O que pessoas que usam drogas buscam em serviços de saúde? Compreensões para além da abstinência

What do people who use drugs look for in healthcare services? Understanding this issue beyond abstinence

¿Qué es lo que las personas que usan drogas buscan en los servicios de salud? Comprensiones más allá de la abstinencia

Ana Regina Machado Celina Maria Modena Zélia Maria Profeta da Luz Sobre os autores

Resumos

Proposições de modificação da Atenção no Sistema Único de Saúde (SUS) às pessoas que usam drogas têm desconsiderado suas necessidades, demandas e expectativas. A partir de contribuições da Saúde Coletiva, buscou-se compreendê-las por meio de pesquisa qualitativa que envolveu entrevistas semiestruturadas, grupos focais e observação participante em Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (Caps-AD). Constatou-se que os usuários se dirigem aos serviços não apenas para interromper o consumo de drogas, mas também para reduzi-lo, para receber atenção em relação a comprometimentos orgânicos ou psíquicos, construir laços sociais, ter acesso a condições básicas de vida e conquistar autonomia. A pesquisa, ao ampliar as compreensões sobre as demandas, necessidades e expectativas das pessoas que usam drogas, apresentou contribuições para a análise e redefinição das práticas e do modelo de atenção adotados no SUS.

Necessidades e demandas de serviço de saúde; Centros de tratamento de abuso de substâncias; Usuários de drogas


Proposals to modify the care provided for drug users in the Brazilian National Health System (SUS) have not been considering their needs, demands and expectations. Based on contributions from Collective Health, our objective was to understand them by means of a qualitative research that involved semi-structured interviews, focus groups and participant observation at Alcohol and Drugs Psychosocial Care Centers (Caps AD). We found that users go to the services not only to interrupt drug use, but also to reduce it, to receive care for organic or psychological problems, to construct social bonds, to have access to basic life conditions, and to achieve autonomy. By amplifying the understanding about the demands, needs and expectations of people who use drugs, the research has contributed to the analysis and redefinition of the care practices and model adopted by SUS.

Healthcare service needs and demands; Substance abuse treatment centers; Drug users


Las propuestas de modificación de la atención en el Sistema Brasileño de Salud (SUS) para las personas que usan drogas han desconsiderado sus necesidades, demandas y expectativas. A partir de contribuciones de la Salud Colectiva, se buscó comprenderlas por medio de una investigación cualitativa que envolvió entrevistas semiestructuradas, grupos focales y observación participante en Centros de Atención Psicosocial – Alcohol y Drogas (Caps AD). Se constató que los usuarios se dirigen a los servicios no solo para interrumpir el consumo de drogas, sino también para reducirlo, para recibir atención para comprometimientos orgánicos o psíquicos, construir lazos sociales, tener acceso a condiciones básicas de vida y conquistar autonomía. La investigación, al ampliar las comprensiones sobre las demandas, necesidades y expectativas de las personas que usan drogas, presentó contribuciones para el análisis y redefinición de las prácticas y del modelo de atención adoptados en el SUS.

Necesidades y demandas de servicio de salud; Centros de tratamiento de abuso de substancias; Usuarios de drogas


Introdução

Desde o início dos anos 2000, vêm ocorrendo disputas em torno do modelo de atenção às pessoas usuárias de drogas a ser adotado no SUS11. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad Saude Publica. 2009; 25(11):2309-19.

2. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no contexto do centro de atenção psicossocial (CAPS AD) [tese]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2009.
- 33. Lima RCC, Tavares P. Desafios recentes às políticas sociais brasileiras sobre as drogas: enfrentamento ao crack e proibicionismo. Argumentum. 2012; 4(2):6-23. . Nessas disputas, destacam-se o modelo de atenção centrado na abstinência e o modelo de atenção orientado pela redução de danos. O primeiro, inspirado pela política proibicionista, compreende o uso de drogas como problema moral, crime ou doença e define a interrupção do uso de drogas como objetivo exclusivo de suas práticas22. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no contexto do centro de atenção psicossocial (CAPS AD) [tese]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2009. . Já o modelo de atenção orientado pela redução de danos compreende o uso de drogas como um fenômeno complexo com determinantes biológicos, socioculturais e psicossociais e define a redução das consequências adversas e do sofrimento psicossocial decorrentes do uso de drogas como objetivo de suas práticas22. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no contexto do centro de atenção psicossocial (CAPS AD) [tese]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2009. .

