O Instituto de Medicina Tropical de São Paulo: marcas de sua criação, 1940-1959** O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

The Institute for Tropical Medicine of São Paulo: characteristics of its creation, 1940-1959

El Instituto de Medicina Tropical de São Paulo: marcas de su creación, 1940-1959

Ewerton Luiz Figueiredo Moura da Silva André Mota Sobre os autores

Resumos

Este artigo foi escrito a partir de um trabalho de perscrutação a jornais, relatórios e textos memorialísticos e objetiva oferecer um contributo historiográfico sobre a criação do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, sancionada em janeiro de 1959 após uma movimentação institucional liderada pelo professor Carlos da Silva Lacaz, seu primeiro diretor. Procura-se destacar aqui dois importantes eixos que contribuíram para a decisão em prover a capital paulista de um Instituto de Medicina Tropical: em primeiro lugar, a internacionalização da Medicina Tropical brasileira, nomeadamente sua relação com tropicalistas portugueses, consubstanciada com a ida de brasileiros – em especial, paulistas – aos institutos de Medicina Tropical na Europa e, em segundo lugar, a presença de endemias rurais no estado de São Paulo (Brasil), que começavam a tornar-se visíveis na capital em decorrência dos movimentos migratórios em direção à cidade.

Instituto de Medicina Tropical de São Paulo; Medicina tropical; Endemias rurais


This article was based on an examination of newspapers, reports, and memorial texts. It aims at offering a historiographical contribution about the creation of the Institute for Tropical Medicine (IMT, Instituto de Medicina Tropical), approved in January 1959 after an institutional movement led by Prof. Carlos da Silva Lacaz, who was also its first director. The objective is to highlight important factors that contributed to the decision of creating an institute of Tropical Medicine in the Brazilian city of São Paulo, capital of the state of São Paulo. The first of them was to internationalize the Brazilian Tropical Medicine, namely its relationship with Portuguese tropicalists that was consubstantiated with the migration of Brazilians, particularly from the city of São Paulo, to European institutes of Tropical Medicine. The presence of rural endemic diseases in the state, which were becoming increasingly visible in the capital due to migratory movements to the big city, also contributed to its creation.

Institute for Tropical Medicine of São Paulo; Tropical Medicine; Rural endemic diseases


Este artículo se escribió a partir de un trabajo de búsqueda en periódicos, informes y textos memorialísticos y tiene el objetivo de ofrecer una contribución historiográfica sobre la creación del Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, sancionada en enero de 1959 después de un movimiento institucional liderado por el profesor Carlos da Silva Lacaz, su primer director. Se busca destacar aquí dos ejes importantes que contribuyeron para la decisión de proporcionar a la capital del Estado de São Paulo un instituto de Medicina Tropical: en primer lugar, la internacionalización de la Medicina Tropical brasileña, principalmente su relación con tropicalistas portugueses, consubstanciada con la ida de brasileños, en especial del estado de São Paulo, a los institutos de medicina tropical en Europa y, en segundo lugar, la presencia de endemias rurales en el Estado de São Paulo (Brasil) que comenzaban a ser visibles en la capital debido a los movimientos migratorios hacia la ciudad.

Instituto de Medicina Tropical de São Paulo; Medicina tropical; Endemias rurales


Conexões entre Brasil e Portugal: a admiração de Lacaz pelo Instituto de Medicina Tropical de Lisboa

Em 1985, Carlos da Silva Lacaz se referiu a sua visita ao Instituto de Medicina Tropical de Lisboa, ocorrida 27 anos antes, em 1958, como a fonte inspiradora para a sua disposição em dilatar as funções do Pavilhão de Vírus e Rickettsias, transformando-o em Instituto de Medicina Tropical11. Lacaz CS. Instituto de medicina tropical de São Paulo vinte e cinco anos em prol de um ideal. São Paulo: Acervo da biblioteca do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo; 1985.. Lacaz, que desde 1954 ministrava o curso anual de especialização em Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), viajou a Portugal para participar do VI Congresso Internacional de Medicina Tropical e Paludismo, ocorrido entre os dias 5 e 13 de setembro de 1958, no qual apresentou uma conferência sobre geografia médica do Brasil. Sua participação no evento fez parte do convite feito a especialistas brasileiros por João Fraga de Azevedo, diretor do Instituto de Medicina Tropical da capital portuguesa:

Os Congressos abrangerão duas divisões, a de Medicina Tropical e a de Paludismo, cada uma das quais, por sua vez, comportará várias seções e subseções. Para preparar o programa dos assuntos de cada seção foram convidados relatores e correlatores. Vários especialistas brasileiros receberam convites para relatarem ou correlatarem diferentes temas. Entre eles, temos conhecimento do doutor Mário Pinotti, diretor do Serviço Nacional de Endemias Rurais (Erradicação do Paludismo), Samuel Barnsley Pessoa, João Alves Meira e Carlos da Silva Lacaz, professores da faculdade de medicina de São Paulo, respectivamente nos temas de Leishmanioses, Esquistossomoses e Micoses22. Medicina tropical e paludismo. O estado de São Paulo. 1958 Mar 5, p. 5.. (p. 5)

