Estratégia Saúde da Família e práticas populares de saúde: diálogos entre redes vivas em um território de Manaus, AM, Brasil

Family Health Strategy and popular health practices: dialogs between live networks in a territory in the city of Manaus, AM, Brazil

Estrategia Salud de la Familia y prácticas populares de salud: diálogos entre redes vivas en un territorio de Manaus, AM, Brasil

Naila Miriam Las-Casas Feichas Júlio Cesar Schweickardt Alcindo Antonio Ferla Sobre os autores

Resumos

As práticas tradicionais de cura apresentam-se no cotidiano das pessoas de diversas formas: “puxação”, massagem, chás, “garrafadas”, rezas. A proposta do presente estudo foi produzir um diálogo entre a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o cuidado popular que ocorre em uma comunidade de Manaus. Trata-se de uma pesquisa etnográfica com o relato de quatro cuidadores populares identificados pelos agentes comunitários do território da ESF. Os cuidadores narraram suas vivências, iniciação na prática do cuidado e especialidades nesse processo. Alguns cuidadores também desenvolviam atividades de parteiros por meio da técnica de “pegar menino” e “puxar barriga”, enquanto outros somente rezavam. Durante a pesquisa, a equipe de saúde foi desenvolvendo estratégias de diálogo com a comunidade e com os cuidadores populares, buscando superar possíveis preconceitos que dificultam o diálogo intercultural e uma relação colaborativa no cuidado das pessoas no território.

Estratégia Saúde da Família; Medicina tradicional; Atenção à Saúde


Traditional healing practices emerge in people’s daily lives in different forms: massages, teas, prayers, and practices known in the region as “puxação” and “garrafadas”. This study aimed to promote an interaction between the Family Health Strategy and the popular care that occurs in a community in the city of Manaus, Northern Brazil. It is an ethnographic research with reports provided by four popular caregivers identified by the community agents of the Family Health Strategy territory. The caregivers narrated their experiences, their initiation in the care practice and their “specialties” in this process. Some caregivers developed childbirth activities through the technique of “pegar menino” and “puxar barriga” (catching the boy and pulling the belly), while other caregivers only prayed. During the study, the health team gradually developed dialog strategies with the community and the popular caregivers, in order to overcome prejudices that hinder the intercultural dialog and a collaborative relationship in the care provided for people in the territory.

Family Health Strategy; Traditional medicine; Healthcare


Las prácticas tradicionales de cura se presentan en el cotidiano de las personas de diversas formas: “puxaçâo”, masaje, infusiones, “garrafadas”, rezas. La propuesta del presente estudio fue producir un diálogo entre la Estrategia Salud de la Famila (ESF) y el cuidado popular que ocurre en una comunidad de Manaus. Se trata de una investigación etnográfica con el relato de cuatro cuidadores populares identificados por los comunitarios del territorio de la ESF. Los cuidadores narraron sus vivencias, iniciación en la práctica del cuidado y sus “especialidades” en tal proceso. Algunos cuidadores también desarrollaban actividades de parteros por medio de la técnica de “pegar menino” y “puxar barriga” mientras que otros solamente rezaban. Durante la investigación, el equipo de salud fue desarrollando estrategias de diálogo con la comunidad y con los cuidadores populares, buscando superar posibles prejuicios que dificultan el diálogo intercultural y una relación colaborativa en el cuidado de las personas en el territorio.

Estrategia Salud de la Familia; Medicina tradicional; Atención de la Salud


Introdução

No caminhar da Equipe Saúde da Família (ESF) na comunidade, pelas ruas estreitas, becos e igarapés, o calor, a umidade, os diferentes cheiros e as vozes marcam as visitas domiciliares em um bairro da cidade de Manaus. Nesse espaço da ESF também são compartilhadas práticas de cuidado realizadas por terapeutas populares. Nos territórios convivem diferentes modelos de saúde em que a equipe da saúde compartilha do cuidado com rezadores, parteiras, ervateiros e curandeiros.

As formas tradicionais de cuidado fazem parte do cotidiano das pessoas que têm como referência cuidadores populares presentes no território. Desse modo, como integrantes de uma equipe de saúde, buscamos caminhar nesse território para escutar essas práticas que se colocam como outras, mas que estão muito próximas da vida das pessoas. Desse modo, buscamos nos colocar como pesquisadores in-mundo11. Silva KL, Moebus RLN, Ferreira VL. Sobre e sob o território: entre a delimitação e a desterritorialização na produção do cuidado. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 91-5. (Livro 1)., como cuidadores interessados nos encontros e diálogos interculturais. Afinal, a mudança de orientação tecnoassistencial para os cuidados primários também está associada à articulação com os saberes e práticas disponíveis nos territórios onde se atua22. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2006..