Embora o Ministério da Saúde (MS)44. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à Saúde, Coordenação Nacional DST/AIDS. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2003. tenha feito opção pelo modelo de atenção orientado pela redução de danos, conforme definido na política do MS para Atenção Integral a Usuários de Drogas, publicada no ano de 2003, a lógica de atenção centrada na abstinência de drogas permaneceu presente no âmbito das práticas de saúde e também da gestão das políticas. Tal lógica se fortaleceu a partir do ano de 2010, quando a atenção às pessoas usuárias de crack tornou-se o centro do debate das políticas sobre drogas. Desde então, os serviços do SUS destinados à atenção a usuários de drogas passaram a sofrer severas críticas por não adotarem a abstinência como meta ou mesmo por não proporcioná-la. A partir do ano de 2017, o modelo de atenção centrado na abstinência passou a compor as proposições do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad)55. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.588, de 21 de Dezembro de 2017. Altera as Portarias de Consolidação nº 3 e nº 6, de 28 de Setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017. , 66. Brasil. Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas. Resolução nº1/2017. Define as diretrizes para o realinhamento e fortalecimento da PNAD - Política Nacional sobre Drogas, aprovada pelo Decreto 4.345, de 26 de agosto de 2002. Brasília, DF: Conad; 2018. . Tal modelo adota o pressuposto de que as pessoas buscam os serviços exclusivamente para interromper o consumo de drogas e desconsidera a presença de outros fatores nas vidas das pessoas que usam drogas que podem levá-las a recorrer a uma atenção em saúde.

Poucos estudos foram realizados para compreender o que as pessoas que usam drogas demandam, necessitam ou esperam dos serviços de atenção. Em um deles, McKeganey et al77. McKeganey N, Morris Z, Neale J, Robertson M. What are drug users looking for when they contact drug services: abstinence or harm reduction? Drugs. 2004; 11(5):423-35. constataram, por meio de uma pesquisa que entrevistou mais de mil usuários em 33 serviços na Escócia, que 56,6% dos usuários buscavam abstinência e 39,2% buscavam mudanças nos padrões e formas de uso de drogas. No Brasil, a Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack 88. Bastos FI, Bertoni L, organizadores. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack. Rio de Janeiro: Icict, Fiocruz; 2014. identificou fatores considerados importantes por pessoas usuárias de crack em situação de rua na busca por serviços assistenciais: oferta de alimentação; banho e outros cuidados de higiene; ajuda para conseguir emprego; ajuda para conseguir escola/curso; e oferta de serviços básicos de saúde, de serviços sociais básicos (abrigamento e retirada de documentos) e de gratuidade de serviços. As duas pesquisas, realizadas em tempos e espaços diferentes, adotaram também pressupostos diferentes. A primeira partiu da compreensão de que as necessidades, demandas e expectativas de pessoas relacionam-se às mudanças nos padrões e nas formas de uso de drogas. A segunda pesquisa partiu da compreensão ampliada dos fatores que podem motivar a busca por serviços assistenciais.

O campo da Saúde Coletiva, ao reconhecer a presença de elementos estruturais, sociais e subjetivos na conformação dos processos saúde/doença/sofrimento, tem contribuído para ampliar a compreensão das necessidades, demandas e expectativas que as pessoas apresentam nos serviços de saúde. Mendes-Gonçalves99. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. In: Ayres JRC, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história - Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 298-374. compreende que as necessidades individuais de saúde são produções sócio-históricas, que não são fixas, nem podem ser definidas de forma apriorística. Nas sociedades capitalistas, elas se confundem com as necessidades sociais, que são definidas por grupos dominantes e que buscam apresentar-se como necessidades de todos os indivíduos. Entre as necessidades sociais, destacam-se “... as necessidades de consumo de serviços de assistência à doença”99. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. In: Ayres JRC, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história - Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 298-374. (p. 366). Ayres1010. Ayres JRCM. Prefácio. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 8a ed. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2009. p. 11-4. afirma a importância de os trabalhadores de saúde produzirem leituras diferentes daquelas produzidas pelo saber biomédico para compreender o que as pessoas buscam quando se dirigem aos serviços de saúde. Luz1111. Luz MT. Fragilidade Social e busca de cuidado na sociedade civil hoje. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2004. p.11-22. afirma que as pessoas recorrem aos serviços de saúde em busca da recomposição de valores de solidariedade, convivência e sociabilidade que, na sociedade capitalista, foram substituídos por valores como competitividade, produtividade e individualismo. Merhy e Feuerwerker1212. Merhy EE, Feuerwerker LC. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 59-72. reconhecem a importância da ampliação do olhar e da escuta dos trabalhadores para que a complexidade da vida e do sofrimento das pessoas possa ser considerada nas práticas de saúde. Lacerda e Valla1313. Lacerda A, Valla VV. As práticas terapêuticas de cuidado integral à saúde como proposta para aliviar o sofrimento. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2004. p. 93-104. afirmam a importância de dar voz às pessoas para que seus sofrimentos e adoecimentos possam ser compreendidos nos serviços de saúde.

Considerando essas contribuições do campo da Saúde Coletiva, buscamos compreender as demandas, necessidades e expectativas dirigidas aos serviços de saúde por pessoas que usam drogas, por meio da realização de uma pesquisa qualitativa em três Caps-AD, serviços de atenção abertos e territorializados do SUS que se destinam ao cuidado às pessoas em uso prejudicial ou dependentes de drogas.

Constatamos que a produção científica sobre a temática ainda é escassa e não permite compreender de maneira suficiente o que as pessoas que usam drogas buscam nos serviços de saúde. Tal produção tem grande relevância para a análise das práticas já realizadas nos serviços de saúde, bem como para a proposição de novas práticas ou modelos de atenção comprometidos com a produção de saúde das pessoas que usam drogas.

