Mulheres trans e atividade física: fabricando o corpo feminino

Mujeres trans y actividad física: la fabricación del cuerpo femenino

Jéssica Leite Serrano Iraquitan de Oliveira Caminha Isabelle Sena Gomes Ednalva Maciel Neves Diego Trindade Lopes Sobre os autores

Resumos

Este estudo discute a relação entre atividade física e o processo de “fabricação” do corpo feminino por mulheres transexuais. Colaboraram com a pesquisa dez mulheres trans, que responderam um questionário socioeconômico e participaram de entrevista semiestruturada. As informações obtidas foram analisadas com base na proposta fenomenológica de Bicudo1. Os relatos apontam que algumas mulheres trans praticam atividade física buscando o ganho de massa corporal na região dos glúteos e pernas e a definição do abdômen. Aquelas que não praticam alegam ter medo de masculinizar o corpo e/ou não frequentam academias por causa dos preconceitos sofridos.

Mulheres trans; Exercício físico; Corpo


Este estudio discute la relación entre la actividad física y el proceso de “fabricación” del cuerpo femenino por parte de mujeres transexuales. Colaboraron en la investigación diez mujeres trans que respondieron un cuestionario socioeconómico y participaron en una entrevista semiestructurada. Las informaciones obtenidas se analizaron con base en la propuesta fenomenológica de Bicudo1. Los relatos señalan que algunas mujeres trans practican la actividad física buscando ganar masa corporal en la región de los glúteos y piernas y la definición del abdomen. Las que no practican actividad física alegan que tienen miedo de masculinizar el cuerpo y/o no frecuentan los gimnasios por causa de los prejuicios sufridos.

Mujeres trans; Ejercicio físico; Cuerpo


Introdução

Tendências de impacto mundial relacionadas ao fitness como emagrecer, enrijecer, fortalecer, definir e hipertrofiar tornaram-se preferência entre a população, bem como destaque na mídia e nas redes sociais nas últimas décadas. É sem precedentes o interesse por formas de moldar o corpo, com ênfase na hipertrofia, em academias de ginástica e em demais espaços urbanos22. Sant’anna DB. As infinitas descobertas do corpo. Cad Pagu. 2000; (14):235-49. . Além disso, são oferecidos aos sujeitos cada vez mais recursos – produtos, técnicas, saberes, informações e tecnologias – para acelerar o processo de “fabricação” do corpo desejado33. Landa MI. Os corpos da liderança: as tramas da ficção do dispositivo cultural do fitness. Cad Cedes. 2012; 32(87):223-33. .

O termo “fabricar” tem inspiração no pensamento de Viveiros de Castro44. Castro EV. A fabricação do corpo na sociedade Xinguana. Bol Museu Nacional. 1979; 32:40-9. (Série Antropologia). , que escreve que na cultura Yawalapíti “o corpo humano necessita ser submetido a processos intencionais, periódicos, de fabricação, [...] sendo a causa e o instrumento de transformações em termos de identidade social” (p. 31). Sendo assim, fabricar o corpo é um processo contínuo do nascimento à morte e envolve tanto a noção de pessoa para os Yawalapíti quanto a ação sobre/do corpo para a construção da identidade nas sociedades contemporâneas. Tal ação pode ser desde a prática de atividade física e a adoção de dietas, passando pelos procedimentos estéticos e chegando até os procedimentos cirúrgicos, populares nos dias atuais.

Paralelamente a essa gama de recursos, emergiram também novas possibilidades e objetivos relacionados à atividade físicaffO presente estudo contou com o financiamento da Capes na forma de concessão de bolsa de pós-graduação (mestrado e doutorado). . Tais objetivos vão ao encontro das novas demandas sociais e acompanham o fluxo de um processo de individualização dos sujeitos em que a necessidade de diferenciação acompanha a necessidade de pertencimento. Nesse cenário, emerge a figura da pessoa transexual, considerada como uma forma a ser transformada55. Le Breton D. Adeus ao corpo. 6a ed. São Paulo: Papirus; 2013. .

A transexualidadeggUtilizamos os termos “transexualidade” e “mulheres trans” por serem os mais adotados pelas interlocutoras, embora o termo “transgeneridade” tenha despontado nos últimos anos como uma opção viável entre as discussões de gênero. Acreditamos que essa autodenominação tem ligação com o contexto e representa a forma como as participantes se identificam. é uma das possibilidades de performatividade de gênero. Para Jesus66. Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2a ed. Brasília: autor; 2012. , não há no Brasil um consenso em relação aos termos utilizados para definir essas performatividades. Optamos por utilizar o ponto de vista dessa autora66. Jesus JG. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2a ed. Brasília: autor; 2012. , que compreende a existência de dois termos principais na classificação referente ao gênero, cisgênero e transgênero. O primeiro contempla as pessoas que se identificam com o gênero atribuído no seu nascimento – os homens e mulheres cisgênero. O segundo diz respeito às pessoas que não se identificam com o gênero correspondente ao do nascimento, e é dessa categoria que as pessoas transexuais fazem parte.

A transexualidade não possui relação com aspectos médicos ou patologizantes e passa pelo corpo77. Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. , não apenas por ele ser a forma de o sujeito estar e interagir com o mundo, mas também por ele carregar as influências e códigos aos quais o sujeito foi submetido ao longo da sua vida. Entendemos a transexualidade neste estudo como uma questão identitária, caracterizada pela busca de reconhecimento social do sujeito em um gênero oposto ao do seu nascimento. Quando se trata de pessoas transexuais, podemos identificar duas experiências: homens trans(exuais), que nascem mulher e buscam o reconhecimento social no gênero masculino; e mulheres trans(exuais), que nascem homem, mas buscam reconhecimento no gênero feminino88. Bento B. Sexualidade e experiências trans: do hospital à alcova. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2655-64. .