As políticas nacionais que tratam dos cuidados e práticas que envolvem outros modos de fazer saúde são as seguintes: Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC)22. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2006., que surge por recomendação das Conferências Nacionais de Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicada em 2002 e revisada em março de 201733. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM nº. 849, de 28 de Março de 2017. Inclui a arteterapia, ayurveda, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa e yoga à política nacional de práticas integrativas e complementares. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.; e Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS)44. Schweickard JC, Lima RTS, Ferla AA, Martino A. O “Programa Mais Médicos” e o trabalho vivo em saúde em um município da Amazônia, Brasil. Saude Redes. 2016; 2(3):328-41., de novembro de 2013, que estimula o diálogo com as práticas populares e sua integração no Sistema Único de Saúde (SUS), propondo a construção compartilhada e participativa do conhecimento.

As políticas nacionais citadas aproximam-se do cuidado popular na prática de chá e fitoterapia, mas não abordam o “puxar”, o “pegar a barriga” (expressão utilizada para descrever a técnica que as parteiras utilizam para massagear a barriga da grávida e verificar a posição da criança), rezar/benzer (prática dos cuidadores populares para combater o adoecimento, principalmente de crianças) ou costurar rasgadura (tratamento aplicado pelos cuidadores populares nos casos de dores musculares), práticas tão presentes na comunidade. Na ESF não é comum a construção de um cuidado compartilhado entre o saber popular e o saber biomédico, nem sua integração nas políticas públicas de saúde44. Schweickard JC, Lima RTS, Ferla AA, Martino A. O “Programa Mais Médicos” e o trabalho vivo em saúde em um município da Amazônia, Brasil. Saude Redes. 2016; 2(3):328-41..

Lagdon et al.55. Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Lat Am Enfermagem. 2010; 18(3):459-66. explicam que o sistema biomédico, ou seja, a medicina ocidental praticada em nossa sociedade, nada mais é do que uma forma particular de cultura. No entanto, em nossa sociedade, temos sistemas de saúde tão distintos quanto as culturas que a compõe. Schweickardt66. Schweickardt JC. Magia e religião na modernidade: os rezadores de Manaus. Manaus: EDUA; 2002. relata que a Amazônia, desde o período colonial, traz uma medicina que, além dos saberes biomédicos aprendidos nas faculdades de medicina. também se utilizava das práticas populares de cura - como o uso de sanguessugas, sangrias, purgas e clisteres -, mas , contraditoriamente, disputavam e combatiam os curadores populares, pajés e suas práticas. A Amazônia ainda permanece como um espaço rico em práticas de cura presentes nas mais diversas etnias e culturas. Apesar disso, ainda pesa sobre as práticas populares a desconfiança dos modelos biomédicos. Essas práticas são detentoras de outra racionalidade, com cosmovisão e lógica diferentes de organização do pensamento e da prática biomédica66. Schweickardt JC. Magia e religião na modernidade: os rezadores de Manaus. Manaus: EDUA; 2002..

Os cuidadores populares envolvem a família no diagnóstico e tratamento, sendo que o cuidado ocorre em cenários conhecidos da pessoa, como seu lar ou local religioso. Podemos ver algumas semelhanças entre o cuidado popular e o que ocorre na ESF, como durante as visitas domiciliares e as atividades desenvolvidas em igrejas e escolas. Helman77. Helman CG. Cultura, saúde & doença. 4a ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. destaca que os profissionais da Medicina de Família e Comunidade (MFC) têm como fundamento um lar e uma comunidade e tratam do corpo e mente das pessoas sem deixar de considerar as questões sociais. O antropólogo e médico de Família e Comunidade Francisco Arsego88. Oliveira FJA. Concepções de doença: o que os serviços de saúde têm a ver com isto? In: Duarte LFD, Leal OF, organizadores. Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 81-94. destaca que os MFC são mais permeáveis ao uso de chás e benzeduras. O estar na comunidade é uma de suas características, tendo como atributo o cuidado longitudinal e integral com formação de vínculo e centrada na pessoa.

A proposta do estudo é desarmar o olhar medicalizante da formação médica ocidental e se abrir à possibilidade de produção de conhecimento da vida do outro a partir do encontro, entendendo que encontro de cuidado, como explicam Merhy et al.99. Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. Textos reunidos. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 151-71., ocorre em ato entre o trabalhador da saúde e o usuário para recuperar seu “caminhar a vida”. Desse modo, entendemos que o encontro também acontece entre saberes diferentes, quando profissionais de saúde e cuidadores populares promovem a possibilidade do diálogo.

O objetivo deste trabalho é apresentar a experiência de pesquisa de uma médica da ESF na relação com as práticas populares de saúde em um determinado território. Desse modo, buscamos nos aproximar do entendimento de rituais e lógicas promovidas por rezadores e puxadores na produção do cuidado. Depois disso, temos como projeto futuro realizar rodas de conversas para troca de saberes entre a ESF e os cuidadores populares na comunidade.