Metodologia

Foi realizada uma pesquisa qualitativa, a partir de uma perspectiva hermenêutica, que buscou compreender os sentidos construídos em processos intersubjetivos de comunicação1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14a ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2014. . Essa perspectiva reconhece que a experiência cultural é portadora de consensos que se convertem em estruturas, vivências e significados e deve ser interpretada a partir de análises que considerem o contexto, a cultura e a história1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14a ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2014. .

Nesta pesquisa, as necessidades, demandas e expectativas das pessoas que usam drogas foram consideradas a partir dos sentidos construídos nas interações entre pesquisadoras, pessoas usuárias de drogas, trabalhadores e gerentes de serviços de saúde. Buscamos, nas interpretações produzidas, associar as necessidades, demandas e expectativas identificadas a diferentes processos históricos, culturais, sociais e políticos.

O trabalho de campo foi realizado entre outubro de 2016 e setembro de 2017 nos três Caps-AD do município de Belo Horizonte (MG). Foram utilizadas diferentes técnicas de pesquisa para os diferentes sujeitos participantes: grupo focal para trabalhadores e para usuários; entrevista semiestruturada para gerentes; e observação participante. Foram realizados, no total, seis grupos focais, três entrevistas semiestruturadas e 120 horas de observação participante. A pesquisa envolveu um total de 64 sujeitos participantes (três gerentes, 31 trabalhadores e trinta usuários). No Caps-AD 1, o grupo focal de trabalhadores contou com nove participantes (três assistentes sociais, duas psicólogas, duas enfermeiras, um médico e um terapeuta ocupacional), assim como o grupo focal de usuários (seis homens e três mulheres). No Caps-AD 2, o grupo focal de trabalhadores contou com 13 participantes (três psicólogas, um psicólogo, duas enfermeiras, um enfermeiro, duas terapeutas ocupacionais, uma farmacêutica, uma médica, uma técnica de enfermagem e um técnico de enfermagem) e o grupo focal de usuários, com 12 (dez homens e duas mulheres). No Caps-AD 3, o grupo focal de trabalhadores contou com nove participantes (duas psicólogas, uma enfermeira, um enfermeiro, uma terapeuta ocupacional, duas técnicas de enfermagem, uma recepcionista e um redutor de danos), assim como o grupo focal de usuários (nove homens).

As entrevistas semiestruturadas e os grupos focais foram gravados e transcritos. As observações foram registradas em um diário de campo. O material da pesquisa foi interpretado a partir das etapas propostas por Minayo1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14a ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2014. e Gomes et al1515. Gomes R, Souza ER, Minayo MCS, Malaquias JV, Silva CFRS. Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p.185-221.: descrição, análise e interpretação dos dados. A descrição permitiu a constituição do conjunto de dados a ser trabalhado. A análise permitiu a organização e classificação dos dados em quatro categorias empíricas: tratamento, construção/reconstrução de laços sociais, melhoria das condições reais de existência e produção de autonomia versus demanda de outros. A interpretação dos dados envolveu, como propõe Minayo1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14a ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2014. , a produção de uma “interpretação das interpretações” dos diferentes sujeitos participantes, relacionando-as com elementos estruturais, sociais e subjetivos, como propõe o campo da Saúde Coletiva em estudos sobre as necessidades e demandas de atenção em saúde.

O material utilizado neste artigo faz parte da pesquisa intitulada “Atenção às pessoas dependentes ou em uso prejudicial de álcool e outras drogas: uma análise dos cuidados nos Caps-AD de Belo Horizonte/MG” (CAE nº 57956416.0.0000.5091), aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas, da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (MG), e realizada de acordo com as orientações da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466 de 2012.

Resultados e discussão

Os resultados demonstraram que os usuários dos Caps-AD apresentam diferentes necessidades, demandas e expectativas em relação à atenção em serviços de saúde, que podem ser associadas às suas experiências individuais de consumo de drogas e a processos sociais e estruturais que contribuem para a conformação de seus processos de sofrimento e de adoecimento.

O tratamento

As pessoas buscam os Caps-AD para tratar dos sofrimentos e adoecimentos associados à dificuldade de regular o consumo de drogas e para tratar de outros comprometimentos de saúde, orgânicos e psíquicos.

Usuários dos Caps-AD, nos grupos focais realizados e nas atividades presenciadas durante a observação participante, destacaram a importância dos sofrimentos decorrentes da dificuldade de regular o consumo de drogas na busca pela atenção em saúde:

Eu não tava aguentando mais. Se eu acordasse às três horas da manhã tinha que beber uma pinga. Eu acordava e bebia. (Usuária 5, Caps-AD1)

Eu tava quase morrendo por causa do crack , tava pesando 59 quilos, tava bem detonado, tava super escravizado, todo dia eu usava muita droga, 10, 15 pedras. (Usuário 4, Caps-AD2)

Na assembleia, uma usuária afirmou que o crack atingia sua alma, comandava seu cérebro, fazia com que se esquecesse do filho, da casa, da vida. Usou crack por 15 dias seguidos, procurou o serviço porque não suportava mais. Outro usuário falou de suas dificuldades com o crack: “... pra mim tá sendo uma luta mudar, eu já usei crack chorando porque não queria usar, mas não conseguia parar”. (Pesquisadora, diário de campo, maio de 2017)

Diante do sofrimento e da impossibilidade de realizar escolhas em relação ao uso de drogas, os usuários afirmaram buscar o Caps-AD para interrompê-lo.

