Aprendizagem, meios digitais e afeto: propostas para um novo paradigma na educação superior

Aprendizaje, medios digitales y afecto: propuestas para un nuevo paradigma en la educación superior

Florence Dravet Gustavo de Castro Sobre os autores

Resumos

Relaciona-se a presença dos meios digitais com os conhecimentos necessários a uma formação integral do ser humano, conjunção entre saberes racionais – capacidade de síntese e análise – e saberes afetivo-emocionais – capacidade de viver com o outro – propiciadora do saber viver e do pensar bem. A fim de contribuir para a reflexão crítica sobre o poder da tecnologia digital enquanto forma de avançar nos processos de aprendizagem, a proposta baseia-se na teoria da complexidade. Foi feita uma revisão bibliográfica seguida de pesquisa exploratória consistindo na análise comparativa de sites dedicados a propostas inovadoras em educação. Conclui-se que a presença dos meios digitais no ambiente educativo apresenta vantagens práticas para aquisição racional de conhecimentos. Porém, os meios digitais deixam lacunas afetivas a serem preenchidas por meio do ensino da ética das relações entre seres humanos na vida pessoal, social e coletiva.

Aprendizagem; Meios digitais; Educação; Afeto; Comunicação


Se relaciona la presencia de los medios digitales con los conocimientos necesarios para una formación integral del ser humano, conjunción entre saberes racionales – capacidad de síntesis y análisis – y saberes afectivo-emocionales – capacidad de vivir bien con el otro – propiciadora del saber-vivir y del pensar bien. Con la finalidad de contribuir para la reflexión crítica sobre el poder de la tecnología digital como forma de avanzar en los procesos de aprendizaje, la propuesta se basa en la teoría de la complejidad. Se realizó una revisión bibliográfica seguida de investigación exploratoria consistiendo en el análisis comparativo de sitios dedicados a propuestas innovadoras en educación. En conclusión, la presencia de los medios digitales en el ambiente educativo presenta ventajas prácticas para adquisición racional de conocimientos. No obstante, los medios digitales dejan lagunas afectivas que hay que llenar por medio de la enseñanza de la ética de las relaciones entre seres humanos en la vida personal, social y colectiva.

Aprendizaje; Medios digitales; Educación; Afecto; Comunicación


Introdução

Neste artigo pretendemos trazer reflexões para a construção de um fundamento que permita assentar propostas de ações coletivas para aquilo que podemos chamar de “aprendizagem cultural” no contexto da presença maciça dos meios digitais. O que chamamos de “aprendizagem cultural”, embora possa parecer redundância, é uma aprendizagem voltada para a complexidade da realidade da cultura (que já se tornou também em larga medida transcultural)ccTranscultural é o conceito segundo o qual um mesmo problema cultural pode ser analisado nas mais diversas culturas com suas interpretações específicas, mas mantendo-se o mesmo problema., baseada no conhecimento do conhecimento, ou seja, na consciência do próprio processo que se dá entre os meios e as faculdades do aprender, seja no ambiente escolar, seja fora dele, no cotidiano, na vida social, em casa, na rua e até no âmbito do imaginário, no universo da ficção, da fantasia, do sonho.

Como podemos apreender o poder da tecnologia digital e dos meios de comunicação social como ganho de complexidade e como forma de avançar em nossos processos de aprendizagem? Para responder a esse questionamento, traremos aqui uma reflexão em três momentos: 1) o conhecimento do conhecimento em face da inteligência artificial; 2) os meios digitais no universo imaginário e afetivo; e 3) os meios digitais como instrumentos de aprendizagem: uma mudança de paradigma?

Para essa última etapa do texto, recorremos a uma pesquisa exploratória que analisou sites e plataformas colaborativas cuja proposta afirmava explicitamente se dedicar à busca de soluções inovadoras para a educação. O caráter exploratório visava identificar as categorias do caráter inovador e as tendências à inovação pretendida. Para tanto, quatro sites e uma plataforma colaborativa foram estudados, por meio de uma análise de conteúdo sistematizado em categorias extraídas da própria análise. Tais categorias servem atualmente de base para um estudo mais amplo. Para o presente texto, interessa-nos o resultado da fase exploratória.

Sabemos que a aprendizagem e o saber são precedidos por uma longa experiência. A aprendizagem pode ser entendida pelo modo com o qual as pessoas adquirem conhecimento, desenvolvem competências e mudam o comportamento. Sua temporalidade é, em muitos casos, completamente diferente da velocidade da informação, que se caracteriza pela curta duração e brevidade. Se a informação é explícita, a aprendizagem adota muitas vezes uma forma implícita.

Mas o que é o saber? Não se trata apenas, é claro, do conhecimento científico – recente, raro e limitado –, mas daquele que qualifica a espécie: homo sapiens. Cada vez que um ser humano organiza ou reorganiza sua relação consigo mesmo, com seus semelhantes, com as coisas, com os signos, com o cosmo, ele se envolve em uma atividade de conhecimento, de aprendizado.11. Lévy P. A inteligência coletiva. Por uma antropologia do ciberespaço. Rouanet LP, tradutor. 8a ed. São Paulo: Loyola; 2011. (p. 123)

