Tuberculose múltipla: uma praxiografia no Instituto Clemente Ferreira, de São Paulo, SP, Brasil

Tuberculosis múltiple: una praxiografía en el Instituto Clemente Ferreira, de São Paulo, estado de São Paulo, Brasil (resumen: p. 14)

Isabela Pellacani Pereira das Posses Regina Matsue Pedro Paulo Gomes Pereira Sobre os autores

Resumos

A proposta geral deste texto é a de apresentar como a tuberculose é performada ( enacted ) no Instituto Clemente Ferreira, instituição de saúde da cidade de São Paulo, Brasil, para onde as Unidades Básicas de Saúde encaminham os casos mais graves da doença. Ao admitir que a doença é múltipla e se faz existir por meio das práticas de diversos agentes, decidiu-se por acompanhar pacientes e profissionais de saúde em ação para identificar as versões da tuberculose que atuavam nos limites do instituto. Neste artigo, além de se revelarem as diferentes versões de uma única doença, foi possível observar também como elas se distribuíam e se coordenavam para configurar não só o que é a própria tuberculose, mas, também, como os pontos de conflito ocorriam, ocasionalmente, no encontro das diversas maneiras de fazer a doença.

Tuberculose; Realidade múltipla; Praxiografia


La propuesta de este texto es mostrar cómo se representa (enacted) la tuberculosis en el Instituto Clemente Ferreira, institución de salud pública de la ciudad de São Paulo, Brasil, para donde las Unidades Básicas de Salud envían los casos más graves. Al admitir que la enfermedad es múltiple y se hace existir por medio de las prácticas de diversos agentes, se decidió acompañar a pacientes y profesionales de la salud en acción para identificar las versiones de tuberculosis que actuaban en los límites del estudio. En este artículo, además de revelar las diferentes versiones de una única enfermedad, fue posible observar también cómo ellas se distribuían y coordinaban para configurar no solo lo que es la propia tuberculosis sino también como los puntos de conflicto se presentaban, ocasionalmente, en el encuentro de las diversas formas de hacer la enfermedad.

Tuberculosis; Realidad múltiple; Praxiografía


Introdução

A tuberculose configura-se mundialmente como um grave problema de saúde pública por apresentar os maiores índices de mortalidade entre as doenças infectocontagiosas 11. Hijjar MA, Procópio MJ. Tuberculose: epidemiologia e controle no Brasil. Rev Hosp Univ Pedro Ernesto. 2006; 5(2):15-23.,22. Bertolozzi MR, Takahashi RF, Hino P, Litvoc M, França FOS. O controle da tuberculose: um desafio para a saúde pública. Rev Med. 2014; 93(2):83-9. . Em 2016, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 10,4 milhões de pessoas foram acometidas pela tuberculose e mais de um milhão morreram em decorrência dela 33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2017. Geneva: WHO Library; 2017. . No Brasil, a situação não é diferente, embora o país disponha de meios de diagnóstico e de tratamento eficazes. Anualmente, registram-se 69 mil casos novos de tuberculose, sendo 4.500 deles levados a óbito 44. Ministério da Saúde (BR). Boletim Epidemiológico. Brasília: SVS/DVE; 2017. . Trata-se de uma enfermidade complexa, que envolve dimensões históricas, sócio-antropológicas, políticas, que tem instigado diversos pesquisadores.

No campo das Ciências Sociais e Humanas, vários autores 55. Duarte LFD, Leal OF. Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.

6. Gonçalves H, Dias Da Costa JS, Menezes AMB, Knauth D, Leal OF. Adesão à terapêutica da tuberculose em Pelotas, Rio Grande do Sul: na perspectiva do paciente. Cad Saude Publica. 1999; 15(4):777-87.

7. Rodrigues ILA, Souza MJ. Representações sociais de clientes sobre a tuberculose: desvendar para melhor cuidar. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2005; 9(1):80-7.

8. Paz EPA, Sá AMM. Cotidiano do tratamento a pessoas doentes de tuberculose em unidades básicas de saúde: uma abordagem fenomenológica. Rev Lat Am Enfermagem. 2009; 17(2):180-6.

9. Rocha DS, Adorno RCF. Abandono ou descontinuidade do tratamento da tuberculose em Rio Branco, Acre. Saude Soc. 2012; 21(1):232-45.
-1010. Dias AAL, Oliveira DMF, Turato ER, Figueiredo RM. Life experiences of patients who have completed tuberculosis treatment: a qualitative investigation in Southeast Brazil. BMC Public Health. 2013; 13:595. doi: 10.1186/1471-2458-13-595. se propuseram a estudar a tuberculose. Destacamos aqui os trabalhos de Gonçalves 1111. Gonçalves H. Peste branca: um estudo antropológico sobre a tuberculose. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2002.

