formação em saúde.

No cenário atual convivemos com a mudança do perfil epidemiológico e demográfico da população, o retorno de doenças antes controladas e uma conjuntura social e econômica com grandes implicações no aumento das desigualdades sociais, além da crescente complexidade das necessidades e dos problemas de saúde das pessoas. Nesse sentido, as mudanças das demandas do sistema de saúde implicam em transformações necessárias na formação de trabalhadores para o SUS.

Este editorial do Suplemento sobre Educação e Trabalho Interprofissional em Saúde, busca ressaltar que a construção da Educação interprofissional em Saúde (EIP) e do trabalho não estão dissociados da luta histórica pelo fortalecimento do nosso SUS. Embora esta temática incorpore palavras relativamente novas, fortalece princípios fundamentais para essa conjuntura: a centralidade do usuário na reordenação dos serviços de saúde, o alinhamento dos perfis profissionais a essas complexas necessidades de saúde e a formação de profissionais mais implicados com as transformações necessárias à sociedade.

O SUS é mundialmente reconhecido como um sistema universal que garante o acesso a saúde como direito inalienável e apresenta avanços significativos, tais como o programa HIV/Aids, a imunização, os transplantes, o combate ao tabagismo e o crescimento exponencial da atenção básica e do trabalho em equipe na Estratégia de Saúde da Família, que evidenciam a importância da continuidade da luta por sua consolidação e fortalecimento. Apesar desses avanços, a realidade evidencia a necessidade de avançar na perspectiva da formação para o efetivo trabalho em equipe como instrumento potente no enfrentamento dessa complexa conjuntura e na produção de um sistema de saúde equânime.

A formação em saúde no Brasil, legitimada pela lógica uniprofissional, precisa ser revista, pois contribuiu para a reprodução da fragmentação das relações profissionais no mundo do trabalho. Na educação das profissões da saúde ainda são priorizadas abordagens pedagógicas que não possibilitam o desenvolvimento de competências profissionais colaborativas indispensáveis para a melhoria da qualidade da atenção à saúde e pelo fortalecimento do principio da integralidade dos cuidados.

Viabilizar oportunidades educacionais nas quais membros de duas ou mais profissões aprendam juntos, de forma interativa, com o propósito explicito de avançar na perspectiva da colaboração como prerrogativa para a melhoria na qualidade da atenção11. Reeves S, Fletcher S, Barr H, Birch I, Boet S, Davies N, et al. A BEME systematic review of the effects of interprofessional education: BEME Guide Nº 39. Med Teach. 2016; 38(7):656-68. doi: 10.3109/0142159X.2016.1173663.
https://doi.org/10.3109/0142159X.2016.11...
além do movimento da EIP, constitui o horizonte apresentado na coletânea de artigos, relatos de experiência e debates deste Suplemento.

Todas as propostas submetidas representam a aspiração pelo fortalecimento do SUS, que passa também pela reorientação das práticas e da formação, reforçando o compromisso com os princípios da colaboração interprofissional na produção dos serviços de saúde e no desenvolvimento de profissionais mais aptos e implicados com o efetivo trabalho em equipe, comprometidos com as necessidades de saúde já referidas.

O conjunto de artigos submetidos mostra a diversidade da produção sobre o tema, mas principalmente a capacidade inventiva, de luta e de transformação. Vale ressaltar que não existe um modelo pronto de EIP, as experiências bem-sucedidas em todo o mundo se consolidaram por sucessivos movimentos, erros e acertos. As diferentes realidades coexistentes no país, com necessidades muito específicas, implicam a importância de adequar as iniciativas de EIP aos aspectos facilitadores, mas que também apresentam novas possibilidades. Essa foi a grande característica percebida em todos os manuscritos apresentados neste fascículo.

Foram recebidas 160 submissões de grande relevância para o cenário do trabalho e da formação em saúde no Brasil. Considerando o escopo e as diretrizes da revista Interface, foram selecionados 19 artigos originais, quatro relatos de experiência e um debate. A maioria das submissões abordou temas e realidades do processo de formação interprofissional em Saúde, mas também foi marcante o número de produções relacionadas ao trabalho e às práticas em Saúde.

A chamada pública para o Suplemento buscou encorajar a submissão de trabalhos em eixos-chave para o debate da Educação e do trabalho interprofissional em Saúde, na perspectiva de estimular o diálogo com referenciais nacionais e internacionais e apresentar a potência desse debate na luta histórica pela reorientação da formação e do trabalho em Saúde no Brasil.

Assim é que, no eixo sobre os aspectos teórico-conceituais, um dos artigos discute esses aspectos teóricos da educação baseados na interdisciplinaridade e interprofissionalidade, a partir dos desafios de combinar métodos e estratégias educacionais do contexto da formação dos profissionais de saúde.

