O pediatra e a Educação Permanente em saúde no Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB)

The pediatrician and Permanent Health Education in the Amplified Family Health and Primary Care Nucleus (NASF-AB)

El pediatra y la Educación Permanente en Salud en el Núcleo Ampliado de Salud de la Familia y Atención Básica (NASF-AB)

Cristiane Maria Leal Vardana Marangon Juliano Mendes de Souza Sobre os autores

Resumos

Este estudo teve por objetivo conhecer como se dá a Educação Permanente de pediatras do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf), conhecer sua base de conhecimentos, habilidades, valores, dificuldades e necessidades. Foi realizado estudo exploratório, descritivo qualitativo com informações coletadas em entrevista por escrito e grupo focal com nove dos onze pediatras atuantes. Foram construídas categorias e unidades de análise com base nos elementos essenciais para aprendizagem significativa no núcleo. Observaram-se aspectos educacionais, políticos, sociais e humanos de modo heterogêneo entre equipes de saúde, que levam à construção do autoconhecimento e da autonomia dos atores envolvidos, mas há limitações na compreensão do exercício da Educação Permanente pelos profissionais da saúde. Portanto, faz-se necessário o desenvolvimento de competências desses profissionais e gestores, instrumentalizando-os para a atividade diária de reconhecimento de necessidades, mobilização de saberes, aplicação com reflexão crítica, valores humanos e ética.

Palavras-chave
Educação Permanente; Atenção Básica; Relações interprofissionais; Práticas interdisciplinares


This study aimed to investigate the Permanent Education process of pediatricians belonging to the Amplified Family Health Nucleus and to survey their basis of knowledge, skills, values, difficulties and needs. A descriptive, qualitative and exploratory study analyzed information collected by means of a written interview and a focus group with nine of the eleven active pediatricians. Categories and units of analysis were constructed based on essential elements for significant learning in the nucleus. We found educational, political, social and human aspects that were heterogeneous between health teams. These lead to the construction of the self-knowledge and autonomy of the players involved, but there are limitations to the understanding of the exercise of permanent education by the health professionals. Therefore, it is necessary to develop competences in these professionals and managers, equipping them for the daily activity of recognizing needs, mobilizing knowledge, and applying it with critical reflection, human values and ethics.

Keywords
Permanent education; Primary care; Interprofessional relations; Interdisciplinary practices


El objetivo de este estudio fue conocer cómo se realiza la Educación Permanente de pediatras del Núcleo Ampliado de Salud de la Familia, conocer su base de conocimientos, habilidades, valores, dificultades y necesidades. Se realizó un estudio exploratorio, descriptivo, cualitativo con informaciones colectadas en entrevista por escrito y grupo focal con nueve de los once pediatras actuantes. Se construyeron categorías y unidades de análisis con base en los elementos esenciales para el aprendizaje significativo en el núcleo. Se observaron aspectos educativos, políticos, sociales y humanos de modo heterogéneo entre equipos de salud que llevan a la construcción del autoconocimiento y de la autonomía de los actores envueltos, pero hay limitaciones en la comprensión del ejercicio de la educación permanente por parte de los profesionales de la salud. Por lo tanto, resulta necesario el desarrollo de competencias en estos profesionales y gestores, instrumentalizándolos para la actividad diaria de reconocimiento de necesidades, movilización de saberes, aplicación con reflexión crítica, valores humanos y ética.

Palabras clave
Educación permanente; Atención básica; Relaciones interprofesionales; Prácticas interdisciplinarias


Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) pode ser considerada como a principal porta de entrada aos serviços de saúde, o primeiro nível de contato da população com o sistema de saúde. Para Starfield, a Atenção Primária (AP) é responsável pela coordenação do cuidado das pessoas à medida que atende às suas necessidades, conhece seus problemas, o perfil populacional, o contexto e a realidade dos que a procuram, dispõe das informações relevantes para a longitudinalidade e integralidade do cuidado11 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002.. A complexidade da APS considera as necessidades dos indivíduos, seu contexto de vida, a comunidade em que estão inseridos, seus valores socioculturais, necessidades e possibilidades. Isso exige que a atuação dos profissionais de saúde impacte nos fatores determinantes e condicionantes da saúde22 Figueiredo EN. A Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica do SUS [Internet]. São Paulo: UNA-SUS, UNIFESP; 2015 [citado 3 Dez 2018]. Disponível em: http://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/esf/2/unidades_conteudos/unidade05/unidade05.pdf
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A Estratégia Saúde da Família (ESF), adotada pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) do Ministério da Saúde (MS), compõe as Redes de Atenção à Saúde (RAS). O Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB) agrega profissionais de diferentes áreas da Saúde para qualificar e aumentar a resolutividade na Atenção Primária à Saúde (APS).

O pediatra do Nasf-AB deve realizar o apoio matricial e identificar a oportunidade para o ensino-aprendizagem por meio do campo em que vivencia sua experiência profissional. No reconhecimento das demandas ele deve auxiliar, avaliar, construir propostas de intervenção, orientar e agir direta ou indiretamente, de modo integrado e corresponsável, em conjunto com as equipes33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de apoio à saúde da família. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. (Cadernos de atenção básica, n. 39).. Ao coordenar o cuidado integral longitudinal, ele deve articular informações, realizar o monitoramento de indicadores, promover a educação em saúde da população e entre os demais profissionais da equipe ao realizar, além das consultas individuais, consultas compartilhadas33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de apoio à saúde da família. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. (Cadernos de atenção básica, n. 39).. A equipe de saúde deve ser capaz de descobrir possibilidades e desenvolver potências que abram espaço para a realização de um trabalho edificante, com impacto na saúde das populações44 Bispo Junior JP, Moreira DC. Educação permanente e apoio matricial: formação, vivências e práticas dos profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e das equipes apoiadas. Cad Saude Publica. 2017; 33(9):1-13..

O apoio matricial deve ser compreendido além dos mecanismos de centros de regulação, protocolos e fluxos de referência e contrarreferência; não apenas como arranjos organizacionais que promovem uma relação dialógica entre distintas especialidades e profissões, mas permitindo integração e ampliação do cuidado longitudinal personalizado, com metodologia para a gestão do trabalho com o princípio da responsabilidade compartilhada55 Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407..

É fundamental o conhecimento da realidade local, com a gestão da saúde em sintonia com as demandas sociais. Além do conhecimento científico, a busca compartilhada de soluções criativas para as demandas de saúde constrói um saber singular alicerçado na compreensão e na conscientização dos profissionais de saúde, instrumentalizando-os para a atenção às pessoas que precisam dos serviços de saúde66 Barbosa VBA, Bocchi SCM, Barbosa PMK. Experiências com educação permanente na área da saúde: revisão integrativa da literatura. Rev Univ Vale do Rio Verde. 2014; 12(1):151-67..

A Educação Permanente surge como estratégia de impacto significativo na atividade dos profissionais da saúde, favorecendo uma reflexão abrangente sobre suas práticas. Leva à mobilização dos saberes profissionais, favorece a observação atenta do impacto das ações no contexto social em que estão inseridos e a identificação das mudanças necessárias no seu fazer profissional66 Barbosa VBA, Bocchi SCM, Barbosa PMK. Experiências com educação permanente na área da saúde: revisão integrativa da literatura. Rev Univ Vale do Rio Verde. 2014; 12(1):151-67.. Para Bispo Junior e Moreira44 Bispo Junior JP, Moreira DC. Educação permanente e apoio matricial: formação, vivências e práticas dos profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e das equipes apoiadas. Cad Saude Publica. 2017; 33(9):1-13., a Educação Permanente constitui-se em uma estratégia fundamental para qualificar a atuação dos profissionais em suas dimensões técnica, política e social.