12. Gonçalves H. Corpo doente: estudo acerca da percepção corporal da tuberculose. In: Duarte LFD, Leal OF. Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz;1998.

13. Gonçalves H. A tuberculose ao longo dos tempos. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2000; 7(2):303-25.
-1414. Gonçalves H, Costa JD, Menezes AMB. Percepções e limites: visão do corpo e da doença. Physis. 1999; 9(1):151-73. , que realizou estudos explorando temas como: a trajetória da tuberculose no Brasil, as políticas de controle da doença e a adesão às terapêuticas contra a tuberculose. Pôrto 1515. Pôrto A. Representações sociais da tuberculose: estigma e preconceito. Rev Saude Publica. 2007; 41(1):43-9.

16. Pôrto A. Tuberculose: a peregrinação em busca da cura e de uma nova sensibilidade. In: Nascimento DR, Carvalho DM. Uma história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15; 2004. p 91-108.
-1717. Pôrto A. Representação da tuberculose na literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX. Arte3 de saúde: desafios do olhar. Rio de Janeiro: Escola Politécnica da Saúde Joaquim Venâncio; 2008. , por sua vez, elaborou investigações sobre a história e representação social, sobretudo analisando o estigma e preconceito que envolvem as pessoas que adquirem a enfermidade. Bertoli Filho 1818. Bertolli Filho C. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001. , mesclando literatura e discursos científicos, refletiu sobre os comportamentos individuais e coletivos frente à doença. As abordagens das Ciências Sociais e Humanas vêm, assim, contribuindo para o conhecimento da tuberculose no Brasil.

Neste texto buscaremos nos aproximar da tuberculose com base em uma praxiografia realizada no Instituto Clemente Ferreira (ICF). A praxiografia é um tipo de etnografia que considera, além de significados e perspectivas, a amplitude dos agentes envolvidos e as materialidades mobilizadas para construção das realidades. Optamos por nos valermos da teoria de Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. sobre praxiografia e realidades múltiplas, por acreditarmos na potência dessa proposta para a compreensão da tuberculose no Brasil. Com tantos tópicos e pormenores que a temática da tuberculose apresenta, como sugerem as intricadas análises acima mencionadas, não há como abordar tudo. Tivemos então que escolher um caminho, não porque haja somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque, como lembrou Geertz, “há muitas: é necessário escolher” 2020. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: ETC; 1989. (p. 15).

Começaremos, então, por apresentar, mesmo que rapidamente, o local que serviu como cenário deste estudo.

O Instituto Clemente Ferreira

Como centro de referência terciária no atendimento dos casos mais graves de tuberculose, que não podem ser acompanhados apenas pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), o ICF é o principal polo de tratamento da doença na cidade de São Paulo e um dos principais da América Latina. Localizado em uma avenida muito movimentada, o edifício, em meio a tanto concreto, se destaca por seu terreno amplo e arborizado. Desde sua fundação, em 1913, o ICF tem participado ativamente de projetos e pesquisas que permitem avanços no diagnóstico e no tratamento da tuberculose 2121. Secretaria de Vigilância em Saúde (SP). Instituto Clemente Ferreira: um centro de referência e excelência em tuberculose e doenças respiratórias no Sistema Único de Saúde. São Paulo: Secretaria de Vigilância em Saúde (SP); 2008. .

Seguindo as concepções higienistas do século XIX e XX, a arquitetura do ICF lembra a dos dispensários europeus da mesma época 2222. Rosemberg AMFA. Guerra à peste branca: Clemente Ferreira e a Liga Paulista Contra a Tuberculose – 1899-1947 [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2008. . Possui três pavimentos, com grandes portas e janelas que rodeiam, de forma retangular, um solarium , possibilitando, assim, excelente circulação de ar e entrada da luz solar em todos os cômodos para auxiliar no tratamento dos tuberculosos e diminuir as chances de transmissão da doença ( Figura 1 ). Atualmente, os serviços disponíveis estão divididos da seguinte maneira: no andar térreo, encontram-se os laboratórios de exames de diagnósticos e análises clínicas, o Departamento de Vigilância Epidemiológica, o Serviço de Arquivo Médico e Estatística (Same) e um vestiário para os profissionais do ICF. No primeiro andar, localizam-se: a recepção, a farmácia, os consultórios médicos, os serviços de enfermagem, de nutrição, de serviço social e de psicologia, as salas de emergência, de espera, a diretoria clínica e administrativa, bem como sanitários para funcionários e pacientes separadamente. Subindo mais uma escada, há mais algumas salas que compõem a administração do ICF, uma copa para os funcionários e uma sala de reuniões.