A discussão apresentada neste artigo segue o intuito de relacionar a fabricação do corpo da pessoa transexual e questões sociais envolvidas nesse processo, compreendendo que ele passa por esferas e necessidades que vão além do processo vivido pelos cis(gênero) ocidentais contemporâneos. Entre essas especificidades em relação às pessoas cis, poderíamos citar a busca pela transformação vivida cotidianamente, que resulta em modificações inscritas direta (consumo de hormônios, cirurgias plásticas e exercício físico) ou indiretamente (corte de cabelo, uso de roupas e acessórios atribuídos a um ou outro gênero) sobre o corpo na construção da identidade.

Sobre essa questão, podemos citar as faixas que cobrem os seios ( binders para homens trans/ female-to-male – FTMhhBinders (traduzido por nós como algo ligado ao corpo, feito de tecido elástico) são uma espécie de cinta de compressão. Podem ser utilizados pelos homens transgênero (trans, transexuais, FTM, etc.) como alternativa às faixas que escondem os seios. ) ou as unhas artificiais, que são modificações indiretas, enquanto a mamoplastia masculinizadoraiiTermo adotado recentemente para designar a mastectomia bilateral. (homens) e a adoção de próteses de silicone são modificações diretas, que transformam o corpo e adquirem centralidade na performance de gênero.

Muitas vezes, a mudança nas vestimentas e os cortes de cabelo constituem a primeira prática de produção de gênero pelos homens trans. Isso nos fez considerar uma hierarquização das práticas de modificações corporais na qual aquelas que não produzem inscrições diretas no corpo ocupam espaços de menor destaque, mesmo que tenham importância na produção do gênero99. Sousa D, Iriart J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(10):1-10. . (p. 9)

As modificações que são inscritas diretamente no corpo são vistas como primárias na hierarquia do processo de construção da identidade do homem e da mulher transgênero99. Sousa D, Iriart J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(10):1-10. , que se encarrega geralmente de reunir referências sobre masculino e feminino com as ferramentas que possui.

No bojo das modificações, os avanços da tecnologia muito têm acrescentado ao leque de possibilidades de mudanças corporais, rompendo com a ideia de que a natureza é imutável e possibilitando alterações do sexo anatômico por meio de técnicas cirúrgicas1010. Elias VA. O corpo além do corpo: os reflexos da (im)possibilidade. Epistem Somat. 2007; 4(1):119-36. . Complementando essa ideia, embora o exercício físico seja negligenciado em muitos estudos, que dão mais visibilidade a políticas públicas efetivas de transição de gênero1111. Lionço T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis. 2009; 19(1):43-63. , é impossível negar seu uso como recurso acessível à produção do corpo77. Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. na busca por uma estilística que se acredita ser feminina.

Fazendo uma ponte entre mudar o corpo em busca de uma estilística feminina e atividade física, este estudo buscou discutir a relação entre formas de moldar o corpo, com ênfase nas atividades físicas, adotadas por mulheres transexuais e o processo de “fabricação” do corpo feminino. Isso foi feito na tentativa de combinar uma análise, que parte da compreensão das mudanças no corpo como mudanças na sociedade e vice-versa, com uma posição crítica diante da cultura ocidental marcada pela hipertrofia, pelo consumo e pela posição dicotômica entre homem e mulher1212. Esteban ML. Etnografía, itinerarios corporales y cambio social: apuntes teóricos y metodológicos. In: Imaz E, organizadora. La materialidad de la identidade. Donostia-San Sebastián: Hariadna Editorial; 2008. p.135-58. .

Percurso metodológico

A pesquisa realizada é qualitativa exploratória e adota uma perspectiva interpretativa fenomenológica, em que são estudados os significados dos fenômenos, fatos, manifestações, vivências, ideias e sentimentos, na crença de que estes podem responder aos objetivos levantados1313. Gaskell G, Bauer MW. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Editora Vozes; 2012. . Participaram do estudo dez mulheres trans, que recebiam atendimento no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais (Ambulatório TT), localizado no anexo do Hospital Clementino Fraga (inaugurado em julho de 2013 pelo governo do estado).

O ambulatório possui ginecologista, endocrinologista, psiquiatra, fonoaudióloga, nutricionista, assistente social e psicólogo. É voltado apenas para o atendimento de travestis e transexuais que buscam realizar o processo transexualizador, compreendido como um conjunto de estratégias de atenção à saúde voltadas para o processo de alterações dos caracteres sexuais de pessoas transexuais e/ou travestis1111. Lionço T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis. 2009; 19(1):43-63. .

O corpus analítico é composto por um questionário socioeconômico e entrevistas semiestruturadas, que parte de perguntas previamente definidas a partir do objetivo da pesquisa, mas que possibilita a realização de novas perguntas conforme a demanda do campo1414. Gil JMS. Inovação e investigação educativa: aproximação de uma relação incerta. In: Molina Neto V, Triviños ANS, organizadores. Pesquisa qualitativa na educação física - alternativas metodológicas. Porto Alegre: Editora Sulina; 2010. p. 29-43. . Foram incluídas no estudo apenas pessoas que recebiam atendimento no referido ambulatório e se identificavam como mulheres trans.