Fraga de Azevedo foi um importante articulador para a parceria lusobrasileira no âmbito médico-científico e um admirador do trabalho de Mário Pinotti, ministro da saúde no fim do governo de Getúlio Vargas (1954) e durante a maior parte do governo de Juscelino Kubitschek (1958-1960). Pinotti obteve grande prestígio científico e político no Brasil e no exterior por ter apresentado, em 1952, um método eficaz no combate da malária por meio do sal de cozinha cloroquinado33. Silva R, Hochman G. Um método chamado Pinotti: sal medicamentoso, malária e saúde internacional (1952-1960). Hist Cienc Saude Manguinhos. 2011; 18(2):519-543. Doi: doi.org/10.1590/S0104-59702011000200012.
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. O chamado “método Pinotti” foi empregado, em conjunto com a ação de inseticidas, no combate da malária no ultramar português44. Medicina tropical no ultramar. O Estado de São Paulo. 1959 Jul 19, p. 4..

As origens do Instituto de Medicina Tropical de Lisboa, criado em 1935, remontam à antiga Escola de Medicina Tropical – fundada em 1902 para oferecer ensino teórico e prático das chamadas doenças tropicais aos facultativos que se destinassem à Armada e às colônias portuguesas55. Amaral IMSP. Emergence of tropical medicine in Portugal: the school of tropical medicine and the colonial hospital of Lisbon. Dynamis. 2008; 28:312-8.. Porém, o que eram as doenças tropicais? O médico britânico Patrick Manson definiu-as como: “diseases occurring only, or which from one circumstance or another are specially prevalence, in warm climates66. Manson P. Tropical diseases: a manual of tropical diseases of warm clilmates. London: Cassel and Company; 1914.. (p. 17) Ainda de acordo com Manson, tais enfermidades, causadas por microrganismos, eram transmitidas ao ser humano, em geral, por insetos sugadores de sangue, encontrados, com maior incidência, nas regiões de climas quentes ao redor do mundo, o que corresponde às áreas do globo terrestre situadas entre os trópicos de Capricórnio e de Câncer, especialmente nas proximidades do Equador66. Manson P. Tropical diseases: a manual of tropical diseases of warm clilmates. London: Cassel and Company; 1914..

A criação de institutos de Medicina Tropical na Europa durante a virada do século XIX para o XX – nas cidades de Liverpool (1898), Londres (1899), Hamburgo (1900), Lisboa (1902), Marselha (1905), Bruxelas (1906) e Amsterdã (1910) – ocorreu em um contexto histórico de partilha da África, no qual o continente tornou-se objeto de acirradas disputas políticas e econômicas por parte dos europeus55. Amaral IMSP. Emergence of tropical medicine in Portugal: the school of tropical medicine and the colonial hospital of Lisbon. Dynamis. 2008; 28:312-8.. Contudo, doenças como a febre amarela, a malária e, principalmente, a doença do sono constituíam obstáculos para a formação de seus impérios coloniais impostos à África, pois ameaçavam dizimar a população nativa, repositório de mão-de-obra, e comprometer a fixação de europeus naquele continente77. Lyons M. The colonial disease: a social history of sleeping sickness in northen Zaire, 1900-1940. Cambridge: Cambridge University Press; 1992.. Nessa seara, os portugueses, desejosos em preservar seus domínios ultramarinos ante a cobiça de seus concorrentes europeus mais poderosos, empreenderam ações de combate à doença do sono em suas colônias africanas e obtiveram êxito no extermínio das glossinas, moscas transmissoras daquela doença, na pequena ilha do Príncipe, a primeira vez em 1914 e a segunda, em 195888. Silva ELFM. Tropical medicine behind cocoa slavery: a campaign to eradicate sleeping sickness in the Portuguese colony of Principe island, 1911-1914. Bull Span Port Hist Stud. 2019; 44:214-40. Doi: doi.org/10.26431/0739-182X.1316.
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Há tempos se discutia, entre os médicos portugueses, um maior intercâmbio científico com o Brasil e, nesse sentido, em novembro de 1944, com a Segunda Guerra Mundial em curso, João Fraga de Azevedo, empossado diretor do Instituto no ano anterior, e Augusto Salazar Leite, docente da cadeira de Dermatologia e Micologia Tropicais, embarcaram em uma viagem aérea, com cinco dias de duração e com escalas na África, rumo ao Rio de Janeiro. Embora os laços históricos e linguísticos entre os dois países tenham sido evocados, a justificativa para a escolha do Brasil pautou-se pelo reconhecimento internacional de suas instituições de pesquisa – especialmente os Institutos Oswaldo Cruz e Butantã – e pelas semelhanças climáticas e nosológicas entre a antiga colônia portuguesa na América e os territórios ultramarinos de Portugal no continente africano:

