Juventude, sexualidade, religião: questões atuais de pesquisa no campo do HIV/Aids

Youth, sexuality, religion: current research issues in the field of HIV / Aids

Juventud, sexualidad, religión: temas de investigación actuales en el campo del VIH / Sida

Claudia Mercedes Mora Cárdenas Ivia Maksud Sobre os autores

O artigo de Paiva, Antunes e Sanchez nos convida ao debate sobre educação sexual nas escolas em um momento de recrudescimento da epidemia entre os jovens e apresenta um instigante conjunto de dados sobre sexualidade e práticas sexuais e religiosas entre esse segmento populacional11. Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). Forthcoming 2019; 23:e180625.. Tais dados resultam de uma pesquisa avaliativa sobre prevenção de IST/Aids e gravidez não planejada em escolas do Distrito Federal e de São Paulo em 2013. O estudo se ancora na abordagem Multicultural dos Direitos Humanos22. Paiva V, Silva V. Facing negative reactions to sexuality to sexuality education through a Multicultural Human Rights framework. Reprod Health Matters. 2015; 23(46):96-106., que visa à interação entre comunidade escolar e especialistas, respeitando a diversidade dos pontos de vista de territórios, grupos e atores.

De início, os autores fazem uma breve digressão sobre a epidemia de HIV/AIDS no Brasil, chamando atenção para a capacidade operativa de conceitos como o gênero como aliado ao trabalho de prevenção. O exame que tecem sobre as narrativas governamentais sugere um progressivo retrocesso nas ações de prevenção desde 2012, com destaque para a autocensura nas escolas e outras barreiras no acesso à educação preventiva.

O texto sugere convergências entre o período atual e as décadas da ditadura cívico-militar no que diz respeito ao cerceamento da educação sexual pelos governantes. De fato, a partir das eleições presidenciais de 2018, multiplicam-se narrativas que confrontam os direitos humanos, a educação e a laicidade do Estado, referenciais importantes para a construção da resposta brasileira ao HIV. Uma das premissas em voga é a de que a suposta "ideologia de gênero" é impingida nas escolas, e que, portanto, suas práticas e discursos ameaçariam uma ordem familiar e moral tida como única e hegemônica33. Butler J, Bruno MM. Conhecimento contra o medo [Internet]. 2019 [citado 4 Set 2019]. Disponível em: http://www.reinodadesinformacao.com.br/cap-viii-entrevista-judith-butler/
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,44. Agostini R, Rocha F, Melo E, Maksud I. A resposta brasileira ao HIV/AIDS em tempos de crise. Cienc Saude Colet [Internet]. 2019 [citado 4 Set 2019]; Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-resposta-brasileira-a-epidemia-de-hivaids-em-tempos-de-crise/17344?id=17344
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. A força dessas narrativas diz respeito à ação dos setores evangélicos, que tende a ser mais orgânica no governo atual do que nos governos anteriores, atualmente composto por 84 deputados federais e sete senadores. Nas eleições, o atual presidente encampou uma pauta de costumes extremamente conservadores, articulando-se, de um lado, com uma base parlamentar evangélica e, de outro, com os eleitores cristãos55. Almeida R. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estud CEBRAP. 2019; 38(1):185-213.. Assim, o texto que temos em mãos oferece elementos para refletir acerca do debate entre ciência e religião, haja vista a retórica atual contra as evidências e explicações científicas como estratégia de negação de determinados "problemas sociais".

