O direito à prevenção e a transformação do dispositivo da sexualidade em tensão com a nova-velha ordem: uma agenda de pesquisa

The right to prevention and the transformation of the sexuality dispositif in tension with the new-old order: a research agenda

El derecho a la prevención y la transformación del dispositivo de sexualidad en tensión con el nuevo y viejo orden: una agenda de investigación

Vera Paiva Maria Cristina Antunes Mauro Niskier Sanchez Sobre os autores

Agradecemos os comentários generosos e instigantes de Fernando Seffner; César Abadia-Barrero e Héctor Ruiz-Sánchez; Mônica Franch e Felipe Rios; Cláudia Cárdenas e Ivia Maksud sobre o artigo, que convergem na avaliação sobre o retrocesso nas políticas que, por duas décadas, ampliaram nas escolas o direito à prevenção das IST/Aids baseada em saberes técnico-científicos. Ao responder, ampliaremos a discussão dos resultados mirando os caminhos de menor resistência que o contexto oferece para sustentar o direito à prevenção.

Concordamos que a experiência com a sexualidade é sempre atravessada pela politização do sexo. Seffner11. Seffner F. Entre saber, crer e desejar. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190685. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190685.
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ressalta que essa politização, acirrada por movimentos como “escola sem partido” que pedem a supressão de temas (como gênero), amesquinha a escolaridade obrigatória e volta a radicalizar a disputa entre religiões, famílias e gestores com ambição de controlar o que “se supõe que fazem” os jovens.

O quadro 1 do nosso artigo22. Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da Aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180625. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180625.
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pretendeu sintetizar como, na abordagem multicultural dos direitos humanos, a análise da política sexual é atualizada em estreita colaboração com a comunidade escolar, fortalecendo a autonomia tanto da comunidade quanto dos jovens. A coprodução dos dados sobre o que pensam e fazem permitiu que estudantes se reconhecessem na diversidade como sujeitos da sua sexualidade. Antes de qualquer publicação, o debate público dos resultados com professores, pais e autoridades locais de saúde e educação sustentou e ampliou o seu direito à prevenção. Ao coproduzir respostas às perguntas como as do quadro 1, especialistas em prevenção e a comunidade encontrarão os caminhos de menor resistência.

O comentário de Franch e Rios33. Franch M, Rios LF. O direito à prevenção da Aids: nas escolas, nos serviços de saúde e alhures. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190750. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190750.
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apontam outras absurdices à luz de evidências científicas que têm desautorizado políticas de saúde bem-sucedidas e programas focalizados em segmentos mais vulneráveis ao HIV. Concordamos que uma parcela de jovens socialmente vulneráveis é mais bem abordada em espaços de circulação juvenil fora da escola, que necessitam atenção maior e dependem fortemente de organizações não governamentais cujo financiamento nacional e internacional mingou.

Nessa mesma direção da análise de como se politiza o sexo nessa conjuntura, a perspectiva de César Abadia-Barrero e Héctor Ruiz-Sánchez44. César Abadía-Barrero C, Ruiz-Sánchez HC. Supremacía blanca y moralidad conservadora como amenaza a la prevención del VIH y la salud sexual y reproductiva. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190866. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190866.
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é instigante ao propor uma reconfiguração da “ordem mundial” que articula o nacionalismo branco com uma plataforma política que inclui uma moralidade “xenófoba, misógina e racista” que quer substituir a evidência científica. Pensando a experiência latino-americana, o autor concorda que governos como o brasileiro rememoram a violência na região dos tempos da Guerra Fria, ancorados no fundamentalismo cristão evangelizador.