Compreende-se um tão justificado interesse porque, sofrendo o Brasil naturalmente das mesmas inclemências climáticas e nosológicas que uma grande parte dos territórios portugueses de Além-Mar, dada a similitude da sua posição geográfica, era da maior vantagem para nós tomar conhecimento das condições em que problemas análogos aos que preocupam o nosso País já ali haviam sido resolvidos. Na verdade, se excetuarmos a doença do sono, pode dizer-se que encontramos no Brasil toda a patologia tropical que respeita aos nossos domínios ultramarinos99. Azevedo JF, Leite AS. Relatório de uma missão de estudo ao Brasil. An Inst Med Trop. 1946; 3:481-537.. (p. 482)

Os dois cientistas portugueses estavam interessados em obter no Brasil informações sobre a preparação de soros antiofídicos (produção por excelência do Instituto Butantã1010. Mott ML, Alves OSF, Dias CESB, Fernandes CS, Ibañez N. A defesa contra o ofidismo de Vital Brazil e a sua contribuição à saúde pública brasileira. Cad Hist Cienc. 2011; 7:89-110.) e da vacina contra a febre amarela (a 17D começou a ser produzida no Brasil, em parceria com a Fundação Rockefeller, em 19371111. Löwy I. Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.) para fabricá-los em Portugal e remetê-los às colônias africanas.

Não podíamos também deixar de prever que muito interessaria avaliar as particularidades das doenças reinantes, dos problemas veterinários afins dos problemas médicos e bem assim das condições de assistência às populações do interior. Além disso muito nos interessava, também, colher e trazer o maior número possível de elementos bibliográficos e de coleções para os nossos museus99. Azevedo JF, Leite AS. Relatório de uma missão de estudo ao Brasil. An Inst Med Trop. 1946; 3:481-537.. (p. 484)

A permanência no Brasil durou 38 dias, de 7 de novembro a 15 de dezembro de 1944. Fraga de Azevedo e Salazar Leite regressaram para Lisboa com 143 espécies entomológicas, 37 espécies helmintológicas, 268 estirpes de fungos e preparações histológicas de casos de febre amarela, leishmaniose visceral e doença de Chagas para compor o acervo do museu do Instituto de Medicina Tropical e servir para o ensino daquela especialidade médica99. Azevedo JF, Leite AS. Relatório de uma missão de estudo ao Brasil. An Inst Med Trop. 1946; 3:481-537.. Os médicos portugueses foram também recebidos na Academia Nacional de Medicina, onde Olímpio da Fonseca Filho destacou a relevância das pesquisas realizadas pelo Instituto de Medicina Tropical de Lisboa para o Brasil, pois o maior dinamismo nos transportes internacionais trazia a ameaça da chegada de doenças desconhecidas ao país, como a doença do sono:

E como nós cada vez mais vamos ficando ligados a outros continentes, principalmente ao continente africano, pela passagem contínua de aviões que nos vêm de vez em quando trazendo insetos hematófagos, como sucedeu àquele avião que nos trouxe algumas dezenas de glossinas que foram aqui capturadas, podemos bem avaliar a grande atenção e o interesse particular que há, para nós neste momento, o programa de estudos que esse Instituto de Medicina Tropical vem realizando1212. Sessão de 30 de novembro de 1944. Bol Acad Nac Med. 1944; 115(8):32-5.. (p. 32)

Na altura, foi proposto ainda a criação de um Instituto Brasil-Portugal para a promoção do intercâmbio cultural e científico entre as duas nações lusófonas por meio do patrocínio de viagens de cientistas brasileiros para Portugal e a vinda de cientistas portugueses para o Brasil99. Azevedo JF, Leite AS. Relatório de uma missão de estudo ao Brasil. An Inst Med Trop. 1946; 3:481-537.. Embora não tenha sido encontrada nenhuma evidência histórica que comprovasse a criação do referido instituto, os congressos científicos organizados no decorrer dos anos 1950 – como o V Congresso de Microbiologia (no Rio de Janeiro, em 1950), o I Congresso Nacional de Medicina Tropical (em Lisboa, em 1952), as Jornadas Médicas Luso-Brasileiras (no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1952, e em Lisboa e em Coimbra, em 1956) e o Congresso Internacional sobre a doença de Chagas (no Rio de Janeiro, em 1959) – promoveram espaços para uma maior cooperação científica entre tropicalistas brasileiros e portugueses.