Merhy et al.1010. Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes vivas: multiplicidades girando existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64. trazem o conceito de Redes Vivas como as conexões que criam possibilidades existenciais de sujeitos, que são múltiplos e em constante produção no mundo. As pessoas produzem e protagonizam seu processo de cuidado, trilhando e tecendo suas redes de vida, sociabilidade e cuidado. Sair dos muros das instituições oficiais e estar nas ruas e nos territórios vivos onde os cuidadores populares atuam e são parte nos permite perceber a riqueza e as tensões da vida em produção1010. Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes vivas: multiplicidades girando existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. As práticas tradicionais de cuidado e os cuidadores tradicionais compõem o conjunto de recursos mobilizado pelas pessoas para a produção da sua saúde. Portanto, conhecer as redes vivas que surgem e se perpetuam nos territórios – redes que geram cuidado no cotidiano de dificuldades de acesso à rede instituída e que são legitimados pelo próprio cuidado ofertado – permite que se reconheçam as redes que produzem vida fora do horário comercial de funcionamento dos serviços de saúde1010. Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes vivas: multiplicidades girando existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Mas também, e sobretudo para os objetivos deste estudo, temos a intenção de produzir conexões entre o cuidado oficial e o cuidado desenvolvido pelas práticas tradicionais, que atuam no mesmo território.

Abordagem metodológica

O estudo foi realizado na comunidade União, situada no bairro Parque 10 de Novembro, zona centro-sul de Manaus, na área de abrangência da equipe de ESF 452. Em 2010, a população do bairro era de 41.256 habitantes1111. Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010: indicadores de bairros – região Norte [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2018 [citado 4 Fev 2018]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html
https://censo2010.ibge.gov.br/resultados...
. De acordo com a contagem dos cadastros válidos da Equipe da ESF 452, no período da pesquisada realizada entre março e julho de 2018, a população de referência da equipe era de 5.300 habitantes. A comunidade surgiu na década de 1970 em área de ocupação das margens do igarapé Bindá, que periodicamente transborda no período de chuvas amazônicas, trazendo prejuízos à comunidade (figura 1). Muitas casas estão nas margens desse igarapé. A comunidade sofre também com a violência pela disputa do tráfico de drogas e os conflitos com a segurança pública.

Figura 1
Igarapé Bindá e acesso às casas

A identificação dos cuidadores populares foi feita por meio de conversa com usuários e outros trabalhadores da saúde, como o agente comunitário de saúde (ACS) – nossas “sementes”, como denominado na técnica de amostragem não probabilística em Bola de Neve, ou snowball sampling)1212. Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas. 2014; 22(44):203-20.. Não trabalhamos com o conceito de saturação; preferimos trabalhar, assim como Minayo, com a noção de “refletir em quantidade e intensidade, as múltiplas dimensões do fenômeno estudado e buscar a qualidade das ações e das interações”1313. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12. (p. 10), uma vez que a saturação pode implicar em perder “o sangue e a alma das expressões culturais”1313. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12. (p. 10). Merhy et al. falam em “perfil provisório” para classificar seus textos, pois “uma pesquisa não acaba” sempre recebendo “sinais dos campos nos encontros que continuam a produzir”1414. Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. (Políticas e cuidados em saúde / livro 1). (p. 13).

No trabalho de campo, quatro cuidadores aceitaram compartilhar suas narrativas conosco: D. Iara, D. Jarina, Sr. Roberto e ACS Joia (nomes fictícios). A pesquisa foi feita entre os meses de julho de 2018 e janeiro de 2019. Adotamos a análise etnográfica por meio das narrativas dos cuidadores, sendo as entrevistas transcritas e analisadas conforme o referencial antropológico. O método etnográfico tem dois pressupostos: o “afastamento do etnocentrismo” e a “relativização”. As condições para o pesquisador são as seguintes:

[...] contatar os pesquisados (os “nativos” das pesquisas em saúde, usuários de serviços de saúde, trabalhadores ou gestores da saúde, entre outros) e despir-se de seus preconceitos e valores para compreender os de outros1515. Nakamura E. O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica. Saude Soc. 2011; 20(1):95-103.. (p. 100)

O trabalho foi avaliado pela Secretaria Municipal de Saúde de Manaus e a ele foi concedida a carta de anuência, sendo posteriormente avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa por meio da Plataforma Brasil, e está de acordo com as Resoluções 466/2012 e 510/2016, que regulamentam a pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. O parecer foi de aprovação com o CAEE 87206318.0.0000.5016.

Resultados e discussão

Três dos quatro cuidadores entrevistados vivem no território de abrangência da ESF S52, sendo que uma delas é ACS da equipe, e apenas uma cuidadora, D. Iara, mora fora da área. A maioria das entrevistas ocorreu na casa dos cuidadores durante visita domiciliar. Em todas as narrativas, as ACS da equipe acompanharam a pesquisadora. No momento da pesquisa, a violência na comunidade estava muito intensa e por isso a pesquisadora-médica evitou fazer visitas sozinha. Alguns usuários sugeriram à equipe que evitassem estar nas ruas do bairro e fazer visitas. Em mais de uma ocasião, no período da pesquisa, a unidade de saúde foi fechada mais cedo e, em uma ocasião específica, não pode funcionar o dia todo.

D. Jarina conta que aprendeu a cuidar com sua avó e que ela, sua avó, sua mãe, um tio-avô e um tio foi herdaram esse dom de sua bisavó. O antropólogo Laplantine1616. Laplantine F. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes; 2004. afirma que o mais comum é que o dom de cura seja dado aos homens da família, o que não acontece nesse caso. D. Jarina complementa, parecendo justificar-se: “É porque lá no interior não tem Medicina e a gente se cuida com coisas do mato.” Além de aprender com a bisavó, ela tinha um “velho”, como ela chama, que a acompanhava e orientava.