A aprendizagem não se reduz somente aos discursos racionais. “Existem pensamentos-corpo, pensamentos-afeto, pensamentos-percepção, pensamentos-signo, pensamentos-conceito, pensamentos-gesto, pensamentos-máquina e pensamentos-mundo”11. Lévy P. A inteligência coletiva. Por uma antropologia do ciberespaço. Rouanet LP, tradutor. 8a ed. São Paulo: Loyola; 2011. (p. 123). A aprendizagem via meios digitais é um espaço do saber, diz Lévy, habitado e animado por uma inteligência coletiva, em permanente reconfiguração dinâmica, capaz de “[...] inventar línguas mutantes, construir universos virtuais, ciberespaços em que se buscam formas inéditas de comunicação”11. Lévy P. A inteligência coletiva. Por uma antropologia do ciberespaço. Rouanet LP, tradutor. 8a ed. São Paulo: Loyola; 2011. (p. 123). Esse espaço do saber propiciado pelos meios digitais não deve ser confundido com uma espécie de recipiente abstrato de todos os saberes possíveis; ao contrário, é uma forma bem específica de saber, que reorganiza, hierarquiza e insere no meio informacional seu modo próprio de conhecimento, resultante de outros espaços do saber. Espaços variados organizam-se em torno de afinidades, proliferam-se de modo molecular e se constituem de uma multiplicidade de espaços interdependentes. Lévy defende que os meios digitais são espaços antropológicos e uma forma de reorganização da cultura, da linguagem, da educação e dos saberes humanos.

O conhecimento do conhecimento em face da inteligência artificial

Com base na proposta epistemológica de MorinddA noção de conhecimento do conhecimento foi estruturada por Edgar Morin no tomo 3 da obra O Método, publicado originalmente em 1986. Trata-se de uma proposta de revisão do conhecimento baseada na diferença entre inteligência (arte estratégica), pensamento (arte dialógica e arte de concepção) e consciência (arte reflexiva)., partimos do princípio segundo o qual quanto mais se conhece e compreende em relação ao processo do conhecimento, buscando seus mecanismos, seus trunfos e seus entraves, melhores condições se têm de buscar a fonte dos erros, das insuficiências, das falhas, das lacunas e do pensar bem para conhecer melhor. O pensar bem aqui necessita se distinguir do ser bem-pensante, que, ao contrário, foi fonte de muitas ilusões sobre o processo do conhecimento. Como veremos mais adiante, pensar bemeeEdgar Morin retoma essa noção de Montaigne e Pascal para explorar o modo que permite apreender em conjunto texto e contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional e o complexo; em suma, todas as condições do comportamento humano. significa pensar não apenas em condições ideais de racionalidade, mas também pensar em boas condições afetivas e emocionais. É precisamente aí que nos parece residir a falha no conhecimento do conhecimento atual sobre o lugar ocupado pelos meios digitais. Necessitamos investigar mais e melhor os processos emocionais e afetivos envolvidos nos quais nos envolvem os meios digitais e os modos de relacionamento deles decorrentes.

Isso exige um exercício do pensar e do conhecer que se disponha a religar conhecimentos desconectados, como os conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, exercício que pouco tem sido praticado, dadas as exigências de hiperespecialização do mercado científico, com suas fronteiras, suas aduanas e seus guarda-fronteiras.

Trata-se da aptidão autorreflexiva que é a qualidade-chave da consciência. O pensamento científico é ainda incapaz de se pensar, de pensar sua própria ambivalência e sua própria aventura. A ciência deve reatar com a reflexão filosófica, como a filosofia, cujos moinhos giram vazios por não moer os grãos dos conhecimentos empíricos, deve reatar com as ciências. A ciência deve reatar com a consciência política e ética. O que é um conhecimento que não se pode partilhar, que permanece esotérico e fragmentado, que não se sabe vulgarizar a não ser em se degradando, que comanda o futuro das sociedades sem se comandar, que condena os cidadãos à crescente ignorância dos problemas de seu destino?44. Morin E. Ciência com consciência. Alexandre MD, Doria MAS, tradutores. 11a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2008.. (p. 11)

No tocante aos saberes das chamadas tecnologias da comunicação, é importante fazer várias distinções entre termos que são comumente usados para dizer eventualmente a mesma coisa, mas que, no entanto, remetem a diferentes realidades. É o caso da computação e da informática, da inteligência artificial que difere da inteligência viva e da qualidade das nossas relações com as máquinas e entre seres vivos. Existe uma computação viva, própria dos organismos vivos, que, na concepção de Maturana e Varela, autoeco-organizam-se por meio dos fenômenos da autopoieseffA noção de autopoiese, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela em seus estudos das relações entre biologia e cultura, vem do termo grego poiesis, que significa “produção”. De acordo com Mariotti, “Autopoiese significa autoprodução. O termo surgiu pela primeira vez na literatura internacional, em 1974, em um artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe, para definir os seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si mesmos”. (p. 1) e da adaptação. A respeito do sistema nervoso central cerebral, os autores explicam que é um engano compará-lo a um computador artificial:

O sistema nervoso (ou organismo) não foi projetado por ninguém. É o resultado da deriva filogenética de unidades centradas em sua própria dinâmica de estados. Assim, o adequado é reconhecê-lo como uma unidade definida por suas relações internas, nas quais as alterações só atuam modulando sua dinâmica estrutural, isto é, como uma unidade dotada de clausura operacional. Dito de outro modo, o cérebro não “capta informações” do meio, como frequentemente se diz, mas constrói um mundo, ao especificar quais configurações do meio são perturbações e que mudanças estas desencadeiam no organismo66. Maturana H, Varela F. A árvore do conhecimento. As bases biológicas da compreensão humana. Mariotti H, Diskin L, tradutores. 2a ed. São Paulo: Palas Athena; 2002.. (p. 188)