Atendendo às demandas da Resolução no 466/13 do Conselho Nacional de Saúde, o trabalho foi submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Após a autorização do CEP, tiveram início as entrevistas e questionários, aplicados nas dependências do ambulatório, de forma individual em uma sala reservada.

O contexto das entrevistas nos remete ao risco da elaboração prévia de narrativas citado por Esteban1212. Esteban ML. Etnografía, itinerarios corporales y cambio social: apuntes teóricos y metodológicos. In: Imaz E, organizadora. La materialidad de la identidade. Donostia-San Sebastián: Hariadna Editorial; 2008. p.135-58. , que acontece quando as interlocutoras já possuem algum conhecimento da crítica social, o que é bastante comum entre o público transgênero que frequenta centros de apoio. Esse risco foi minimizado na retomada de pontos relevantes nas entrevistas, bem como por meio das questões sobre a trajetória individual, na tentativa de fugir de elaborações institucionalizadas. Ainda assim, admite-se que essa é uma fragilidade metodológica.

Para a análise das falas obtidas, utilizamos a proposta de Bicudo11. Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa e pesquisa qualitativa segundo a abordagem fenomenológica. São Paulo: Cortez; 2011. , que busca evidenciar os sentidos, efetuar sínteses de unidades de significado e investigar as falas por meio de unidades de análise. Sua proposta recomenda quatro passos. O primeiro é a leitura atenta das falas obtidas, realizando conexões entre as falas e o fenômeno estudado. O segundo é evidenciar os sentidos a partir das necessidades da questão estudada. O terceiro é definir as unidades de significado, unindo sentidos colocados em evidência e, por fim, o último passo é estabelecer as redes de significados. A análise dos questionários forneceu os perfis das entrevistadas e um panorama geral da sua condição socioeconômica.

Resultados e discussões

Na tentativa de traçar um panorama mais amplo das interlocutoras deste estudo, facilitando assim a compreensão das falas analisadas, o Quadro 1 sintetiza as informações obtidas na aplicação do questionário socioeconômico.

Após a análise do material obtido nas entrevistas, foi estabelecida a rede de significados expressa no Quadro 2 . É possível observar as atividades citadas pelas mulheres trans entrevistadas (corrida, yoga , musculação, caminhada, dança e treinamento funcional). As motivações expostas possuem relação com o segmento fitness porque visam condicionamento físico (segundo os objetivos de prática), ou envolvem saúde e aceitação social (entendido neste estudo como produto das modificações corporais alcançadas, pois treinar por si só não garantirá aceitação).

Quadro 1
Quadro geral das entrevistadas

Quadro 2
Categorias elaboradas a partir das entrevistas

Como pode ser observado na unidade “objetivos”, a maioria dos relatos volta-se para a acentuação de algum elemento do corpo de forma específica, que pode ser associado a padrões de “corpo feminino” construídos socialmente com base em ideias naturalizadas. Portanto, trata-se não apenas da fabricação do corpo feminino com base na cultura, mas também da possibilidade de ingressar em um sistema biopolítico que descarta corpos situados nas “liminaridades” – no entremeio de classificações binárias – ou fora dos padrões de normalidade1515. Foucault M. Vigiar e punir. Petrópolis: Leya; 2014. . Isso acontece porque o gênero não está separado das demais questões sociais e culturais; seus desdobramentos têm implicação direta em questões globais de caráter estrutural e econômico1616. Connel R. Gênero em termos reais. Moschkovich M, tradutor. São Paulo: Inversos; 2016. .

Apesar de toda discussão empreendida na literatura, esse sistema segue reforçando características/signos distintivos entre feminino e masculino, como no caso dos músculos, das partes do corpo a hipertrofiar ou mesmo das roupas. Ainda que uma roupa, um corte de cabelo, uma característica física ou uma técnica corporal1717. Mauss M. As técnicas corporais. In: Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP; 1974. v. 2. possa ser compartilhada por homens e mulheres, em muitos casos permanecem sendo “de homem” ou “de mulher”. Por exemplo, quando um homem veste rosa, ainda sendo aceito por seus pares como homem, em muitos contextos brasileiros ele ainda pode ser visto como um homem vestindo uma “cor de mulher”. Nesse sentido, percebe-se que: "O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos gestos, dos olhares, ou seja, de uma estilística definida como apropriada. São estes sinais exteriores, postos em ação, que estabilizam e dão visibilidade ao corpo77. Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. " (p. 90).

No caso das mulheres trans, a busca por essa “estilística apropriada” é motivada pela vontade de ser aceita socialmente como mulher e/ou de ser reconhecida pelos familiares como tal. Isso as motiva a procurar formas de “fabricação” do corpo feminino1010. Elias VA. O corpo além do corpo: os reflexos da (im)possibilidade. Epistem Somat. 2007; 4(1):119-36. . Tal procura visa não apenas o alcance da condição de mulher trans, mas de mulher trans com o máximo possível de características consideradas por elas como femininas.

Considerando tais informações, entende-se que as mulheres trans colaboradoras deste estudo podem, assim como qualquer outro segmento social, lançar mão dos benefícios da atividade física não apenas para a manutenção das condições de saúde, mas também por questões ligadas ao empoderamento, ao próprio desejo, à sua aceitação social, ao reconhecimento da sua condição de mulher, etc.