Figura 1
Instituto Clemente Ferreira.

Depois de apresentarmos o ICF, cabe-nos destacar os objetivos deste artigo: (i) compreender como a tuberculose é enacted (ou atuada, encenada, performada – possíveis traduções do verbo to enact, utilizado por Mol 2424. Annemarie Mol. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado: uma entrevista com Annemarie Mol. Interface (Botucatu). 2018; 22(64):295-305. ) no Instituto Clemente Ferreira; (ii) captar o modo como as práticas de diferentes agentes, do Instituto Clemente Ferreira, performam variadas versões da doença e como elas se coordenam na configuração do que vem a ser a própria tuberculose. Acompanhando o modo como era performada ( enacted) , verificamos que não se trata de um objeto único ao qual apenas se atribuem diferentes significados, mas, mais do que isso, identificamos que ela pode ser também manipulada e transformada por diferentes práticas, tornando-se, assim, uma doença múltipla.

Com base na observação de pacientes e profissionais de saúde em ação – priorizando, ao invés da diferença de perspectivas, a colaboração entre eles –, buscamos aqui alcançar o entendimento da dimensão da realidade da tuberculose. Acreditamos que, ao identificarmos as diferentes formas de fazer tuberculose e como suas diferentes versões se coordenam, podemos identificar possíveis conflitos ou dissonâncias que porventura possam ocorrer nesse processo.

A seguir, apresentamos com mais detalhes o movimento metodológico que serviu como apoio teórico ao desenvolvimento deste trabalho.

Metodologia

Este artigo é resultado de um trabalho maior. Trata-se de uma parte dos resultados de uma praxiografia realizada em sete meses, entre junho e dezembro de 2014. Nesse período a primeira autora acompanhou diariamente a rotina de profissionais e pacientes do ICF, registrando como eles performavam ( enacted ) múltiplas versões de tuberculose que se conectavam durante seus encontros. Como veremos a seguir, perceber a existência das várias versões dessa mesma doença e a forma como elas se conectavam e interferiam umas sobre as outras foi imprescindível para se entender a tuberculose e seus desdobramentos, como o tratamento e as lógicas que imperam sobre ele.

Neste trabalho vamos nos deter a abordar as múltiplas versões da tuberculose performadas ( enacted ) no ICF. Para isso adotamos o conceito de realidade múltipla definido por Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. . Como em sua proposta, teoria e método jamais podem ser apartados, tomam-se como ponto de partida as teorias que a autora apresenta em seu livro The Body Multiple: Ontology in Medical Practice1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. .

Nessa obra, Mol faz pesquisa em um hospital holandês durante o tratamento de pessoas com arteriosclerose nos vasos das pernas. Uma pergunta guia todo trabalho de Mol: Como a arteriosclerose é feita? Para a autora, a realidade não é dada a priori , mas é moldada ao longo das práticas de diferentes agentes. Não cabe apenas emitir opiniões e significados aos objetos de estudo, os quais ela acredita que só existem porque, de alguma forma, eles podem ser manipulados. Ou seja, persistem na medida em que são manuseados por determinados agentes no contexto de suas práticas 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002.,2525. Mol A. Ontological politics: a word and some questions. Sociol Rev. 1999; 47 Suppl 1:74-89.,2626. Souza IMA. A noção de ontologia múltipla e suas consequências políticas. Ilha Rev Antropol. 2015; 17(2):325-8. . Assim, se os objetos são efeitos de práticas, por conseguinte, diferentes práticas fazem variados objetos. Por exemplo, no caso do estudo de Mol, o diagnóstico da arteriosclerose, na clínica médica, se baseia na reclamação do paciente ao sentir dor para andar, em consequência da diminuição do fluxo sanguíneo dos vasos da perna e, também, do aumento da sua temperatura perceptível durante a palpação do médico. No laboratório de patologia, é performada no ateroma aderido na parte íntima dos vasos sanguíneos. Várias versões de arteriosclerose são então enacted, razão pela qual Mol qualifica a realidade como sendo múltipla. É importante ressaltar que isso não significa dizer que essas versões são desconectadas, pelo contrário, “são mais do que uma, e menos do que muitas” 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. (p. 8). Suas várias versões mantêm alguma relação e conectam-se entre si; sua singularidade, representada pela categoria única denominada arteriosclerose, é resultado de um trabalho de coordenação de numerosas práticas 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002.,2727. Quintais L. Recensão a: Mol, A. 2002 - The body multiple: ontology in medical practice. Antropol Port. 2007/2008; 24/25:191-201. doi: 10.14195/2182-7982_25_13.,2828. Silva ACR. Políticas ontológicas e realidades múltiplas: a doença falciforme performada na prática. Anthropológicas. 2016; 27(2):169-95. .