Nessa mesma direção, alerta recente de Jacqueline Pitanguy e Carmen Barroso55. Pitanguy J, Barroso C. Sexo e gênero, a fabricação do perigo. Folha de São Paulo [Internet].13 Fev 2020 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/sexo-e-genero-a-fabricacao-do-perigo.shtml?fbclid=IwAR28y_F6u0lfN2le-prjt_H19aGU2Hu5w3Av5y4roe3lMiqPJ_puOzA3iPA
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analisa um “novo paradigma” disseminado por alianças internacionais com abundantes recursos. As autoras, da mesma geração das ancestrais referências feministas para educação sexual citadas no artigo, consideram as propostas da ministra Damares Alves66. Cancian N. Sem citar preservativos, campanha contra gravidez na adolescência prega reflexão. Folha de São Paulo [Internet]. 3 Fev 2020 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/02/sem-citar-preservativos-campanha-contra-gravidez-na-adolescencia-foca-em-reflexao.shtml
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, como promover a abstinência sexual dos jovens (comprovadamente ineficaz77. Kirby D, Coyle K. School-based programs to reduce sexual risk-taking. Child Youth Serv Rev. 1996; 19:415-36. ), apenas sintomas desse paradigma. O estímulo à insegurança social, “estratégia do autoritarismo fundamentalista que ressuscita o medo ao comunismo, ao socialismo, a um apocalipse nos alicerces da família”, identifica os novos movimentos sociais (feministas, LGBTQ, mulheres negras e ambientalistas) como “agentes de desordem e destruição”55. Pitanguy J, Barroso C. Sexo e gênero, a fabricação do perigo. Folha de São Paulo [Internet].13 Fev 2020 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/sexo-e-genero-a-fabricacao-do-perigo.shtml?fbclid=IwAR28y_F6u0lfN2le-prjt_H19aGU2Hu5w3Av5y4roe3lMiqPJ_puOzA3iPA
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Em primeiro lugar, como sugerem Pitanguy e Barroso55. Pitanguy J, Barroso C. Sexo e gênero, a fabricação do perigo. Folha de São Paulo [Internet].13 Fev 2020 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/sexo-e-genero-a-fabricacao-do-perigo.shtml?fbclid=IwAR28y_F6u0lfN2le-prjt_H19aGU2Hu5w3Av5y4roe3lMiqPJ_puOzA3iPA
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e todos os comentaristas, não será bom estar um passo atrás na compreensão do avanço acelerado, coordenado e eficiente desse novo paradigma, ou pensar que vivemos “uma onda com propostas tão absurdas que vai passar”55. Pitanguy J, Barroso C. Sexo e gênero, a fabricação do perigo. Folha de São Paulo [Internet].13 Fev 2020 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/sexo-e-genero-a-fabricacao-do-perigo.shtml?fbclid=IwAR28y_F6u0lfN2le-prjt_H19aGU2Hu5w3Av5y4roe3lMiqPJ_puOzA3iPA
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Em segundo lugar, acrescentamos que o ataque aos Direitos Humanos (DH) caracteriza esse paradigma (ou nova ordem) desde meados dos anos 2010, embora sejam, simultaneamente, foco de ataque e base para a resistência88. Chase A, Bonai H, Gursin S, Mahdavi P. Cross-cutting Global Conversations on Human Rights: interdisciplinary, intersectionality, and indivisibility [Internet]. In: International Workshop to Explore Global Challenges to Human Rights; 2019; Los Angeles. Los Angeles: Oxy Occidental College; 2019 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www.oxy.edu/news/international-workshop-explore-global-challenges-human-rights
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Perspectivas baseadas em direitos humanos foram integradas globalmente em leis e políticas públicas, fornecendo uma linguagem legal e política para a solidariedade, sentidos para noções de igualdade e dignidade universais que têm sido contrastadas com a experiência de desigualdade. Os DH permanecem uma plataforma radical para enfrentar o declínio de sociedades democráticas que normalizávamos como horizonte desejável. Pesquisas sobre como diferenças produzem desnecessariamente a desigualdade (entre homens e mulheres, por exemplo) mostraram que desigualdades são determinantes sociais do processo saúde-doença. A resposta brasileira à epidemia da Aids no âmbito do estado laico e do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido especialmente produtiva de saberes técnico-científicos para mediar programaticamente o impacto da desigualdade no adoecimento e mitigar a vulnerabilidade social ao HIV. Se, de um lado, nacionalismos populistas tratam os DH como adversários ideológicos88. Chase A, Bonai H, Gursin S, Mahdavi P. Cross-cutting Global Conversations on Human Rights: interdisciplinary, intersectionality, and indivisibility [Internet]. In: International Workshop to Explore Global Challenges to Human Rights; 2019; Los Angeles. Los Angeles: Oxy Occidental College; 2019 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://www.oxy.edu/news/international-workshop-explore-global-challenges-human-rights
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, de outro, o legado desse investimento permite que DH sigam como uma perspectiva robusta para reivindicar e garantir proteções para todos em um clima de crescente desigualdade, violência e discriminação.