Na tentativa de elucidar tais afirmações, as narrativas das entrevistadas são evocadas para exemplificar como o desejo de praticar alguma atividade física está relacionado não de forma declarada com a reprodução de padrões, mas com condições de pertencimento alinhadas a padrões cisnormativos de corpo, que podem inclusive ter implicações na saúde. Quando questionadas sobre as atividades físicas que realizam, poucas colaboradoras declararam realizar alguma atividade física – como E3 e E4. Entretanto, muitas têm o desejo de realizá-la, como E2, que diz: “O primeiro passo vai ser entrar na academia e ficar com o corpo de Gisele e um silicone de 400 ml, quase meio quilo”. Entre as que praticam exercício, a fragmentação do corpo em partes expõe um corpo a ser manipulado, moldado, fabricado segundo o desejo dessas mulheres.

Eu não gosto de ter barriga, aí eu corro na praia, faço caminhada na praia, corro na areia. (E3)

Logo no começo eu já comecei a malhar, eu nunca malhei a parte de cima, gostei sempre de malhar a parte de baixo, perna/bunda, essas coisas assim! (E4)

Quando questionadas sobre os motivos que as fazem querer realizar alguma das atividades físicas por elas citadas, surge o discurso recorrente:

A barriga. Definir a barriga e aumentar o bumbum. (E1)

Eu faço musculação para deixar as coisas dura. (E2)

Ter muitas curvas, muitas curvas, que é o principal, principalmente a da cintura, a cintura é o ponto G, né? (E3)

Eu quero fazer mais pra perna e barriga, perder a barriga porque tô gorda demais, né? (E5)

Eu quero mais bunda e mais quadril. (E6)

Eu gostaria de ter mais peito, eu gostaria de ter mais bunda, eu gostaria de ter mais coxa, eu gostaria de tudo mais. (E8)

A narrativa das entrevistadas representa o desejo por um modelo de corpo que para elas representa o feminino, um corpo com pernas grossas, quadril largo e cintura fina. Esse padrão corrobora com o estudo de Goetz et al1818. Goetz ER, Camargo BV, Bertoldo RB, Justo AM. Representação social do corpo na mídia impressa. Psicol Soc. 2008; 20(2):226-36. , que investigaram as representações sociais do corpo veiculadas pela mídia impressa em revistas de circulação nacional e identificaram que as mulheres cis dão ênfase ao trabalhar o corpo em partes como barriga, coxa, braço, cintura, costas e pernas.

Essa discussão nos leva ao conceito de passabilidade, que consiste na ideia de que uma pessoa trans pode adquirir características corporais e expressar gestos que não a identificam/classificam como tal, permitindo assim que ela “se passe” por uma pessoa conhecida como “cisgênero”1919. Pontes JC, Silva CG. Cisnormatividade e passabilidade: deslocamentos e diferenças nas narrativas de pessoas trans. Periodicus. 2017; 1(8):396-417. , 2020. Almeida G. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Estud Fem. 2012; 20(2):513-23. (termo cuja aplicabilidade vem sendo discutido na literatura), reiterando o caráter performativo do gênero. Embora seja viável analisar as narrativas apresentadas sob a chave da passabilidade, essa categoria não foi priorizada por não ter sido peça fundamental para a discussão acerca das ferramentas utilizadas pelas mulheres para fabricar um corpo (trans)feminino, uma vez que situa-se muito mais no terreno das motivações (e do desejo) do que da ação individual.

Ser reconhecida(o) socialmente como pessoa de gênero consonante com seu sexo evita muitas formas de violência (física, psicológica e social) em contextos marcados pelo preconceito e pela transfobia, o que é por si só um dado preocupante, pois determina para homens e mulheres transgêneros condições de existência.

[...] os efeitos que as modificações corporais garantem são, para além do reconhecimento, a aceitação e a proteção. Construir um corpo de homem que não porte ou expresse signos conhecidos como femininos evita uma série de violências em diversos contextos, em especial, os públicos99. Sousa D, Iriart J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(10):1-10. . (p. 5)

Surgem nesse contexto questões como: que corpos femininos garantem aceitação, tem valor e/ou passabilidade? A partir desse questionamento, pensamos tanto na classificação dos corpos, a partir de noções de feminino construídas socialmente, quanto na relação natureza-cultura, cuja dicotomia já pode ser questionada desde a ideia de fabricação do corpo apresentada no início deste artigo.

Passabilidade significa, entre outras interpretações possíveis, incorporar signos e técnicas atribuídas a um ou outro gênero com o intuito de obter acolhimento e legitimidade por meio do corpo, o que por sua vez, evita violência e preconceito1919. Pontes JC, Silva CG. Cisnormatividade e passabilidade: deslocamentos e diferenças nas narrativas de pessoas trans. Periodicus. 2017; 1(8):396-417. . Não que isso seja entendido aqui ou reforçado como estratégia utilitarista de maior ou menor valor, mas o contato com as interlocutoras mostrou que buscar a minimização das diferenças – que para além do gênero representa a diferença entre vidas humanas – é tentar transpor a condição de “vida precária” com as ferramentas que essas mulheres possuem2121. Butler J. Vida precária. Contemporanea (São Carlos). 2011; 1:13-33. .