Por outro lado, existe também uma computação artificial, gerada pela técnica e pelo cálculo e, posteriormente, por aquilo que se convencionou chamar de tecnologia, no sentido de uma consequência do próprio aprimoramento técnico que chegou a gerar reflexão e conhecimento da técnica enquanto técnica. Essa computação difere essencialmente da computação viva por não ser “resultado da deriva filogenética de suas unidades”, mas sim resultado do cálculo e da programação humana sobre sistemas artificiais. Sabemos que algumas máquinas e dispositivos artificiais são considerados inteligentes na medida em que possuem capacidade de raciocínio (aplicar regras lógicas a um conjunto de dados disponíveis para chegar a uma conclusão), de aprendizagem (aprender com os erros e acertos de forma a agir de maneira mais eficaz no futuro), de reconhecimento de padrões (padrões tanto visuais e sensoriais quanto de comportamento) e de inferências (capacidade de conseguir aplicar o raciocínio nas situações do cotidiano).

Por mais que o desenvolvimento da inteligência artificial faça progressos rápidos e ocupe cada vez mais espaço em nossas vidas, é preciso ter em mente que o processo da inteligência humana passa por um complexo que a máquina – mesmo que possa ser também dotada de programação emocional – não conhece. O conhecimento cerebral humano é filho da ação ao mesmo tempo em que possibilita essa ação. As terminações sensoriais do sistema nervoso comandado pela atividade cerebral estão em contato com o mundo externo e o mundo interno, permitindo as comunicações entre diferentes. A dialética ação-conhecimento passa a ser ação-conhecimento-comunicação. Por sua vez, o desenvolvimento das ações e das comunicações entre exterior e interior leva ao desenvolvimento de uma sensibilidade nas profundezas e na superficialidade do ser, ou seja, em sua afetividade. “O desenvolvimento dessa dialética faz com que o aparelho neurocerebral seja ao mesmo tempo tão intimamente subjetivo e tão objetivamente aberto”55. Mariotti H. Autopoiese, cultura e sociedade [Internet]. São Paulo; 1999 [citado 10 Maio 2018]. Disponível em: www.humbertomariotti.com.br
www.humbertomariotti.com.br...
(p. 65).

No conhecimento humano, a abertura ao exterior e as dialéticas interior-exterior e objetividade-subjetividade são ilimitadas pela consciênciaggAqui, não nos referimos ao binômio consciência-inconsciência, mas sim à noção ampla de consciência intelectual enquanto aptidão autorreflexiva que inclui o que chamamos de inconsciente.. Já as possibilidades de abertura da inteligência artificial são limitadas pela ausência de consciência. Vemos, portanto, que é na aptidão autorreflexiva que residem a aventura humana e o imperativo do conhecimento do conhecimento. Isso permitiria que a inteligência viva (que é também emocional/afetiva) continue controlando, com relativa autonomia, a inteligência artificial que está – e necessita se manter – a serviço da vida, das relações entre seres vivos e do pensar bem.

Nesse contexto, a aprendizagem deve ser um processo consciente em que o conhecimento passe a ser visto não apenas em termos de sua utilidade para o indivíduo que aprende, tampouco apenas nos termos de sua utilidade em relação ao outro, à vida e ao mundo, mas também e sobretudo enquanto liberdade do espírito. O problema nesse processo de aprendizagem consciente é que ela só pode ser alcançada pelo exercício do conhecimento do conhecimento, o que culturalmente não tem ocorrido. Ordine77. Ordine N. A utilidade do inútil: um manifesto. Bombassaro LC, tradutor. Rio de Janeiro: Zahar; 2016., em seu manifesto sobre a utilidade do inútil, traz uma anedota que revela o que se passa quando estamos mergulhados em um meio: há dois jovens peixes nadando e, em um certo momento, encontram um peixe ancião nadando na direção oposta que, acenando, pergunta a eles: “Como está a água, rapazes?”. Os dois peixes nadam mais um pouco. Depois, um olha para o outro e diz: “Que diabos é água?”. Como os dois jovens peixes, nós não nos damos conta do que seja realmente a água em que desenvolvemos nossa existência.

No entanto, se como o ancião, com sabedoria, tivermos a consciência do que é o processo do conhecimento, do que são essas pseudointeligências que, artificialmente, comandam parte de nossas vidas e determinam parte de nossas rotinas no trabalho, na escola e nas relações sociais, então teremos condições melhores de entender o papel de certos saberes por vezes considerados inúteis como os da cultura, da educação, das artes e da filosofia em nossas vidas, que dialogam a todo o tempo com os saberes mais utilitários que também necessitamos desenvolver. É nesse sentido que o processo de aprendizagem é uma liberdade do espírito:

O espírito/mente (mind) é, ao mesmo tempo, o centro das sujeições e das liberdades. É centro de sujeição quando prisioneiro de hereditariedade biológica, de herança cultural, dos imprintings sofridos, das ideias impostas e de um poder como superego imperativo no seu próprio interior. Quando alguns deixam de estar submetidos às ordens, mitos e crenças impostos e tornam-se, enfim, sujeitos questionadores, começa a liberdade do espírito88. Morin E. O método – 5. A humanidade da humanidade. Silva JM, tradutor. Porto Alegre: Sulina; 2002.. (p. 282)

É preciso saber em que águas nadamos. Mergulhados em um meio digital, é preciso saber quais são os efeitos desse meio sobre nós, a fim de que ele deixe de ser um meio para se tornar um mundo a explorar e questionar, sem sujeição.

