Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil

Floating Primary Health Center: a new approach to Primary Care in the Amazon, Brazil

Unidad Básica de Salud Fluvial: un nuevo modelo de la Atención Básica para la Amazonía, Brasil

Michele Rocha El Kadri Brena Silva dos Santos Rodrigo Tobias de Sousa Lima Julio Cesar Schweickardt Fabiana Mânica Martins Sobre os autores

Resumos

A Unidade Básica de Saúde Fluvial constitui um novo modelo concebido para viabilizar cuidados básicos em saúde, visando a cobertura universal para populações ribeirinhas da Amazônia e Pantanal. O estudo tem como objetivo descrever o processo de planejamento e execução das atividades dessa unidade de saúde flutuante e a gestão do cuidado diferenciada nesse novo modelo de atenção à saúde preconizada pela Política Nacional de Atenção Básica. Trata-se de um estudo exploratório-descritivo sobre o processo de gestão do cuidado por meio de uma abordagem cartográfica, com observação participante e entrevista em duas viagens ao município de Borba no Estado do Amazonas. Destaca-se a relevância da política que dialoga com as características do território, entendendo o rio como caminho que o serviço de saúde deve utilizar para promoção da equidade, em especial para população ribeirinha da Amazônia.

Saúde Ribeirinha; Atenção Básica em Saúde; Política de Saúde; Amazônia


Floating Primary Health Center is a new approach to ensuring universal access to primary healthcare for riverine communities in the Amazon and Pantanal. The aim of this study was to describe the planning and implementation of the activities of a floating primary health center and management of care under this new approach. An exploratory descriptive study was conducted using mapping techniques, participant observation, and interviewing in two trips to the Municipality of Borba in the State of Amazonas. The findings show the importance of tailoring policies and programs to the specific characteristics of neighborhoods and communities and that the river is the pathway that health services should use to promote equitable access to care for riverine communities in the Amazon.

Riverine community health; Primary healthcare; Health policy; The Amazon


La Unidad Básica de Salud Fluvial constituye un nuevo modelo concebido para viabilizar cuidados básicos de salud, con el objetivo de cobertura universal para las poblaciones que viven en las orillas de los ríos en la Amazonía y el Pantanal. El objetivo del estudio es describir el proceso de planificación y realización de las actividades de esa unidad de salud flotante y la gestión del cuidado diferenciada en ese nuevo modelo de atención de la salud determinada por la Política Nacional de Atención Básica. Se trata de un estudio exploratorio-descriptivo sobre el proceso de gestión del cuidado por medio de un abordaje cartográfico con observación participante y entrevista en dos viajes al municipio de Borba en el estado de Amazonas. Se subraya la relevancia de la política que dialoga con las características del territorio, entendiendo el río como camino que el servicio de salud debe utilizar para promoción de equidad, en especial para la población que vive en las orillas de los ríos de la Amazonía.

Salud de la población que vive en las orillas de los ríos; Atención básica de la salud; Política de salud; Amazonía


Introdução

Um sistema de saúde expressa valores e opções políticas que governos tomam ante às necessidades sanitárias da população, sendo resultado de uma complexa interação entre elementos históricos, econômicos e políticos. A forma como cada país organiza o setor é importante marcador para indicar o grau de comprometimento com o pressuposto da saúde como um direito humano11. Lobato LVC, Giovanella L. Sistemas de saúde: origens, componentes e dinâmica. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 89-120.. Ao definir o Sistema Único de Saúde (SUS) como universal, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que ações e serviços públicos devessem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada capaz de garantir acesso e atendimento integral aos cuidados de saúde, o que representou um passo importante para atenuar as profundas desigualdades entre as regiões do país no acesso à saúde22. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal; 1988.. A razão da existência do SUS é também seu principal desafio: assegurar acesso resolutivo e humanizado a todo cidadão que procure atendimento, sem distinção de local de residência. É importante compreender que a implantação do SUS tem a marca das diferenças na formação histórica e cultural de cada região do país.

Os lugares se conformam a partir da expressão de jogos de poder e ação de atores internos e externos a eles ao longo de suas próprias histórias33. Santos M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 1996.. Assim, o elemento histórico marca as características demográficas e, consequentemente, os indicadores de saúde de uma região. Na Amazônia Legal, que representa mais da metade do território nacional e onde coexistem modelos de ocupação muito diversos44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017., parece racional e lógico pensar que o planejamento de ações públicas deva ser coerente e flexível o suficiente para dar conta das especificidades de cada um desses territórios.