Em pleno contexto das lutas pela descolonização na África e na Ásia, ocorreu em Lisboa o VI Congresso de Medicina Tropical e Paludismo, ocasião em que foi inaugurado o novo edifício-sede, já muito esperado, do Instituto de Medicina Tropical1313. Abranches P. O instituto de higiene e medicina tropical. Um século de história 1902-2002. 3a ed. Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian; 2002.. Impressionado pelo interesse que os europeus nutriam por assuntos relacionados às patologias tropicais, Carlos da Silva Lacaz iniciou em Portugal uma movimentação com Samuel Barnsley Pessoa – professor aposentado da cátedra de Parasitologia Médica em ١٩٥٥ e filiado ao Partido Comunista Brasileiro1414. Hochman G. Vigiar e, depois de 1964, punir: sobre Samuel Pessoa e o Departamento Vermelho da USP. Cienc Cult (São Paulo). 2014; 66(4):26-31. – para a criação de um Instituto de Medicina Tropical em São Paulo:

A ideia da criação de um “Instituto de Medicina Tropical”, anexo à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, nasceu da recente viagem que fiz à Europa, onde tive a oportunidade de assistir, em Lisboa, os Sextos Congressos Internacionais de Medicina e de Paludismo, realizados de 5 a 13 de setembro. Nesta oportunidade visitei o Instituto de Medicina Tropical de Lisboa e o Instituto de Medicina Tropical, da Suíça, em Basileia, conhecendo igualmente, através da exposição de material fotográfico e outros documentos, diversos institutos de medicina tropical, tais como o de Hamburgo, Londres, Liverpool, Porto Rico, Calcutá, Antuérpia, Amsterdã, Moscou e o Instituto di Clinica delle Malattie Tropicali e Subtropicali, da Universidade de Roma. Impressionado com o grande interesse que os europeus dedicam ao estudo dos problemas da medicina dos trópicos, manifestei aos professores Antônio Dácio Franco do Amaral e João Alves Meira, bem como ao Prof. João Aguiar Pupo, o meu interesse em dilatar as finalidades do Pavilhão de Vírus e Rickettsias da Faculdade de Medicina, transformando-o em instituição mais ampla, na qual se estudassem as inúmeras e importantíssimas endemias que constituem o campo de ação da medicina tropical no Brasil1515. Instituto de Medicina Tropical. O Bisturi. 1958 Nov-Dez. p. 10.. (p. 10)

Do Pavilhão de Vírus e Rickettsias a Instituto de Medicina Tropical de São Paulo

Carlos da Silva Lacaz teve uma atividade de pesquisa extensa, marcada por suas contribuições à micologia médica e à Medicina Tropical. Graduado em 1940 pela FMUSP, assumiu a cátedra de Microbiologia e Imunologia da mesma faculdade em 19531616. Spina-França A. In memoriam. Arq Neuropsiquiatr. 2002; 60(3-A):689-90.. Naquele ano, havia a necessidade de construção de um espaço para o estudo de vírus e Rickettsias com o intuito de contribuir para a formação dos médicos e auxiliar o Hospital das Clínicas no esclarecimento diagnóstico de numerosas viroses. Lacaz se envolveu na empreitada para a construção de um Pavilhão de Vírus e Rickettsias e obteve por intermédio de Cid Franco, deputado da Assembleia do Estado de São Paulo pelo Partido Socialista Brasileiro, a verba no valor de cinco milhões de cruzeiros do governo paulista para o financiamento desse projeto. Entretanto, em 1955, foi aprovado uma redução nas despesas da Universidade de São Paulo e a verba liberada para a construção do pavilhão foi, temporariamente, bloqueada. Nas reuniões da Congregação, Lacaz apelou ao então diretor da Faculdade de Medicina, o professor Jayme Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, para que a importância anteriormente disponibilizada pelo governo estadual fosse desvinculada do contingenciamento orçamentário da universidade:

Na esperança de ser útil a uma boa causa, sabe Vossa Senhoria que havia conseguido, com esforço e animado dos melhores propósitos, uma verba de 5 milhões para a construção, na Faculdade de Medicina, do “Pavilhão de Vírus e Rickettsias”. Não falarei mais das vantagens que adviriam para o meio médico paulista, se a minha ideia fosse efetivada. Afora o aspecto legal da questão, que foi totalmente desprezado, quero declarar a Vossa Senhoria o meu desapontamento diante dos fatos que tomei conhecimento, não tanto em relação à minha humilde pessoa, mas principalmente atingido o Departamento de Microbiologia e a própria Faculdade de Medicina. [...] Quero, todavia, participar a Vossa Senhoria, que não cruzarei as armas, mas irei às portas da Assembleia do Estado, porque foi ela também atingida em sua soberania. Burlou-se uma lei e diante dos fatos é possível que deputados acreditem que fui eu quem achou que a verba não era mais necessária e podia realmente ser economizada. Pode Vossa Senhoria tomar todas as medidas punitivas que desejar, mas eu irei defender, de maneira intransigente, um direito que me assiste, amparado por forças que não se destroem1717. Lacaz CS. Reunião de Congregação. Inst Med Trop USP. Abril de 1955.. (p. 5-6)