Eu gostaria de sair daqui bem, sem recaída. (Usuário 2, Caps-AD2)

Eu quero sair daqui sem bebida, sem droga. (Usuário 2, Caps-AD1)

A demanda pela interrupção do consumo expressa o “ideal da abstinência” presente em legislações e políticas proibicionistas sobre drogas que têm sido historicamente afirmadas, inclusive com a participação do saber médico-psiquiátrico. No campo da atenção, esse ideal orienta o modelo de atenção centrado na abstinência e contribui para a compreensão de que o tratamento ou qualquer outra ação de saúde destinada às pessoas que usam drogas deve produzir a interrupção do uso de drogas22. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no contexto do centro de atenção psicossocial (CAPS AD) [tese]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2009. , 33. Lima RCC, Tavares P. Desafios recentes às políticas sociais brasileiras sobre as drogas: enfrentamento ao crack e proibicionismo. Argumentum. 2012; 4(2):6-23. . Souza1616. Souza TP. Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica de drogas. São Paulo: Hucitec; 2018. propõe analisar o ideal da abstinência a partir da biopolítica, ou seja, a partir de práticas de governo na vida dos homens, que são exercidas na dimensão da micropolítica (produção de subjetividade e constituição de regimes de sensibilidade e de modos de vida) e na dimensão da macropolítica (institucionalização de estruturas legais, administrativas e econômicas). Para o autor1616. Souza TP. Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica de drogas. São Paulo: Hucitec; 2018. , a abstinência, apesar de ser alcançada por poucos, permanece como um ideal com forte poder simbólico que contribui para individualizar o fracasso, para reforçar a fraqueza do usuário, para confirmar a gravidade da doença e para favorecer a adoção de intervenções de controle de corte populacional1616. Souza TP. Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica de drogas. São Paulo: Hucitec; 2018. . Esse circuito dificulta a produção e a aceitação de um autogoverno na gestão do consumo de drogas1717. Cecilio LCA. Apresentação. In: Souza TP. Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica de drogas. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 13-22. que não seja coincidente com a abstinência. Nos Caps-AD pesquisados, entretanto, algumas formas de gestão do consumo de drogas têm sido produzidas e valorizadas pelos usuários, conforme afirmado nos grupos focais:

O serviço tá me ajudando muito, tô conseguindo reduzir bastante o uso do cigarro e da bebida. (Usuário 8, Caps-AD3)

Eu tô pedindo para ficar aqui, pra ter força de vontade, porque não quero beber igual eu bebia. (Usuária 4, Caps-AD1)

Eu não espero ser curado 100%, mas eu queria sim sair e voltar minha vida de novo pro trabalho. (Usuário 5, Caps-AD3)

Essas possibilidades e expectativas – redução do consumo, invenção de outra forma de consumo e retomada da vida – foram construídas a partir da inclusão da redução de danos na concepção de atenção dos Caps-AD. De acordo com essa concepção, a abstinência não deve ser condição, nem meta exclusiva das ações de saúde44. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à Saúde, Coordenação Nacional DST/AIDS. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2003. . Nos grupos focais, os trabalhadores afirmaram:

A abstinência é um ideal tão longe que não tem nenhuma pega no real. A abstinência é uma inverdade, é uma proposta que não cabe para a maioria dos usuários. Eu tento desmistificar isso... “Será que você não tá exigindo muito, você tem 28 anos e está querendo parar de usar de uma vez uma droga que você usa desde nove anos?” (Trabalhador 3, Caps-AD3)

Se a demanda do paciente é a abstinência, a gente trabalha nessa perspectiva [...]. Agora têm alguns casos aqui que não vão parar, não tem outra forma, tem que ser a redução de danos. (Trabalhador 8, Caps-AD1)

Além de buscarem mudanças nas relações com as drogas, as pessoas recorrem aos Caps-AD para tratar de seus comprometimentos orgânicos, buscando cuidado para o corpo adoecido ou debilitado. Alguns usuários chegam aos serviços com comprometimentos clínicos graves, associados ao consumo abusivo de drogas; às vezes intoxicados, às vezes em crises de abstinência. Outros chegam a partir de outros problemas de saúde. Nos grupos focais de trabalhadores e na observação participante, estas situações foram destacadas:

Muitos usuários chegam numa situação muito ruim, muito mal fisicamente e vão precisar desse cuidado do corpo, de oferecer leito, soro. (Trabalhadora 12, Caps-AD 2)

Os usuários que chegam têm comorbidades clínicas muito graves. (Trabalhadora 1, Caps-AD 1)