Em terceiro lugar, nossa experiência em campo99. Paiva V, Ayres JRCM, França Jr I, Silva CG, Barros CRS, Cabral CS, et al. Vulnerabilidades de jovens às IST/HIV e à violência entre parceiros: avaliação de intervenções psicossociais baseadas nos direitos humanos. Projeto temático /FAPESP (2019-2024). continua indicando que a nova ordem e paradigma enfrentarão as transformações significativas no dispositivo sexual que configuram o contexto sociocultural, político e programático para os resultados apresentados no artigo. Carrara (2015)1010. Carrara S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. MANA. 2015; 21(2):333-45. discute como a emergência do conceito de direitos sexuais operado por ativistas, gestores de políticas, operadores de direito, profissionais de saúde e pesquisadores em três décadas produziu um novo regime secular para a sexualidade e um código moral regulador que sustenta a dignidade da diversidade sexual e de gênero, transformando o próprio dispositivo da sexualidade. O sexo bom/normal do dispositivo do século passado – relacionado à moralidade cristã sem ser sua exata tradução – era o sexo reprodutivo, heterossexual, no casamento, em casa e monogâmico; sexo anormal e não natural era por dinheiro, travesti, transexual, fetichista e transgeracional. No século XXI, o desejo é uma verdade interna, o bom sexo é plástico e deve ser consentido e associa-se à felicidade e ao bem-estar1010. Carrara S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. MANA. 2015; 21(2):333-45. . A promiscuidade permanece como categoria-ponte entre a moral cristã e os regimes seculares da sexualidade, e o sexo ruim/anormal é sexo sem prazer, irresponsável e descontrolado – que expõe ao adoecimento (às IST/Aids) ou faz mal aos outros, como o abuso e a pedofilia.

Na sua produtiva construção formal, inspirada em um panorama da pesquisa etnográfica recente sobre sexualidades brasileiras, Carrara ressalta que tensões, contradições e mediações entre os princípios regendo os dois regimes informarão práticas sexuais, diferentes políticas sexuais e estilos de regulação moral.

Como ressaltam Cardenas e Maksoud1111. Mora C, Maksud I. Juventude, sexualidade, religião: questões atuais de pesquisa no campo do HIV/Aids. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190751. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190751.
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, Rios e Franch22. Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da Aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180625. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180625.
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; em nossos dados, a religião não iguala seus adeptos e a disparidade entre crenças e comportamentos é um desafio para a prevenção, ampliado nesse contexto de transformação nos dispositivos sexuais.