Estudos como o de Teixeira e Caminha2222. Teixeira FLS, Caminha IO. A supervitalidade como forma de poder: um olhar a partir das academias de ginástica. Movimento. 2010; 16(3):201-18. , embora fora do universo transexual, discutiram a relação entre corpo, biopoder e exercício físico. Não é novidade a afirmação de que o corpo dotado de características físicas consideradas saudáveis e ou esteticamente fortes (definição, rigidez, robustez, potência, etc.) é visto como um corpo dotado de biopoder. Sabe-se ainda que a fabricação desse corpo poderoso também se configura como forma de inclusão nos grupos sociais caracterizados pelo pertencimento ao modelo considerado hegemônico. Em contrapartida, a punição (exclusão e segregação) também está intimamente relacionada à não posse de elementos característicos das normas biopolíticas vigentes1515. Foucault M. Vigiar e punir. Petrópolis: Leya; 2014. .

Sobre a questão das estratégias biopolíticas na fabricação do corpo, hoje na nossa sociedade “não há empoderamento de gênero que não implique essa hipertrofia do corpo, essa hiper-objetivação”1212. Esteban ML. Etnografía, itinerarios corporales y cambio social: apuntes teóricos y metodológicos. In: Imaz E, organizadora. La materialidad de la identidade. Donostia-San Sebastián: Hariadna Editorial; 2008. p.135-58. (p. 249-50). Sendo o corpo um elemento importante na produção do gênero, seja qual for a forma, na constituição do sujeito as características de gênero encontram-se reproduzidas e são reprodutoras de estruturas socialmente herdadas, de modo que muitas já foram naturalizadas inclusive por alguns dos transgêneros.

Assim como as mulheres cis, as mulheres trans já têm representantes na mídia que ganharam visibilidade nacional. Em uma rápida procura pela internet podemos encontrar em diferentes sites reportagens com mulheres trans que estão na mídia relatando como definiram seus corpos femininos por meio de atividades físicasjjVer a matéria de Anny Ribeiro para o site Extra: “Transexual Thalita Zampirolli conta como esculpiu o corpo que conquistou Romário”. Disponível em: www.extra.globo.com . Acesso em: 10 Jan. 2017. que, nesses casos, são utilizadas como meios de se conquistar atributos físicos idealizados com base em estereótipos construídos culturalmente2323. Serrano JL, Caminha IO, Gomes IS. Transexualidade e educação física: uma revisão sistemática em periódicos das ciências da saúde. Movimento. 2017; 23(3):1119-32. , buscando, entre outras coisas, “não ser diferente”, como contou E6:

A questão da coxa e do glúteo vai fazer bem tanto para mim mesma quanto socialmente. Porque eu entendi que ou você é homem ou você é mulher e se enquadre no contexto social. Eu não quero ser olhada como aberração, como diferente, eu não quero ser assim. (E6)

Podemos pensar a partir da fala de E6 que o processo de fabricação do corpo feminino da mulher cis difere da mulher trans não em nível, mas em perspectiva, no que diz respeito às etapas na busca pela modificação. Embora ambas possam buscar aceitação no seu contexto específico, a mulher cis, ainda que não modifique, transforme e reivindique um status de mulher, será mais facilmente aceita como mulher, mesmo que seu argumento seja de cunho biologicista. Já “a transexual precisa ser não só a mulher ideal, mas também ter o corpo ideal, condição necessária para manter-se em um lugar também ideal na cultura em que se insere”1010. Elias VA. O corpo além do corpo: os reflexos da (im)possibilidade. Epistem Somat. 2007; 4(1):119-36. (p. 128). Desse modo, e seguindo as falas das colaboradoras, as atividades físicas funcionam como uma técnica produtora de sentido, transformando e inserindo essas mulheres em alguns grupos que antes as segregavam.

Sob o prisma da etnometodologiakkCorrente sociológica desenvolvida primeiramente nos Estados Unidos, a partir da década de 1960 por Harold Garfinkel (aluno de Parsons), que vem ganhando espaço no Brasil nos últimos anos em áreas como a Educação Física e Educação Infantil. , a tentativa de adequação para pertencimento a determinados grupos é conhecida como noção de membro, que Coulon2424. Coulon A. Etnometodologia. Alves EF, tradutor. Petrópolis: Vozes; 1995. nos explica como a adoção de determinadas formas de agir por alguém, que, “tendo incorporado os etnométodos de um grupo social considerado, exibe ‘naturalmente’ a competência social que o agrega a esse grupo e lhe permite fazer-se reconhecer e aceitar” (p. 48). Isso pode ser feito como estratégia de aceitação e adequação por sujeitos desviantes.

Interpretando as falas das colaboradoras com ajuda da corrente de estudos em etnometodologia2525. Silva CAF, Devide FP, Ferraz MR, Petereit I, Peçanha LMB. A contribuição da etnometodologia para os estudos sociológicos na educação física brasileira. Movimento. 2015; 21(1):233-48. , a noção de membro pode ser exemplificada pelo caso de Agnes (mulher trans, 19 anos). Esse caso foi descrito por Garfinkel2626. Garfinkel H. El tránsito y la gestion del logro de estatus sexual en una persona intersexuada. In: Garfinkel H, organizador. Studios en etnometodología. Barcelona: Anthropos; 2006. p. 135-209. e tornou-se um dos relatos mais polêmicos sobre os conflitos entre transexualidade feminina nos anos 1960, produção de gênero e determinações sociais.

Entre outras informações sobre o caso, consta que um dos recursos que Agnes utilizava para ser “um membro” era tomar hormônios e mentir sobre seu corpo e seu sexo. Ela – que tinha um orgulho particular dos seios – conseguia isso agregando símbolos femininos ao corpo e valendo-se da limitação da classificação binária feita pelas pessoas com as quais tinha contato na época. Ou seja, embora ela apresentasse traços masculinos, seu contexto era restrito à classificação binária em masculino ou feminino, e tudo em Agnes – exceto sua genitália masculina – apontava para uma mulher cis.