Com isso, Mol demonstra que, quando passamos a compreender os objetos de estudos de acordo com o modo como suas versões são performadas pelas mais variadas práticas, fica claro que o conhecimento já não é mais uma afirmação sobre a verdadeira realidade, mas uma prática que interfere em outras práticas. Mol assim atribui um novo significado à ontologia. O termo é mobilizado para o plural e “não é mais algo que precede o conhecimento, mas é algo que é feito, encenado ou performado no processo de conhecer e saber” 2424. Annemarie Mol. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado: uma entrevista com Annemarie Mol. Interface (Botucatu). 2018; 22(64):295-305. (p. 300).

Para desenvolver seu trabalho, como já antecipamos, Mol adotou a praxiografia, um método de pesquisa que não se preocupa apenas com a interpretação de significados ou perspectivas, mas também considera as materialidades (por exemplo, microscópio, aparelhos de pressão, entre outros) que movem os agentes para performarem seus objetos 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002.,2929. Rangel VM. Como se constrói um corpo múltiplo: a praxiografia de um cenário médico contemporâneo. Physis. 2010; 20(1):325-8.,3030. Cordeiro MP, Spink MJ. Por uma psicologia social não perspectivista: contribuições de Annemarie Mol. Arq Bras Psicol. 2013; 65(3):338-56. . O estudo das práticas permite explorar as interações entre elementos materiais e sociais. Além de ser importante o que esses agentes pensam a respeito de determinado objeto de estudo, se torna igualmente relevante o que fazem, como fazem e com o que fazem, já que as realidades não existem por si só, mas reúnem um conjunto de elementos heterogêneos: pessoas, objetos, palavras, papéis, máquinas e etc. 3131. Pereira MCG. Água e convivência com o semiárido: múltiplas águas, distribuições e realidades [tese]. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo; 2016. .

Com base nesse referencial teórico, nosso propósito foi o de compreender como as práticas de diferentes profissionais e pacientes performavam a tuberculose no ICF. Nessa instituição há uma equipe de profissionais interdisciplinar e uma estrutura completa para atender pacientes com tuberculose multirresistente, com efeitos adversos graves à medicação, às comorbidades e aos esquemas de tratamentos especiais. Lá não se atendem demandas espontâneas, por isso a admissão dos pacientes se dá por meio de encaminhamento de outros serviços de saúde, como as UBS e os hospitais.

Convém afirmar que adotamos pseudônimos, na próxima seção deste texto, para garantir o anonimato e a confidencialidade de nossos interlocutores. Depois de informados sobre os objetivos da pesquisa, todos eles assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Cumpridas todas as exigências, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, sob parecer 567.074/2014.

Resultados e discussão

Consideramos, como ponto de partida, a proposta de Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. de que a doença é performada no curso de diferentes contextos de práticas, à medida que progrediam nossas observações no ICF. Ao entrarmos e sairmos dos consultórios, ao subirmos e descermos as escadas, percebíamos que a tuberculose era múltipla, não se restringindo a ser apenas uma doença infectocontagiosa. Diferentes versões circulavam naquele espaço, dependendo do local onde se estava e da disponibilidade das materialidades.

Para expor essas diferentes versões, as narrativas a seguir percorrerão os caminhos determinados pelo ICF no atendimento ao paciente com tuberculose. O primeiro é feito na sala de pré-consulta da enfermagem, onde os sinais vitais (temperatura, pressão arterial, saturação de oxigênio, peso e altura) são aferidos. Localizada no primeiro andar, a sala dispõe de uma mesa e de duas cadeiras, uma para o paciente e outra para a enfermeira. O material existente é restrito: uma balança, um aparelho de pressão, um oxímetro, um termômetro, álcool e algodão. À medida que a enfermeira confere os sinais, o paciente pergunta o resultado e o compara com os índices anteriores. Notamos um momento intrigante para a maioria dos pacientes: a aferição do peso corporal na balança. Assim que os números aparecem no visor, uma versão da tuberculose é atuada ( enacted ). É o que observamos em José.