Os meios digitais no universo imaginário e afetivo

Podemos dizer que os meios digitais assumiram em nossos dias um espaço viral ou, dito de outra forma, de contágio. É um meio contagioso, segundo Han99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016., porque tem apelo emocional, sua temporalidade é a da transmissão de afetos; é por isso que, para ele, o meio digital é um meio afetivo.

Com isso, a aprendizagem dos meios digitais nos leva a uma questão que nos parece importante aqui acerca do afeto: a de entende-lo como espaço de flutuação/intermitência do corpo e da alma. Quando dizemos espaço de flutuação, referimo-nos à dimensão não linear das sensações, emoções e percepções que nos fazem entender de modo frágil e complexo qualquer um dos nomes para os afetos humanos. Os afetos equilibram-se na não linearidade entre o que é frágil e transitante e entre o que é complexo e duradouro. O que sustenta a nosso ver essa fragilidade e complexidade é a sua capacidade de ser flexível e durável; passageiro e fixo ao mesmo tempo. Aceitar os espaços e estados de intermitência emocional (e imaginária) nos parece razoável. Tal percepção implica – talvez – em uma mudança paradigmática daquilo que importa ensinar.

O meio digital, portanto, é contagioso porque flerta diretamente com a sensação de ter voz (opinião), proximidade (presença) e formas de saber (aprendizagem), embora se trate muito mais de uma sensação do que de reais presença, opinião e aprendizagem. A comunicação por meio do digital:

Se produz imediatamente no plano emocional ou afetivo. O contágio é uma comunicação pós-hermenêutica, que nada propriamente dá a ler ou a pensar. Não pressupõe uma leitura, porque esta só é passível de uma aceleração limitada. Uma informação ou um conteúdo, ainda que de pouca significação, pode difundir-se rapidamente na rede, como uma epidemia ou pandemia. Não é entravada pelo peso do sentido. Nenhum outro meio de comunicação possui um poder de contágio comparável99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p. 69)

Com efeito, encontramo-nos hoje aparentemente livres da era industrial, que nos escravizou e explorou, mas os aparelhos digitais trazem com eles uma nova forma de exploração e de coação ao trabalho e à aprendizagem. Exploram-nos em termos mais eficazes, porque, dada sua mobilidade, transformam qualquer lugar em um local de trabalho e fazem de todo o tempo um tempo de labor. Já não é possível escapar do trabalho. O smartphone torna móvel o próprio laborar. Enganosamente, esses aparelhos prometem mais liberdade, mas acabam por exercer sobre nós uma coação fatal.

[...] a coação de comunicar [...]. Nossa relação com os aparelhos digitais torna-se obsessiva, compulsiva. As redes sociais vêm reforçar maciçamente esta coação da comunicação que, em última instância, valoriza a lógica do capital, que é a da velocidade99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p. 46)

Para Han, mais comunicação significa mais capital. O smartphone faz as vezes de um espelho digital, nova forma de projeção, pós-infantil do estágio do espelho. Abre novo estágio narcísico, uma esfera do imaginário. Por meio desse aparelho, não é o outro que fala.

O smartphone é um aparelho digital que trabalha com um input-output de escassa complexidade. Rasura toda a forma de negatividade. O que equivale a desaprender a pensar em termos complexos. O smartphone conduz à atrofia de formas do mundo, promove uma visão a curto prazo do mundo, ao mesmo tempo que obnubila a longa duração e a lentidão99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p 34)

Em sua crítica ao homo digitalis, Han nos diz que vivemos hoje uma crise sem precedentes, “momento de transição crítico” devido justamente às transformações produzidas pela chamada “revolução digital”99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016. (p. 22). Han analisa o livro Psicologia das Multidões, de Gustave Le Bon99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.,1010. Le Bon G. Psychologie des foules. Paris: Félix Alcan;1912., escrito em 1895, que definia os tempos modernos como a era das massas, como um: “período de transição e de anarquia”. Para Le Bon, a era das massas representa o direito divino das multidões, que vem substituir o direito divino dos reis. As novas massas agora são o enxame digital. O enxame manifesta propriedades diferentes daquelas da massa.

O enxame digital não é uma massa porque é intrinsecamente desprovido de alma ou de espírito. A alma congrega e unifica. O enxame individual compõe-se de indivíduos isolados. A massa estrutura-se de modo completamente diferente99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p. 22)

Falta ao enxame digital uma alma ou um espírito de massa.

Os indivíduos que se reúnem num enxame digital não desenvolvem qualquer nós. Não há, no enxame, qualquer concordância que consolide a multidão numa massa que seja um sujeito de ação. O enxame digital, ao contrário da massa, não tem coerência própria. Não se exprime através de uma voz99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p. 22)

O homo digitalis forma, portanto, uma concentração sem reunião, uma multiplicidade sem interioridade, sem alma ou espírito. Para exemplificar, Han cita os hikikomori, palavra japonesa que literalmente significa “isolado em casa”. Os hikikomori são indivíduos mais ou menos jovens que se fecham na esfera doméstica, evitando o contato com outras pessoas; seres solitários que se instalam voluntariamente diante do display.