Nas últimas décadas, outras classificações de gênero passaram a ser globalmente discutidas, como aqui é feito. Mesmo perpassadas por implicações políticas e econômicas, essas novas classificações favorecem a resistência de mulheres transgênero como Agnes. Isso implica dizer que os processos de construção do gênero são dinâmicos, históricos e contextualizados. Nestes, corpos e cultura encontram-se igualmente em trânsito, assim como os transgêneros, abrindo espaço para diversidade1616. Connel R. Gênero em termos reais. Moschkovich M, tradutor. São Paulo: Inversos; 2016. . Desse modo, os relatos que aqui são expostos traduzem um momento específico, como foi dito anteriormente, de valorização do corpo, da atividade física e da busca por características corporais que contemplem um padrão específico de feminino, mas também são, por fim, relatos de construções possíveis.

Ainda sobre a etnometodologia, dentro das suas limitações, Garfinkel2626. Garfinkel H. El tránsito y la gestion del logro de estatus sexual en una persona intersexuada. In: Garfinkel H, organizador. Studios en etnometodología. Barcelona: Anthropos; 2006. p. 135-209. concluiu que a necessidade de Agnes de ser membro representava questões sociais maiores, como a estabilidade de valores sociais relativos ao gênero e à sexualidade; a importâncias das impressões na sociedade; a busca por atender às expectativas das pessoas sobre a identidade de gênero; e a racionalização nas práticas sociais.

Embora seja complexa a discussão sobre a racionalidade verificada por Garfinkel2626. Garfinkel H. El tránsito y la gestion del logro de estatus sexual en una persona intersexuada. In: Garfinkel H, organizador. Studios en etnometodología. Barcelona: Anthropos; 2006. p. 135-209. , a descrição da transição de Agnes representa o caso de uma transexual que fabrica, desde sua adolescência, um corpo que ela acredita ser adequado ao seu gênero e que lhe confere pertencimento. Do mesmo modo, mulheres trans podem rechaçar características ou práticas que possam ser “associadas ao masculino”, como foi observado em alguns relatos das colaboradoras deste estudo:

A partir do momento que eu me assumi, querendo ter o corpo feminino, se eu for fazer musculação agora e pegar os pesos vai ficar aquela coisa, como aquelas mulheres musculosas, e eu acho feio aquilo. (E5)

Para mim, uma perna feminina é uma perna feminina, não uma perna torneada que já tem uns traços masculinos, eu gosto do mais natural possível. (E7)

Como foi dito, algumas colaboradoras relataram não realizar atividades físicas por não gostarem dos resultados, associando-os a corpos masculinos. Nesses relatos, a hipertrofia é associada ao homem por representar força e virilidade. As narrativas expressaram que, caso uma mulher desenvolva sua musculatura mais do que o limite aceito – na visão das colaboradoras, ressalta-se –, ela pode ser desqualificada enquanto mulher2727. Rego FCVS. Hipertrofia muscular como tecnologia de gênero na produção de masculinidades entre homens transexuais [Internet]. In: Anais do 38o Encontro Anual da ANPOCS; 2015; Caxambu, Brasil. Caxambu: ANPOCS; 2015 [citado 30 Jan 2017]. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_details&gid=9357&Itemid=461
http://www.anpocs.org/portal/index.php?o...
. O fato de as entrevistadas terem nascido como corpos “masculinos” contribuiu para que esse cuidado fosse potencializado no contexto das práticas corporais, devido ao medo partilhado de desenvolverem “traços masculinos” (hipertrofia de braços ou ombros e definição das pernas).

Para discutir a relativização da noção de corpo feminino masculinizado, é importante apresentar um dos itinerários corporaisllItinerários corporais (tradução livre do original itinerarios corporales) são relatos biográficos espaço-temporais de terceiros e da própria autora que trazem o corpo para o centro da análise da ação social. Trata-se de uma orientação teórico-metodológica que dialoga em alguns momentos com o “trabalho corporal” wacquantiano. de Esteban2828. Esteban ML. Antropología del cuerpo. Género, itinerarios corporales, identidad y cambio. Barcelona: Ediciones Bellaterra; 2004. , que trata da construção das identidades de gênero e das possibilidades de resistência. Essa autora traz o caso de Ana (mulher cis, 24 anos e halterofilista), que percebe a fabricaçãommTermo usado pelos autores deste estudo, que substitui o termo cuerpo logrado , de Mari Luz Esteban. consciente do seu corpo – enfatiza a autora – como uma conquista diária, passível de ser perdida ao menor sinal de descuido. Este caso trata “o exercício físico como confirmação da existência”2828. Esteban ML. Antropología del cuerpo. Género, itinerarios corporales, identidad y cambio. Barcelona: Ediciones Bellaterra; 2004. (p. 155) e é interessante pela relação de Ana com o corpo. Ela aponta em vários momentos sua admiração/desejo pela definição muscular (que atribui aos homens) e reconhece que não tem um corpo típico feminino, mas reafirma cotidianamente o desejo pelo seu corpo, uma ideia própria de feminino. Apesar disso, Ana relata que é vítima de olhares e comentários pela sua anatomia desviante.