O dinheiro foi desbloqueado durante a gestão do governador Jânio da Silva Quadros (1955-1959) e a construção do Pavilhão de Vírus e Rickettsias teve início em 1956. No entanto, após a viagem de seu idealizador para Portugal em 1958, o futuro do referido pavilhão foi novamente negociado. Em outubro daquele ano, ao regressar ao Brasil, Carlos da Silva Lacaz iniciou uma articulação como os professores João Alves Meira – catedrático de Doenças Tropicais e Infecciosas desde 1951 e anteriormente bolsista entre 1941 e 1942 em Nova Orléans pela The American Foundation For Tropical Medicine1818. Meira JA. Impressões de uma viagem de estudos aos Estados Unidos. Rev Med. 1943; 27(114):43-65. – e Antônio Dácio Franco do Amaral – catedrático de Parasitologia após a aposentadoria de Samuel Pessoa em 1955 – para a transformação do pavilhão em Instituto de Medicina Tropical. O projeto foi encaminhado e aprovado pelo Conselho Técnico e Administrativo da Faculdade de Medicina e, em dezembro, pela Congregação, presidida pelo diretor da faculdade, professor João de Aguiar Pupo, que, em abril de 1956, havia sucedido Jayme Cavalcanti no cargo.

Em 15 de janeiro de 1959, por meio do Decreto nº 34.510, Jânio Quadros sancionou a criação do Instituto de Medicina Tropical, subordinado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O instituto nasceu em um momento histórico de crescimento da economia brasileira a uma taxa de 7% ao ano, impulsionada pela significativa expansão industrial, que cresceu 80% entre 1957 e 19601919. Skidmore T. Brasil: De Getúlio a Castelo (1930-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1982. e o estado de São Paulo foi o mais beneficiado com a implantação de novas indústrias, especialmente a automobilística, que contribuíram para o incremento da receita tributária estadual2020. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós-1930 [Internet]. 2a ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV; 2001 [citado 19 Jan 2020]. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/janio_quadros
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O Instituto de Medicina Tropical era integrado pelas cátedras de Microbiologia e Imunologia, Parasitologia e Doenças Tropicais e Infecciosas e suas principais finalidades eram: desenvolver estudos experimentais e pesquisas clínicas sobre as inúmeras endemias que constituíam o campo de ação da Medicina Tropical no Brasil; estabelecer cursos de pós-graduação para a formação de médicos tropicalistas; administrar aos estudantes de Medicina o curso de Virologia; promover ações sanitárias em torno dos grandes problemas de saúde estudados pelo instituto; prestar assistência técnica e especializada à Faculdade de Medicina e ao Hospital das Clínicas; organizar missões científicas no Brasil e no exterior para o estudo de temas referentes à Medicina Tropical; colaborar na luta contra as endemias rurais e manter intercâmbios científicos com centros de Medicina Tropical no Brasil e no exterior2121. São Paulo (Estado). Decreto nº 34.510, de 15 de Janeiro de 1959. Cria o Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, anexa à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e das outras providências. Diretoria Geral da Secretaria de Estado dos Negócios do Governo.15 Jan 1959..

Como parte de suas instalações, o instituto possuía uma biblioteca especializada e enriquecida com uma doação de 306 livros que pertenceram a Pirajá da Silva11. Lacaz CS. Instituto de medicina tropical de São Paulo vinte e cinco anos em prol de um ideal. São Paulo: Acervo da biblioteca do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo; 1985. – médico baiano consagrado por seus estudos sobre a esquistossomose e falecido em 1961 – e um museu de Medicina Tropical, desmantelado em 1989, que abrigou, entre outros objetos, 25 peças de cera, produzidas pelo artista Augusto Esteves, que representavam condições patológicas de leishmaniose tegumentar, de bouba, de pelagra e de blastomicose perianal, doadas pelo professor João de Aguiar Pupo2222. Lacaz CS. A destruição do museu de medicina tropical. Inst Med Trop USP. 1992.. Cabe ainda apontar o surgimento da Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, criada no mesmo ano do instituto pelo professor Luiz Rey, seu editor até 1964.