O socius cede o seu lugar ao solus. O que caracteriza a ordem da sociedade atual não é tanto a multidão como a solidão. Trata-se de uma ordem imersa num declínio generalizado do comum e do comunitário. A solidariedade desaparece99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p. 26)

Diminuindo distâncias, o meio digital é um meio de presença, de favorecimento do presente imediato. Enquanto os meios tradicionais, como o rádio e a televisão, eram meios de massas por mediarem a comunicação massivamente, os meios digitais como blogs e redes sociais liquidam a mediação da comunicação. Cada um de nós produz e envia informação, diminuindo, inclusive, o poder dos jornalistas e de outros formadores de opinião. Hoje cada qual quer estar diretamente presente e apresentar, sem intermediários, a sua própria opinião. “A representação cede lugar à presença, ou à coapresentação”99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016. (p. 28).

A comunicação digital torna possível que o afeto seja objeto de transmissão imediata. Para Han, “o meio digital é um meio afetivo”99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016. (p. 15). Estado afetivo, contudo, que não desenvolve qualquer força potente de ação, nem de encontro. Se a interconexão digital favorece a comunicação simétrica, cria, no entanto, uma falsa sensação de proximidade e de ligação. Afasta-nos cada vez mais do outro; produz assimetria do olhar; já não enxergamos as pessoas nos olhos. Ao analisar a comunicação por Skype, Han observa como a câmera produz ilusão de uma presença; não é possível mais olharmo-nos nos olhos, uma vez que, quando alguém olha na tela nos olhos do outro, este tem a impressão de que o seu interlocutor olha ligeiramente para baixo, uma vez que a câmera se encontra instalada na parte de cima do computador. A vantagem propiciada pelo encontro e a presença imediata deve lidar com a assimetria do olhar. O meio digital despoja, portanto, a comunicação do seu caráter corporal e tátil, fazendo com que o encontro real desapareça e passe a ser uma comunicação de resistência.

Estamos distantes daquilo que Frans de Waal1111. De Waal F. A era da empatia. Lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. chamou de era da empatia. Ele propõe um olhar para a natureza que faça nossa sociedade mais gentil. A empatia, diz ele, se cria por contato e presença física, pelo contágio do olhar, do sorriso e da proximidade das peles. De Waal conhece a tendência da sociedade ocidental moderna a preservar a liberdade individual, mas sabe também da tendência natural do Homo sapiens a ser impelido em uma ou em outra direção emocional pelos seus companheiros. Poderíamos dizer que existe uma vontade racional de independência traída pela tendência emocional gregária e empática dos indivíduos em copresença física:

É precisamente aí que começam a empatia e a solidariedade – e não nas regiões superiores do pensamento ou na capacidade de reconstruir conscientemente o que sentiríamos se estivéssemos na situação do outro. A empatia começou de uma forma muito mais simples, com a sincronização dos corpos – correndo quando os outros correm, rindo quando os outros riem, chorando quando os outros choram, bocejando quando os outros bocejam1111. De Waal F. A era da empatia. Lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.. (p. 75)

Quando ocorre o contrário, ou seja, quando se está desprovido da possibilidade de contato presencial, e se obedece à lógica de um contato ilusoriamente imediato, a comunicação digital promove uma exposição quase pornográfica da esfera privada e, por conseguinte, de nossa intimidade. De certa maneira ela “privatiza a comunicação” porque desloca a produção de informação do público para o privado. Trata-se daquilo que Han chama de “[...] coação icônico-pornográfica [...]”99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016. (p. 14) à semelhança de espetáculo, com intensa e excessiva necessidade do ver e do ser visto, do mostrar-se como imagem. Hoje, por meio dos recursos dos meios digitais, produzimos uma enorme quantidade de imagens. Será que essa produção maciça pode ser interpretada como uma reação de defesa e fuga? Tal excesso de imagens constitui-se justamente nessa coação icônico-pornográfica.

O imperativo dos dispositivos produtores de imagens em nosso tempo e a consequente reificação do imaginário produziram a chamada Síndrome de Paris, nome que designa uma perturbação psíquica aguda que afeta sobretudo os turistas japoneses ao visitarem a cidade-luz. Essa síndrome começou a ser verificada com esses turistas a partir do surgimento de alucinações, angústias e sintomas psicossomáticos – como vertigens, suores ou taquicardia – seguidos de desrealização e despersonalização, após constatar-se a grande diferença entre a imagem ideal de Paris, que os japoneses têm antes da viagem, e a realidade da cidade, que difere por completo da imagem ideal. Talvez, a tendência compulsiva dos japoneses em fotografar a cidade seja uma defesa inconsciente e estética, que procura esconjurar a terrível realidade.

Outra síndrome surgida na era dos aparelhos digitais – como computadores pessoais, smartphones, tablets, etc. – foi a chamada Information Fatigue Syndrom (IFS), a fadiga da informação, doença psíquica causada pelo excesso de informação. Os portadores dessa síndrome queixam-se de uma paralisia crescente da capacidade analítica, perturbações da atenção, ansiedade geral ou incapacidade de assumir responsabilidades. Essa síndrome foi descrita pelo psicólogo clínico britânico David Lewis, em 1996. A IFS afeta primeiro pessoas que em sua atividade profissional tenham de produzir grande quantidade de informação, durante muito tempo. Uma das principais características dessa doença é a diminuição ou paralisia na capacidade analítica. Se é precisamente essa capacidade que nos torna aptos a pensar, o excesso de informação conduz à atrofia do pensamento. Sabemos que a capacidade analítica consiste em discriminar e comparar, no material lógico ou perceptivo, tudo o que não é essencialmente pertinente; em última instância, é a capacidade que nos permite distinguir o essencial do não essencial. Ora, nossa faculdade de julgar está debilitada justamente pela proliferação de informações.

