Adolescência e saúde mental: a perspectiva de profissionais da Atenção Básica em Saúde **Parte da dissertação de mestrado da primeira autora, financiado pela Capes.

Adolescence and mental health from the perspective of Primary Healthcare professionals

Adolescencia y salud mental: la perspectiva de profesionales de la Atención Básica en Salud

Jaqueline Ferreira da Silva Thelma Simões Matsukura Sabrina Helena Ferigato Maria Fernanda Barboza Cid Sobre os autores

Resumos

Considerando os apontamentos da literatura sobre a vulnerabilidade de adolescentes ao sofrimento psíquico e a escassez de achados que focalizem o cuidado a essa população, esta pesquisa visou identificar como tem ocorrido a atenção psicossocial de adolescentes em sofrimento psíquico segundo profissionais da Atenção Básica em Saúde (ABS). Trata-se de estudo qualitativo que teve a participação de 12 profissionais entrevistados por meio de um roteiro semiestruturado. Os dados, tratados pela Análise Temática de Conteúdo, apontaram fragilidades no acesso do adolescente aos serviços de ABS e, nos casos de sofrimento psíquico, a prática de encaminhamentos a serviços especializados. Observa-se o reconhecimento das profissionais sobre a pontualidade das ações em rede setorial/intersetorial. O estudo avança ao reforçar a necessidade da implementação do cuidado à saúde mental de adolescentes, que considerem a potência da ABS, sob a voz dos profissionais envolvidos.

Atenção básica à saúde; Adolescente; Saúde mental


Considering the findings of studies regarding the vulnerability of adolescents to psychic suffering and the lack of research focusing on this group, this qualitative study assesses the provision of psychosocial care to adolescents undergoing psychic suffering from the perspective of Primary Healthcare professionals. Semi-structured interviews were conducted with 12 professionals. Thematic analysis of the interview transcripts showed a number of weaknesses in adolescents’ access to primary care services and referrals of cases of psychic suffering to specialist services. The findings show that the health professionals recognize the importance of timely sectoral/intersectoral actions. The study advances by reinforcing the need to implement adolescent mental health care, which considers the potency of ABS, under the voice of the professionals involved.

Primary healthcare; Adolescent; Mental health


Considerando los apuntes de la literatura sobre la vulnerabilidad de adolescentes al sufrimiento psíquico y la escasez de hallazgos que focalicen el cuidado de esta población, el objetivo de este estudio fue identificar cómo se ha realizado la atención psicosocial de adolescentes en sufrimiento psíquico, según profesionales de la Atención Básica de la Salud (ABS). Se trata de un estudio cualitativo que contó con la participación de 12 profesionales entrevistados por medio de un guion semiestructurado. Los datos, tratados por el Análisis Temático de Contenido, señalaron fragilidades en el acceso del adolescente a los servicios de ABS y, en los casos de sufrimiento psíquico, la práctica de referencias a servicios especializados. Se observa el reconocimiento de las profesionales sobre la puntualidad de las acciones en red sectorial/intersectorial. El estudio avanza al reforzar la necesidad de la implementación del cuidado a la salud mental de adolescentes que consideren la potencia de la ABS, en la voz de los profesionales envueltos.

Atención básica de la salud; Adolescente; Salud mental


Quando eu tiver setenta anosentão vai acabar esta adolescênciavou largar a vida loucae terminar minha livre docênciavou fazer o que meu pai quercomeçar a vida com passo perfeitovou fazer o que minha mãe desejaaproveitar as oportunidadesde virar um pilar da sociedadee terminar meu curso de direitoentão ver tudo em sã consciênciaquando acabar esta adolescência.Paulo Leminski

Introdução

Estudos têm apontado a adolescência como um período da vida mais vulnerável para a experiência do sofrimento psíquico em todas as suas possibilidades de expressão, tais como: depressão, transtornos alimentares e uso abusivo de álcool/drogas11. Benetti SPC, Ramires VRR, Schneider AC, Rodrigues APG, Tremarin D. Adolescência e saúde mental: revisão de artigos brasileiros publicados em periódicos nacionais. Cad Saude Publica. 2007; 23(6):1273-82. , 22. Moreira JO, Rosário AB, Santos AP. Juventude e adolescência: considerações preliminares. Psico. 2011; 42(4):457-64. . Essa vulnerabilidade tem sido relacionada diretamente ao vigente aumento nos índices de suicídio de adolescentes, bem como à sua crescente medicalização22. Moreira JO, Rosário AB, Santos AP. Juventude e adolescência: considerações preliminares. Psico. 2011; 42(4):457-64. , 33. Organização Mundial da Saúde. Organização Panamericana de Saúde. Prevención de la conducta suicida. Washington, DC: OMS, OPAS; 2016. . Além disso, esses estudos sinalizam a tendência de permanência desses meninos e meninas em processos de tratamento em saúde e de sofrimento ao longo da vida33. Organização Mundial da Saúde. Organização Panamericana de Saúde. Prevención de la conducta suicida. Washington, DC: OMS, OPAS; 2016.

4. Fernandes ADSA, Matsukura TS. Adolescentes inseridos em um CAPSi: alcances e limites deste dispositivo na saúde mental infantojuvenil. Temas Psicol. 2016; 24(3):977-90.