Sobre as políticas de reorientação da formação e do trabalho em Saúde enquanto espaços potentes para a adoção da interprofissionalidade, os trabalhos expressam importantes produções que contribuem para analisar experiências da interprofissionalidade, ou possibilidades de sua incorporação, em políticas estratégicas do SUS: PRÓ-Saúde, PET-Saúde, Programa Mais Médicos e Vivências e Estágios na realidade do SUS (VER-SUS). Os artigos sobre PRÓ-Saúde e PET-Saúde, enquanto cenários para o redimensionamento de propostas de formação de professores da área da Saúde, apresentaram forte valorização da aprendizagem colaborativa e interprofissional. Em relação ao Programa Mais Médicos foram analisados os projetos político-pedagógicos dos cursos de especialização em Saúde da Família ofertados no âmbito dessa política, como possibilidade para adoção dos elementos teóricos e metodológicos da Educação Interprofissional (EIP). Sobre o VER-SUS apresenta-se uma experiência interessante de aprendizagem compartilhada e interprofissional, vivenciada no projeto VER-SUS, em Sobral, Ceará, reiterando a importância de fortalecer a efetiva comunicação na dinâmica do processo de formação e do trabalho em Saúde.

A maioria dos artigos do Suplemento focaliza o eixo das Iniciativas de Educação Interprofissional em Saúde. São artigos que discutem a incorporação dos pressupostos da EIP em diversos cenários da formação em Saúde: grupos de pesquisa como espaços para o exercício da Educação Interprofissional; a realidade de serviços de saúde enquanto cenário para a Educação Interprofissional; experiências exitosas de EIP no âmbito das residências multiprofissionais em saúde; a EIP em cenários diversificados na graduação em Saúde Coletiva; o envelhecimento como tema capaz de viabilizar estratégias de EIP em diferentes cursos de graduação em Saúde e a formação interprofissional em cursos de pós-graduação stricto senso.

No eixo sobre métodos de ensino-aprendizagem na Educação Interprofissional em Saúde as contribuições envolvem a reflexão sobre a relevância da diversificação de cenários de aprendizagem e a potência da integração de diferentes currículos de cursos de graduação em Saúde para o exercício da EIP.

Sobre as Iniciativas de Trabalho Interprofissional e Práticas Colaborativas nos diversos cenários de produção dos serviços de Saúde também são significativas as contribuições dos artigos apresentados neste Suplemento, envolvendo reflexões sobre as dimensões do trabalho interprofissional e das práticas colaborativas na Unidade Básica de Saúde da Estratégia Saúde da Família; discussão da prática colaborativa nos serviços de urgência; a comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa na Atenção Primária à Saúde; o debate sobre trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde.

No eixo das implicações da Interprofissionalidade nos processos de mudanças da formação e do trabalho em Saúde os artigos trazem um debate consistente sobre experiências de formação interprofissional em instituições de ensino superior no Brasil, como na UNIFESP - campus Baixada Santista e na Universidade Estadual de Maringá; e a educação interprofissional nos cursos de graduação em Medicina e Enfermagem, na perspectiva dos estudantes.

O eixo da avaliação das iniciativas de educação e trabalho interprofissional em Saúde apresenta uma experiência de revisão das matrizes curriculares em um projeto pedagógico inovador, como forma de discutir possibilidades para o fortalecimento da interprofissionalidade na formação em Saúde.

Finalmente, sobre o trabalho interprofissional e as práticas colaborativas em Saúde no processo de fortalecimento e consolidação do SUS e a centralidade dos usuários e suas necessidades, como fundamento para a educação e o trabalho interprofissional em Saúde, o Suplemento inclui uma análise consistente sobre a formação interprofissional e a produção do cuidado.

Ressalta-se, ainda, que este Suplemento integra as atividades previstas no Plano de Ação para o fortalecimento da EIP no Brasil, elaborado em 2017 pelo Departamento de Gestão da Educação em Saúde (DEGES) da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde (MS), em parceria com a Diretoria de Desenvolvimento da Educação em Saúde (DDES) da Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério da Educação (MEC), universidades e pesquisadores que compõem a Rede Brasileira de Educação e Trabalho Interprofissional em Saúde (ReBETIS), apoiado pela Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS).

Publicações dessa natureza expressam o interesse pelo tema da EIP e da prática interprofissional e revelam os caminhos da incorporação desse movimento na formação e no trabalho em Saúde. Também sinalizam lacunas do conhecimento para futuras pesquisas, promovem maior debate e diálogo com a literatura nacional e internacional, além de ressaltar o compromisso de fortalecer e consolidar ativamente o SUS.

Na leitura dos artigos que integram o Suplemento fortalece-se a perspectiva apresentada por Hobsbawm22. Hobsbawm E. Era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1996.:

Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto [...] contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. (p. 562)

Que essa leitura encoraje novos projetos, novas formas de trabalhar e formar em Saúde, sem perder de vista o projeto de uma sociedade melhor e encorajados pelos acúmulos e ganhos das lutas históricas.

Referências

  • 1
    Reeves S, Fletcher S, Barr H, Birch I, Boet S, Davies N, et al. A BEME systematic review of the effects of interprofessional education: BEME Guide Nº 39. Med Teach. 2016; 38(7):656-68. doi: 10.3109/0142159X.2016.1173663.
    » https://doi.org/10.3109/0142159X.2016.1173663
  • 2
    Hobsbawm E. Era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    12 Nov 2018
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