Outra referência de cuidador popular na comunidade é o Sr. Roberto, cujo dom parece ter sido adquirido após um “baque”, como ele chama, quando estava na mata cortando árvores no interior do Amazonas. O dom de cuidar surge após uma doença de iniciação como fala Helman77. Helman CG. Cultura, saúde & doença. 4a ed. Porto Alegre: Artmed; 2003.. Nesse baque, o espírito de uma pessoa surgiu e o guia até hoje:

É, foi da noite pro dia. Eu não sabia nada disso, sabia muito era de bebida, bebia muito... eu disse, para eu começar isso, foi um baque que peguei nas costas à noite, passei 12 horas sem sentido [...] aquilo dizendo para nunca trabalhar até tarde, só umas 17 horas porque tudo quanto era de mau tava passando por aí. Aí ele me dizia que isso era uma brincadeira que fizeram comigo. Mas era pra mim... Que não ia morrer... do baque; ia viver até 1980. É. E você vai curar muita gente mesmo, mas não cobre! (Sr. Roberto)

A ACS Joia responde quando pergunto se o dom é desde criança: “Não sei, não sei... às vezes, eu ia no campo com meu pai pegar gado, aí eu enxergava as árvores pegando fogo [...] Só eu via.”.

Nonato, estudando os cuidadores populares de Parintins, interior do Amazonas, relata: “Não há escolas que instruam a pegar ossos, a partejar, benzer e curar, sendo isso realmente um dom particular de cada indivíduo ligado totalmente a forças mágicas e encantadas”1717. Nonato AAMPL, Alves EN, Anselmo Filho S. Entre o rural e o urbano: modos de viver a velhice em Parintins. Rev Eletrônica Mutações. 2016; 7(3):195-209. (p. 15). D. Iara explica que aprendeu sozinha:

A senhora sabe que não tenho estudo, não, só sei mal assinar meu nome. Mas a senhora acredita em dom que Jesus dá? Então, eu sou uma delas. Olha, o dom de puxar, com 7 anos eu já pegava dismintidura. Já, eu já nasci preparada com tudo. (D. Iara)

Todos reconhecem ser um dom a prática de cuidar e sendo um dom, dado por Deus, não se pode cobrar, tal como o espírito do Sr. Roberto falou. Ensina D. Iara:

Porque, assim, os dons preciosos que Jesus te dá, a palavra de Deus diz assim “Dá, Eu te dei de graça, de graça tu vai receber”, entendeu a palavra? [...] E a palavra de Deus ainda diz mais assim, (pra mim, não sei se fala pra vocês) que tudo vai ser cobrado naquele grande dia. Olha, eu não tenho permissão de cobrar nada de ninguém. (D. Iara)

Marcel Mauss explica que, por meio das trocas entre os indivíduos, surgem as regras de convívio social, de direito e de moral, sendo que o “objetivo é produzir um sentimento de amizade entre as pessoas envolvidas”1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. (p. 211), conectar e criar redes. Os bens trocados e os presentes dados e que devem ser retribuídos permitem a troca de almas, pois “misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas [...] Misturam-se as vidas e, assim, as pessoas”1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. (p. 212). Para Mauss1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003., presenteamos nossa alma, ou maná. Com nossos cuidadores, a dádiva recebida de seus espíritos protetores (o “velho” de D. Jarina, o “espírito de um homem” do Sr. Roberto e Deus para D. Iara e ACS Joia) é o dom de cuidar e, com esse dom, vem a obrigação de retribuir, cuidando sem cobrar e sem recusar ninguém.

Godbout et al.1919. Godbout JT, Caillé A. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: FGV; 1999. falam que “a dádiva não é uma coisa, mas uma relação social” (p. 16) por excelência. Ao receber uma dádiva, a pessoa fica devedora de quem deu a dádiva e deve retribuir, surgindo assim o sentimento de obrigação. O dar e retribuir dádivas cria um círculo de relações interpessoais, com as trocas alimentando as ligações estabelecidas. A primeira dádiva que recebemos é a vida! Tudo começa com a vida que nos é dada gratuitamente e o que mais trocamos entre nós, seres humanos, é a palavra, o discurso. Durante as rezas e orações, a palavra é dada como dádiva ao pedir pela cura, ao implorar melhora. Pela palavra, obtém-se a graça desejada. Joia, ao falar sobre a mãe em fase terminal, explica que:

[...] era eu que prendia porque eu orava mesmo, eu chorava nos pés de Deus mesmo, eu chorava pedindo e clamando, sabe? Aí eu sonhei com isso e foi quando eu mudei minha oração e disse assim: “Senhor, seja feita a Tua vontade”. Eu via que a minha mãezinha tava sofrendo muito, né? E foi quando Deus levou, foi rápido. (Joia)