Neste trabalho falaremos da região de várzea, uma das muitas “amazônias”. Descreveremos uma Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF), um modelo concebido a partir das características desse território, destacando a importância da iniciativa e protagonismo de atores locais, ao reconhecermos que esse lugar exige modelos de assistência em saúde que respondam a suas demandas singulares. Apresentaremos brevemente as ações e marcos legais sobre Saúde Ribeirinha e o exemplo da UBS fluvial “Igaraçu”, do município de Borba, estado do Amazonas, como uma resposta ao desafio de implantar o SUS nesse território. Destacamos a importância do diálogo e negociação entre a gestão local do município de Borba e a esfera federal na elaboração e construção dessa proposta. Nosso objetivo é descrever o processo de planejamento e execução das atividades dessa unidade de saúde flutuante e a gestão do cuidado diferenciada nesse novo modelo de assistência. Por fim, não poderíamos nos isentar de trazer algumas reflexões sobre a necessidade de ampliar conceitos e parâmetros normativos, de modo que dialoguem com peculiaridades da organização dos serviços de saúde nos territórios onde eles se aplicam.

Metodologia

O uso de embarcações na assistência em saúde na Amazônia acontece já desde década 1920, quando o Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural lançava mão de barcos para executar ações de controle a endemias dos trópicos55. Schweickardt JC. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no estado do Amazonas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011., sendo também recurso muito utilizado na década de 1980 nas ações sanitárias. Nas décadas seguintes, com implantação do SUS e descentralização do sistema, as secretarias municipais de saúde continuaram a adotar os barcos para assistência a populações ribeirinhas44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017..

Para apreender diferenças e similaridades entre essas experiências prévias e o modelo proposto pela UBS Fluvial, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com gestores idealizadores dessa proposta, o que nos permitiu fazer um histórico do planejamento e das articulações necessárias que tornou possível tal inovação. Por outro lado, considerando que novas estruturas exigem necessariamente novas formas de gestão do cuidado, optamos por realizar roda de conversa com equipe e os usuários assistidos pelo Igaraçu. Adotamos, também, a observação participante para uma aproximação do funcionamento e rotina de trabalho da UBS Fluvial.

As entrevistas foram realizadas com: secretária, ex-secretária municipal de saúde, coordenadora da Atenção Básica, coordenadora do Planejamento da Secretaria de Saúde de Borba. Foi utilizado um roteiro semiestruturado em três blocos de temas: histórico de negociação para construção e financiamento da UBS fluvial, rotina de trabalho e principais resultados e lições aprendidas. Foram também realizadas duas rodas de conversa com equipe (uma enfermeira, dois agentes de saúde, um médico, um técnico de laboratório, um copeiro, dois tripulantes) e três usuários que tiveram, como tema central, a organização da rotina de viagem e processos de trabalho da equipe. A observação participante e cartografia foram feitas em dois momentos: uma ainda nas primeiras viagens do Igaraçu em junho de 2013 (período de seca) e em março de 2018 (período de cheia), para verificar possíveis mudanças ocorridas transcorridos cinco anos. Isso nos trouxe reflexões sobre os elementos territoriais que devem ser considerados para operacionalizar e viabilizar o acesso à saúde da população ribeirinha com uso de tal estrutura.

A pesquisa respeitou as diretrizes referentes à pesquisa envolvendo seres humanos, sendo aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 84024018.1.0000.5016).

Saúde Ribeirinha na Política Nacional de Atenção Básica

No início da década de 1990, com a organização do SUS – aliada à urgente necessidade de ações sanitárias em espaços mais afastados dos grandes centros urbanos e com os bons resultados obtidos do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no nordeste do país –, o Brasil começa a mudar a base estrutural sobre a qual seu sistema de saúde foi historicamente construído. Entre 1994-96, emerge, então, a “Saúde da Família”, inicialmente como um programa, desenvolvendo-se e implantando-se na década seguinte como uma Estratégia para organizar a Atenção Básica. Esta passa a ser, então, a base para o planejamento do sistema de saúde, reorientando o modelo assistencial urbano e hospitalocêntrico vigente até então no país66. Conill EM. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cad Saude Publica. 2008; 24 Supp 1:7-27..

Com isso, as ações setoriais da saúde passam a ser planejadas a partir de bases territoriais locais, aproximando, progressivamente, mais os serviços às comunidades. Não é irrelevante ou simples o desafio de estruturar um sistema único e público em um território-continente como o Brasil, e que oferte cobertura universal a uma população superior a 200 milhões de pessoas. A Amazônia é um desses territórios cujas experiências locais podem promover aperfeiçoamento do SUS.