Dúvidas, dificuldades, diferentes perspectivas advindas da diversidade do grupo são consideradas legítimas no processo de aprendizagem; ao responder às necessidades de todos os envolvidos com uma premissa educacional, propicia respeito, aceitação, inclusão e comprometimento77 Maturana H. Matriz ética do habitar humano [Internet]. 2012 [citado 6 Out 2018]. p. 37-43. Disponível em: https://pt.slideshare.net/fabiopedrazzi/maturana-humberto-matriz-etica-do-habitar-humano
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O desenvolvimento da metacognição é estratégia para aprender com a identificação de fragilidades e potencialidades, promover a autorregulação ao definir objetivos e monitorar o próprio progresso88 Lima VV. Processos Educacionais na Saúde: ênfase em avaliação de competência. Caderno do curso 2016-2017. São Paulo: Ministério da Saúde, Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2016.. Para a construção de saberes que possam alicerçar as atividades dos pediatras do Nasf-AB, sejam assistenciais ou educacionais, torna-se fundamental o desenvolvimento da capacidade reflexiva.

Objetiva-se compreender as vivências de Educação Permanente dos pediatras do Nasf-AB na APS da rede pública, conhecer sua base de conhecimentos, habilidades e valores, suas dificuldades, necessidades e possibilidades para traçar um eixo norteador que qualifique sua atuação, amplie sua capacidade de contribuir com as equipes de saúde e desenvolva caminhos para a qualificação da Educação Permanente no âmbito da APS da rede pública de saúde.

Métodos

O presente estudo é exploratório, descritivo, com abordagem qualitativa. Foram construídas categorias e unidades de análise com base nos elementos essenciais para o Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com Bispo Junior e Moreira44 Bispo Junior JP, Moreira DC. Educação permanente e apoio matricial: formação, vivências e práticas dos profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e das equipes apoiadas. Cad Saude Publica. 2017; 33(9):1-13.. O tratamento dos dados utiliza os pressupostos metodológicos para a pesquisa qualitativa segundo Minayo99 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-26. integrando-os à concepção de Schön1010 Schön DA. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed; 2000. para a construção do profissional reflexivo.

A amostra foi de nove dos onze pediatras do Nasf-AB que atuam na APS em uma capital de estado; esses pediatras vieram de Unidades Básicas de Saúde (UBS) de modelo tradicional e sempre atuaram na rede pública com a clínica pediátrica, sem qualquer vivência em Estratégia Saúde da Família. À medida que assumiram a nova função como pediatra do Nasf-AB, gradativamente foram orientados para dar apoio às equipes de saúde da ESF na Atenção à Saúde da criança, integrando-se também com os demais profissionais do Nasf-AB. O município conta com 1.917.185 habitantes (2018), possui 161 equipamentos próprios de saúde, com 111 unidades de saúde em 10 distritos sanitários; 48 unidades de saúde de modelo tradicional, com clínico geral, médico pediatra e ginecologista, além da equipe de saúde bucal (cirurgião-dentista, auxiliar de saúde bucal e técnico de saúde bucal). As 63 unidades de saúde da ESF são compostas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, agente comunitário de saúde (ACS) e equipe de saúde bucal. Cada Unidade de Saúde ESF possui uma a três equipes de saúde que atuam em microáreas. Dependendo do distrito sanitário, o médico pediatra do Nasf-AB dá suporte a quatro ou sete unidades de saúde1111 Secretaria de Saúde de Curitiba. Rede de Serviços do SUS Curitiba [Internet]. Curitiba; 2018 [citado 15 Out 2018]. Disponível em: http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/a-secretaria/rede-de-atencao.html
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A coleta de informações ocorreu em entrevista por escrito elaborada pelos pesquisadores com perguntas abertas para manter a liberdade de expressão e permitir a subjetividade, indagando sobre a concepção dos pediatras do Nasf-AB a respeito da Educação Permanente no seu exercício profissional. Essa entrevista foi entregue em março de 2018. Os pediatras tiveram um mês para responder às perguntas; na amostra final, dos onze pediatras que poderiam participar da pesquisa, nove responderam à entrevista por escrito.