Ter o dom significa, segundo os cuidadores, resignar-se à vontade de Deus e não fazer o que achamos melhor ou o que desejamos, mas o que Ele determina. Mesmo nomeando como “velho” ou “espírito”, todos creem em Deus e o reconhecem como responsável pelo seu dom. D. Jarina afirma: “Os remédios que eu faço é tudo da graça de Deus. Eu peço ajuda a Deus e a Nossa Senhora, as minhas protetoras, e aí faço aquele remédio”. Para D. Iara:

O dom da Medicina é um e o dom que Jesus dá é outro. Mas nada nessa terra se compara com o dom que Deus dá. Nada, nada, nada, nada, de jeito nenhum. O dom que Deus lhe dá é uma inteligência incomparável. (D. Iara)

A maneira que cada cuidador tem para cuidar, o que envolve, por exemplo, saber que remédio ou chá preparar, é própria, estando a magia do ato implícita nas falas. Paula Monteiro2020. Monteiro P. Magia e pensamento mágico. 2a ed. São Paulo: Ática; 1990. fala sobre a impossibilidade de separar magia e religião. Já Mauss1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. diz que o maná é a fonte comum entre elas. Esse autor, ao falar das qualidades que tornam uma pessoa mágica, explica que “não é mágico quem quer” (p. ٦٣)1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. e que o indivíduo pode já ter nascido com essas qualidades (dom inato) ou adquiri-las, como já descreve Helman77. Helman CG. Cultura, saúde & doença. 4a ed. Porto Alegre: Artmed; 2003.. Esclarece ainda que:

[...] a alma do mágico é essencialmente móvel e desligada do corpo [...] sendo, muitas vezes, escoltado por um certo número de auxiliares, animais ou espíritos, que não são senão seus duplos ou almas exteriores77. Helman CG. Cultura, saúde & doença. 4a ed. Porto Alegre: Artmed; 2003.. (p. 71-2)

Sr. Roberto explica – preferindo o gravador desligado – que:

Vejo uma pessoa, como um homem, sempre a mesma pessoa, e ouço. Um ou outro. Ele vem me buscar, aparece carro para me levar e trazer onde eu tenho que ir curar. Quando no interior, eu largava tudo, roça, tudo e ficava como dormindo, saia falando diferente, as pessoas viam. Ia pra rede e fica como dormindo, mas não dormia, não comia, nem bebia, só viajando com eles e curando. Já fui inté pro Japão com eles – era um corredor comprido e, no final, disseram que tava no Japão, um campo grande, bonito. O rio, conheço todo deles me levarem para curar. (Sr. Roberto)

Sr. Roberto explica que a viagem é só em espírito e o corpo fica. “E não cansa?”, indago. “Sim, por isso que briguei com eles e não vou mais”. “E não pode ir mais?”. Dá de ombros e sorri. “Fico muito cansado, não descanso”. Parece haver uma certa negociação com o espírito que o guia. Sr. Roberto tem oitenta anos e o espírito que o curou na mata, há muitos anos, quando lhe deu o dom, disse: “você vai curar gente, vai curar criança e se você passar de oitenta, vai viver muito tempo”.

Joia chama de “luzinha” o que vê:

Era a luzinha da criança, já não aparecia mais. Porque, se você faz as orações, você enxerga aquela luz assim, no final, a gente ora sempre de olho fechado, né? A gente enxerga aquela luz assim quando tá bem próximo aquela luz que a pessoa está forte. Mas quando a pessoa já tá perto de ir, a luz fica longe. (Joia)

Para Mauss, há três formas de uma pessoa se tornar mágica: “por revelação, por consagração e por tradição”1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. (p. 77). Sr. Roberto passou por um acidente que chama de “baque”, momento em que teve sua revelação. Joia é considerada mágica, detentora de um poder especial diante de suas companheiras de trabalho.

Paula Monteiro2020. Monteiro P. Magia e pensamento mágico. 2a ed. São Paulo: Ática; 1990. descreve como trabalho do antropólogo saber qual o sentido da crença na magia, o que a magia diz sobre o mundo, que sistema simbólico utiliza e como é capaz de intervir na ordem social. Monteiro explica que a magia não separa o mundo visível do sobrenatural e é sempre uma criação fundada na coletividade. Afinal, o rito só tem sentido e eficácia porque é a sociedade, que lhe empresta sua força, falando por meio do mágico. Segundo Levi-Strauss2121. Lévi-Strauss C. Eficácia simbólica. In: Lévi-Strauss C. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify; 2008. p. 201-20., a crença em monstros traz a doença para o interior do espírito, enquanto os micróbios é algo exterior. O mágico/xamã fornece uma linguagem ao doente que lhe permite exprimir estados não formulados. A doença instaura o caos na vida da pessoa enquanto o ritual de cura popular a ressignifica, tornando possível a cura.55. Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Lat Am Enfermagem. 2010; 18(3):459-66.

6. Schweickardt JC. Magia e religião na modernidade: os rezadores de Manaus. Manaus: EDUA; 2002.
-77. Helman CG. Cultura, saúde & doença. 4a ed. Porto Alegre: Artmed; 2003.