Um usuário chega ao serviço com tremores intensos, tosses e vômitos. Está em crise de abstinência. (Pesquisadora, diário de campo, novembro de 2016)

Um usuário chega intoxicado, com pressão arterial alterada. Uma usuária retorna ao Caps-AD, permanecerá até fazer uma cirurgia, tem cirrose. Outra usuária veio do pronto-socorro, onde chegou após fazer uso intenso de cocaína e apresentar convulsões, está com a língua cortada. (Pesquisadora, diário de campo, junho de 2017)

As pessoas buscam também um tratamento para o sofrimento psíquico nos Caps-AD. De acordo com os trabalhadores, muitos usuários chegam aos serviços após tentativas de autoextermínio ou com ideias suicidas, em quadros de confusão ou agitação. Muitos apresentam sofrimento psíquico grave, com quadros de depressão, esquizofrenia e transtorno bipolar.

Os saberes da saúde, inclusive os biomédicos, são importantes, mas também insuficientes na identificação daquilo que os usuários buscam nos serviços de atenção1010. Ayres JRCM. Prefácio. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 8a ed. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2009. p. 11-4. , 1818. Campos GWS, Amaral MA. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Cienc Saude Colet. 2007; 12(4):849-59. . Nos Caps-AD pesquisados, diante da complexidade das situações que se apresentam, foi possível perceber tanto a importância quanto a insuficiência do saber biomédico, ou de qualquer outro saber considerado em sua especificidade (Psicologia, Psicanálise, Terapia Ocupacional, etc.) para a identificação dos problemas e para a proposição das práticas de atenção à saúde. Eles contribuem para produzir leituras parciais sobre a atenção que as pessoas buscam.

As necessidades, demandas e expectativas de tratamento, discutidas neste item, relacionam-se com a produção de mudanças nas relações com as drogas e com a atenção aos comprometimentos de saúde orgânicos e psíquicos.

Construção/reconstrução dos laços sociais

As pessoas que usam drogas buscam os serviços de saúde para construir ou reconstruir laços sociais fragilizados ou rompidos. Relações sociais marcadas por abandono, desamparo, humilhação, maus-tratos, estigmatização, desqualificação e marginalização marcam as subjetividades das pessoas atendidas nos Caps-AD. Nos grupos focais, entrevistas e observação participante, a ruptura e fragilização dos laços sociais foram enfatizadas:

Eu tava abandonado, pra mim o que existia era só a rua e a cachaça. (Usuário 6, Caps-AD1)

Atendemos pessoas que perderam todos os vínculos. (Trabalhadora 2, Caps-AD3)

O principal na vida dos usuários é essa fragilidade social, familiar, esse desamparo. (Trabalhadora 5, Caps-AD2)

Eu vejo também que os usuários sofrem de afeto, de solidão. (Trabalhadora 6, Caps-AD 01)

Há muito preconceito, muito estigma, é uma população que sempre foi marginalizada. (Gerente, Caps-AD1)

A gravidade dos casos discutidos na reunião de equipe diz respeito ao uso, mas também às situações de vida: desamparo, solidão, falta de lugar, loucura, miséria, violência, morte, desespero, sofrimento. (Pesquisadora, diário de campo, novembro de 2016)

Alguns autores contribuem para compreender as relações entre o sofrimento advindo das interações sociais e a busca por serviços de saúde. Luz1111. Luz MT. Fragilidade Social e busca de cuidado na sociedade civil hoje. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco; 2004. p.11-22. afirma que a fragilização dos laços sociais e os sentimentos de desamparo e instabilidade podem ser compreendidos a partir da presença da lógica econômica (competição, individualismo, sucesso, produtividade, etc.) nas relações sociais. Para a autora, as pessoas buscam os serviços de saúde também para repor valores de solidariedade, sociabilidade e comunicação, que não vivenciam em seus cotidianos. Souza1919. Souza J, organizador. Crack e exclusão social. Brasília: Ministério da Justiça e Cidadania; 2016. p. 29-37. observa que pessoas que usam crack e que vivem nas ruas têm suas subjetividades marcadas por processos de desclassificação social. Essas pessoas sofrem “... o abandono afetivo e social e a experiência silenciosa de uma humilhação ubíqua e sem explicação palpável” (p. 37). Flach e Nery Filho2020. Nery Filho A, Von Flach P. Os sujeitos e suas exclusões: os movimentos de resistências e os riscos de iatrogenia. In: Vecchia MD, Ronzani TM, Paiva FS, Batista CB, Costa PH, organizadores. Drogas e direitos humanos: reflexões em tempos de Guerra às Drogas. Porto Alegre: Rede Unida; 2017. p. 299-318. ressaltam a importância de os trabalhadores de saúde compreenderem melhor o sofrimento das pessoas que usam drogas e vivem nas ruas. De acordo com os autores:

O sofrimento das pessoas com quem trabalhamos está relacionado aos efeitos das relações desiguais de poder historicamente e discursivamente construídas e que se personificam no poder local como preconceitos, estigmas, desigualdades sociais e violências. (p. 305-6)