Entre os sintomas do IFS encontramos igualmente a incapacidade de assumir responsabilidades. Sabemos que a responsabilidade é um ato ligado a certas condições mentais e temporais; para começar, pressupõe um compromisso fiável sobre algo ou alguém, sustentado na confiança e no vínculo. As pessoas atingidas pela IFS não querem vínculos, nem responsabilidades: são marcadas pela ausência de compromisso, pela arbitrariedade e pelo curto prazo.

A confiança é um ato de fé que se torna obsoleto quando as informações se tornam facilmente disponíveis. A confiança permite travar relações com os outros, ainda quando não os conhecemos demasiado bem. A possibilidade de uma aquisição fácil e rápida lesa gravemente a confiança. Nesse sentido, os media são responsáveis pela crise atual de confiança. A conexão digital facilita a obtenção de informação, fazendo que a confiança enquanto prática social perca cada vez mais importância99. Han B-C. No enxame: reflexões sobre o digital. Pereira MS, tradutor. Lisboa: Relógio d’Água; 2016.. (p. 85)

Os meios digitais permitem a possibilidade de uma protocolização total da vida e das relações; e tornam inteiramente caduca a noção de confiança, que passa a ser substituída pela noção de controle. Acreditamos ser urgente basear o laço social na relação com a aprendizagem digital, que consiste no encorajamento de uma civilidade desterritorializada, o que equivale à postulação de um aprendizado recíproco como mediação das relações entre os homens. A riqueza da associação dos laços sociais com os meios digitais é o favorecimento de uma inteligência coletiva em que podemos associar competências, de tal modo que possamos atuar melhor juntos do que separados.

A aprendizagem digital não pode se reduzir a uma soma de resultado de dados, uma vez que, no sentido que defendemos aqui, ela é antes um aprender a viver (savoir-vivre) indissociável da compreensão de mundo. A aprendizagem no mundo digital, em sentido amplo, é também um encontro com a incompreensibilidade do mundo e do outro; e a compreensão da incapacidade de reduzir o outro ou o mundo a alguma síntese ou sintaxe. “A base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimento e o enriquecimento mútuos das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas”11. Lévy P. A inteligência coletiva. Por uma antropologia do ciberespaço. Rouanet LP, tradutor. 8a ed. São Paulo: Loyola; 2011. (p. 29). É, segundo Lévy, “[...] uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”11. Lévy P. A inteligência coletiva. Por uma antropologia do ciberespaço. Rouanet LP, tradutor. 8a ed. São Paulo: Loyola; 2011. (p. 29).

Os meios digitais como instrumentos de aprendizagem: uma mudança de paradigma?

Estamos, talvez, em meio a uma mudança paradigmática que afeta a educação. Provavelmente, a mudança não é o reflexo apenas da presença incontornável dos meios digitais em nossas vidas, mas de um complexo da cultura muito maior, no qual podemos dizer que o modelo capitalista dominante – e hoje exclusivo, com sua lógica utilitária e seu imperativo do lucro – tem grande responsabilidade e está na origem do desenvolvimento desenfreado das tecnologias a serviço, inicialmente, do modo de produção industrial de bens e, em seguida, da consequente necessidade de oferta de serviços e da sede por informação. Com o auxílio da técnica, tudo ficava mais fácil. Não sabemos exatamente definir quando e como o conhecimento passou a estar a serviço da própria técnica, tornando-se tecnologia. O que sabemos é que se tratou de um longo processo de transformação paradigmática. Nas palavras de Nuccio Ordine:

Não é um acaso que nas últimas décadas as disciplinas humanísticas tenham passado a ser consideradas inúteis e tenham sido marginalizadas não somente nos currículos escolares e universitários, mas sobretudo nos orçamentos governamentais e nos recursos das fundações e das entidades privadas. Por que empregar dinheiro num âmbito condenado a não produzir lucro? Por que destinar recursos a saberes que não trazem uma vantagem rápida e tangível?77. Ordine N. A utilidade do inútil: um manifesto. Bombassaro LC, tradutor. Rio de Janeiro: Zahar; 2016. (p. 33)

A mudança paradigmática que ora nos afeta e afeta a educação não reside propriamente no espaço ocupado pelos meios digitais de aprendizagem no ambiente educacional, mas no espaço que esses ocupam em nossa vida tanto dentro quanto fora da escola. Nesse sentido, talvez haja uma tomada de consciência da utilidade de conhecimentos que, para além das lógicas do lucro, da eficiência e do pragmatismo produtivo, são as bases culturais e espirituais que constituem potenciais para a autonomia dos sujeitos e para sua liberdade de espírito. Segundo Morin:

A liberdade do espírito é alimentada e fortalecida: 1. Pelas curiosidades e pelas aberturas ao exterior (do que é dito, conhecido, ensinado, recebido); 2. Pela capacidade de aprender por si mesmo; 3. Pela aptidão a problematizar; 4. Pela prática de estratégias cognitivas; 5. Pela possibilidade de verificar e de eliminar o erro; 6. Pela invenção e pela criação; 7. Pela consciência reflexiva, ou seja, a capacidade do espírito de se autoexaminar, autopensar e autojulgar; e 8. Pela consciência moral88. Morin E. O método – 5. A humanidade da humanidade. Silva JM, tradutor. Porto Alegre: Sulina; 2002.. (p. 283)

Voltemos, portanto, à noção de pensar bem e às condições de aprendizagem não apenas lógico-racionais, mas também afetivo-emocionais para o desenvolvimento da liberdade do espírito e de sua autonomia, do saber viver consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

Se os meios digitais permitem um acesso facilitado e imediato a informações de toda ordem; e se possuem um certo grau de inteligência capaz de transformá-los em tutores de aquisição de informações e de conhecimentos lógicos – como é o caso das novas tecnologias educacionais, dos aplicativos para aprendizagem on-line, dos jogos educativos, etc. –, podem também constituir ferramentas úteis ao estudo e eficazes nos processos de ensino-aprendizagem. Porém, não cumprirão seu papel de formação se não forem assentados em bases sólidas, no âmbito afetivo-emocional e no âmbito do saber viver; e o papel de construir essas bases não se dará com o auxílio de máquinas, mas sim com a transmissão de um conhecimento do conhecimento da vida, próprio do humano.