Com o objetivo de compreender a percepção, as crenças, os valores e atitudes dos participantes da pesquisa e de como se dá a Educação Permanente em seu meio, realizou-se um grupo focal privilegiando a interação entre os sujeitos, colocando-os como protagonistas1212 Sampieri RH, Collado CF, Lucio MDPB. Metodologia de pesquisa: coleta e análise dos dados qualitativos. 5a ed. Porto Alegre: Penso; 2013.. A questão disparadora para o grupo foi: “Como trabalhar a Educação Permanente para os demais profissionais da Atenção Primária na atividade como pediatra do Nasf-AB?”. O grupo focal foi realizado em abril de 2018 e teve duração de uma hora e dezoito minutos. Foi gravado e, após sua finalização, totalmente transcrito. Um dos pesquisadores atuou como moderador; uma auxiliar que foi apresentada ao grupo participou do grupo focal. A auxiliar era enfermeira, não possuía envolvimento com a pediatria no município e cuidou para que os gravadores estivessem em correto funcionamento, além de contribuir na observação e no registro de percepções durante a atividade do grupo; essa auxiliar não chegou a atuar como moderadora, apesar de possuir experiência como facilitadora em processos educacionais com profissionais de saúde e com grupo focal.

Após a coleta das informações, a interpretação e a avaliação das informações, procurou-se reconhecer unidades de sentido e significado, elencar categorias, temas e identificar padrões1212 Sampieri RH, Collado CF, Lucio MDPB. Metodologia de pesquisa: coleta e análise dos dados qualitativos. 5a ed. Porto Alegre: Penso; 2013.. A análise de conteúdo baseou-se nas etapas do método proposto por Minayo99 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-26. e Sampieri, Collado e Lucio1212 Sampieri RH, Collado CF, Lucio MDPB. Metodologia de pesquisa: coleta e análise dos dados qualitativos. 5a ed. Porto Alegre: Penso; 2013., com adaptações.

A pesquisa seguiu os preceitos éticos da Resolução n. 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde do município em estudo e da faculdade sede dos pesquisadores.

Resultados e discussão

Bispo Junior e Moreira44 Bispo Junior JP, Moreira DC. Educação permanente e apoio matricial: formação, vivências e práticas dos profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e das equipes apoiadas. Cad Saude Publica. 2017; 33(9):1-13., ao abordarem a Educação Permanente e as práticas do Nasf-AB, elencam “[...] elementos essenciais para o bom desempenho do SUS: a qualificação técnica e o comprometimento político, humanístico e social dos profissionais de saúde[...]” (p. 7). É por meio desses elementos que se estabeleceram categorias que auxiliam a compreender diferentes dimensões implicadas na Educação Permanente.

No Quadro 1 são descritas as categorias e unidades de análise elencadas para a organização dos dados sobre a compreensão de Educação Permanente pelos pediatras do Nasf-AB:

Quadro 1
Categorias e unidades de análise elencadas para a organização dos dados sobre a compreensão de Educação Permanente pelos pediatras do Nasf.

A dimensão educacional

No discurso dos pediatras é evidente uma dimensão educacional que permeia sua atividade com os demais membros da equipe de saúde. A dimensão educacional remete à aprendizagem significativa, em que, com base na realidade vivenciada, se considera o “conhecimento prévio dos envolvidos”, o cotidiano do trabalho e a reflexão sobre as práticas, com o desenvolvimento de um profissional crítico e reflexivo1313 Pelizzari A, Kriegl ML, Baron MP, Finck NTL, Dorocinski SI. Teoria da aprendizagem significativa segundo Ausubel. Rev PEC. 2002; 2(1):37-42.. Há menção a dúvidas, fatores complexos que envolvem a escolha de determinado modo de conduzir um caso clínico, buscando identificar o que os colegas conhecem. Inicialmente não há menção à valorização do conhecimento prévio dos colegas de equipe, mas há ampliação do conceito sobre Educação Permanente expresso no grupo focal.

É trazer aos profissionais informações atualizadas num processo contínuo.

Questionário.[...] E daí eu sempre chegava pra ele: “olha, vamos falar sobre tal coisa, me conte o que você sabe”, porque ele sabia tudo, né. E daí nisso, a gente ia construindo o conhecimento [...]

(Grupo focal)

As convergências e divergências sobre a valorização do conhecimento prévio foram demonstradas:

[...] os médicos em geral, eles têm muitos anos de experiência, então eles têm assim uma vivência boa da medicina de família.