5. Silva JF, Cid MFB, Matsukura TS. Psychosocial teenage attention: the perception of CAPSij professionals. Cad Bras Ter Ocup. 2018; 26(2):329-43.
- 66. Calheiros MM, Patrício JN, Bernardes S. O desenho de um centro de saúde para jovens: um exemplo de investigação participativa. Anal Soc. 2014; 49(1):128-47. .

A despeito desses dados, o reconhecimento do sofrimento psíquico vivenciado por crianças e adolescentes como uma questão de saúde coletiva ainda é recente, assim como também são recentes e escassos os estudos na área33. Organização Mundial da Saúde. Organização Panamericana de Saúde. Prevención de la conducta suicida. Washington, DC: OMS, OPAS; 2016. , 44. Fernandes ADSA, Matsukura TS. Adolescentes inseridos em um CAPSi: alcances e limites deste dispositivo na saúde mental infantojuvenil. Temas Psicol. 2016; 24(3):977-90. , 77. Galhardi CC, Matsukura TS. O cotidiano de adolescentes em um centro de atenção psicossocial de álcool e outras drogas: realidades e desafios. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):1-12. . Nessa direção, a literatura sinaliza a demanda por mais pesquisas nesse campo, no sentido de ampliar a compreensão sobre as especificidades e singularidades nele presentes, visando ao planejamento e à implementação de práticas de cuidado eficazes, de modo a favorecer processos de inclusão e participação social, especialmente no que se refere aos adolescentes44. Fernandes ADSA, Matsukura TS. Adolescentes inseridos em um CAPSi: alcances e limites deste dispositivo na saúde mental infantojuvenil. Temas Psicol. 2016; 24(3):977-90. , 77. Galhardi CC, Matsukura TS. O cotidiano de adolescentes em um centro de atenção psicossocial de álcool e outras drogas: realidades e desafios. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):1-12. .

No âmbito das políticas públicas, a política atual de atenção psicossocial brasileira que focaliza a saúde mental infantojuvenil, pautada no paradigma psicossocial, aponta que a saúde passa pela produção da saúde mental, de forma que, se uma criança ou adolescente apresentar sofrimento psíquico, isso deverá ser considerado de forma ampliada, na medida em que muitas intercorrências físicas podem emergir em situações de sofrimento psíquico causado por contingências variadas, tais como na relação consigo, com a família, escola ou com outras instituições sociais88. Brasil. Ministério da Saúde. Atenção psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: tecendo redes para garantir direitos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. . Considerar essas relações é afirmar que o processo de adoecimento psíquico vivenciado por adolescentes não expressa apenas questões individuais de cada usuário, mas também questões historicamente construídas e coletivamente compartilhadas99. Couto MCV, Delgado PPG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicol Clin. 2015; 27(1):17-40. .

A partir de tais premissas, a busca pela promoção, prevenção e atenção em saúde mental passa a ter como direção a consideração sobre as possibilidades e singularidades da vida cotidiana e comunitária, o estímulo à cidadania e à participação dos usuários, bem como a articulação em rede para a construção de respostas intersetoriais eficazes99. Couto MCV, Delgado PPG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicol Clin. 2015; 27(1):17-40. .

De acordo com a atual política do Ministério da Saúde, as ações destinadas às pessoas com sofrimento psíquico devem ser operadas por meio da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Instituída pela portaria no 3088, em 2011, e republicada no Diário Oficial da União (DOU) no 96, de 21/05/2013, a Raps visa à criação, ampliação e articulação dos pontos de atenção psicossocial, que constituem sete componentes, a saber: 1. Atenção Básica em Saúde (ABS); 2. Atenção Psicossocial Estratégica; 3. Atenção de Urgência e Emergência; 4. Atenção residencial de caráter transitório, 5. Atenção Hospitalar; 6. Estratégias de Desinstitucionalização; e 7. Estratégias de Reabilitação Psicossocial1010. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013. .

Entre os componentes da Raps, destaca-se a ABS, cujo papel é atuar como porta de entrada aberta e preferencial da rede de atenção e dispor de um conjunto de ações de saúde, sejam individuais ou coletivas, voltadas para promoção, proteção e manutenção em saúde; prevenção de agravos; diagnóstico; redução de danos; tratamento; e reabilitação, a fim de desenvolver uma atenção integral nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades1111. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016. .

A literatura tem apontado que, nesta última década, a temática da saúde mental na atenção básica tem sido cada vez mais problematizada não só no Brasil, visto que, mundialmente, tem-se configurado um aumento significativo da incidência e prevalência dos transtornos mentais. Nessa perspectiva, a atenção básica vem se constituindo como uma referência eficaz para o cuidado dessa população por sua característica assistencial de grande complexidade relacional, mais próxima do território e das possíveis redes de suporte das pessoas. Isso facilita a realização de ações de promoção e prevenção; e garante maior resolutividade dos problemas de saúde da população, bem como contribui na construção de novos modos e práticas de atenção1212. Souza AC. Estratégias de inclusão da saúde mental na atenção básica: um movimento das marés. São Paulo: Hucitec; 2015. , 1313. Devis JVL, Sánchez AF, Serrano-Blanco A, Pinto-Meza A, Vidald DJP, Menéndez MM, et al. Cooperación entre atención primaria y servicios de salud mental. Aten Prim. 2009; 41(3):131-40. .