Um ponto central para planejamento de ações e organização do espaço passa pela definição da questão rural-urbano. Atualmente, o espaço urbano é estabelecido por Lei Municipal, o que torna a definição altamente imprecisa e volúvel a critérios políticos e tributários locais. Em 2017, reconhecendo a demanda da academia e relevância do tema para o planejamento de ações públicas setoriais, o IBGE reviu seus critérios para caracterização dos espaços rural e urbano no país. Essa nova classificação considera três critérios: tamanho da população, densidade demográfica e localização em relação a centros urbanos. Da combinação dessas variáveis, propuseram-se cinco categorias: urbano, intermediário adjacente, intermediário remoto, rural adjacente, rural remoto77. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017.. Nessa nova metodologia, a adoção de uma classificação não binária já demonstra a complexidade da questão e a necessidade de qualificar as informações de modo que melhor reflitam a realidade. Apesar do avanço, destaca-se que toda classificação é sempre uma simplificação da realidade. Munícipios que embora apresentem tamanho, densidade populacional e distância de centro urbanos similares, podem ter “ruralidades” muito distintas entre si. Dessa forma, os atores locais continuam tendo papel fundamental na territorialização das políticas.

No campo da saúde, a Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) tem o cuidado de denominar de Saúde Ribeirinha aquelas ações voltadas especificamente para o contexto amazônico e pantaneiro, entendendo que a “ruralidade” nesse espaço é peculiar. A revisão da PNAB feita em 2012 já contemplou uma série de arranjos e inovações nas modelagens de equipes que foram configuradas na prática cotidiana dos serviços, tais como: Equipes de Consultórios na Rua e das Equipes de Saúde Ribeirinha e Fluvial.

Além de todos os outros arranjos de equipes do restante do país, os municípios da Amazônia Legal e do Pantanal podem contar também com duas outras modelagens: Equipe de Saúde da Família Ribeirinha (ESFR), que está ligada a uma Unidade fixa, mas seu acesso às comunidades se dá por via fluvial; e Equipe de Saúde da Família Fluvial (ESFF), que desempenha atividades nas Unidades Básicas Fluviais (UBSF) móveis. Minimamente em ambos os casos, as equipes são compostas por: um enfermeiro, um técnico ou auxiliar de enfermagem, um médico e doze Agentes Comunitários de Saúde. Em regiões endêmicas, também pode fazer parte da equipe um microscopista. As equipes fluviais credenciadas em Saúde Bucal devem incluir ainda, na equipe mínima, um cirurgião-dentista e um técnico/auxiliar em saúde bucal.

As equipes ribeirinhas atendem a população por 14 dias (8h/diárias) e 2 dias são reservados à educação permanente e planejamento. Enquanto as equipes fluviais – embora haja possibilidade que até duas equipes dividam a mesma UBS fluvial – podem permanecer embarcadas até 20 dias/mês devido a questões de logística do percurso de deslocamento. No entanto, há particularidades nessa forma de organização que apontaremos mais adiante ao tratar a rotina da UBSF Igaraçu.

Desde 2012, o Ministério da Saúde vem editando uma série de Portarias para a regulamentação das modelagens tecnoassistenciais da UBSF (Quadro 1), o que está ratificado na última revisão da PNAB em 201788. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

Quadro 1
Marcos normativos vigentes para a saúde ribeirinha

A partir de 2014, as Equipes Ribeirinhas e as Equipes Fluviais que atuam em áreas de grande dispersão populacional tiveram a possibilidade de ampliar o número de profissionais a elas vinculados99. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 837, de 9 de Maio de 2014. Redefine o arranjo organizacional das Equipes de Saúde da Família Ribeirinha (ESFR) e das Equipes de Saúde da Família Fluviais (ESFF) dos Municípios da Amazônia Legal e do Pantanal Sul-Mato-Grossense. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. e ainda passaram a contar com incentivos logísticos extraordinários para apoio em terra e de transporte1010. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1229, de 6 de Junho de 2014. Define os valores do incentivo financeiro mensal de custeio das Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas (ESFR), das Equipes de Saúde da Família Fluviais (ESFF) e das Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF). Brasília: Ministério da Saúde; 2014.. Além do mínimo anteriormente descrito, as equipes podem acrescentar: dois profissionais de nível Superior dentre aqueles previstos no NASF (R$ 2.500,00 cada), até 12 microscopistas em áreas endêmicas (R$ 1.014,00 por cada), 24 ACS (R$ 1.014,00 cada um), 11 auxiliares/técnicos de enfermagem (R$ 1.500,00 cada). As duas últimas categorias devem, preferencialmente, residir nas comunidades assistidas. Contudo, o teto municipal para credenciamento de equipes e de profissionais em ambas as modelagens permaneceu inalterado.

Já os incentivos logísticos preveem ajuda de custo a depender da quantidade de embarcações. Os valores repassados são: uma embarcação – R$ 2.673,75; duas embarcações – R$ 5.347,50; três embarcações – R$ 8.021,25; quatro embarcações – R$ 10.695,00. As equipes podem contar também com unidades satélites que servem de apoio fixo para as ações de saúde nas comunidades assistidas. Cada unidade de apoio conta com aporte financeiro, sendo: uma unidade – R$ 2.673,75; duas unidades – R$ 5.347,50; três unidades – R$ 8.021,25; quatro unidades – R$ 10.695,00.