Uma preocupação importante nas narrativas é o temor de ser visto como alguém que faz o mal, que faz macumba ou feitiço. Algumas dessas experiências de preconceito são relatadas como vindas da própria equipe de saúde, principalmente da categoria médica. Esse medo foi o que impediu a participação de uma das cuidadoras referidas pela comunidade, D. Lu, que confessou que a Medicina sempre discriminou o cuidado popular e que não queria que outras pessoas além de mim e daqueles de quem cuida soubessem de seu dom ou a julgassem. D. Iara confessa que “os médicos não acreditam nestas coisas, né, [...] são coisas que estão assim abafadas, que a Medicina secou tudo.”. D. Jarina diz que, antes de aceitar contar sua experiência, foi se aconselhar com uma vizinha por medo: “Será que a doutora não quer me pegar em alguma falha?”.

D. Jarina já sofreu com o preconceito e a discriminação do seu dom na própria família e confessa que seu irmão (mesmo sabendo que os avós, a mãe e ela curavam):

[...] jogou umas coisas minhas fora, sei que matou minhas forças! Aquilo ali era a força que eu tinha que já vinha dos avós dela [avós da mãe]! Aí ele chegou um dia lá e disse que eu tava fazendo macumba para ele porque eu acendi umas velas lá no pé do coqueiro. Neste dia, ele até me bateu! E foi entrando dentro de casa e jogando as coisas fora, foi quebrando tudo, foi santo, jogou minhas cumbucas de coisa de rezar, ele matou minhas forças! Eu não sou macumbeira, não! Tinha minhas orações! Eu tenho minhas orações que eu me apego. (D. Jarina)

Mauss1818. Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. explica que os presentes têm taonga, estando ligados à pessoa a que pertenciam; taonga está ligado ao clã de origem e deseja voltar à terra e ao clã ao qual pertencia originalmente. Por meio desses presentes com taonga, transporta-se o maná da pessoa. Para os melanésios, as coisas inanimadas e os vegetais têm hau ou vento/alma (em latim), enquanto apenas os homens e os espíritos possuem maná. D. Jarina fala dos espíritos que recebeu de sua mãe por meio dos santos e cumbucas, suas coisas de rezar. Esses objetos tinham hau. Era graças a esses presentes que vinham de geração em geração que era transmitido o maná de sua família. Ao quebrá-los, seu poder diminuiu muito, não sendo possível mais rezar. Depois de quebrado, não há mais como recuperar seu dom, seu maná: “Volta não, o que quebrou, quebrou, volta não. Acabou, queimou!”

Durante o trabalho de campo, percebia que Sr. Roberto e D. Jarina falavam em rezar, mas D. Iara dizia que orava. A ACS Lua esclareceu que evangélico ora, enquanto os católicos rezam. D. Jarina e Sr. Roberto são católicos e ACS Joia e D. Iara são evangélicas. D. Jarina, no entanto, deixa claro que não sabe rezar como sua mãe: “É, eu rezo, mas é fraco. Mamãe é que era boa de reza. Mamãe reza dor de dente, dor de barriga, quebranto”. Para D. Iara, não é preciso falar nada ao orar: “Nada, nadinha, nada disso, não é preciso cantar nem rezar porque cada um tem seus dons. Eu sou uma pessoa que só oro.”

Para Sr. Roberto, o dom não se pode recusar e não há hora para adoecer; assim, ele reza quando precisarem:

Eles me procuram mais quando a criança tá ruim, tá assim atravessada, aí eu rezo e pego e ponho no lugar certo. Aí não falta gente lá em casa, é de manhã, de noite, meio-dia, sábado. Porque tem gente que não reza sábado. Porque toda hora que chega, de noite, se chegar de noite, eu rezo. (Sr. Roberto)

Outra ACS, Amor, conta que, às vezes, a avó não conseguia terminar de rezar uma criança:

E esse negócio que o pessoal fala, de quebranto, criança, né? A minha avó, ela fazia isso, ela rezava e aí, por exemplo, ela tivesse rezando e ela esquecesse a reza, ela tentava três vezes, se ela não conseguisse... era porque não ia dar jeito, a criança ia morrer. (Amor)

Quando tentaram matar D. Iara, ao levá-la para o interior, percebeu que não podia cuidar de algumas pessoas “Porque as outras duas pertenciam à magia negra e Deus não deixou que eu botasse minha mão.” Sr. Roberto esclarece que “Tem doença pesada que tira muito da gente, adoece.” e relembra de uma criança que trouxeram para rezar:

Uma vez chegou uma senhora com uma criança, ela tinha parece que uns dois anos, eu fiquei até com medo depois, ela chegou com uma menina no braço, eu tentei orar, mas não tinha mais jeito! Aí eu virei pra ela, fiquei assim, e disse “Olha, não vou mais rezar esta menina não! Infelizmente, que ela já tá nas mãos de Deus. E o senhor, talvez não chegue nem onde vocês estão morando.” E eles tavam de carro. Depois fiquei pensando... mas tem que falar mesmo, porque depois vão dizer que eu falei que ia ficar bom e morre, vão dizer que eu tô enganando. Não passou nem um mês, chegaram lá, essa mesma pessoa, eu nem conhecia, eu nem conheço, e disseram que trouxeram “esta neném aqui pro senhor rezar”. “Eu sou aquela que o senhor falou que não ia dar tempo nem chegar em casa, e morreu antes de chegar em casa mesmo...” (Sr. Roberto)