Entretanto, essa articulação entre os âmbitos da saúde mental e da atenção básica em saúde tem enfrentado obstáculos e encontra-se permanentemente em construção. Em nível internacional, estudos têm apontado que o desafio nos processos de cooperação entre tais âmbitos da atenção em saúde está configurado, principalmente, na detecção de problemas de saúde mental nos serviços de atenção primária, por conta da pouca aproximação dos profissionais desse contexto da assistência com a temática e falta de formação profissional, incluindo a população infantojuvenil1313. Devis JVL, Sánchez AF, Serrano-Blanco A, Pinto-Meza A, Vidald DJP, Menéndez MM, et al. Cooperación entre atención primaria y servicios de salud mental. Aten Prim. 2009; 41(3):131-40.

14. Jackson JL, Passamonti M, Kroenke K. Outcome and impact of mental disorders in primary care at 5 years. Psychosom Med. 2007; 69(3):270-6.
- 1515. Sakolsky D, Birmaher B. Pediatric anxiety disorders: management in primary care. Curr Opin Pediatr. 2008; 20(5):538-43. .

Para Pôrto1616. Pôrto KF. Elementos para uma política de avaliação das ações de saúde mental na atenção primária: contribuições para uma pesquisa qualitativa avaliativa [dissertação]. Campinas (SP): Unicamp; 2012. , um dos principais desafios ligados à inserção da saúde mental na atenção básica diz respeito ao estigma em relação aos usuários e sua superação, seja na gestão, na clínica ou na formação em saúde, visto que os efeitos desse processo de estigmatização podem dificultar o acesso aos cuidados de saúde mental e sua eficácia clínica.

No campo da saúde mental infantojuvenil, somam-se os desafios ligados à estigmatização relacionada à adolescência e sua marginalização histórica, tanto no que tange à produção de práticas em saúde coletiva quanto no que se refere à produção de conhecimento em saúde voltados para essa população44. Fernandes ADSA, Matsukura TS. Adolescentes inseridos em um CAPSi: alcances e limites deste dispositivo na saúde mental infantojuvenil. Temas Psicol. 2016; 24(3):977-90. , 1717. Taño BL. A constituição de ações intersetoriais de atenção as crianças e adolescentes em sofrimento psíquico [tese]. São Carlos (SP): UFSCar; 2017. .Configura-se, portanto, um outro desafio: o de garantir o direito do adolescente que experimenta o sofrimento psíquico no cuidado em saúde, de modo geral, e em saúde mental especificamente.

Diante do exposto, o presente estudo focaliza a atenção psicossocial de adolescentes no contexto da ABS. A escolha desse campo justifica-se, especialmente, pelo papel estratégico que as unidades da atenção primária ocupam para a garantia do acesso e a ordenação longitudinal do cuidado, bem como para a criação de redes sociais de suporte com as escolas e outros setores, movimentos fundamentais para o cuidado efetivo em saúde mental dos adolescentes.

Assim, o objetivo do presente estudo foi identificar como tem se dado o cuidado à saúde mental de adolescentes, sob a ótica de profissionais vinculados a serviços de ABS.

Método

Trata-se de um estudoe de abordagem qualitativa e de caráter exploratório em que foram selecionados como participantes 12 profissionais de nível técnico/superior atuantes em quatro serviços da ABS (duas UBSs e duas USFs) de um município que contém cerca de duzentos mil habitantes, localizado no interior paulista.

Os critérios de inclusão dos profissionais para participação neste estudo foram: (a) estar vinculado há, pelo menos, seis meses no serviço; e (b) desenvolver ações de cuidado com adolescentes em sofrimento psíquico e com suas famílias.

Ferramentas de produção de dados

Para a produção dos dados, foi elaborado e adequado, de acordo com avaliação de especialistas, um roteiro de entrevista semiestruturado1818. Manzini EJ. Considerações sobre a elaboração do roteiro para entrevista semi-estruturada. In: Marquezine MC, Almeida MA, Omote S. Colóquios sobre pesquisa em educação especial. Londrina: Eduel; 2003. p. 11-25. . Ele foi composto por 15 questões que visavam dialogar com as participantes sobre a adesão e cuidado à população adolescente em sofrimento psíquico e sua família no serviço, bem como sobre as ações em rede setorial e intersetorial desenvolvidas.

Procedimentos

O projeto foi aprovado pela Secretaria Municipal de Saúde do município em questão e pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (processo no 1.406.881) e, somente após essas aprovações, os procedimentos de coleta de dados foram efetuados.

Para a localização dos participantes, foi solicitada à coordenação do Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSij) do município a indicação de duas UBSs e duas USFs que mais realizavam encaminhamentos e/ou ações de articulação do cuidado de adolescentes no CAPSij. Feito isso, as direções desses serviços foram procuradas individualmente pela pesquisadora, a fim de explicar os objetivos do estudo e solicitar a identificação de profissionais envolvidos em ações de cuidado a adolescentes em sofrimento psíquico. Foram indicados 15 profissionais, no entanto, três deles recusaram-se a participar, totalizando a efetiva participação de 12 profissionais – todas mulheres –, sendo seis enfermeiras, duas dentistas, duas médicas, uma nutricionista e uma assistente social.