Entre 2011 e 2016, foram contempladas 64 propostas para construção de UBS Fluvial com financiamento do Ministério da Saúde, no entanto, outros municípios também conseguiram recurso por meio de emenda parlamentar. Segundo informações do Departamento de Atenção Básica, atualmente, já foram encaminhadas, ao Ministério da Saúde, 99 propostas de todos os Estados da Amazônia Legal e região do Pantanal, sendo 26 já concluídas e/ou já inauguradas, das quais 7 já estão em funcionamento. As demais estão em situações diversas para solicitar habilitação de custeio junto ao Ministériof. Evidencia-se, assim, que o investimento nesse novo modelo, por todo seu potencial de promover equidade em uma região historicamente subentendida, não tem sido irrelevante.

A Unidade Básica de Saúde Fluvial “Igaraçu”

Como já apontado, embarcações vêm sendo usadas há muitas décadas na região amazônica, no entanto, a diferença marcante é que essas experiências prévias são caracterizadas por um modelo campanhista de assistência, de caráter individual e curativo. Por outro lado, a atenção desenvolvida pela UBS Fluvial promove um cuidado preventivo e longitudinal, centrado na família e com um conjunto de ações básicas de serviços. Sobre as experiências prévias, cabe destacar o trabalho do navio-hospital Abaré, que, além da assistência, também desenvolve pesquisa, ensino e atividade de educação e prevenção por meio da arte1111. Projeto Saúde e Alegria. Saúde da família fluvial e modelo Abaré [Internet]. Santarém: Projeto Saúde e Alegria; 2018 [citado 28 Jun 2018]. Disponível em: http://www.saudeealegria.org.br/?projeto=saude-comunitaria/saude-da-familia-fluvial-e-modelo-abare
http://www.saudeealegria.org.br/?projeto...
, e hoje está sob gestão do SUS por intermédio da Secretaria de Saúde do Município de Santarém, Estado do Pará, cuja experiência inspirou fortemente o modelo atual das UBSF.

No caso de Borba, a primeira Equipe que trabalhou no Igaraçu já tinha experiência de prestar assistência em embarcações. Os “barcos da saúde”, como eram chamados, na maioria dos casos eram de fato utilizados como meio de transporte da equipe até as comunidades. O atendimento era feito em espaços comunitários improvisados, tais como: igrejas, escolas, centros sociais. Todos os profissionais entrevistados referiram que houve uma melhoria considerável nas condições de trabalho e no atendimento à população nas instalações apropriadas do Igaraçu. A gestão destacou que outro avanço foi quanto à possibilidade de registro diferenciado da UBS Fluvial e respectiva equipe no CNES, permitindo melhorar o registro das atividades realizadas e monitorar ações desse modelo.

Nos moldes do que preconiza a Política Nacional de Atenção Básica, a primeira UBS Fluvial Igaraçu fez sua viagem inaugural em 2013, na calha do rio Madeira do município de Borba/AM. A UBSF passou a ser entendida por gestores e trabalhadores dos municípios da região como uma estratégia diferenciada da Atenção Básica que precisa ser ampliada para toda a Amazônia. Tal inovação ampliou o acesso da população ribeirinha aos cuidados à rede municipal e regional de saúde.

Segundo o último censo, Borba tem população de 34.961 habitantes, sendo 5.931 autodeclarados indígenas1212. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. Brasília: IBGE; 2010.. Em um território de 44.236,252 km22. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal; 1988., com densidade populacional de 0.79 hab/km22. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal; 1988., cerca de 60% da população vivem em zona rural. O PIB per capita é de R$ 2.640 anual, apresentando IDH de 0,560 (baixo). Cerca de 20% da população acima de 25 anos são analfabetos1313. Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento - PNUD. Novo Atlas do Desenvolvimento Humano 2010 [Internet]. Brasília: PNUD; 2018 [citado 12 Abr 2018]. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/borba_am
http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/pe...
. A rede assistencial disponível no município conta com 17 estabelecimentos de saúde, todos públicos. Sob gestão federal são três (ligados à saúde indígena) e sob gestão estadual são duas unidades de média complexidade (maternidade e hospital geral). A gestão municipal administra 12 estabelecimentos, sendo nove Unidades Básicas de Saúde, incluindo o Igaraçu1414. Brasil. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde 2015. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 27 Mar 2018]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/
http://cnes.datasus.gov.br/...
.