(Grupo focal)

[...] E daí eu sempre chegava pra ele: “olha, vamos falar sobre tal coisa, me conte o que você sabe”... E daí a gente ia construindo o conhecimento.

(Grupo focal)

[...] não sei se acabei me adaptando assim, eu acabo atendendo sozinha e [...] eles preferem também porque em virtude do RH que é pequeno, da demanda que é muito grande, depois eu me reporto a eles.

(Grupo focal)

Observa-se preocupação em conhecer o ponto de partida para, em conjunto, construir um novo conhecimento. Porém, isso não se dá com todos, pois alguns apenas compartilham os casos que atenderam, sem se preocupar em mobilizar nos colegas de equipe o substrato de conhecimento que possuem para promover a aprendizagem. Oportunizar aos profissionais envolvidos expressar seu conhecimento e suas vivências diminui barreiras e abre espaço para o diálogo franco. Paulo Freire1414 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31a ed. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2005. reforça que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. Para a aprendizagem significativa o problema é disparador para o aprender88 Lima VV. Processos Educacionais na Saúde: ênfase em avaliação de competência. Caderno do curso 2016-2017. São Paulo: Ministério da Saúde, Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2016.. No processo de interação não literal e não arbitrária entre o conhecimento anterior e o novo, eles adquirem novo significado e maior estabilidade cognitiva1515 Moreira MA. O que é afinal aprendizagem significativa? Qurriculum Rev Teor Investig Pract Educ. 2012; 25:25-45.. O aproveitamento do conhecimento prévio no processo de matriciamento pode alavancar a aprendizagem, oportunizando a descoberta de novos conhecimentos.

O “reconhecimento do contexto”, do momento oportuno para intervir como apoio à construção do conhecimento, permite trocas valiosas para o desenvolvimento da Educação Permanente.

[...] [a Educação Permanente] trabalha menos formal, né? É mais fácil de você fazer, de fazer isso todo tempo, né, você não precisa ter um espaço, um horário. O local de trabalho e as demandas que vêm espontaneamente são o motivo... o assunto que você vai fazer Educação Permanente naquela situação específica vem por uma demanda espontânea e você “tá” ali.

(Grupo focal)

As dificuldades diante da grande demanda e a falta de tempo para conversarem sobre as situações-problema prejudicam a Educação Permanente, principalmente quando os parâmetros exigidos para cada equipe são diferentes1616 Lancman S, Goncalves RMA, Cordone NG, Barros JO. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev Saude Publica. 2013; 47(5):968-75.. Por outro lado, a oportunidade surge daí, da necessidade de se reinventar, de questionar os processos de trabalho.

A valorização da escuta ativa das necessidades da equipe está expressa entre os pediatras do Nasf-AB e acontecem no cotidiano.

[...]Tanto nas atividades coletivas como individuais, mesmo que atenda uma criança de forma individual, posso pedir a presença de outro membro da equipe para discussão do caso, por exemplo.

(Grupo focal)

Por ser apoio das equipes, o Nasf-AB depende de parcerias com os demais para que o trabalho transcorra bem; daí a importância da qualidade de suas relações profissionais1616 Lancman S, Goncalves RMA, Cordone NG, Barros JO. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev Saude Publica. 2013; 47(5):968-75.. “O diálogo”, a disposição e a disponibilidade para ouvir e se fazer ouvir são componentes essenciais na atividade do pediatra do Nasf-AB. O relato de dificuldades para estabelecer o diálogo com equipes e/ou gestores foi observado na pesquisa.

[...] quando eu comecei [...] eu senti bastante dificuldade [...] enquanto Nasf-AB, se você não soubesse como se acomodar naquela unidade [...] Aí um dia eu comecei a conversar com o auxiliar administrativo, a conversar com o enfermeiro, conversar com o auxiliar de enfermagem [...]