Morador da zona leste de São Paulo, o paciente José, de trinta anos de idade, estava no terceiro mês do tratamento para “uma doença que dá no pulmão”. Em todas as suas consultas, seu peso atual era verificado e anotado pela enfermeira no seu prontuário. Do mesmo modo, ele retirava do bolso uma caderneta, registrava o peso e o comparava com as diferenças que indicavam se havia engordado ou emagrecido de um mês para o outro. Segundo ele,

“A gente emagrece demais. Meu Deus, parece que vai sumir. Os ossos aparecem todos, a gente perde a força completamente [...]. Ficar sentado em uma cadeira por muito tempo é um sacrifício. Ainda bem que estou ganhando um pesinho [...], assim o povo não corre mais de mim e eu vou voltando ao normal.” (José)

Na versão da doença que José performava, com a ajuda de sua caderneta e a balança da sala de enfermagem, a tuberculose se manifestava no aparente emagrecimento do corpo, na fraqueza e no medo que ele podia provocar em outras pessoas. O relato da modificação corporal e da debilidade em decorrência da tuberculose é comum e demonstra que esses sintomas são indicativos de que algo não está bem e que há necessidade de buscar ajuda, seja ela médica ou espiritual, como evidenciado nos trabalhos de Gonçalves 1212. Gonçalves H. Corpo doente: estudo acerca da percepção corporal da tuberculose. In: Duarte LFD, Leal OF. Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz;1998.,1414. Gonçalves H, Costa JD, Menezes AMB. Percepções e limites: visão do corpo e da doença. Physis. 1999; 9(1):151-73. e Jung et al. 3232. Jung BC, Zillmer JGV, Cunha FTS, Gonzales RIC. Significados das experiências corporais de pessoas com tuberculose pulmonar: a construção de uma nova identidade. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(2):e2030016. .

À versão de José se somavam as de outros pacientes, como constatamos posteriormente. Saindo da pré-consulta de enfermagem, os pacientes aguardavam pela consulta médica na sala de espera ou na varanda que dá para o solarium . Nessa varanda estava Arnaldo, de 48 anos, que, na nossa conversa, possibilitou que identificássemos mais versões da tuberculose. Negro, de estatura mediana, casado, ele vive com sua esposa, uma filha e um neto numa casa – de apenas dois cômodos – que ele mesmo construiu nos fundos da casa de seu sogro, no bairro do Jabaquara. É pedreiro desde os 18 anos quando deixou os estudos para começar a trabalhar e a “ajudar em casa”. Enquanto conversávamos com ele e sua esposa, a Dra. Deise o chamou para a consulta. Ao perguntarmos a Arnaldo se podíamos acompanhá-lo, ele nos indicou, com um gesto, que devíamos segui-lo.

Ele e sua esposa se sentaram nas cadeiras próximas à mesa da médica infectologista. No prontuário aberto sobre a mesa, junto aos documentos encaminhados pela UBS, estava registrada a suspeita de tuberculose. Em razão de dificuldades no diagnóstico, Arnaldo fora então encaminhado ao ICF. A Dra. Deise lhe perguntou o que havia acontecido e o que ele estava sentindo. Ao responder, ele performava uma versão da tuberculose semelhante à do paciente José:

“Há uns meses atrás comecei a ficar muito magro, mesmo comendo bem. Mas aí né, a gente começa a emagrecer e vai ficando fraco também. Fraco, mas fraco mesmo. Mesmo assim eu ia trabalhar. Sabe, a gente não pode parar, né, porque tem os compromissos da gente? Só que teve um dia que eu já não estava mais aguentando e saí mais cedo do trabalho. Aí, quando fui descer do ônibus em frente de casa, eu desmaiei de tão fraco [que estava]. O povo me acudiu, me levou para casa e aí não teve jeito: precisei ir no postinho que fica lá perto de casa. Eles falaram que podia ser um negócio no pulmão, mas não tinham certeza, então me mandaram para cá. Aí foi isso, doutora, fraqueza sabe, não consigo trabalhar, um corpo ruim, fico suando muito também.” (José)

Ainda na anamnese, a médica perguntou-lhe se tossia. Ao mesmo tempo, com o estetoscópio sobre o peito e as costas de Arnaldo, ela auscultava o pulmão para ver se ouvia sons que indicassem “cavernas”, ou outros achados que poderiam indicar a ação dos bacilos da tuberculose, conhecidos cientificamente como Mycobacterium tuberculosis . Arnaldo respondeu que tossia, mas não continuamente. Parecia não se dar conta de que tossia, ou não atribuía a esse sintoma a mesma importância que a médica. A Dra. Deise ainda falou sobre sintomas como a sudorese noturna, a febre no período vespertino, mas ele insistia em mencionar as “fraquezas do corpo”.