À semelhança do que ocorre em outras regiões de várzea na Amazônia, a atenção à saúde no município é marcada por demandas de uma população flutuante devido ao intenso fluxo entre a cidade e a área rural por conta das atividades extrativistas em zona rural (marcadamente durante vazante dos rios) e acesso aos serviços na zona urbana (em especial no período da enchente)44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017.. Outro aspecto a destacar é o acesso ao município que bem caracteriza as regiões de várzea. Apesar de estar próximo da capital do Estado – 150 km em linha reta –, o município às margens do Rio Madeira, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, tem distância de viagem de 215 km de Manaus por via fluvial, o que pode significar 6 horas por barco expresso ou, ainda, 12 horas no barco “recreio” ou de linha. O tipo de transporte, a potência do motor e a sazonalidade do regime do rio – cheia ou vazante – são condições que relativizam a distância e o tempo amazônico. Por via aérea, a viagem dura 50 minutos, sendo operada por táxi aéreo (avião bimotor de cinco passageiros). Assim, a medida mais apropriada para medir distância e deslocamento é o tempo, e não quilômetros44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017. (Figura 1).

Figura 1
Município de Borba, Amazonas.

É importante entender a peculiaridade da vida que se organiza na mobilidade e fluidez desse “território líquido”44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017.,1515. Lima RTS, Simões AL, Heufemann NE, Alves VP. Saúde sobre as águas: o caso da Unidade Básica de Saúde Fluvial. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Intensidade na atenção básica: prospecção de experiências ‘informes’ e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 269-93.,1616. Schweickardt JC, Souza RTL, Simões AL, Freitas CM, Alves VP. Território na atenção básica: abordagem da Amazônia equidistante. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. In-formes da Atenção Básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 101-32., ou seja, em um território que não é fixo, mas fluido, cujas características mudam sazonalmente de acordo com o regime de cheia e vazante, e que toma o rio como elemento de conexão que liga pessoas, serviços e instituições nesse espaço. Assim, a experiência do Igaraçu revela como a ação pública pode (e deve!) abandonar o discurso da ausência e do “é muito complexo” ao considerar o rio não como uma barreira, mas, de fato, como uma via pela qual o Estado Brasileiro se faz presente no cotidiano das pessoas.

O processo de planejamento e negociação da proposta entre gestão municipal de Borba e gestão federal para construção e implantação do Igaraçu levou cerca de dois anos. Muitas adequações no projeto arquitetônico e proposta orçamentária para construção e custeio foram feitas. Além do financiamento para construção das embarcações, recursos federais são alocados para custeio da equipe e combustível, ficando a manutenção da estrutura e provisão de insumos médico-farmacêuticos como contrapartida municipal.

A experiência de Borba apontou alguns pontos centrais que foram incorporados na revisão da PNAB, com destaque para: a) as UBSF devem possuir registro específico junto ao Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde; b) garantia do repasse federal de incentivo mensal para custeio das equipes de saúde e de apoio; c) ter espaços favoráveis para o desenvolvimento de ações de saúde por uma equipe multidisciplinar; d) modelo de atenção à saúde baseado na vigilância em saúde e na promoção da saúde, com acompanhamento das famílias de forma integral, com resolutividade e atenção às necessidades das pessoas.

A UBS Fluvial Igaraçu – que em tupi-guarani significa canoa grande – atende 23 comunidades ao longo do Rio Madeira e seus afluentes em uma viagem que pode durar entre 12 a 20 dias, dependendo do nível das águas. Além dos profissionais que compõem o quadro mínimo da Equipe Fluvial, conta ainda com seis tripulantes: comandante, marinheiro fluvial, ajudante de convés, arrais (responsável pelas máquinas), copeira e auxiliar de serviços gerais. Os doze Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que integram a equipe têm papel central no acompanhamento dos pacientes durante os 40 dias de intervalo entre uma viagem e outra, com atenção especial a grávidas, crianças abaixo cinco anos e adultos com doenças crônicas. Os ACS são e vivem nas comunidades ribeirinhas que assistem1515. Lima RTS, Simões AL, Heufemann NE, Alves VP. Saúde sobre as águas: o caso da Unidade Básica de Saúde Fluvial. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Intensidade na atenção básica: prospecção de experiências ‘informes’ e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 269-93..

O Igaraçu é dividido em dois andares, com o primeiro andar destinado ao atendimento da população com todos os serviços de uma UBS: três consultórios (odontológico, enfermagem, médico), farmácia básica, sala de vacina, sala de procedimentos, banheiros, sala de espera, recepção e copa/cozinha e uma acomodação. No segundo andar ficam: o laboratório para análises de menor complexidade, sala de educação em saúde, cabine de comando, dois banheiros e quatro camarotes da equipe comportando até 18 pessoas (Figura 2).

Figura 2
A Unidade Básica de Saúde Fluvial Igaraçu, Borba – Amazonas

O planejamento das viagens considera sempre a dinâmica das águas. Na cheia, quando é possível navegar pelo Rio Madeirinha, afluente do Rio Madeira, a viagem pode durar até 22 dias. Já na seca, a viagem dura apenas 12 dias, pois o Igaraçu se mantém no leito principal do Rio Madeira. A preparação da viagem inicia na chegada da UBS Fluvial na cidade, quando cada setor organiza lista dos materiais necessários para a próxima viagem, e a gestora da Unidade (nesse caso, a enfermeira) reúne todas as listas e entrega para providências na Secretaria. São pactuadas seis viagens, e a média entre uma viagem e outra são quarenta dias, como preconizado na PNAB.