Uma das conclusões desse “itinerário corporal” é que as pessoas muitas vezes se colocam em posição de conflito entre o que desejam e o que as representações de masculino e feminino esperam delas. Esteban2828. Esteban ML. Antropología del cuerpo. Género, itinerarios corporales, identidad y cambio. Barcelona: Ediciones Bellaterra; 2004. chega a traduzir o sentimento de Ana como de um “bicho raro” (p. 159), pois, apesar de ela usar adereços tipicamente femininos, suas referências corporais remetem a homens, colocando a dicotomia entre gêneros em questão e alvo da sua crítica. No caso de Ana, sua condição de mulher cis heterossexual e sua performatividade de gênero2929. Butler J. Actos performativos e constituição de género. Um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. In: Macedo AG, Rayner F, organizadores. Gênero, cultura visual e performance: antologia crítica. Minho: Humus; 2011. p. 69-89. lhe permitem ser melhor recebida dentro de alguns grupos pelo que “ela faz e não pelo que ela é”. Tais questões nos oferecem uma melhor compreensão dos dilemas que fazem com que as mulheres trans busquem determinados padrões para que sejam socialmente aceitas.

Alguns estudos envolvendo gênero discutem como o acolhimento da diferença é problemático em sociedades que valorizam expressões de homogeneidade, seja pelo viés da crítica à reprodução de padrões corporais fixos ou pelo viés da reflexão sobre formas patriarcais de balizar discursos. Embora a proposta de acolhimento de outras feminilidades3030. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007. possíveis seja válida, inclusive no trânsito do sujeito em si, muito há que se caminhar na direção da desconstrução de padrões, sobretudo em sociedades em que a questão de gênero aparece relacionada à política ou condição de classe1212. Esteban ML. Etnografía, itinerarios corporales y cambio social: apuntes teóricos y metodológicos. In: Imaz E, organizadora. La materialidad de la identidade. Donostia-San Sebastián: Hariadna Editorial; 2008. p.135-58. , 3131. Carvalho M. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cad Pagu. 2018; 52:e185211. .

Sobre as possibilidades de fabricação do corpo, ao investigar os locais em que as mulheres trans realizam ou realizarão atividades físicas, surgiram a academia, a praia e a residência nas narrativas. Esta última apareceu nas entrevistas como alternativa principal à falta de condições financeiras para pagar a mensalidade cobrada nas academias, fato que se relaciona diretamente com a condição de classe, com a rejeição das famílias e com a dificuldade em inserir-se no mercado de trabalho enfrentada por esse grupo.

Os hormônios são um pouquinho caros, entendeu? Aí eu tive que optar pelos hormônios e ficar sem malhar. Ou eu optava por um ou por outro, mas a minha vontade era fazer os dois porque ajuda bastante pela saúde e pelo corpo. (E4)

Outro motivo que afastou as entrevistadas das academias de ginástica é o preconceito. O preconceito e a transfobia são uma realidade no cotidiano dessas mulheres trans, como apontou E1 sobre o porquê de desejar, mas não poder frequentar uma academia:

Porque apontam, olham! E tem máquinas que a gente não se adequa, não se sente bem. Tem academias só de mulheres que não nos aceitam, só de mulheres, mas não aceitam trans e travestis. Para academia normal é muito complicado, tem que ser um horário bem vago porque eles olham, eles apontam (principalmente os homens) e é chato, a gente não se sente bem malhando, né!? (E1) [e se não existisse esse preconceito?] Ah! Com certeza. Todos os dias eu estaria malhando. Eu queria fazer aeróbica, localizada e circuito. (E1)

O preconceito relatado pela E1 é endossado pela E8, quando esta narra:

Eu morei em um bairro que tinha academia só para mulheres e eu fui lá me inscrever. A mulher disse que não! Que não tinha como eu fazer exercício lá porque não ia botar um homem junto com uma mulher. Aí eu disse: “eu não sou homem, sou uma transexual”. Uma trans como eu tem que está bem readequada para a academia receber, senão, minha filha, ela não recebe não! (E8)

A transfobia, realidade cotidiana, é entendida neste estudo como preconceito direcionado a pessoas transgênero. Associada à falta de conhecimento e respeito com a identidade de gênero vivenciada pelas entrevistadas, faz com que elas tenham o direito básico de ir e vir cerceado. Vigiadas e punidas por não corresponderem a expectativas de identidade de gênero, essas mulheres são ao mesmo tempo desvio e resistência.

O corpo trans subverte a ordem binária dos sexos desconstruindo representações que normalizam corpo, gênero e sexualidade, colocando em questão o que os saberes médicos admitem como normal. Em virtude disso, esse corpo não é considerado adequado para espaços que possuem regras rígidas cis-heteronormativas de pertencimento3232. Grespan CL, Goellner SV. Fallon fox: um corpo queer no octógono. Movimento. 2014; 20(4):1265-82. .

Encontra-se nesse ponto um paradoxo-chave para o desenvolvimento deste estudo e com o qual este visa colaborar: as negociações entre o que os saberes médicos consideram normal e o desejo que permeia o processo de fabricação do próprio corpo. Trata-se, por fim, de tensões entre um modelo de “normalidade”, estabelecido com base em índices e crenças binárias, e a construção – ou fabricação – de um corpo feminino que já “nasceu” estigmatizado e luta por condições de existência.