As entrevistas foram realizadas individualmente com cada profissional, nos espaços das UBSs e USFs. Todas foram gravadas em áudio e, após sua transcrição, as participantes foram solicitadas a realizar a validação de suas falas. Em seguida, o material foi analisado por meio da Análise Temática, uma das técnicas preconizadas no método da Análise de Conteúdo de Bardin1919. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009. .

Resultados e discussões

As categorias temáticas e as discussões dos resultados das entrevistas realizadas com as profissionais das UBSs e USFs participantes do estudo foram sistematizadas a partir dos seguintes núcleos de sentido:

  • O acesso do adolescente aos serviços de ABS

  • Atenção a adolescentes com demandas relacionadas à saúde mental na Atenção Básica em Saúde

As citações dos discursos das participantes são identificadas com as letras A, B, C, e assim sucessivamente, até chegar na letra L.

O acesso do adolescente aos serviços de ABS

A respeito do acesso da população adolescente em geral às unidades de ABS (UBS e USF), os discursos indicam que a busca é espontânea ou ocorre por meio de encaminhamentos da rede de saúde, assistência social ou da escola, tendo como demanda a oferta de ações de saúde pontuais comuns aos demais usuários dos serviços.

Entram por busca espontânea para passar com o clínico, vêm por encaminhamento para passar com as especialidades. (Participante H)

[...] encaminhamentos de Cras, CAPSij [...] acho que a busca é muito pequena e o encaminhamento também. (Participante L)

As necessidades apresentadas por esses adolescentes e seus familiares referem-se, majoritariamente, aos cuidados ginecológicos, situações de gravidez na adolescência, e ao uso problemático de álcool e outras drogas. A seguir, apresentam-se algumas falas que ilustram tais resultados:

Só procuram em situação difícil, geralmente o teste de gravidez, exame Papa Nicolau, problemas familiares. (Participante K)

[...] pré-natal, exames laboratoriais, vacinação. (Participante J)

Eu percebo como problema, mas não como procura a questão da drogadição [...] (Participante L)

Verifica-se, a partir das falas, que o adolescente busca os serviços de UBS e USF quando vivencia problemas específicos que requerem somente um cuidado clínico, parecendo, assim, haver baixa adesão do adolescente na ABS no que se refere às ações de promoção e prevenção. Tal resultado vai ao encontro do que Pôrto1616. Pôrto KF. Elementos para uma política de avaliação das ações de saúde mental na atenção primária: contribuições para uma pesquisa qualitativa avaliativa [dissertação]. Campinas (SP): Unicamp; 2012. considera como “a cultura do especialismo”, que envolve a busca de cuidados específicos para uma determinada demanda sem levar em consideração as complexidades e subjetividades presentes no processo de adoecimento/adolescimento, em especial no tocante às questões de saúde mental.

Ainda segundo Pôrto1616. Pôrto KF. Elementos para uma política de avaliação das ações de saúde mental na atenção primária: contribuições para uma pesquisa qualitativa avaliativa [dissertação]. Campinas (SP): Unicamp; 2012. , essa lógica de oferta de cuidados imediatos em saúde pode vir a fragilizar o processo terapêutico, além de cada vez mais favorecer a ampliação das demandas e a redução da abordagem qualificada diante das necessidades de saúde.

A ausência de falas sobre a procura de adolescentes com demandas específicas de saúde mental e, ao mesmo tempo, o aumento significativo da prevalência de adolescentes em sofrimento psíquico conduzem-nos a inferir que as razões pelas quais os adolescentes acessam as UBSs e USFs dizem mais sobre as ofertas que esses serviços de saúde colocam à disposição dessa população do que sobre suas reais necessidades em saúde.

De todo modo, a identificação dos espaços da UBS nos quais é possível acessar o universo da adolescência (consultas ginecológicas, por exemplo) dão-nos pistas de espaços com os quais profissionais da saúde mental podem aproximar-se, seja via ações de promoção e prevenção ou por meio de apoio matricial.

Estudos da área têm apontado a presença do adolescente como usuário participativo dos serviços da ABS (em ações não direcionadas à saúde mental), geralmente buscando respostas a demandas relacionadas à atenção à gravidez e ao pré-natal, além da realização de exames laboratoriais; tratamento de doenças; esclarecimento de dúvidas sobre os serviços; prevenção de DSTs e o uso de métodos anticoncepcionais; imunização; saúde bucal; uso de drogas; busca por medicamentos; e outros2020. Nunes BP. Utilização dos serviços de saúde por adolescentes: estudo transversal de base populacional, Pelotas-RS, 2012. Epidemiol Serv Saude. 2015; 24(3):411-20.

21. Ferrari RAP, Thomson Z, Melchior R. Adolescência: ações e percepção dos médicos e enfermeiros do programa saúde da família. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):387-400.

22. Amorim DU, Queiroz MVO, Brasil EGM, Maya EG. Percepções e práticas de agentes comunitários de saúde sobre seu trabalho com adolescentes. Saude Debate. 2014; 38(101):254-66.
- 2323. Marques JF, Queiroz MVO. Cuidado ao adolescente na atenção básica: necessidades dos usuários e sua relação com o serviço. Rev Gauch Enferm. 2012; 33(3):65-72. .