A partir da experiência com o Igaraçu, alguns ajustes no projeto naval da novas UBS Fluviais foram feitos. A circulação de pessoas no primeiro andar do Igaraçu fica na parte externa lateral, enquanto, nas novas Unidades, a circulação é feita por dentro da embarcação. Outra diferença é que o Igaraçu mede 24 metros de comprimento e as novas Unidades têm dois metros a menos.

Ao chegar em uma comunidade, a Unidade é atracada e os usuários que naquela comunidade não residem chegam com suas rabetasg (na cheia) para atendimento da família ou, mesmo, a pé (na seca), o que significa tempo e distância muito maior. O Igaraçu conta também com canoa de apoio, com um piloto que pode levar e trazer famílias que moram mais distantes e que não possuem recursos próprios para se deslocarem até a Unidade. A comunicação da chegada da UBS Fluvial é feita com apoio das rádios comunitárias, mas, sobretudo, pelo Agente Comunitário de Saúde, que tem papel fundamental na ligação entre o serviço e a comunidade.

A interação entre equipe e território/pessoas vai muito além da materialidade do trabalho clínico/técnico. É parte da cultura local a oferta e troca de gêneros alimentícios in natura daquilo que é produzido localmente e generosamente compartilhado com os viajantes. Esse intercâmbio de produtos, culturas e saberes com o deslocamento de todo o serviço e equipe ao território, oportunizando a vivência das mesmas dificuldades e possibilidades de acesso aos lugares e ver in loco as condições de vida das famílias, contribui para que a equipe, se comprometida com resolutividade, seja elo importante na rede de cuidado e de saúde daquela população, uma prática que irremediavelmente ultrapassa a assistência biomédica. A equipe pode assumir o protagonismo como agente transformador de realidades44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017..

Quanto à gestão do trabalho, é pertinente considerar que modelos novos exijam uma série de mudanças para sua operacionalização. O trabalho no Igaraçu apontou algumas dessas adequações necessárias, dentre elas: 1) ajustamento dos processos de trabalho na prestação do cuidado assistencial; 2) flexibilização nos parâmetros das diretrizes nacionais acerca da adscrição do território e composição da equipe, que, além da de saúde, deve incluir a tripulação; 3) prazos diferenciados para produção e inserção dos dados e marcação de consulta nos sistemas de informação, considerando a limitação de conectividade e necessidade de atendimento a todos que se fizeram presentes na Unidade; 4) critérios diferenciados para financiamento da nova estrutura1717. Kadri MR, Schweickardt JC, Farias LNG, Lima RTS, Wilson DR, Linn JG, et al. The Igaraçu fluvial mobile clinic: lessons learned while implementing an innovative primary care approach in Rural Amazonia, Brazil. Int J Nurs Midwifery. 2017; 9(4):41-5..

Cabe destacar que há uma notável diferença na rotina dos atendimentos, pois iniciam às 7:00, com intervalo para almoço, e seguem até o último paciente, quando então a embarcação navega para a próxima comunidade a ser atendida no dia seguinte. Essa rotina traz duas questões imediatas cuja resolução ainda está em vias de formalização. A primeira é quanto à carga horária dos profissionais, pois a UBS Fluvial deve funcionar vinte dias por mês. Na prática isso significa que os profissionais embarcados ficam em permanente sobreaviso, o que excederia a jornada de trabalho prevista. Em comum acordo entre a Secretaria Municipal de Saúde e os profissionais, lança-se mão de banco de horas, no qual os profissionais gozam de dez dias úteis de folga no retorno à sede do município. Há um revezamento na equipe sobre as folgas, parte da equipe continua trabalhando na UBS Fluvial enquanto a outra parte está de folga, e os atendimentos continuam na sede.

Outra questão é quanto ao registro da produção diária. Atualmente, há um limite diário de ١٦ fichas determinado pelo e-SUS, mas o número de atendimento excede esse limite e não é possível agendar para outro dia, uma vez que a Unidade segue para outra comunidade. Considerando a mobilidade do serviço e que este é adscrito ao território, limitar a quantidade de atendimentos diários na prática significaria deixar a população desassistida por mais de sessenta dias, rompendo a longitudinalidade na assistência. Por não deixar de atender a demanda em cada uma das comunidades visitadas, a produção da equipe fluvial acaba sendo maior que equipe em terra. Na viagem feita em 2013 isso não existia, uma vez que o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) vigente à época não tinha tal limitação. Esses são exemplos de como modelos novos exigem mudanças no sistema de planejamento e gestão global do sistema. Essas são mudanças ainda em curso de ajuste.