Assim que Arnaldo e sua esposa saíram, permanecemos no consultório com o propósito de conversar com a Dra. Deise. Ela reforçou que os sintomas do paciente deixavam claro que se tratava de tuberculose pulmonar: tosse há mais de um mês e suores. Isso se confirmava pela fala da mulher de Arnaldo: todos os dias, pela manhã, era preciso trocar a roupa de cama. Para completar seu diagnóstico, a médica olhou, no prontuário do paciente, os exames radiológicos enviados pela UBS que havia encaminhado Arnaldo para o ICF. Sobre o negatoscópio – um aparelho retangular de fundo branco que emite uma luz de led branca –, a Dra. Deise colocou o raio X do pulmão de Arnaldo e passou algum tempo analisando a imagem à sua frente. De repente nos mostrou um achado, aquilo que ela havia chamado de “cavernas”, ou seja, as cavidades nas paredes mais espessas do pulmão que representavam a ação da doença. Disse que, com a ajuda do estetoscópio, fora possível auscultar sons indicativos da presença de “cavernas” e também de acúmulo de secreções nos pulmões de Arnaldo.

Assim como Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. , que descreve as várias versões de arteriosclerose que eram performadas no Hospital Z, também conseguimos identificar, dentro do ICF, uma tuberculose múltipla. Para José e Arnaldo, a tuberculose existia na medida em que não conseguiam “cuidar da vida”, em razão do emagrecimento e da fraqueza de seus corpos. Já no consultório de Dra. Deise, outra versão da doença era atuada concomitantemente à dos pacientes por meio da tosse no decorrer de mais de três semanas, da febre vespertina, da sudorese noturna e das “cavernas”.

A esta altura do texto, é importante destacar que Mol não deixa de se importar com os repertórios linguísticos. Segundo ela, independente do contexto, algum artifício de linguagem é usado nos momentos de interação das pessoas. Um médico não pode fazer um diagnóstico apenas por exames de imagem, é preciso que o paciente fale sobre o que sente e o que pensa a respeito dos sintomas. Trabalhar com a ideia de versões de uma única realidade não significa excluir perspectivas, mas, sim, de – ao invés de enfatizar a diferença que há entre elas – priorizar a colaboração entre os diversos agentes, na qual cada um, com sua versão, compõe a realidade múltipla 2424. Annemarie Mol. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado: uma entrevista com Annemarie Mol. Interface (Botucatu). 2018; 22(64):295-305. . Além disso, é preciso lembrar que Mol nunca ignora os microscópios, reforçando o valor das materialidades que tornam visíveis as profusas versões da doença e nos possibilitam sua manipulação 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. . Assim, a balança na sala de pré-consulta da enfermagem, a caderneta de Arnaldo, o estetoscópio, o raio X e o negatoscópio anexado à parede do consultório da Dra. Deise ajudam a enact a tuberculose, tornando-a visível.

No ICF, ao sair da consulta médica, os pacientes aguardam pela pós-consulta de enfermagem, quando são orientados sobre o uso da medicação e encaminhados para a realização de exames complementares, com a finalidade de confirmar o diagnóstico de tuberculose e de avaliar a evolução da doença. Cabe registrar que, na ocasião desta pesquisa, o ICF passava por uma série de reformas. Como a sala de raio X estava desativada, os pacientes eram enviados para outros serviços radiológicos, o que nos impediu de acompanhar a execução do exame e de como a tuberculose era encenada ( enacted) na sala dos exames por imagem.

Nos laboratórios destinados à realização do exame de baciloscopia e, também, na sala da vigilância epidemiológica, os dados dos pacientes, da doença e do tratamento eram cruzados para análises em que se detectavam outras distintas formas de fazer tuberculose. A baciloscopia, também conhecida como exame de escarro, é feita para identificar pacientes bacilíferos, indivíduos capazes de eliminar o agente etiológico da tuberculose infectando outras pessoas, e, também, para acompanhar a evolução do tratamento da tuberculose. Desse modo, a ausência de bacilos no exame significa que o tratamento está sendo eficiente.

O agente causador da tuberculose é cientificamente chamado de Mycobacterium tuberculosis e conhecido popularmente como bacilo de Koch. Trata-se de uma micobactéria que possui propriedade álcool-ácido resistente (BAAR), ou seja, é capaz de reter corantes mesmo após a lavagem. Assim, durante a realização do exame de escarro, os técnicos de laboratórios que realizam o exame procuram por BAAR nos esfregaços (“pontos vermelhos” que aparecem no campo microscópico – Figura 2 ), como nos explicava Mariana, a técnica de laboratório.

Figura 2
Campo microscópico apresentando os “Pontos vermelhos” (BAAR) 3333. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual nacional de vigilância laboratorial da tuberculose e outras micobactérias. Brasília: SVS/DVE; 2008. .

Após tomar todos os cuidados relacionados à proteção individual, Mariana deu início à preparação do material para a realização do exame. O escarro era coletado em pequenos potes de plástico transparente com tampa vermelha, que eram enviados diretamente para o laboratório, identificados com o nome completo do paciente e com o número de seu prontuário. A técnica começava seu trabalho completando as fichas de solicitação dos exames com dados referentes ao aspecto do conteúdo de cada frasco. Depois de preencher todos os dados, ela começava a preparar as lâminas que seriam analisadas mais tarde por meio dos microscópios dispostos sobre uma bancada.