Nos Caps-AD pesquisados, as pessoas atendidas têm oportunidade de vivenciar formas de interação social baseadas no acolhimento, no respeito e na criação de vínculos. A construção de novos laços e de interações sociais, embora não se apresente inicialmente como necessidade, demanda ou expectativa nos Caps-AD, torna-se um motivador importante para a permanência dos usuários nos serviços. Como observam Pinheiro et al2121. Pinheiro R, Guizardi FL, Machado FRS, Gomes RS. Demanda em saúde e direito à saúde: liberdade ou necessidade? Algumas considerações sobre os nexos constituintes das práticas de integralidade. In: Pinheiro R, Müller Neto JS, Ticianel FA, Spinelli MAS, Silva Júnior AG, organizadores. Construção social da demanda por cuidado: revisitando o direito à saúde, o trabalho em equipe, os espaços públicos e a participação. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, CEPESC, LAPPIS, ABRASCO; 2013. p. 33-54. , a demanda não é apenas o que os usuários levam aos serviços, mas também um produto das interações que ocorrem entre sujeitos em um tempo e em um espaço definidos. Compreendemos que as interações sociais construídas entre trabalhadores, gerentes e usuários dos Caps-AD atualizam necessidades e demandas de construção de laços sociais baseados no acolhimento, reconhecimento, vínculo, atenção, respeito e cuidado.

A demanda e expectativa de reconstrução de laços sociais, sobretudo com familiares, foram também destacadas pelos usuários nos grupos focais:

A coisa que eu mais quero quando sair daqui é estar bem com a minha pessoa e com a minha família. (Usuário 5, Caps-AD1)

Eu tô reconstruindo o meu vínculo familiar que eu tinha perdido e isso é muito importante pra mim. (Usuário 1, Caps-AD3)

As necessidades, demandas e expectativas associadas à construção e reconstrução de laços sociais foram consideradas importantes por todos os sujeitos participantes da pesquisa e podem ser relacionadas a processos sociais que se apresentam na vida dos usuários e que promovem ruptura ou fragilização de laços sociais.

Melhoria nas condições reais de existência

Pobreza, miséria e falta de garantia de direitos sociais básicos marcam as vidas das pessoas que chegam aos Caps-AD. Os sujeitos participantes afirmaram que:

A miséria é grande. Recebemos uma população em situação de rua, sem muito suporte de abrigamento ou de moradia. O usuário vem com foco no banho, na comida, no cuidado, na escuta, no encaminhamento para tirar documento, no contato com abrigo, com a rede. (Gerente Caps-AD2)

É uma população egressa do sistema prisional, uma população negra, que não teve muito recurso social e cultural, alguns em situação de rua [...]. Então, eu percebo que a gente atende pessoas que tiveram os direitos negados a vida inteira. (Trabalhadora 5, Caps-AD1)

A falta de acesso a sistemas sociais básicos de proteção, a exclusão estrutural das sociedades capitalistas e o baixo poder contratual (de realização de trocas sociais) das pessoas que usam drogas geram necessidades de inclusão e reinserção social e de promoção do acesso a direitos sociais básicos2222. Sanches LR, Vecchia MD. Reabilitação psicossocial e reinserção social de usuários de drogas: revisão de literatura. Psicol Soc. 2018; 30:1-10. . Nos Caps-AD pesquisados, essas necessidades se fazem presentes. Nos grupos focais, os usuários afirmaram buscar, nos serviços, o acesso à alimentação e aos cuidados de higiene pessoal:

Eu almoço e tomo café da manhã aqui, pra mim, isso é uma grande ajuda. Eu tô me sentindo bem melhor. (Usuário 2, Caps-AD1)

Eu sou morador de rua. Eu venho aqui três vezes por semana, tomo meu banho me alimento, né, é isso, é uma família. (Usuário 1, Caps-AD3)

Muitos usuários não têm moradia definida e recorrem aos Caps-AD em busca de um espaço onde possam permanecer protegidos por um tempo. Em algumas situações, não demonstram interesse na proposta terapêutica ou nos laços sociais que podem estabelecer com outros usuários ou com os trabalhadores. Um usuário afirmou que:

Tem usuário que não tá nem aí, tá no leito hoje, tá no leito amanhã, tá no leito depois. Sai lá pra rua e no outro dia já volta pro leito, mas não quer se tratar. (Usuário 2, Caps-AD2)

As necessidades e demandas associadas à garantia de direitos sociais básicos receberam diferentes interpretações dos trabalhadores. Alguns as interpretam como busca por “ganhos secundários” ou “assistencialismos” e revelam “falta de implicação com o tratamento”. Outros as interpretam como busca por “cuidado” ou acesso a um “direito social básico negado”. Campos2323. Campos GWS, organizador. Saúde Paideia. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 51-67. , ao ressaltar a importância dos serviços de saúde considerarem, de maneira ampliada, os sujeitos, seus sofrimentos/enfermidades e seus contextos de vida, auxilia na compreensão de que essas necessidades e demandas, advindas de condições adversas de vida, não podem ser estranhas aos espaços de atenção à saúde.