Outro aspecto apontado nas falas dos profissionais do presente trabalho diz respeito aos profissionais envolvidos e às estratégias desenvolvidas nas UBSs e USFs na atenção ao adolescente. Entre os relatos, de forma geral, são apontados que tais serviços têm como conduta o acompanhamento de adolescentes com o pediatra até os 12 anos completos. Posteriormente, essa população tende a ser encaminhada aos cuidados clínicos de uma médica especialista (hebiatra), que atende somente em um número reduzido de unidades, o que ocorre tanto no contexto do presente estudo quanto na realidade do Brasil em geral.

Os profissionais relatam ações desenvolvidas para crianças ou adultos, das quais também podem participar adolescentes; mas não foram identificadas nas UBSs e USFs envolvidas neste estudo ações longitudinais específicas para os adolescentes. Foram apontadas ações pontuais nas situações em que eles procuram os serviços, como para orientações gerais em relação à saúde, cuidado odontológico, ginecológico e obstétrico, bem como práticas relacionadas à prevenção de gravidez e DSTs. Foram identificadas, também, ações pontuais externas, em especial nas escolas. A seguir, quatro falas ilustram esses achados:

É como para a população em geral, não tem nada específico para adolescente aqui. (Participante G)

Nós temos o clínico geral, a pediatra que atende até os 12 anos, o dentista, a ginecologista e a hebiatra que atende em outra UBS [...] trabalhamos com a prevenção [...] temos também uma cestinha no balcão com os preservativos. (Participante F)

Estruturada nenhuma ação no meu entendimento. A gente vai à escola, eu atendo consulta e mães que agendam, eu tento falar de uma coisa geral e não só orgânica, eu escrevo um monte de coisa no receituário [...] eu acho que a gente faz uma fala que não pega no adolescente. (Participante L)

Dúvidas em relação à sexualidade, busca por atendimento ginecológico, odontológico, adolescentes gestantes ou com suspeita de DST vêm para buscar contraceptivo, eles buscam por orientação. (Participante D)

Observa-se que os dados da presente pesquisa corroboram o que tem sido sinalizado por outros estudos, ou seja, que as ações específicas para os adolescentes no contexto da ABS ainda são insuficientes e, portanto, indicam a necessidade de aprimoramento da rede de atenção primária no concernente à atenção ao adolescente, já que são serviços de base comunitária em que as ações de promoção e prevenção, integradas à participação das famílias, contribuem estrategicamente para a melhora da qualidade de vida dessa população2020. Nunes BP. Utilização dos serviços de saúde por adolescentes: estudo transversal de base populacional, Pelotas-RS, 2012. Epidemiol Serv Saude. 2015; 24(3):411-20.

21. Ferrari RAP, Thomson Z, Melchior R. Adolescência: ações e percepção dos médicos e enfermeiros do programa saúde da família. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):387-400.

22. Amorim DU, Queiroz MVO, Brasil EGM, Maya EG. Percepções e práticas de agentes comunitários de saúde sobre seu trabalho com adolescentes. Saude Debate. 2014; 38(101):254-66.
- 2323. Marques JF, Queiroz MVO. Cuidado ao adolescente na atenção básica: necessidades dos usuários e sua relação com o serviço. Rev Gauch Enferm. 2012; 33(3):65-72. .

Nessa direção, na tentativa de qualificação do cuidado ao adolescente, os profissionais participantes do presente estudo discorrem sobre os desafios que implicam o trabalho com esse setor populacional no âmbito da ABS.

Pelos discursos, são citados como principais desafios a adesão do adolescente no serviço, bem como seu acompanhamento; a formação profissional específica para atender a essa faixa etária; a falta de profissionais; e a dificuldade de estabelecimento de estratégias específicas para a atenção a adolescentes, incluindo a articulação em rede.

O desafio maior é trazê-los e ir a eles quando nós não temos mais profissionais disponíveis, fazer grupo dentro da ação preventiva, fazer com que eles deem continuidade quando iniciam o acompanhamento. (Participante K)

Acho que trabalhar a questão da gravidez e os conflitos nas relações familiares. (Participante I)

É trabalhar com a intersetorialidade, para saber sobre o adolescente que você encaminhou tem de ligar para saber como está o acompanhamento. (Participante E)

Verifica-se, por meio dos relatos, a percepção dos profissionais sobre a lacuna existente na atenção voltada para a população de adolescentes, de modo geral, no âmbito da Atenção Básica e, especificamente, para a atenção aos adolescentes em sofrimento psíquico.

É perceptível que parte dos desafios citados pelos participantes diz respeito a dificuldades presentes no processo de trabalho na atenção à população geral (como escassez de recursos e necessidade de formação permanente), e não em relação aos adolescentes de modo específico. Cabe mencionar, contudo, que foram apontados também aspectos relacionados especificamente aos adolescentes (como dificuldade de acesso a eles e de sustentação dos atendimentos ou de adesão ao tratamento).