Cabe salientar que a complexidade das diferentes doenças estudadas na Medicina Tropical ultrapassava alguns conceitos e chaves explicativas utilizados naquela especialidade médica. Em primeiro lugar, o modelo parasito-vetor, importante elemento para a legitimação da Medicina Tropical, no qual os patógenos eram transmitidos ao ser humano sobretudo por insetos sugadores de sangue, aplicava-se bem para a malária, para as tripanossomíases humanas e para as leishmanioses; porém, encontrava limitações para o caso da lepra, frequentemente incluída nos manuais daquela especialidade2323. Souza LPA. Sentidos de um “país tropical”: a lepra e a chaulmoogra brasileira [dissertação]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz; 2009.. Em segundo lugar, o conceito de doenças tropicais, em meados do século XX, ainda estava relacionado às enfermidades que grassavam exclusiva ou especialmente nas regiões de climas quentes e úmidos ao redor do globo, como a ancilostomíase, a esquistossomose e a oncocercose2424. Camargo EP. Tropical diseases. Estud Av. 2008; 22(64):95-110. Doi: dx.doi.org/10.1590/S0103-40142008000300007.
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. Todavia, em São Paulo, alguns médicos procuraram apresentar uma visão mais ampla dessas doenças, associando-as com a pobreza e com as precárias condições de saúde. Dentre eles, destacou-se o nome de Samuel Pessoa, um dos apoiadores da proposta de Lacaz para a criação de um Instituto de Medicina Tropical, que atribuiu à estrutura fundiária a origem das endemias rurais, como observou o historiador Gilberto Hochman:

Retornando a originalidade radical de Samuel Pessoa, ela se expressou desde 1940 quando o seu discurso de paraninfo da turma de formandos da Faculdade de Medicina. Nesse discurso aos futuros médicos, apesar de uma linguagem cuidadosa por conta da ditadura de Vargas, aparece uma clara responsabilização, não apenas do poder público, mas dos proprietários rurais, e de maneira menos clara, do capitalismo brasileiro, pelas condições de vida dos trabalhadores rurais, em particular nas áreas de expansão agrícola. Relata as dificuldades impostas por fazendeiros no estabelecimento de postos sanitários em suas propriedades, em particular dispensários para tratamento da leishmaniose tegumentar americana, sob alegação de que a presença dos serviços e doentes desvalorizava as terras2525. Hochman G. Samuel Barnsley Pessoa e os determinantes sociais das endemias rurais. Cienc Saude Colet. 2015; 20(2):425-31. Doi: dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.18112013.
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. (p. 429)

A institucionalização da Medicina Tropical em São Paulo – que naquele momento significava estudar e combater as endemias rurais que grassavam pelo estado – foi encarada como uma importante conquista dos paulistas e como mais um elemento para o desenvolvimento do estado, como Carlos da Silva Lacaz salientou em 1960:

Situada a nossa metrópole sobre a linha do trópico de Capricórnio, o “Instituto de Medicina Tropical de São Paulo” será mais um argumento de progresso da terra bandeirante, que constituiu uma grande civilização em região intertropical2626. Lacaz CS. Texto ao conselho administrativo do Instituto de Medicina Tropical. Inst Med Trop USP. 4 de janeiro de 1960. (p. 7)

A tônica do progresso que se desejava imprimir no estado e, principalmente, na capital contrastava com a presença de numerosas doenças como a malária, a doença de Chagas, a ancilostomíase, a esquistossomose e a leishmaniose, que “aviltam nossa gente”2727. Criado o Instituto de Medicina Tropical. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 16 Jan 1959. p. 1., como expressou o governador Jânio Quadros em 1959. Essas enfermidades significavam a permanência de um passado de atraso associado ao mundo rural e que começava a adentrar em São Paulo, cidade que almejava se apresentar para o Brasil e para o mundo como moderna e progressista.

As endemias rurais batem à porta da capital

O problema representado pelas endemias rurais não era nenhuma novidade nos anos 1950. Nos primeiros anos do século XX, o movimento pelo saneamento dos sertões do país, ao rejeitar os determinismos racial e climático, reivindicou a intervenção do Estado no combate às doenças que castigavam os trabalhadores rurais e obstaculizavam a redenção do brasileiro2828. Lima NT, Hochman G. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: Maio MC, Santos RV. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB; 1996. p. 23-40.. A presença de graves enfermidades e a inexistência de serviços sanitários nos rincões empobrecidos do Brasil foram denunciadas pelas expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz2929. Lima NT. Um sertão chamado Brasil. Intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: IUPERJ, UCAM, Revan; 1999., que se tornou o principal centro de ressonância da medicina tropical em terras brasílicas.

Naquele contexto histórico, o estado de São Paulo, responsável pela organização de uma estrutura sanitária considerada modelar nacionalmente durante a Primeira República (1889-1930), rivalizou com a produção científica do Rio de Janeiro3030. Santos LAC. A reforma sanitária “pelo alto”: o pioneirismo paulista no início do século XX. Dados Rev Cienc Sociais. 1993; 36(3):361-92., e seu interior possuía a fronteira agrícola mais dinâmica do Brasil, impulsionada pelo avanço da cultura cafeeira. Entretanto, a desvalorização do café, a partir dos anos 1930, abriu caminho para a produção de algodão e a criação de gado. Na década seguinte, com o avanço da fronteira agrícola em direção aos estados do Paraná e Mato Grosso, a disponibilidade de terras virgens em São Paulo diminuiu drasticamente. A nova situação ameaçava provocar prejuízos à lavoura paulista e trazer dificuldades ao escoamento dos gêneros agrícolas que, cultivados em regiões cada vez mais distantes dos centros consumidores e exportadores, teriam seus preços onerados pelo transporte3131. Silva LJ. A evolução da doença de chagas no estado de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1999.. A solução poderia estar na recuperação das áreas agrícolas já ocupadas, por meio da valorização da terra e da saúde do homem do campo, o que significava combater as endemias rurais.