(Grupo focal)

Há desafios no entendimento quando não há escuta ativa mútua e os diferentes sujeitos buscam apenas expressar suas angústias, sem se preocupar em ouvir e atentar para o que o outro quer dizer. A garantia de espaços de escuta e diálogo, considerando essas relações interprofissionais, é importante na construção do conhecimento na saúde66 Barbosa VBA, Bocchi SCM, Barbosa PMK. Experiências com educação permanente na área da saúde: revisão integrativa da literatura. Rev Univ Vale do Rio Verde. 2014; 12(1):151-67.. O vínculo fortalece as relações entre os envolvidos nessa aprendizagem, que é sempre via de mão dupla, pois todos ensinam e aprendem. Como Freire1414 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31a ed. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2005. observa, “[...] a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos [...]” (p. 60).

A diferença de valorização social/organizacional dos saberes profissionais e de serviços complementares contribui para a dificuldade de integralidade na atenção1717 Cunha GT, Campos GWS. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saude Soc. 2011; 20(4):961-70.. O “compartilhamento” e a integração entre saberes profissionais devem obrigatoriamente iniciar dentro da própria equipe da Atenção Primária, em que é fundamental compartilhar as situações-problema, configurando a gestão de casos complexos e reduzindo a fragmentação da atenção. Barbara Starfield chama a atenção para a integralidade da atenção por meio das interações entre profissionais e usuários do sistema de saúde. A AP é a responsável pela coordenação clínica dos pacientes compartilhados em vários lócus da rede assistencial11 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002..

O compartilhamento ocorre de modo variado; muitas vezes a consulta compartilhada é preterida em virtude da própria dinâmica de algumas equipes, privilegiando-se o atendimento individual. Porém, o compartilhamento posterior de informações, feedbacks, estímulo ao estudo e à pesquisa demonstra que, apesar de alguns pediatras expressarem que realizam a Educação Permanente raramente, ela acontece mesmo sem que percebam. Isso demonstra que o conceito de Educação Permanente precisa ficar mais claro para que os pediatras do Nasf-AB se apropriem dele. O compartilhamento de informações e experiências entre os profissionais aumenta a congruência da atenção e possibilita o planejamento de projetos terapêuticos e sua avaliação1818 Souza FOS, Albuquerque PC, Nascimento CMB, Albuquerque LC, Lira AC. O papel do núcleo de apoio à saúde da família na coordenação assistencial da atenção Básica: limites e possibilidades. Saude Debate. 2017; 41(115):1075-89.. Um dos objetivos do apoio matricial é um especialista apoiar outro profissional com outro núcleo de formação para ampliar a eficácia de sua atuação1717 Cunha GT, Campos GWS. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saude Soc. 2011; 20(4):961-70..

A definição de problemas é um processo ontológico, uma maneira de apresentar uma visão de mundo1010 Schön DA. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed; 2000.. Para Cunha e Campos1717 Cunha GT, Campos GWS. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saude Soc. 2011; 20(4):961-70., o apoio matricial enfrenta impasses ao propor novas formas de contratos entre os profissionais de saúde e desses com os usuários. O envolvimento de todos os profissionais de saúde nas discussões das necessidades em saúde contribui para uma visão multifacetada das situações, estabelecendo trocas de informações que enriquecem a abordagem e o entendimento.

[...] O meu contato [...] eu vejo que é maior com as enfermeiras, porque são elas que fazem a puericultura. Eu vejo que [...] os médicos passam, mas quem vai interrogar, basicamente, são elas.

(Grupo focal)

A reflexão do exercício profissional no transcorrer desse exercício é um desafio que se impõe à medida que novas situações surgem no cotidiano, exigindo flexibilidade, congruência e resolutividade.

É estar sempre aprendendo e atualizando o aprendizado... depois que eu entrei no Nasf-AB eu participo da educação continuada, mas “eu” mais aprendi, também volto com o que eu ensinei [...]

(Grupo focal)

O “conhecer na ação” refere-se aos tipos de conhecimento que se revelam nas ações inteligentes. “[...] O ato de conhecer está na ação [...]. Observar e refletir sobre as ações realizadas permitem uma descrição do saber tácito que está implícito nelas[...]”1010 Schön DA. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed; 2000. (p. 34). Este conhecer na ação ocorre de modo imediato e muitas vezes não há consciência de que esse conhecimento está sendo incorporado.