Três dos quatro cuidadores acompanhados também têm o dom de partejar, e duas dessas dizem que o dom de cuidar veio primeiro. O Sr. Roberto é reconhecido pela Comunidade como parteiro, que descobriu o seu dom quando realizou o parto da sua primeira filha em casa com outras parteiras:

Mas as parteiras maltrataram muito ela. E tinha um senhor lá, era até colombiano. Ela ficou lá, deitada. Ele disse: “rapaz, ela não vai ter hoje não. Ela vai dar dois acessos, este primeiro que parece que vai ter mas ainda não vai ter. Quando for lá pras 10 horas da noite, ela vai dormir e quando for lá pras 3 horas da manhã, ela vai ter, é que a criança vai nascer”. Acertou tudinho! Anoiteceu, deu umas 10 horas, ela ficou deitada, dormiu, deu umas 3 horas e a menina nasceu. Aí, aquilo me chamou a atenção. Eu tinha uma conhecida que ela tinha um livro... desses que estuda pra ser parteira, aí eu peguei aquele e comecei a ler, aí, fui aprendendo. (Sr. Roberto)

O assunto partejar rende com Sr. Roberto, que ajudou a parir muitos meninos, tanto no interior do Amazonas, em Santa Isabel do Rio Negro, quanto na capital Manaus. Sr. Roberto fez o parto de oito dos nove filhos que teve, sendo que somente o primeiro foi realizado por uma parteira. É com orgulho que seu filho Roberto Filho fala que o pai sabe o tipo de parto, o dia e até a hora que a mulher vai ganhar bebê.

D. Jarina aprendeu a fazer partos no interior do Piauí na época em que era dona de uma casa de entretenimento, mas o que chama de “purgante” para as mulheres beberem após o parto:

[...] eu já conhecia e aí eu dava pra alimpar o útero da pessoa, né? Aí, se a pessoa ficava muito machucada, de muita dor e tudo, eu fazia de mastruz. Pega mastruz, batia, tira o sumo e dava com leite pra pessoa ir tomando e acabar com aquelas dores. (D. Jarina)

D. Iara conta sobre o primeiro parto que fez por necessidade, quando morava no interior. Ela tinha 14 anos e estava só com a cunhada quando as dores começaram:

[...] e só tava eu e minha cunhada em casa e na hora que deu a dor e aquilo, Deus clarou a minha vida assim e foi meu primeiro parto que eu tive, com ela. Aí, Deus clareou, aí ela botou a placenta, era um meninão muito bonito. Arrumei ela primeiro, depois que fui arrumar o bebê. Eu cortei o imbigo, esterelizei a tesoura, puxei o cordão do imbigo, porque a gente tem que puxar para sair aquele líquido para não dar ruptura no imbigo; aí você corta três dedos, vira e amarra. Dá o banho, pronto, acabou o bebê, o bebê tá saudável. E com 3 dias cai. (D. Iara)

Schweickardt et al.2222. Schweickardt JC, Martins FM, Schweickardt KHSC. Epistemologia do cuidado pelas lentes do tradicional: saberes de parteiras e rezadores. In: Schweickardt JC, Albuquerque R, Ferla AA, Guimarães MCS, organizadores. Divulgação e jornalismo científico em saúde e meio ambiente na Amazônia. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2017. p. 130-40. comentam que

o reconhecimento do partejamento, enquanto ato do cuidado, enquanto rede viva, passa pela afirmação de um saber que tem ligações com a tradição, com o sagrado, com as tecnologias do cuidado e com as formas de se organizarem nos territórios. (p. 135)

A ESF e os cuidadores populares no mesmo território têm colaborado com uma cogestão do cuidado, aproximando as práticas dos dois modos de realizar o cuidado em saúde. A partir desse diálogo, algumas pessoas têm procurado a ESF para pedir orientação sobre os cuidadores. Outros são encaminhados aos cuidadores pela equipe de saúde. Um senhor que vinha em acompanhamento na ESF por dor no ombro foi orientado pela médica a procurar D. Iara, que “costurou a rasgadura” em seu ombro e explicou o problema que, mais tarde, ao fazer um exame de imagem, revelou o que D. Iara já havia percebido. Ensina D. Iara: “Eu peguei sebo de Holanda, óleo de máquina, uma Anador® e uma Cibalena®. Aí, pisei tudinho, fiz uma mafuá e fiz a massagem.”.