Um dos argumentos centrais do texto é que "a discussão sobre prevenção e desigualdade de gênero nas escolas é essencial para garantir proteção eficaz contra a infecção por HIV/IST e gravidez indesejada entre adolescentes"11. Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). Forthcoming 2019; 23:e180625. (p. 10). A tese se alicerça na premissa ético-política do "direito à prevenção", que diz respeito à necessidade de dar continuidade às estratégias desenvolvidas nas últimas três décadas, particularmente aquelas que articulavam os setores saúde e educação com foco nos jovens e adolescentes. Na década de 1990, tais iniciativas abordaram aspectos pontuais como a transmissão de IST/HIV, gravidez precoce e uso de drogas, mas com a ampliação nacional do Programa Saúde e Prevenção nas Escolas, após 2005 (por meio da parceria do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação), a diversidade sexual e a violência foram incorporadas. Além disso, na década mais recente, diretrizes da saúde e da educação contribuíram para consolidar a promoção no espaço escolar dos direitos humanos com ênfase em gênero, raça e orientação sexual66. Carvalhaes R. Entre laços e nós: narrativas de violência nas relações afetivo-sexuais de adolescentes de uma escola na região Costa Verde (RJ) [Dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.. A sexualidade adolescente não esteve isenta de tensionamentos e contradições ao longo da trajetória dessas politicas, mas observamos que atualmente elas ganham relevância estratégica em função de um suposto projeto de sociedade. Eis assim como o Projeto Escola sem Homofobia (2011), sua censura e posterior tergiversação na arena política simbolizam o mais significativo pânico moral no marco da “guinada conservadora” no Brasil. Observamos, pois, a consolidação de uma retórica que posiciona crianças e adolescentes no cerne das disputas em detrimento de ações que garantam seus direitos77. Leite V. "Em defesa das crianças e da família": refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos "conservadores" em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sex Salud Soc (Rio J). 2019; (32):119-42..

Para interpretar melhor os contextos em que se articulam sexualidade, adolescência e prática religiosa, precisamos compreender os significados relativos à própria diversidade contida nas experiências religiosas – ilustrados pelas diversas denominações correspondentes às igrejas evangélicas hoje no Brasil. Os autores mostram com propriedade que o plano da adesão religiosa seria consistente (em parte) com práticas como o adiamento da primeira relação sexual, enquanto a aceitabilidade de programas de educação sexual na escola tende a ser consensual e indistinto da filiação religiosa.

Os alunos que compõem o grupo estudado tinham aproximadamente 17 anos e eram em sua maioria mulheres, autodeclaradas pardas, e majoritariamente cristãs praticantes, sendo 42% católicas e 36,9% evangélicas/protestantes. Os dados relativos à religião e religiosidade sugerem o grau de influência das práticas religiosas nas opiniões relativas à iniciação sexual, fidelidade, masturbação e homossexualidade. Por exemplo, o adiamento das relações sexuais até o casamento é constatado como um valor principalmente entre evangélicos e católicos; no momento da pesquisa, 53,5% dos entrevistados já tinha atividade sexual, sendo a maioria jovens com filiação religiosa tida como “mais progressista”, segundo os autores do artigo. Em relação ao uso de preservativos na primeira relação sexual, 69,2% disseram tê-los utilizado e tinham mais chance de usá-los aqueles jovens que achavam que deviam receber informação sobre o preservativo na escola. Consistente com o dado anterior, o uso do preservativo nos últimos 12 meses foi de 71,7%, contudo, a análise anuncia uma maior propensão ao uso entre os moços em contraste a uma menor oferta e uso entre as moças. Esses dados nos convidam a examinar as relações entre valores e práticas e suas consequências em termos da reprodução de desigualdades de gênero no acesso a meios de prevenção.

Outro achado instigador do artigo diz respeito à aceitabilidade da educação sexual na escola por parte dos pais, indistintamente da religião. O apoio dos próprios jovens à educação sexual também pode ser ilustrado, haja vista a concordância maciça ao acesso dos preservativos na escola (90,3%), independentemente de terem ou não vida sexual. Se esses praticantes religiosos reconhecem o valor e pertinência da educação sexual, contrário a seus supostos representantes na esfera pública, será possível reestabelecer o diálogo intersetorial entre educação, saúde, conselho tutelar, assistência social e programas para a juventude? É viável compor um entendimento sobre o que é gênero, como sugerem Butler e Bruno33. Butler J, Bruno MM. Conhecimento contra o medo [Internet]. 2019 [citado 4 Set 2019]. Disponível em: http://www.reinodadesinformacao.com.br/cap-viii-entrevista-judith-butler/
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? Não sucumbir às generalizações acerca dos setores religiosos, e sim reconhecer as redes de jovens cristãos e evangélicos de cunho progressista77. Leite V. "Em defesa das crianças e da família": refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos "conservadores" em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sex Salud Soc (Rio J). 2019; (32):119-42., pode ser um caminho produtivo para idealizar tais repactuações. Precisamos estar atentos, por exemplo, à perspectiva de grupos como os “Evangelixs-juntos pela diversidade” acerca da pauta dos direitos sexuais e reprodutivos. Compreender a perspectiva desses grupos contra-hegemônicos, por outro lado, não significa deixar de considerar os complexos desafios que se antepõem à cruzada religiosa, como a persistência de valores que apostam na ideia de “cura divina” face ao uso de medicamentos antirretrovirais para o controle da doença, por exemplo, entre alguns soropositivos religiosos88. Silva CO. "Deus rechaça o pecado, mas acolhe o pecador". Religiosidade e HIV/AIDS: um estudo de caso sobre a resposta evangélica a epidemia em Recife [Dissertação]. Pernambuco: Universidade Federal de Pernambuco; 2011..