Não estamos querendo com essa afirmação negar o papel dos meios digitais na educação. Eles ocupam – e ocuparão cada vez mais – espaços legítimos de formação notadamente na individualização do aprendizado que sucede atualmente ao ensino massivo. Há, hoje, uma tendência a reconhecer que cada indivíduo tem suas próprias estratégias de aprendizagem; suas próprias facilidades e limitações; suas aptidões; e seus sonhos. Nesse sentido, as ferramentas digitais de ensino-aprendizagem permitem individualizar o processo de formação, e isso apresenta vantagens. Todavia, quanto mais espaço se dá à individualidade, mais se corre o risco de fomentar o individualismo e toda sorte de deficiências sócio-afetivas.

Vimos como o uso maciço dos meios digitais coloca o indivíduo em uma relação ilusória de presença e de relação com o outro; e como suas possibilidades de percepção e expressão da afetividade encontram-se atrofiadas, por exemplo, quando as interações se dão majoritariamente no meio digital. Vimos uma série de novos distúrbios mentais, cognitivos e espirituais ligados ao excesso de participação no ambiente digital (Information Fatigue Syndrom, Síndrome de Paris, sentimento de solidão e vazio afetivo) e sabemos da suspeita da existência de vários outros como dependência, ansiedade e depressão.

Por outro lado, em uma pesquisa exploratória sobre propostas inovadoras de educação na França e no BrasilhhPesquisa realizada pelo grupo TRAVESSIAS – Transdisciplinaridade e Criatividade, cuja etapa exploratória consistiu em analisar sites de propostas inovadoras para a educação na França e no Brasil. Foram acessados e observados os sites: http://www.portaldoeducador.org/; https://red.reevo.org/; http://coletivogaiabrasilia.org/; http://www.cidadeescolaaprendiz.org.br/ e https://printemps-education.org/ ., percebemos que estas se centram em alguns eixos norteadores e recorrentes que sintetizamos da seguinte forma:

Necessidade de voltar à conexão com a natureza (projetos de horta na escola, de passeios no campo, de espaços didáticos externos como parques e ambientes de jardins para as aulas)

Necessidade de incentivar o espírito comunitário (solidariedade, cooperação e colaboração)

Necessidade de romper com a organização espacial tradicional (sala de aula e laboratórios) e criar espaços multimeios e multimodais de aprendizagem

Necessidade de aproximar os núcleos sociais externos do ambiente escolar (pais, mestres, alunos e comunidade)

Necessidade de fomentar a transdisciplinaridade por meio de projetos de pesquisa transversais

Necessidade de voltar a saberes artísticos e corporais

Uso de ferramentas tecnológicas para acesso aos conteúdos programáticos com acompanhamento personalizado por tutores de aprendizagem

As tecnologias digitais aparecem aqui, portanto, como um eixo de inovação na educação. Porém, constituem apenas um item entre uma série de outros eixos que parecem estar no centro das preocupações dos educadores – incluindo o conjunto dos gestores, empresários, pesquisadores, professores e pais, que aparecem em nossas pesquisas como os agentes do pensamento educacional atual. O que chama a atenção é a dimensão ética da formação humana que está sendo convocada não mais na forma de uma disciplina entre as outras, mas de maneira transversal. Voltamos, com isso, à proposta final de Edgar Morin, no último volume de O método, que, tratando de ética, declara:

Os fundamentos da ética estão em crise no mundo ocidental. Deus está ausente. A Lei foi dessacralizada. O Superego social já não se impõe incondicionalmente e, em alguns casos, também está ausente. O sentido da responsabilidade encolheu; o sentido da solidariedade enfraqueceu-se1212. Morin E. O método – 6. Ética. Silva JM, tradutor. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.. (p. 27)

Ressalte-se que, ao associar os eixos acima citados à predominância da questão ética nas preocupações dos educadores, incluímos aí o desenvolvimento de uma ética individual (saber viver), de uma ética social e coletiva (viver com o outro) e, ainda, de uma ética da participação na organização viva do mundo (viver no mundo, e não diante do mundo). Isso significa uma consciência do caráter minúsculo de cada ser vivo no ambiente cósmico e seu gigantismo ilimitado e, ao mesmo tempo, do caráter imprescindível do papel de cada um, de cada ser, de cada espécie, de cada sistema na imensidão da coletividade dos seres vivos. Trata-se de salvaguardar a nossa relação com a vida, o meio ambiente e os outros seres vivos; de renunciar ao controle e à dominação do mundo; e de estabelecer uma relação mais próxima com o mundo externo (a natureza viva e os outros) e mais livre com a interioridade de cada um.