No modelo tradicional, a população vai até o serviço pois a área é adstrita à UBS fixa. No modelo fluvial, o serviço se desloca até a população. Como a UBS é móvel, ela torna-se adstrita ao território. Segundo a PNAB1818. Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2012., o “território adstrito permite planejamento, programação descentralizada e desenvolvimento de ações intersetoriais com impacto na situação de saúde das coletividades que constituem aquele território e em consonância com o princípio da equidade” (p. 20). Sem parâmetros claramente definidos para os limites do território, a Política dá flexibilidade suficiente para que a UBS Fluvial não tome como critério a distância em quilômetros para definir sua população assistida, mas, sim, o número de pessoas residentes na calha do rio por onde ela navega, não ultrapassando número máximo de 3.500 pessoas cobertas pela equipe de saúde. Para Kadri et al44. Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017., o Igaraçu atende seus usuários não importando se pertencem a uma comunidade onde a equipe já tenha passado ou se estão a um ou a cinco ou dez km de distância, pois “seu território adstrito é todo aquele cuja a população tenha vínculo com o serviço [...] materializando assim a almejada capilaridade da assistência em saúde” (p. 12).

Numa analogia a uma rede, uma UBS tradicional seria o nó que une os pontos por onde os usuários devem transitar. Em um serviço fluvial, a UBS transita pelos nós já existentes no território e usados pela população, tais como: centro de convivência, igrejas, escolas, residências. Portanto, o serviço é adscrito ao território, e não a população ao serviço. Inevitavelmente, essa condição marca diferenças importantes entre os dois modelos (Quadro 2).

Quadro 2
Diferenças no processo de trabalho entre modelo de UBS Fluvial e UBS tradicional

Permanece aberta a possibilidade de estudos avaliativos sobre esse novo modelo, no entanto é possível apontar resultados imediatos à implantação do Igaraçu. Efetivamente, houve aumento de 10% da cobertura devido à melhoria na acessibilidade e regularidade da assistência, impactando, assim, na qualidade do cuidado.

A construção do Igaraçu foi um investimento de cerca R$ 1.920.000,00 (um milhão e novecentos e vinte mil reais), sendo a maior parte financiada pelo Ministério da Saúde com pequena contrapartida estadual e municipal na provisão de equipamentos e insumos, o mais alto valor dentre todas as UBS fluviais já construídas. Esse valor equivaleria à construção de até quatro UBS tradicionais, no entanto, considerando estimativa de custo médio1919. Ladeira F. Financiamento: as necessidades da atenção básica. Rev Bras Saude Fam. 2013; 4(35-36):78-81., o funcionamento dessas Unidades seria superior ao da UBS Fluvial, sem que isso necessariamente represente aumento de cobertura, devido à dispersão da população no território. Estudos sobre custo-efetividade desse modelo na região estão em andamento. O repasse mensal do Ministério da Saúde para custeio das UBS Fluviais é de R$ 90.000 mensal (R$ 26,00 por pessoa). No Igaraçu, 65% desse valor é para custeio de pessoal, 23% para combustível e 12% com despesas de alimentação e funcionamento1717. Kadri MR, Schweickardt JC, Farias LNG, Lima RTS, Wilson DR, Linn JG, et al. The Igaraçu fluvial mobile clinic: lessons learned while implementing an innovative primary care approach in Rural Amazonia, Brazil. Int J Nurs Midwifery. 2017; 9(4):41-5.. O município, em contrapartida, é responsável pela manutenção dos equipamentos e estrutura e pela compra de medicamentos e demais insumos clínicos.

Considerações finais

Este modelo para produzir saúde nas comunidades que margeiam o Rio Madeira traz o desafio da diversidade social e cultural, e requer que os trabalhadores dialoguem com a cultura e os costumes do lugar, promovendo a invenção de processos de trabalho que respondam aos desafios colocados pela realidade. O próprio funcionamento do Igaraçu, ao reproduzir o modo de vida e o itinerário que as comunidades percorreriam em busca de assistência, cria as condições facilitadoras para prestação de um cuidado mais integral e humanizado.

As Unidades Básicas de Saúde Fluviais, de fato, apresentam um modelo tecnoassistencial que cria a real possibilidade de inclusão das populações que historicamente ficaram excluídas da atenção à saúde. O modelo pode contribuir com a superação das iniquidades regionais na construção de um SUS capaz de reduzir vulnerabilidades social e sanitária.

É necessário, no entanto, que todo esse investimento e disposição venham acompanhados de estudos e avaliações de questões centrais, tais como: custo-efetividade, gestão do trabalho e do cuidado, estudos de impacto, etc. Além disso, faz-se necessário um investimento na educação permanente em saúde porque a rotatividade de profissionais continua sendo um desafio para os gestores locais. A depender desses resultados, outros modelos podem ainda ser desenhados, como, por exemplo: uma Policlínica Fluvial – a oferecer serviços de média complexidade – ou Unidade Básica Flutuante – fixa, que respeite a subida e a descida dos rios. Desenhos, experiências e estudos locais devem orientar os planejadores da política, adequando as políticas nacionais em territórios e realidades específicas.