Mariana trabalhava com muita cautela, manuseando tudo muito lentamente. Segundo ela, qualquer movimentação mais rápida poderia formar aerossóis, partículas muito leves que continham os bacilos de Koch e podiam permanecer em suspensão no ar por muito tempo. Isso aumentava o risco de contaminação – por meio da inalação – das pessoas que ali trabalhavam.

Depois de abrir um dos potes, que continha uma secreção de aspecto purulento, Mariana colocou um pouco do conteúdo sobre uma lâmina transparente com uma faixa fosca que continha o número correspondente à ficha que ela havia preenchido antes da realização do exame. A amostra foi espalhada por toda lâmina com movimentos de vaivém, procedimento que ela chamou de “distensão”. Após deixar secar em temperatura ambiente, a técnica passou a lâmina sobre uma chama para ajudar a fixar o esfregaço (a lâmina mais o escarro). Logo depois, começava a etapa de coloração do material por meio da técnica chamada Ziehl-Neelsen, que possibilitava a identificação dos BAAR. Nessa técnica, a lâmina era colorida com uma substância chamada fucsina e, depois, era descolorida com uma solução de álcool-ácido. Após ser lavada, à lâmina se adicionava o azul de metileno, dando então início à leitura da amostra. Mariana dividia o campo microscópico em quadrantes imaginários e contava quantos “pontos vermelhos” (BAAR) apareciam em cada um e anotava em uma folha quadriculada. De acordo com a média de números de BAAR encontrados em cada quadrante, os resultados poderiam ser: negativos, quando não havia nenhum BAAR; positivo, quando um a nove eram encontrados em 100 campos; positivo+, de dez a 99 achados nos 100 campos; positivo++, se um a dez são encontrados nos primeiros 50 campos; positivo+++, se mais de dez são identificados nos primeiros 20 campos observados. A baciloscopia era realizada durante todo o tratamento e, a cada seis meses ou um ano, mesmo após a cura do paciente, para monitorar uma possível reinfecção.

Observamos que, nessa versão da tuberculose, ganha destaque o Mycobacterium tuberculosis , capaz de ser visto pelos “pontos vermelhos”, passíveis de serem identificados com a ajuda de um microscópio. Tratava-se de uma tuberculose bem diferente daquelas que eram atuadas no primeiro andar do ICF, mas que, ao sair dos limites daquele laboratório, circulava junto com as demais versões por todo o serviço na forma de um resultado de exame positivo ou negativo.

Do lado oposto ao laboratório, com a ajuda de programas estatísticos e de numerosos papéis (informações dos pacientes, resultados de exames e dados da evolução do tratamento de cada um deles), os epidemiologistas da Vigilância Epidemiológica do ICF performavam uma “doença difícil”. O elevado índice de casos de tuberculose, comum nas regiões mais periféricas da cidade, acomete pessoas com baixa renda e com pouca ou quase nenhuma escolaridade. Ademais, o tratamento é longo, exige alta adesão, para que não conduza ao óbito. A relação entre tuberculose e pobreza está bem documentada. Estudos como os de Rocha; Adorno 99. Rocha DS, Adorno RCF. Abandono ou descontinuidade do tratamento da tuberculose em Rio Branco, Acre. Saude Soc. 2012; 21(1):232-45. e Santos et al. 3434. Santos MLSG, Vendramini SHF, Gazetta CE, Oliveira SAC, Villa TCS. Pobreza: caracterização socioeconômica da tuberculose. Rev Lat Am Enfermagem. 2007; 15 Spe:762-7. revelam que, no Brasil, tuberculose é sinônimo de doença determinada socialmente.

Percebemos que, assim como a arteriosclerose estudada por Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. , a tuberculose também é uma doença múltipla que surge a partir dos diferentes modos como ela é enacted em variados contextos. Na Figura 3 buscamos ilustrar as várias versões da tuberculose encontradas no ICF. Devemos ressaltar que nutricionistas, assistentes sociais, enfermeiros, entre outros profissionais, também fazem parte de um processo não descrito neste texto, razão pela qual estão colocados apenas nesta figura.

Figura 3
Versões da tuberculose encontradas no ICF durante realização do trabalho de campo.