O impaludismo estava disseminado por todo o Brasil e o Serviço Nacional de Malária (SNM), criado em 1941, desenvolvia ações de combate ao Anopheles darlingi, principal vetor da doença na América Latina, por meio de obras de drenagem, aplicação de larvicidas e retirada manual de bromeliáceas3232. Pinotti M. A situação atual no Brasil da luta contra a malária e a doença de Chagas. Rev Bras Med. 1952; 9(3):191-266.. A partir de 1947, o SNM começou a utilizar o diclorodifeniltricloroetano (DDT) em dedetizações intradomiciliares, que emergiu como a grande panaceia para erradicar espécies transmissoras de doenças ao redor do mundo3333. Benchimol JL, organizador. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001..

Em São Paulo, a malária atingia praticamente todo o território do estado – exceção feita às terras de maior altitude, como Campos do Jordão – e até mesmo a própria capital começou a sofrer com este mal: o represamento de águas na região do rio Pinheiros criou ambientes favoráveis ao Anopheles darlingi e casos de impaludismo foram registrados em Santo Amaro e nas proximidades do bairro Cidade Jardim3434. Pessoa SB. Ensaio sobre a distribuição geográfica de algumas endemias parasitárias no estado de São Paulo. Arq Hig. 1942; 2(11):7-25..

O SNM era responsável também pelo combate aos triatomíneos, os vetores da doença de Chagas. Embora essa doença tenha sido descrita em 1909 por Carlos Chagas, sua posição como fato científico e grave problema de saúde pública apenas foi consolidada nas décadas de 1940 e 19503535. Kropf S, Azevedo N, Ferreira LO. Doença de Chagas: a construção de um fato científico e de um problema de saúde pública no Brasil. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):347-65. Doi: doi.org/10.1590/S1413-81232000000200009.
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, sendo que a primeira campanha oficial de profilaxia contra a tripanossomíase americana ocorreu somente em 1950 em munícipios do triângulo mineiro e norte paulista.

Embora os primeiros estudos sobre a distribuição dos barbeiros pelo estado de São Paulo tenham sido realizados pelos institutos Pasteur, Bacteriológico e Butantã entre 1912 e 19163636. Silva ELFM, Mota A. A doença de Chagas em terras paulistas nos primeiros anos do século XX. In: Benchimol JL, Amaral IMSP, organizadores. Medicina e ambiente: articulação e desafios no passado, presente e futuro. Belo Horizonte: Fino Traço; 2019. p. 110-30., o interesse pela doença cresceu entre os paulistas durante os anos de 1940. Em 1945, por exemplo, o Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina e a Clínica Propedêutica Médica da Escola Paulista de Medicina inauguraram um posto para o estudo sistemático da doença de Chagas em um foco de grande infestação de triatomíneos localizado no interior de São Paulo: o distrito de Cássia dos Coqueiros, no município de Cajuru3737. Ramos J, Pedreira de Freitas J, Borges S. Moléstia de Chagas. Estudo clínico e epidemiológico. Arq Bras Cardiol. 1949; 2(2):111-62..

A infecção do organismo humano pelo Trypanosoma cruzi não tinha cura e a substituição das casas de pau-a-pique por moradias de alvenaria era desaconselhada por motivos econômicos; o jeito então era atacar o vetor com inseticidas como o DDT e o hexa-cloro-ciclohexano (BHC):

O único recurso atualmente exequível para o combate à doença de Chagas é, pois, o ataque direto ao inseto transmissor por meio de certos inseticidas aplicados nos domicílios humanos e suas dependências, como paiois, galinheiros, depósitos, etc.3232. Pinotti M. A situação atual no Brasil da luta contra a malária e a doença de Chagas. Rev Bras Med. 1952; 9(3):191-266. (p. 264)

A doença de Chagas era um importante flagelo nos municípios do interior paulista e Samuel Pessoa considerou sua disseminação um fenômeno próprio de regiões de ocupação antiga, onde a devastação das matas encarecia a utilização da madeira para a construção das moradias e a pobreza de seus habitantes inviabilizava o uso da alvenaria, compelindo-os à edificação de casas de pau-a-pique, ideais para a proliferação do inseto no interior das fendas produzidas em suas paredes de barro3838. Pessoa SB. Parasitologia Médica. 2a ed. São Paulo: Editora Renascença; 1949.. Com o crescimento desordenado da cidade de São Paulo, alimentado pelo êxodo rural e pelas migrações nordestinas, a tripanossomíase americana, doença até então considerada rural, bateu à porta da capital do estado, ou melhor, nos bancos de sangue de São Paulo. A hipótese de transmissão da doença por transfusão sanguínea foi aventada em meados da década de 1940 e sua comprovação se deu nos anos 1950. A capital paulista registrou a incidência de chagásicos entre os doadores de sangue no Hospital das Clínicas e no Hospital Municipal de São Paulo, sendo que algumas dessas pessoas afirmaram nunca terem visto o barbeiro:

Os doutores Oswaldo Mellone e Ruy Faria trouxeram os dados de sua experiência nos serviços que dirigem no Hospital das Clínicas e no Hospital Municipal de São Paulo, sendo que neste último a incidência de chagásicos entre os doares de sangue superou a de sifilíticos em 1957, pois as porcentagens são de 2,8% e 2,2%, respectivamente. Torna-se a doença de Chagas, assim, um problema sanitário mais importante que a sífilis, para os bancos de sangue públicos de nossa Capital3939. Debates sobre a doença de Chagas. O Estado de São Paulo. 11 Set 1957. p. 10.. (p. 10)

Outra doença bastante conhecida nos sertões paulistas era a leishmaniose tegumentar. O primeiro diagnóstico desta patologia no Brasil foi estabelecido por Antonio Carini, Ulysses Paranhos e Adolpho Lindenberg em 1909, a partir de observações de casos de portadores da úlcera de Bauru – doença temida que desfigurou centenas operários e engenheiros envolvidos na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, projetada para ligar a cidade paulista de Bauru a Corumbá, no Mato Grosso4040. Benchimol JL, Silva AFC. Ferrovias, doenças e medicina tropical no Brasil da Primeira República. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2008; 15(3):719-762. Doi: doi.org/10.1590/S0104-59702008000300009.
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. Transmitida por mosquitos denominados de flebótomos, a leishmaniose era especialmente encontrada em áreas recém-desbravadas – que nos anos 1940 e 1950 eram as regiões de Marília, Presidente Prudente e Araçatuba, na porção ocidental do estado – e os casos reportados da doença eram considerados esporádicos. A despeito disso, jornais na capital paulista noticiavam a frequência de pessoas nas grandes cidades “com lesões e deformações nas mãos, e principalmente no nariz, sem que sejamos capazes de ligar esse fato com sua origem. A causa é a leishmaniose”4141. Exterminando as suas matas o Brasil afasta a leishmaniose. Correio Paulistano. 10 Abr 1959. p. 2.. (p. 2)

Por fim, cabe destacar a ancilostomíase e a esquistossomose. A primeira, associada ao personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato, era provocada especialmente pela ação do Necator americanus e sua infestação no estado de São Paulo era particularmente elevada no litoral, como nos municípios de Ubatuba e Caraguatatuba3434. Pessoa SB. Ensaio sobre a distribuição geográfica de algumas endemias parasitárias no estado de São Paulo. Arq Hig. 1942; 2(11):7-25.. Já a esquistossomose, doença cujo agente etiológico é o Schistosoma mansoni e cujo ciclo depende do caramujo de água doce, os primeiros casos de transmissão foram identificados na capital paulista nos anos 1950, principalmente nas áreas próximas ao rio Tietê, em estado de degradação cada vez mais acentuado. Os casos reportados dessa doença refletiam as precárias condições impostas às populações nas periferias da capital, como a ausência de saneamento básico, embora, na época, os migrantes nordestinos, vindos de áreas endêmicas, tenham sido responsabilizados por trazerem a doença a São Paulo4242. Mota A. Tempos cruzados: raízes históricas da Saúde Coletiva no estado de São Paulo, 1920-1980 [Tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2018..

Considerações finais

Este artigo buscou refletir sobre dois importantes eixos que se convergiram no processo de fundação do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo: a internacionalização de cientistas brasileiros consubstanciada com visitas de médicos nacionais aos institutos de Medicina Tropical na Europa e a existência de endemias rurais no estado de São Paulo que começavam a ser reportadas na própria capital. Sobre o processo de internacionalização, este artigo destacou os contatos tecidos entre médicos portugueses e brasileiros desde a década de 1940 que resultaram na viagem de Carlos Lacaz à cidade de Lisboa em 1958, onde visitou o Instituto de Medicina Tropical que, segundo ele, foi a fonte inspiradora para o seu projeto em São Paulo.

Paralelamente aos contatos internacionais, a criação de um centro de pesquisa e de formação científica em Medicina Tropical justificou-se pela existência, não apenas no Brasil como um todo, mas especialmente no estado de São Paulo, de endemias rurais, associadas à pobreza, como a doença de Chagas, a ancilostomíase, a esquistossomose, a leishmaniose e a malária, que, no contexto de migrações populacionais direcionadas a São Paulo, começaram a ser reportadas também na capital paulista.

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    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2020
  • Aceito
    20 Ago 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br