As gestantes costumam primeiro procurar D. Iara ou o Sr. Roberto para depois pedir a ultrassonografia de confirmação do sexo do bebê. Segundo os cuidadores, o exame serve apenas para confirmar o que já sabiam, pois não erram ao identificar o sexo das crianças. O espírito que guia Sr. Roberto o orienta:

Aí, quando é mulher que vem ver se está grávida, aí é a mesma coisa, eu rezo e a pessoa [espírito] vem e me ensina se tá, se não tá, se daqui a mais um mês. Aí quando é pra já ter o neném, a mesma coisa. É o mesmo que a pessoa vir assim... com a médica, fazer pré-natal, é a mesma coisa. Vem bem no comecinho, acompanho, mesma coisa. (Sr. Roberto)

Quando adoece, Sr. Roberto procura à ESF e à D. Iara. Há poucos meses caiu e machucou o braço e a equipe o acompanhou com todos os recursos disponíveis, mas a melhora foi muito lenta. Uma das ACS da ESF conseguiu falar com D. Iara, que o visitou e cuidou do braço, melhorando logo em seguida. Ela nos ensina:

Porque são os remédios da terra que sara, eles são melhor do que um gesso que a senhora coloca na perna. Se a senhora tiver uma fratura aqui, na sua mão e a senhora não quiser engessar, a senhora pegue e bote uma farinha dessas, bote 2 colheres num papeiro, rale limão e carvão, pile e bote ali dentro. Bote água e a senhora vai fazer uma papa de farinha. Acabar, esfrie, bote numa atadura e a senhora pode emplastar assim, toda noite. Isso emenda o osso que precisa ver como é que fica e não deixa sequela nenhuma. (D. Iara)

D. Jarina ensina à sua ACS um remédio para artrose com banha de cobra sucuri e mel (figura 2): “mas boa mesmo é a de cascavel”. Para a médica da equipe que está gripada, prepara uma garrafada (figura 3) para cheirar e desentupir: “Aqui tem casca de laranja, coronha, imbiriba, canela e... semente de imburana”.

Figura 2
Banha de cobra e mel

Figura 3
Garrafada

Considerações finais

A proposta de dialogar com os cuidadores, referência na comunidade União, foi o que impulsionou este trabalho. Foi revelador saber quem são e como são as suas formas de cuidar. Por outro lado, trazer esses aprendizados ao mundo biomédico também significou muito porque essas e outras cenas de cuidado estão em qualquer território de ação das equipes de saúde. Generosamente, os cuidadores permitiram mapear e descrever suas vivências.

O cotidiano se constitui em saber, que tem práticas e pensamentos que organizam a lógica da vida e produzem vida, produzem cuidados. O encontro dos saberes se faz na possibilidade de troca e de convívio, considerando o outro como efetivamente sabedor das coisas e não simplesmente como um informante de coisas para um eu-que-sabe2222. Schweickardt JC, Martins FM, Schweickardt KHSC. Epistemologia do cuidado pelas lentes do tradicional: saberes de parteiras e rezadores. In: Schweickardt JC, Albuquerque R, Ferla AA, Guimarães MCS, organizadores. Divulgação e jornalismo científico em saúde e meio ambiente na Amazônia. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2017. p. 130-40.. (p. 132)

Fazer a cogestão do cuidado na comunidade União e compartilhar com os cuidadores o acompanhamento do nascer e do viver permitiu à equipe dar abertura a outras formas de cuidar e repensar nossa prática. A pesquisa gerou na equipe um processo de análise sobre as potencialidades nos modos de ser e de agir no território. Desse modo, cada pessoa se desterritorializou a partir do encontro com o outro, sendo que esse outro também estava na própria equipe de saúde. A pesquisa desenvolvida na comunidade iniciou com esse projeto, mas continuará produzindo sinais no cotidiano do cuidado. Parafraseando Merhy et al.1414. Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. (Políticas e cuidados em saúde / livro 1)., este é o perfil provisório das narrativas coletadas até o momento. Importante dizer que a pesquisa se fez por meio de um processo de educação permanente, em que a relação ensino-serviço estava se produzindo em ato, ou seja, todos eram pesquisadores de si e de seu processo de trabalho.

A aprendizagem acumulada na pesquisa permite recomendar que a formação profissional, particularmente quando se trata da MFC, tenha mais contato com os saberes e as práticas tradicionais, seja pelo estudo e pesquisa em territórios concretos, seja pelo reconhecimento destes como pontos de contato das pessoas quando buscam o tratamento de seus males e percursos para a produção de suas saúdes. Essa recomendação inclui a produção ativa dessas conexões, na medida em que a racionalidade médica que está vigente no nosso meio inclui a desvalia dessas práticas e saberes como parte do cuidado. Reconhecer os cuidadores tradicionais existentes nos territórios também permite que as práticas oficiais, dos profissionais e dos serviços do sistema de saúde vigente produzam conexões com as redes vivas que operam no cotidiano. Por certo, como a pesquisa descreveu, não há esvaziamento dos saberes biomédicos e das práticas oficiais, mas a expansão da capacidade de produzir saúde como ação para prevenir e tratar doenças e expandir a potência da vida de cada pessoa sob cuidado, incluindo os trabalhadores.

Agradecimentos

Gratidão às ACS Marias – Aparecida, Denise, Joana e Livramento –, guias e parceiras no caminhar pela comunidade e pela vida. Eterna gratidão aos cuidadores populares que compartilharam conosco suas vivências e afetos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2019
  • Aceito
    27 Jun 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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