Como já mencionamos anteriormente, uma doença múltipla não significa a existência de um número indefinido de versões excludentes e de corpos desconectados. Pelo contrário, uma doença múltipla indica que essas versões possuem algum tipo de ligação, sobrepondo-se uma à outra para formar, mais tarde, uma só categoria 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. . Todas as versões de tuberculose que identificamos nos espaços do ICF mantinham relações entre si, formando uma tuberculose singular. A esse movimento de junção das diferentes versões de um objeto, Mol denomina coordenação. Uma vez que a tuberculose deve ser diagnosticada e tratada, as versões que são praticadas nos consultórios médicos, nos laboratórios e pelos próprios pacientes – entre avanços e recuos – se coordenam para constituírem uma categoria única para que a terapêutica seja possível.

Ainda segundo Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. , nem sempre essa coordenação ocorre de maneira equilibrada, podendo haver incoerência entre as diferentes versões da doença que impossibilite esse movimento. Cita como exemplo o fato de o resultado de um exame não corresponder às hipóteses do médico em seu consultório. No caso desta pesquisa, observamos que, eventualmente, aconteciam incongruências nesse movimento que podiam impedir, por um período, o tratamento da tuberculose.

É o caso de a versão de tuberculose performada pelo paciente não conseguir se complementar com a dos médicos e vice-versa. Durante a pesquisa, por exemplo, encontramos pacientes que, depois de superarem as fraquezas e modificações corporais provocadas pela tuberculose, não acham mais necessário o uso dos medicamentos. Já para a equipe médica, mesmo que os sintomas tenham desaparecido, isso não significa cura; o que os fazem manter o tratamento. Quando não há meios de coordenação dessas duas versões, o resultado é que o tratamento não era, por algum tempo, feito adequadamente ou descontinuado pelos pacientes. Estamos abordando aqui a adesão ao tratamento para tuberculose. O tema foi abordado de forma competente por diversos autores 66. Gonçalves H, Dias Da Costa JS, Menezes AMB, Knauth D, Leal OF. Adesão à terapêutica da tuberculose em Pelotas, Rio Grande do Sul: na perspectiva do paciente. Cad Saude Publica. 1999; 15(4):777-87.,99. Rocha DS, Adorno RCF. Abandono ou descontinuidade do tratamento da tuberculose em Rio Branco, Acre. Saude Soc. 2012; 21(1):232-45.,3636. Ferreira J, Engstron E, Alves LC. Adesão ao tratamento de tuberculose pela população de baixa renda moradora de Manguinhos, Rio de Janeiro: as razões do im(provável). Cad Saude Colet. 2012; 20(2):211-6. , o que acrescentamos é que essa falha no movimento de coordenação não é, e nem deve ser, permanente. Para Mol 1919. Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. , no caso de doenças que precisam ser curadas, os agentes vão procurar recursos, alternativas e outros modos até que suas versões se coordenem e o tratamento se torne possível.

As diferentes versões de tuberculose performadas no ICF não se limitavam a ficar presas aos espaços de sua formação. Circulando por todo o Instituto, todos tinham acesso a elas por meio dos prontuários de cada paciente à medida que eles se moviam de um local para o outro. Em uma pasta de cor amarronzada, com evoluções dos mais variados profissionais de saúde e também dos exames, as diferentes versões de tuberculose praticadas no ICF se condensavam e se moviam de uma sala para a outra.

Considerações finais

Ao finalizarmos este artigo, buscamos identificar e descrever as diferentes versões da tuberculose performadas no ICF. Durante a etnografia, percebemos a multiplicidade adquirida por essa doença à medida que era manipulada por: médicos, pacientes, enfermeiros, técnicos de laboratórios, entre outros profissionais. Nesse contexto, a tuberculose surge como um produto da condensação de: diferentes práticas, microscópios, lâminas, exames, conversas e interpretações.

Compreender a tuberculose não só por meio de símbolos e interpretações, mas também como resultado da coordenação de diferentes práticas e materialidades, nos permite ampliar o conhecimento sobre essa doença. Identificar a maneira como ela é performada e como suas diferentes versões se coordenam. Advém daí a possibilidade de se detectarem pontos de tensão nesse processo que podem impedir o tratamento da doença, como exemplificamos anteriormente. E também, pelo contrário, como os processos de coordenação podem dar certo e favorecerem o diagnóstico e tratamento da tuberculose.

Percebemos que a realidade não precede as práticas, mas, outrossim, é enacted por elas, resgatando as fronteiras entre as diferentes ciências. Quando variadas práticas produzem versões de um mesmo objeto, a diversidade entre elas – em termos de importância ou de precisão – torna-se uma questão menor diante da colaboração entre esses agentes na formação de uma única doença que comporta todas as versões. E talvez um dos aspectos mais importantes do uso da praxiografia, para se compreender uma doença tão complexa como a tuberculose, esteja em deixar de enfatizar a diferença de significados que os agentes envolvidos atribuem a ela e em passar a valorizar mais a colaboração entre eles.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2018
  • Aceito
    04 Set 2018
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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