Para Teixeira e colaboradores2424. Teixeira MR, Couto MCV, Delgado PGG. Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras. Cienc Saude Colet. 2017; 22(6):1933-42. , na ABS é mais recorrente a percepção de possíveis problemas na infância do que na adolescência, de modo que as ações de cuidado a eles são insuficientes ou produzem uma prática recorrente de encaminhamentos para centros especializados. Observa-se, ainda, que, a partir de demandas específicas que chegam ao serviço, as atividades de promoção e prevenção são menos desempenhadas do que as curativas, resultado que vai ao encontro de estudos desenvolvidos em outros cenários2020. Nunes BP. Utilização dos serviços de saúde por adolescentes: estudo transversal de base populacional, Pelotas-RS, 2012. Epidemiol Serv Saude. 2015; 24(3):411-20.

21. Ferrari RAP, Thomson Z, Melchior R. Adolescência: ações e percepção dos médicos e enfermeiros do programa saúde da família. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):387-400.

22. Amorim DU, Queiroz MVO, Brasil EGM, Maya EG. Percepções e práticas de agentes comunitários de saúde sobre seu trabalho com adolescentes. Saude Debate. 2014; 38(101):254-66.
- 2323. Marques JF, Queiroz MVO. Cuidado ao adolescente na atenção básica: necessidades dos usuários e sua relação com o serviço. Rev Gauch Enferm. 2012; 33(3):65-72. .

Atenção a adolescentes com demandas relacionadas à saúde mental na ABS

No que se refere aos adolescentes que vivenciam o sofrimento psíquico, notou-se, tanto nos resultados quanto nas discussões, que essa população está predominantemente excluída concernente às suas especificidades no conjunto geral das políticas de atenção à saúde. Tal fato indica, portanto, a necessidade de uma maior compreensão de como essa população tem acessado seu direito à saúde no âmbito da atenção básica e nas ações em conjunto com as escolas.

Os relatos indicam que o adolescente e as famílias que vivenciam situações pertinentes à área de Saúde Mental raramente buscam auxílio nos serviços de UBS e USF, mas o fazem nos serviços especializados – CAPSij ou CAPS III.

No entanto, os participantes relatam que, por vezes, podem ocorrer exceções, isto é, tais serviços de UBS e USF podem ser procurados por adolescentes com sofrimento psíquico. Mediante tal demanda, pode a tentativa de escuta e acolhimento comparecer como meio de cuidado, assim como o acionamento de outros serviços da rede, como as unidades de urgência/emergência ou os CAPS:

Eu já me deparei aqui com uma pessoa em sofrimento psíquico solicitando de atendimento emergencial, então a gente teve de encaminhar para a UPA, depois mandar para o CAPS, entendeu? (Participante A)

Geralmente a gente encaminha para o CAPS III, em caso de surto, alguma coisa que necessite de urgência, já aconteceu de encaminhar para o CAPSij. (Participante H)

Os achados do presente estudo reforçam as considerações da literatura nacional e internacional da área, que têm apontado a prática recorrente de encaminhamentos voltados para o referenciamento dos casos quando se trata da demanda de saúde mental, não só para crianças e adolescentes. Tal fato pode ser causado pelo estigma do campo da saúde mental, mas também por conta da complexidade da questão, de forma que a falta de formação profissional tem sido empregada como justificativa principal para a legitimização de tal conduta1313. Devis JVL, Sánchez AF, Serrano-Blanco A, Pinto-Meza A, Vidald DJP, Menéndez MM, et al. Cooperación entre atención primaria y servicios de salud mental. Aten Prim. 2009; 41(3):131-40.

14. Jackson JL, Passamonti M, Kroenke K. Outcome and impact of mental disorders in primary care at 5 years. Psychosom Med. 2007; 69(3):270-6.
- 1515. Sakolsky D, Birmaher B. Pediatric anxiety disorders: management in primary care. Curr Opin Pediatr. 2008; 20(5):538-43. , 2424. Teixeira MR, Couto MCV, Delgado PGG. Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras. Cienc Saude Colet. 2017; 22(6):1933-42. .

No entanto, em alguns discursos de profissionais das USFs, observam-se algumas tentativas de acolhimento e cuidado diante da identificação do sofrimento psíquico de adolescentes e suas famílias, como ilustrado no relato de experiências vivenciadas por alguns profissionais participantes.

Tem um caso complicado de uma adolescente que estou querendo fazer um PTS com a família. A avó é hipertensa, porém, é jovem, tem entre 53 ou 54 anos, e é a responsável por cuidar de três netos adolescentes, pois o pai deles está preso e a mãe foi assassinada. Entre seus netos, tem uma adolescente, de 16 anos, que já é mãe de uma criança de 1 ano e meio que acaba sendo cuidada pela bisavó, que relata que a menina maltrata a criança nos dias em que pega para cuidar, e chega até a ficar pelas ruas com a bebê por cerca de 2 a 3 dias. Então essa avó não tem deixado mais a adolescente cuidar da criança e então veio nos procurar. Pedi para ela trazer a adolescente e, essa semana, a menina apareceu para a gente conversar. Me pareceu uma boa jovem, perguntei sobre seus parceiros e ela respondeu que se relaciona com quatro homens e que não fazia uso de anticoncepcional e dizia que para ela estava tudo bem, pois não ia engravidar de novo. Busquei orientar sobre as DSTs e o uso de anticoncepcional. Ofereci a ela tomar já a injeção por ter menstruado recentemente e correr o risco de engravidar e então ela ficou de pensar, pois não gostava de tomar remédio. A sensação que eu tive é que tudo que eu falei entrou por um ouvido e saiu pelo outro, a gente tenta, mas eu acho que eu preciso de mais estudo, técnica, não sei. (Participante L)