Apesar do salto na qualidade na assistência às comunidades ribeirinhas, assim como em qualquer outro contexto, uma unidade sanitária por si só dificilmente é capaz de isoladamente gerar impacto na redução da elevada prevalência de doenças infecto-parasitárias, por exemplo. Portanto, além do olhar diferenciado para planejamento das ações estatais adequadas para esse território líquido, permanecem sendo imprescindíveis ações intersetoriais que garantam saneamento básico, educação e redução da pobreza.

Conforme destacamos, é preciso estar atento para compreender que novas estruturas tecnoassistenciais ajustadas às características do território trazem novas demandas para a organização dos processos de trabalho e do sistema. A organização do sistema de saúde precisa ser flexível o suficiente para ser capaz de acolher as invenções nos territórios. Se é na superfície dos espaços que se expressam as realizações humanas, parece coerente pensar numa política pública que responda aos espaços fluidos e móveis da várzea amazônica.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Secretaria Municipal de Borba pela disponibilidade e parceria no desenvolvimento da pesquisa, em especial à equipe da UBSF Igaraçu, pela acolhida, hospitalidade e compartilhamento de conhecimentos.

Referências

  • 1
    Lobato LVC, Giovanella L. Sistemas de saúde: origens, componentes e dinâmica. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 89-120.
  • 2
    Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal; 1988.
  • 3
    Santos M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 1996.
  • 4
    Kadri MR. Território e Políticas de Saúde na Amazônia: diálogo necessário. In: Debate no Seminário Internacional de Determinantes Sociais da Saúde; 2 a 5 de outubro 2017; Manaus. Manaus: Fiocruz Amazônia; 2017.
  • 5
    Schweickardt JC. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no estado do Amazonas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.
  • 6
    Conill EM. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cad Saude Publica. 2008; 24 Supp 1:7-27.
  • 7
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017.
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.
  • 9
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 837, de 9 de Maio de 2014. Redefine o arranjo organizacional das Equipes de Saúde da Família Ribeirinha (ESFR) e das Equipes de Saúde da Família Fluviais (ESFF) dos Municípios da Amazônia Legal e do Pantanal Sul-Mato-Grossense. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
  • 10
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1229, de 6 de Junho de 2014. Define os valores do incentivo financeiro mensal de custeio das Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas (ESFR), das Equipes de Saúde da Família Fluviais (ESFF) e das Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF). Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
  • 11
    Projeto Saúde e Alegria. Saúde da família fluvial e modelo Abaré [Internet]. Santarém: Projeto Saúde e Alegria; 2018 [citado 28 Jun 2018]. Disponível em: http://www.saudeealegria.org.br/?projeto=saude-comunitaria/saude-da-familia-fluvial-e-modelo-abare
    » http://www.saudeealegria.org.br/?projeto=saude-comunitaria/saude-da-familia-fluvial-e-modelo-abare
  • 12
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. Brasília: IBGE; 2010.
  • 13
    Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento - PNUD. Novo Atlas do Desenvolvimento Humano 2010 [Internet]. Brasília: PNUD; 2018 [citado 12 Abr 2018]. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/borba_am
    » http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/borba_am
  • 14
    Brasil. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde 2015. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 27 Mar 2018]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/
    » http://cnes.datasus.gov.br/
  • 15
    Lima RTS, Simões AL, Heufemann NE, Alves VP. Saúde sobre as águas: o caso da Unidade Básica de Saúde Fluvial. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Intensidade na atenção básica: prospecção de experiências ‘informes’ e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 269-93.
  • 16
    Schweickardt JC, Souza RTL, Simões AL, Freitas CM, Alves VP. Território na atenção básica: abordagem da Amazônia equidistante. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. In-formes da Atenção Básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 101-32.
  • 17
    Kadri MR, Schweickardt JC, Farias LNG, Lima RTS, Wilson DR, Linn JG, et al. The Igaraçu fluvial mobile clinic: lessons learned while implementing an innovative primary care approach in Rural Amazonia, Brazil. Int J Nurs Midwifery. 2017; 9(4):41-5.
  • 18
    Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
  • 19
    Ladeira F. Financiamento: as necessidades da atenção básica. Rev Bras Saude Fam. 2013; 4(35-36):78-81.

  • f
    Dados de maio de 2018, conforme comunicação eletrônica enviada pelo Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.
  • g
    Uma canoa na qual se acopla um motor de baixa potência (5,5 horse power) com uma hélice presa em um ferro longo, que permite navegação em furos e igarapés.

  • Financiamento
    Essa pesquisa foi financiada com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    05 Mar 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br