Como o texto refere-se ao contexto da Prevenção Combinada (PC), teria sido oportuno conhecer o que os estudantes pensam a respeito das tecnologias biomédicas, como a PeP e a PreP, além das opiniões sobre a camisinha, bem demonstradas no texto. É válido inclusive questionar a sustentabilidade da PC na ausência de uma sólida "combinação "de estratégias e de princípios ético-políticos, incluindo a repactuação entre governo e sociedade civil. Pensando desde um diálogo intersetorial, também seria oportuno salientar as lacunas na produção de conhecimento relativo a adolescentes/jovens que se infectaram com o vírus HIV por exposição sexual, assim como discutir o pouco acesso dos jovens aos serviços de saúde, para além da obtenção do preservativo, e, especificamente a atenção e o cuidado ofertados pelos serviços e profissionais de saúde. O texto nos oferece novas questões, quiçá para uma agenda de pesquisa, como o impacto das redes sociais na reconfiguração da socialização sexual de adolescentes e jovens, disputando narrativas com outras fontes socializadoras, como a própria escola, família e religião.

A potência da discussão apresentada por Paiva, Antunes e Sanchez recai sobre as instigadoras perguntas acerca dos efeitos do cerceamento de programas que viabilizavam a perspectiva da prevenção baseada nos direitos humanos no espaço escolar, o chamado ao resgate da memória e os atravessamentos de ordem geracional que marcam a resposta à Aids no Brasil. Decerto, a valorização e incluso adensamento de conceitos liminares à pesquisa sobre prevenção da Aids, construídos em tempos de redemocratização, são caminhos mais adequados e significativos tendo como horizonte a preservação dos direitos humanos e a cidadania. A premissa do "direito à prevenção " é sem dúvida cara aos tempos atuais, na medida em que promove a proposição de ações que os próprios cidadãos consideram necessárias, bem como a conciliação entre visões de mundo na busca das estratégias culturalmente mais significativas aos grupos sociais.

Referências

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    Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). Forthcoming 2019; 23:e180625.
  • 2
    Paiva V, Silva V. Facing negative reactions to sexuality to sexuality education through a Multicultural Human Rights framework. Reprod Health Matters. 2015; 23(46):96-106.
  • 3
    Butler J, Bruno MM. Conhecimento contra o medo [Internet]. 2019 [citado 4 Set 2019]. Disponível em: http://www.reinodadesinformacao.com.br/cap-viii-entrevista-judith-butler/
    » http://www.reinodadesinformacao.com.br/cap-viii-entrevista-judith-butler/
  • 4
    Agostini R, Rocha F, Melo E, Maksud I. A resposta brasileira ao HIV/AIDS em tempos de crise. Cienc Saude Colet [Internet]. 2019 [citado 4 Set 2019]; Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-resposta-brasileira-a-epidemia-de-hivaids-em-tempos-de-crise/17344?id=17344
    » http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-resposta-brasileira-a-epidemia-de-hivaids-em-tempos-de-crise/17344?id=17344
  • 5
    Almeida R. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estud CEBRAP. 2019; 38(1):185-213.
  • 6
    Carvalhaes R. Entre laços e nós: narrativas de violência nas relações afetivo-sexuais de adolescentes de uma escola na região Costa Verde (RJ) [Dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.
  • 7
    Leite V. "Em defesa das crianças e da família": refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos "conservadores" em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sex Salud Soc (Rio J). 2019; (32):119-42.
  • 8
    Silva CO. "Deus rechaça o pecado, mas acolhe o pecador". Religiosidade e HIV/AIDS: um estudo de caso sobre a resposta evangélica a epidemia em Recife [Dissertação]. Pernambuco: Universidade Federal de Pernambuco; 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2019
  • Aceito
    11 Nov 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br