Assim como qualquer outro segmento social, as mulheres trans possuem interesses e motivações construídos ao longo da sua trajetória de vida e, portanto, influenciados pelo contexto social, histórico e cultural ao qual pertencem. Pensando nisso, precisamos ser críticos com a cultura1212. Esteban ML. Etnografía, itinerarios corporales y cambio social: apuntes teóricos y metodológicos. In: Imaz E, organizadora. La materialidad de la identidade. Donostia-San Sebastián: Hariadna Editorial; 2008. p.135-58. , 3030. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007. , o que implica discutir a hipervisibilidade na hipertrofia corporal e seus riscos sob outro prisma e nos estudos sobre gênero identificar elementos passíveis de reflexão e mudança, que possam vir a agir como uma alavanca para o empoderamento.

As experiências das mulheres trans com as atividades físicas podem ser positivas e benéficas. Elas são uma forma de construção da identidade corporal e de significar e ressignificar o processo de autoidentificação, à medida que promovem o conhecimento dessas mulheres sobre o próprio corpo. Todavia, em contextos de preconceito iminente, essa experiência também pode ser marcada por preconceitos e traumas que endossam a marginalização dessas identidades “desviantes”.

Conclusão

O cenário atual é marcado por um aumento na oferta e demanda de atividade física. Nesse cenário, o corpo vem perdendo sua rigidez e tornando-se flexível e mutável, adaptando-se e construindo-se junto com o contexto histórico. Mais do que um conjunto de componentes anatomo-biológicos, o corpo adorna a si próprio, as intervenções que nele atuam, a imagem que dele é produzida, as tecnologias que nele se aderem, os sentidos que nele se incorporam e os sinais que nele se exibem.

Ao transformar o corpo, a pessoa reelabora elementos discursivos na vida social, aproxima sua forma física daquilo que ela identifica como próximo da sua identidade e elabora argumentos para o pertencimento em determinados grupos. Seguindo esse pensamento, as mulheres trans entrevistadas buscaram na atividade física a possibilidade de potencializar características femininas em seus corpos, tendo como referência padrões de corpo (pernas, glúteos, abdome, trejeitos, gestos, técnicas, etc.). Por outro lado, há também um grupo de mulheres trans que associa a hipertrofia à masculinidade e evita realizar qualquer atividade que possa contribuir para a masculinização dos seus corpos.

Assim, a relação das mulheres trans com seus corpos e a “fabricação” do corpo feminino não são simplesmente (re)produzir um discurso de corpo-mulher, mas agir sobre as relações/identidades de gênero. Isso lhes garante aceitação social, transitar entre os espaços sofrendo o mínimo possível de violência (física, verbal ou psicológica) e o direito de viver dignamente.

Na esteira da hipótese erguida sobre as mudanças corporais alcançadas por meio do exercício físico, é importante frisar que a perseguição de padrões de gênero cisnormativos representa uma limitação na compreensão da transgeneridade99. Sousa D, Iriart J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(10):1-10. , 2020. Almeida G. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Estud Fem. 2012; 20(2):513-23. . Seguir padrões é, no processo de construção da identidade de gênero, não uma escolha, mas uma entre tantas possibilidades. Assim, a intenção de invocar a expressão “fabricando o corpo feminino” (título deste trabalho) está muito mais em expressar o desejo das mulheres entrevistadas pelo que elas creem representar um corpo feminino, segundo o próprio contexto social e histórico, do que em reproduzir dicotomias ou padrões.

Um ponto a ser enfatizado é a necessidade de dissipar qualquer forma de preconceito em espaços públicos ou privados. O presente estudo se deteve a investigar a relação das mulheres trans e atividade física no processo de fabricação do corpo feminino; todavia, os relatos aconteceram fora do ambiente das práticas. Sugerimos a realização de outros estudos dentro desses espaços, com a participação de profissionais e alunos, para que possam ser observados outros fatores que somem ao resultado da pesquisa, fornecendo assim ferramentas para que a sociedade consiga lidar com as novas demandas sociais.

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  • f
    O presente estudo contou com o financiamento da Capes na forma de concessão de bolsa de pós-graduação (mestrado e doutorado).
  • g
    Utilizamos os termos “transexualidade” e “mulheres trans” por serem os mais adotados pelas interlocutoras, embora o termo “transgeneridade” tenha despontado nos últimos anos como uma opção viável entre as discussões de gênero. Acreditamos que essa autodenominação tem ligação com o contexto e representa a forma como as participantes se identificam.
  • h
    Binders (traduzido por nós como algo ligado ao corpo, feito de tecido elástico) são uma espécie de cinta de compressão. Podem ser utilizados pelos homens transgênero (trans, transexuais, FTM, etc.) como alternativa às faixas que escondem os seios.
  • i
    Termo adotado recentemente para designar a mastectomia bilateral.
  • j
    Ver a matéria de Anny Ribeiro para o site Extra: “Transexual Thalita Zampirolli conta como esculpiu o corpo que conquistou Romário”. Disponível em: www.extra.globo.com . Acesso em: 10 Jan. 2017.
  • k
    Corrente sociológica desenvolvida primeiramente nos Estados Unidos, a partir da década de 1960 por Harold Garfinkel (aluno de Parsons), que vem ganhando espaço no Brasil nos últimos anos em áreas como a Educação Física e Educação Infantil.
  • l
    Itinerários corporais (tradução livre do original itinerarios corporales) são relatos biográficos espaço-temporais de terceiros e da própria autora que trazem o corpo para o centro da análise da ação social. Trata-se de uma orientação teórico-metodológica que dialoga em alguns momentos com o “trabalho corporal” wacquantiano.
  • m
    Termo usado pelos autores deste estudo, que substitui o termo cuerpo logrado , de Mari Luz Esteban.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2018
  • Aceito
    16 Maio 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br