No grupo focal, uma trabalhadora observou que a equipe tem dificuldade para compreender as condições de vida de alguns usuários:

Parece que tem usuário que não quer sair daqui. Tá aqui há anos e não quer sair daqui. Porque aqui pra ele parece que tá bom. Eu não sei se é o bom que todo mundo vai pensar... Eu não sei te falar o sentido desse bom, mas não é o que é bom pra gente não... Ninguém quer essa vida que eles estão levando. Mas pra eles, talvez pela vida que eles tinham antes, a de agora até que tá boa. (Trabalhadora 9, Caps-AD2)

Onocko-Campos2424. Onocko-Campos RT. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):573-83. observa que, muitas vezes, os trabalhadores de saúde não dispõem de recursos de interpretação para compreender as formas de resistência que as pessoas em situações de miséria constroem para assegurar sua reprodução. Para a autora2424. Onocko-Campos RT. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):573-83. , “... nós não saberíamos sobreviver a situações que vemos nos bolsões de pobreza das grandes cidades brasileiras. Elas [as pessoas que vivem] sabem. Nós temos que apreender” (p. 580). Nessa perspectiva, compreendemos que os Caps-AD podem compor arranjos construídos pelos usuários a partir de suas necessidades, para assegurar suas vidas. Para que os Caps-AD sirvam a mais do que isso, devem construir outras possibilidades na atenção que ofertam. Negar direitos básicos aos usuários pode significar a reprodução de exclusões vivenciadas em outros espaços. Responder a todos esses direitos, contribuindo para que os usuários permaneçam dentro dos serviços, pode justificar a necessidade de instituições totais que os Caps pretendem substituir. Não se trata, portanto, de desconsiderar tais demandas e necessidades, nem mesmo de respondê-las indefinidamente.

Se há usuários que querem permanecer nos Caps-AD, há outros que querem que os serviços contribuam para produzir novas inserções, sobretudo a partir do trabalho. Nos grupos focais, os usuários afirmaram que:

A gente deveria também ter oportunidade de fazer curso de cozinheiro, de pintor, de pedreiro, um curso profissionalizante. Do jeito que é a pessoa sai daqui do mesmo jeito que chegou. (Usuário 5, Caps-AD1)

Eu não me sinto ainda em condição de trabalhar. É por isso que eu venho ao tratamento [...]. Eu quero sair daqui curado e trabalhar, quero conseguir sair daqui bem e trabalhar. (Usuário 3, Caps-AD3)

Eu quero retomar meu trabalho, ter a minha carteira assinada, eu não quero mais ficar recebendo pelo INSS não. Eu sou costureira e quero voltar pro meu trabalho. (Usuária 3, Caps-AD1)

Os Caps-AD, conforme proposição do MS44. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à Saúde, Coordenação Nacional DST/AIDS. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2003. , deveriam ter como diretriz a promoção da reinserção social e da reabilitação psicossocial. Entretanto, os serviços pouco consideram as necessidades relacionadas à inserção no trabalho e à geração de renda em suas práticas. Uma das gerentes afirmou:

Têm umas necessidades de geração de renda que a gente não consegue suprir. A geração de renda, quando o paciente consegue isso, é uma ajuda muito boa na recuperação, na autoestima. Com essas coisas é que eu acho que o Caps-AD deveria se preocupar, mais do que com a questão se tá usando drogas ou não. Questões do viver, né, da vida, como é que tá no território, etc. (Gerente, Caps-AD3)

As necessidades, demandas e expectativas relacionadas ao trabalho e à geração de renda podem ser compreendidas a partir de suas contribuições para a garantia condições básicas de vida e para a produção de um lugar que permita trocas sociais e o reconhecimento das pessoas como cidadãos dignos2525. Dutra R, Henriques V. O poder discricionário dos agentes institucionais que lidam com usuários de crack: invisibilidade de classe e estigma de gênero. In: Souza J, organizador. Crack e exclusão social. Brasília: Ministério da Justiça e Cidadania; 2016. p. 305-27. .

Os resultados discutidos neste item são coerentes com aqueles encontrados na Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack 88. Bastos FI, Bertoni L, organizadores. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack. Rio de Janeiro: Icict, Fiocruz; 2014. , que revelaram que usuários de crack valorizam, nos serviços de atenção, aquilo que responde às necessidades derivadas de suas condições reais de vida. A Saúde Coletiva contribui para compreendê-las, pois reconhece a determinação social do processo saúde-doença-sofrimento e a importância das condições de vida para se ter saúde2626. Sevalho G. Necessidade em saúde e determinação social. Intervozes Trab Saude Cult. 2016; 1(1):80-2. , 2727. Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AA, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde. Porto Alegre, Rio de Janeiro: EDUCS, UFRGS, IMS, UERJ, CEPESC; 2006. p. 37-50. .

As demandas, necessidades e expectativas associadas às melhorias nas condições reais de vida se apresentam cotidianamente nos Caps-AD. Há divergências, entre os trabalhadores, sobre seu acolhimento nos serviços.