Eu tive uma oportunidade de receber uma adolescente junto com a mãe e depois eu fiz questão de ficar com ela sozinha porque percebi que tinha coisas que ela não gostaria de falar perto da mãe. Após estarmos a sós ela começou a contar sobre a separação dos pais, o fato de na escola estar se envolvendo sexualmente com jovens e também fazendo uso de drogas, coisas que a mãe não sabia e ela achava que não ia aprovar. Depois da nossa conversa eu propus de ajudá-la e ela aceitou. Acabei fazendo o intercâmbio entre as duas e em seguida fiz o devido encaminhamento para o CAPSij, eu só não sei se ela conseguiu dar continuidade no atendimento lá no CAPSij, que eu preciso ver com o ACS. (Participante K)

Esses relatos exemplificam a realidade da vida de alguns adolescentes e suas famílias acolhidas e acompanhadas em seu território a partir dos serviços de ABS e acessadas por profissionais. Estes, ao ampliarem a escuta, identificam situações de sofrimento psíquico causadas não necessariamente por um transtorno específico ou diagnóstico fechado, mas por situações que emergem a partir de um contexto social de não garantia de direitos sociais e que necessitam de escuta qualificada, conforme apontado nas políticas que regem a atenção à saúde mental88. Brasil. Ministério da Saúde. Atenção psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: tecendo redes para garantir direitos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. .

Tais relatos revelam, também, os obstáculos que os profissionais da ABS enfrentam para lidar sozinhos com uma demanda que exige variados saberes e contextos de atenção, ou seja, que pede articulação de diferentes profissionais, advindos de diferentes setores que possam se corresponsabilizar pelo cuidado. Por outro lado, demonstram a importância do fortalecimento das práticas de apoio matricial e a potência da ABS para o cuidado de casos como esses, na medida em que está localizada em um território, permitindo uma aproximação real e física da população residente em seu entorno, de modo a facilitar o acesso, o vínculo e os processos de acolhimento que são cotidianamente demandados.

Sobre as ações em rede desenvolvidas relacionadas à atenção psicossocial de adolescentes, foi possível observar a inexistência de um trabalho em rede setorial voltado para a efetivação da saúde mental de adolescentes e a precariedade das ações intersetoriais, tão necessárias para a eficácia de atenção à adolescência.

No geral, as ações consideradas em rede no campo pesquisado são voltadas para sanar dúvidas dos diferentes setores sobre informações de saúde ou de relatórios de atendimentos, o direcionamento de casos que buscam auxílios em programas sociais e os encaminhamentos referenciados para o CAPSij:

É tudo pontual, seja com a escola, Cras, Conselho Tutelar, CAPSij. (Participante L)

O único setor que a gente trabalha quando solicitado é com o Cras, e, às vezes, com a escola quando preciso divulgar o Programa Bolsa Família. (Participante F)

Aqui que eu pegue é mais com a escola, me mandam laudo e tem uma troca via laudo, via relatório. (Participante E)

Às vezes eles (escola) buscam por palestras e orientação, uma coisa que aconteceu é a vacina do HPV [...] solicitam distribuição de material com relação à informação de saúde. (Participante G)

Jurídico teve um caso ocorrido porque teve de levar relatos do atendimento. (Participante K)

Eu conto com psicóloga, TO, com o CAPSij, psiquiatra, tem a assistência social, acredito que no município a gente consegue lidar bastante com esse cuidado com adolescentes multidisciplinar [...] mas não saio daqui para ir diretamente ao serviço, eles encaminham e a gente atende o problema pontual aqui. (Participante B)

No que diz respeito às ações realizadas pelos serviços de ABS junto com o CAPSij, observa-se que também é comum a prática de ações pontuais, sendo que, de forma geral, ocorrem por iniciativa da equipe do CAPSij em promover discussões de casos e pactuar ações conjuntas no território, conforme é possível observar na seguinte fala:

Já teve casos direcionados pelo CAPSij para a gente de jovens com violência doméstica, até já iniciando com drogas. Nós recebemos a visita da equipe do CAPSij, eles trazem os casos e a gente faz a devolutiva de como está aqui, os ACS fazem o acompanhamento. (Participante K)

Os impasses na busca de construção da atenção psicossocial, em especial pela articulação entre os âmbitos da Saúde Mental e da ABS, têm sido apontados na literatura. Porém, ainda que com os limites observados, é consenso que o trabalho em rede é fundamental para possibilitar um cuidado integral em saúde mental para crianças e adolescentes. A aproximação com a ABS por parte dos outros pontos da rede favorece a construção e a promoção de uma nova lógica de cuidados em saúde mental, pautada pelo compartilhamento e pela corresponsabilização dos casos1717. Taño BL. A constituição de ações intersetoriais de atenção as crianças e adolescentes em sofrimento psíquico [tese]. São Carlos (SP): UFSCar; 2017. , 2525. Delfini PSD, Reis AOA. Articulação entre serviços públicos de saúde nos cuidados voltados à saúde mental infantojuvenil. Cad Saude Publica. 2014; 28(2):357-66. .