Há uma dimensão ética a ser preservada, ou talvez resgatada, no conhecimento do corpo e de suas relações com a interioridade/exterioridade. Ética do cuidar de si e do outro, mas também do mundo, pois é preciso educar as novas gerações, esses ditos nativos digitais, em relação ao reconhecimento do próprio corpo, que não é somente uma imagem na superfície lisa de uma tela, mas também feito de matéria física, mental e espiritual. Não é somente uma presença/ausência na instantaneidade de uma fotografia postada e logo apagada da rede social, mas também uma presença inteiramente presente, uma companhia cotidiana que é capaz não apenas de ser vista, mas também de sentir em seu estar-no-mundo aqui e agora.

Considerações finais

Por fim e para concluir, diríamos que é preciso educar o homem à aprendizagem da travessia, daquilo que Vernant1313. Vernant J-P. A travessia das fronteiras: entre mito e política. Barros MAL, tradutor. São Paulo: Edusp; 2009. chamou, em seus estudos sobre ética e política, da conjunção entre Héstia (percurso interior, sedentário e fechado sobre os humanos e a riqueza que abriga) e Hermes (percurso exterior, nômade e vagabundo, sempre a correr o mundo). A lição da ponte a que Vernant se refere é também uma das maiores metáforas para a comunicação. A internet é uma rede feita de uma série de pontes, conectando as diversas rotas possíveis umas às outras. Os meios técnicos (telefone, televisão, smartphones, computadores, seus sistemas operacionais, etc.) são pontes que conectam as pessoas entre si. Já não vivemos sem todas essas pontes, porém, em meio a todas elas, ou seja, a tantas formas de conexão entre as pessoas, é preciso lembrar que cada ser humano a ser educado é também, em si mesmo, uma ponte.

Para sermos nós mesmos, é preciso projetar-nos para o que é estrangeiro, prolongarmo-nos em e para ele. Permanecer fechado em sua identidade é perder-se e cessar de ser. Conhecemo-nos, construímo-nos pelo contato, a troca, o comércio com o outro. Entre as margens do mesmo e do outro, o homem é uma ponte1313. Vernant J-P. A travessia das fronteiras: entre mito e política. Barros MAL, tradutor. São Paulo: Edusp; 2009.. (p. 198)

O que chamamos no início desta reflexão de aprendizagem cultural é uma aprendizagem voltada para a complexidade da realidade da cultura, propriamente uma aprendizagem consciente das pontes que interconectam os seres vivos a seu mundo, entre si, dentro e fora das espécies, e dentro de si mesmos. Tal aprendizagem baseia-se no conhecimento do conhecimento; especialmente, no caso do objeto da presente reflexão, na construção de uma consciência do processo do conhecimento que se dá entre as informações dos meios digitais e as faculdades do aprender, mas também do saber viver e do pensar bem.

Por fim, gostaríamos de propor a pista da autopoiese como proposta para a mudança paradigmática que estamos atravessando na relação que estabelecemos com o conhecimento e suas consequências para a educação. Como disseram Maturana e Varela66. Maturana H, Varela F. A árvore do conhecimento. As bases biológicas da compreensão humana. Mariotti H, Diskin L, tradutores. 2a ed. São Paulo: Palas Athena; 2002., os sistemas vivos são máquinas que produzem a si próprias e nenhuma outra máquina é capaz de fazer isso. O mundo em que vivemos é construído por nós mesmos a partir de nossas percepções e o lugar que atribuímos às máquinas artificiais – sistemas sem autopoiese – depende da percepção que temos delas. É fundamental que saibamos ensinar essa distinção entre sistemas autopoieticos e sistemas não autopoieticos. Se não devemos querer ter o controle dos sistemas vivos aos quais somos intrinsecamente ligados, é necessário saber controlar o espaço que concedemos aos meios digitais em nossas vidas.

Referências

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    Vernant J-P. A travessia das fronteiras: entre mito e política. Barros MAL, tradutor. São Paulo: Edusp; 2009.

  • c
    Transcultural é o conceito segundo o qual um mesmo problema cultural pode ser analisado nas mais diversas culturas com suas interpretações específicas, mas mantendo-se o mesmo problema.
  • d
    A noção de conhecimento do conhecimento foi estruturada por Edgar Morin no tomo 3 da obra O Método, publicado originalmente em 1986. Trata-se de uma proposta de revisão do conhecimento baseada na diferença entre inteligência (arte estratégica), pensamento (arte dialógica e arte de concepção) e consciência (arte reflexiva).
  • e
    Edgar Morin retoma essa noção de Montaigne e Pascal para explorar o modo que permite apreender em conjunto texto e contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional e o complexo; em suma, todas as condições do comportamento humano.
  • f
    A noção de autopoiese, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela em seus estudos das relações entre biologia e cultura, vem do termo grego poiesis, que significa “produção”. De acordo com Mariotti, “Autopoiese significa autoprodução. O termo surgiu pela primeira vez na literatura internacional, em 1974, em um artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe, para definir os seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si mesmos”. (p. 1)
  • g
    Aqui, não nos referimos ao binômio consciência-inconsciência, mas sim à noção ampla de consciência intelectual enquanto aptidão autorreflexiva que inclui o que chamamos de inconsciente.
  • h
    Pesquisa realizada pelo grupo TRAVESSIAS – Transdisciplinaridade e Criatividade, cuja etapa exploratória consistiu em analisar sites de propostas inovadoras para a educação na França e no Brasil. Foram acessados e observados os sites: http://www.portaldoeducador.org/; https://red.reevo.org/; http://coletivogaiabrasilia.org/; http://www.cidadeescolaaprendiz.org.br/ e https://printemps-education.org/ .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2018
  • Aceito
    06 Nov 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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