Em quarto lugar, os comentaristas preocupam-se com o abandono de exitosas pedagogias da prevenção com participação comunitária, acirrada pela corrente politização do sexo, e com a prevenção frequentemente reduzida aos novos recursos farmacológicos. Acesso à Profilaxia Pós e Pré-Exposição (PEP e PreP) e testagem não eram promovidas nas políticas de prevenção combinada para adolescentes na época do estudo e por isso não as tematizamos – mas devem ser, concordamos. O estudo-intervenção foi centrado na promoção do acesso ao preservativo combinada com conversas e oficinas sobre a dinâmica das cenas sexuais vividas pelos jovens, atravessadas por diferenças de poder e implicadas em cenários que dificultam o acesso aos recursos de prevenção ou ao seu uso e à informação completa e atualizada por evidências. Como valorizam Cárdenas e Maksud1111. Mora C, Maksud I. Juventude, sexualidade, religião: questões atuais de pesquisa no campo do HIV/Aids. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190751. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190751.
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, nos jovens estudados, a interseccionalidade atravessa a cena sexual que inspirou nossas escolhas analíticas. Concordamos que orientação sexual, relações de gênero e étnico-raciais devem guiar a agenda de pesquisa-intervenção. É importante ressaltar que, ao contrário do que entenderam as autoras, no artigo apresentamos apenas dados sobre estudantes. Os pais foram abordados no projeto, mas são tema de outros textos citados no artigo.

Finalmente, governos conservadores frequentemente chamam de “despesa”1212. Gullino D. Pessoa com HIV ‘é uma despesa para todos’, diz Bolsonaro. Globo [Internet]. 2020 [citado 5 Fev 2020]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/pessoa-com-hiv-uma-despesa-para-todos-diz-bolsonaro-24231125
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(desperdício) a atenção à saúde de pessoas significadas como minorias depravadas que, assim desrespeitadas, seguirão desproporcionalmente mais vulneráveis às IST/Aids como resultado de ideologias discriminatórias, seguindo décadas de evidência. A UNAIDS1313. UNAIDS. UNAIDS DATA 2019 [Internet]. Geneva: UNAIDS; 2019 [citado 5 Fev 2020]. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2019-UNAIDS-data_en.pdf
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os enfrenta interpretando como inaceitável o recuo no financiamento à resposta à epidemia. Alerta que meninas e jovens LGBTs, negros e indígenas permanecem definindo “adolescentes” como população-chave na epidemia global, cujo risco relativo permanece 50% mais alto do que entre adultos e atribui o fato à negação dos seus direitos sexuais e reprodutivos.

Monitorar e intervir sobre o efeito da nova ordem velha que aumentará a vulnerabilidade ao HIV depende menos da retórica sobre direitos humanos e gênero que do diálogo sobre a experiência viva enquanto compartilhamos a interpretação sobre evidências rigorosamente colhidas com a comunidade local. Temas silenciados no cenário escolar emergirão inevitavelmente porque constroem a experiência cotidiana com a sexualidade e com políticas sexuais. Emergirão especialmente entre os jovens que têm uma experiência corporal que prolonga braços e olhos no celular que alcançam a internet, com amplo acesso aos diferentes discursos seculares e religiosos da sexualidade.

Nessa conjuntura que produziu as ofensivas antigênero e a “des-democratização”1414. Corrêa C, Kalil I. Políticas antigénero en américa latina: Brasil – ¿la catástrofe perfecta? [Internet]. Rio de Janeiro: ABIA; 2020 [citado 28 Fev 2020]. Disponível em: https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/Ebook-Brasil%2020200204.pdf
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(um outro modo de caracterizar essa “ordem-paradigma”), sustentar o direito à prevenção depende de considerarmos as fissuras resultantes do enfrentamento entre os dois regimes seculares da sexualidade e da politização do sexo. Fissuras aparecem até na fala de governantes conservadores, como quando a defensoria pública e o ministro da saúde brasileiros1515. UOL Notícias. “Tudo tem seu tempo”: a campanha de Damares contra gravidez precoce. São Paulo: Uol; 2020 [citado 4 Fev 2020]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2020/02/04/tudo-tem-seu-tempo-a-campanha-de-damares-contra-gravidez-precoce.htm
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fizeram recuar a proposta de “abstinência” de Damares para a do “adiamento do início da vida sexual” (que nosso estudo também considerou protetor).

Tínhamos a intenção de levantar perguntas com base nos resultados apresentados que se traduzissem em uma agenda de pesquisa para esses novos tempos. Os generosos comentaristas contribuíram muito nessa direção.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2020
  • Aceito
    16 Mar 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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