Na lógica de promoção de saúde mental na ABS, o trabalho de Teixeira e colaboradores2626. Teixeira MR, Couto MCV, Delgado PGG. Repercussões do processo de reestruturação dos serviços de saúde mental para crianças e adolescentes na cidade de Campinas, São Paulo (2006-2011). Estud Psicol. 2015; 32(4):695-703. reforça a necessidade de consolidação da Saúde Mental para crianças e adolescentes por meio da articulação entre Saúde Mental e ABS, em especial no que se refere à adesão e à continuidade do acompanhamento. Isso se justifica porque a vinculação com a Atenção Primária propicia uma maior eficácia clínica, com um caráter menos estigmatizante e com maior possibilidade de acolhimento precoce dos casos, independentemente do tipo de gravidade1313. Devis JVL, Sánchez AF, Serrano-Blanco A, Pinto-Meza A, Vidald DJP, Menéndez MM, et al. Cooperación entre atención primaria y servicios de salud mental. Aten Prim. 2009; 41(3):131-40. , 2424. Teixeira MR, Couto MCV, Delgado PGG. Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras. Cienc Saude Colet. 2017; 22(6):1933-42. .

Considerações finais

A partir dos resultados apresentados, foi possível levantar algumas considerações sobre a atenção primária e a atenção psicossocial de adolescentes e a respeito de como a saúde se relaciona com corpos que adoecem/adolescem.

A busca dos adolescentes, de forma geral, pelos serviços de UBS e USF é voltada para os atendimentos pontuais e de ordem clínica, exceto no caso das adolescentes gestantes. No que se refere ao adolescente em sofrimento psíquico, a entrada parece majoritariamente feita diretamente nos serviços especializados – CAPS ou ambulatórios.

Quanto ao cuidado desenvolvido pelos dispositivos da ABS para os adolescentes, observou-se que não há práticas em específico para essa população. Ocorre apenas a oferta de cuidado ginecológico e obstétrico, bem como ações relacionadas à prevenção de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.

Na questão do cuidado, também surgiram apontamentos relativos aos desafios de adesão do adolescente, de forma geral, ao serviço e ao seu acompanhamento. Os participantes destacaram como fatores limitantes para o cuidado a necessidade de estratégias mais efetivas para trabalhar com essa clientela, a falta de capacitação da equipe e a ausência de recursos.

Neste estudo, revelou-se que, de modo geral, as falas dos profissionais apontam para uma possível responsabilização do adolescente por essa falta de adesão, em decorrência das características próprias desse ciclo de vida. Tais considerações vieram desacompanhadas de questionamentos que poderiam ser construtivos, por exemplo, se o que é oferecido pelos serviços dialoga com o universo adolescente, seja por meio da linguagem ou mediante recursos que poderiam ser mais potentes para o encontro.

Compreende-se que maior adesão pode passar pela incorporação, por parte da saúde, de outras linguagens para o cuidado em diálogo direto com os processos próprios da adolescência. Como medidas, pode-se elencar a criação de grupos que envolvam a produção, realizada pelos adolescentes, de textos e vídeos sobre temas abordados, a realização de rodas de conversas sobre assuntos diversos, ações voltadas à educação sexual na adolescência, entre outros recursos.

No que concerne às ações em rede realizadas pelas UBSs e USFs, bem como as demais ações em rede, foi relatado que ocorrem de forma pontual e residual. Por fim, sobre as questões da inclusão da saúde mental na atenção básica, foi verificado o predomínio de práticas de encaminhamentos referenciados para os serviços especializados – CAPSij ou CAPS III. Porém, observaram-se, também, algumas tentativas de acolhida e cuidado diante da identificação do sofrimento psíquico de adolescentes e suas famílias.

Ainda que se considerem os limites do estudo, configurado pelo recorte local da pesquisa, acredita-se que os objetivos propostos foram atingidos e que os resultados e discussões aqui apresentados são pertinentes a outros cenários brasileiros. Compreende-se que, ao se tratar das práticas de cuidado ao adolescente em sofrimento psíquico, o estudo contribui para reforçar a necessidade de reflexões, planejamentos e efetivação de estratégias de cuidado a essa população pautados em um modo de cuidado já direcionado pela política de atenção psicossocial, considerando as complexidades do sofrimento psíquico.

Aponta-se, ainda, a necessidade de continuação de estudos junto com a população adolescente e sugerem-se novas investigações sobre a compreensão das percepções dos próprios adolescentes sobre suas trajetórias na ABS e os desafios e potencialidades vivenciados nesse processo de cuidado. Isso decorre do fato de que, na adolescência, são fundamentais as práticas dos profissionais de saúde e de educação de escutar e de colocarem-se como “pontes” ao que a população adolescente tem para ensinar rumo à inovação do cuidado em saúde.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela concessão de bolsa de estudos.

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  • *
    Parte da dissertação de mestrado da primeira autora, financiado pela Capes.
  • e
    Este estudo focaliza parte dos resultados do estudo de mestrado da primeira autora, intitulado “Atenção psicossocial de adolescentes: a percepção de profissionais”, desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar (PPGTO/UFSCar) e financiado pela Capes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2018
  • Aceito
    04 Fev 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br