A promoção da autonomia versus a demanda de outros

A promoção da autonomia constitui-se como expectativa dos usuários do Caps-AD. Alguns relataram a impossibilidade de caminhar pela vida, seja pelas dificuldades que têm para produzir a gestão do consumo de drogas, seja pelas dificuldades que se apresentam em suas trajetórias, associadas ao rompimento de laços sociais, à impossibilidade de permanecer no trabalho e ao envolvimento em atividades ilícitas, como o tráfico de drogas. Alguns afirmaram ter perdido a capacidade de escolher e de definir seus destinos, querem voltar a ser sujeitos de suas vidas. Nos grupos focais, usuários e trabalhadores afirmaram:

Eu quero sair daqui pronto para ter o livre acesso, o livre arbítrio. Compartilhar também, ter um convívio bom com a família, a maioria das pessoas daqui não tem. Eu acho que o sonho da maioria que tá aqui é sair daqui independente, livre... Livre para ter a vida de volta. (Usuário 6, Caps-AD1)

Eu espero que o usuário possa tomar as rédeas da própria vida, ser mais sujeito da sua história, conseguir tomar suas decisões de uma forma mais consciente, mais fortalecida. (Trabalhadora 6, Caps-AD1)

Há a expectativa de que a passagem pelo Caps-AD contribua para produzir autonomia, ou seja, para um “...aumento da capacidade dos usuários compreenderem e atuarem sobre si mesmo e sobre o mundo da vida”1818. Campos GWS, Amaral MA. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Cienc Saude Colet. 2007; 12(4):849-59. (p. 852).

Há, entretanto, demandas dirigidas aos Caps-AD que podem ser associadas à diminuição da autonomia, relacionam-se com o estabelecimento de controle sobre as pessoas que usam drogas e suas formas de existência que, muitas vezes, distanciam-se das normas sociais. Alguns usuários chegam aos serviços a partir da demanda de outros, sendo encaminhados pelo Poder Judiciário, por familiares ou por outros serviços de saúde. Gerentes e trabalhadores afirmaram que:

Alguns pacientes chegam aqui sem saber por que tão vindo pra cá, o que é isso aqui. Vêm porque o médico da [Unidade de Pronto Atendimento] UPA mandou. (Gerente, Caps-AD 3)

O encaminhamento judicial vai na contramão de tudo que a gente constrói, vem um negócio de cima pra baixo, assim: “cumpra-se”. (Trabalhador 2, Caps-AD1)

Eu observo que alguns usuários não têm nenhuma demanda de tratamento não. Eles fazem o tratamento mais pelo outro, pela mãe, por causa do marido, da esposa. (Trabalhadora 2, Caps-AD2)

Souza1616. Souza TP. Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica de drogas. São Paulo: Hucitec; 2018. , a partir das contribuições de Foucault, permite compreender que diferentes estratégias podem estar presentes nos serviços de saúde. Algumas servem à produção de formas de governo da vida, à biopolítica. Outras, de maneira contraditória, podem favorecer a construção de linhas de resistência a essas formas de governo. As demandas às quais os Caps-AD são convocados a responder, que não partem dos usuários, podem inseri-los no conjunto de práticas biopolíticas. Por outro lado, a expectativa de ampliação de autonomia, mesmo em contextos adversos, pode permitir a construção de linhas de resistência a essas formas de governo e de controle. Compreender melhor as estratégias e as demandas, às vezes contraditórias, que se apresentam no cotidiano é um desafio para os trabalhadores dos Caps-AD.

Considerações finais

A pesquisa contribuiu para compreender que as pessoas que usam drogas e se dirigem aos serviços de saúde apresentam diferentes necessidades, demandas e expectativas que não se restringem à produção de abstinência. Ao associá-las a processos individuais, sociais, políticos e históricos, buscamos aproximá-las da complexidade que envolve as vidas das pessoas que usam drogas.

A ampliação das compreensões sobre tais necessidades, demandas e expectativas favorece o reconhecimento da importância da plasticidade dos trabalhadores de saúde não só para acolhê-las, interrogá-las e interpretá-las, mas também para ofertar uma atenção que seja com elas coerente. Compreendemos que, ao fazê-lo, os serviços de saúde podem se tornar mais próximos daquilo que as pessoas esperam e evitar que se tornem técnico-centrados ou, ainda, que se orientem por pressupostos morais ou de controle.

Propomos, portanto, que tanto na produção de conhecimento quanto na atenção em serviços de saúde e na gestão dos modelos e das políticas tais necessidades, demandas e expectativas sejam sempre consideradas a partir da diversidade dos processos subjetivos, orgânicos, sociais e políticos que expressam. Dessa forma, pesquisadores, trabalhadores e gestores podem contribuir para a promoção de práticas de atenção comprometidas com a produção de saúde e de vida das pessoas que fazem uso prejudicial de drogas.

Agradecimentos

Ao Instituto René Rachou/Fiocruz Minas, pelo auxílio financeiro para a realização da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2019
  • Aceito
    29 Jul 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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