É na “reflexão da prática” que se identificam fatores que estão interferindo positiva ou negativamente e que podem ser aprimorados, que é possível identificar o papel que cada um desempenha, os ajustes para melhoria da comunicação e da construção de uma sinergia positiva para o trabalho. Entretanto, a reflexão sobre a ação durante o seu transcurso permite corrigi-la, aprimorá-la dentro do contexto, durante seu desenvolvimento; este “presente da ação” propicia encontrar novas maneiras de fazer e Schön1010 Schön DA. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed; 2000. denomina esse processo de “reflexão na ação”.

É difícil mensurar quanto os pediatras refletem de modo aprofundado a respeito dos problemas com que se deparam no exercício como educadores. É evidente a frustração de alguns diante da impossibilidade de reunir-se com a equipe para trocar informações e impressões, a impossibilidade de avaliar o que se faz. Não raro, a diversidade de demandas impede o “parar e pensar”.

[...] bem, [...] eu acho que pra gente conseguir realmente atingir mais objetivos a gente precisaria ter, é [...] uma mudança no enfoque do que é saúde pública, né, pra nós.

(Grupo focal)

A reflexão crítica de um grupo de profissionais sobre seu próprio desempenho pode constituir um círculo de aperfeiçoamento profissional, buscando alcançar uma contínua melhora da condição de saúde da população que assiste1919 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2a ed. Brasília: OPAS; 2011.. Por meio do autoconhecimento, da autoavaliação e da implementação de mudanças, a Educação Permanente pode contribuir significativamente para aprender e transformar.

A dimensão da política de gestão

A forma de atuar de uma gestão, sua governança, sua organização, a escolha de suas prioridades, a interface com os diferentes atores governamentais, não governamentais e segmentos da sociedade civil organizada ou não, impactam diretamente na forma com que os profissionais de saúde realizam o seu atendimento à população. Mudanças no perfil demográfico, nos aspectos econômicos, sociais, culturais e ecológicos exigem respostas ágeis para acompanhar o compasso das demandas da sociedade2020 Goncalves RMA, Lancman S, Sznelwar LI, Cordone NG, Barros JO. Estudo do trabalho em Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Rev Bras Saude Ocup. 2015; 40(131):59-74..

A mudança de prática pela Educação Permanente envolve múltiplos fatores; Mendes nos fala de fatores predisponentes, habilitadores e reforçadores que, respectivamente, dizem respeito ao desenvolvimento de competências, à facilitação para o desenvolvimento dessas competências e aos sistemas de informação. Além desses há outros fatores multipotenciais, como feedbacks vindos do reconhecimento, da valorização, de incentivos econômicos e não econômicos que podem contribuir para a mudança da prática clínica2121 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: OPAS; 2012..

Quando você encontra um gestor também com a cabeça um pouco mais aberta, que concorda [...] então assim, a gente tá num processo, né, claro que esse processo tem idas e vindas, né? A gente consegue, daqui a pouco a gente não consegue mais, a gente volta, a gente insiste, né?

(Grupo focal)

Revela-se a compreensão da importância do “apoio da gestão” e da “articulação entre os diferentes níveis de gestão”.

Outra coisa importante, importantíssima, acho que é a parte dos gestores, que vocês falaram também, né? [...] é o “apoio da gestão”. Isso aí vem bem lá de cima. Se a gestão em cima, o pessoal do distrito não dá o apoio fica muito difícil, sabe? Isso, eu tenho essa vantagem [...]. Fizemos assim cem por cento das unidades [...] Apesar de RH pequeno, [...], mas tinham grande estímulo, grande cobrança da gestora. Inclusive da gestora, do pessoal da assistência.

(Grupo focal)

O apoio da gestão expresso pelos pediatras do Nasf-AB dá-se de forma heterogênea; em alguns distritos sanitários há espaço privilegiado para a Educação Permanente; noutros se revelam fragilidades e inconsistências. Sentimento de insegurança e desmotivação de alguns pediatras decorre da incongruência entre as necessidades identificadas e a efetivação das ações necessárias para a Educação Permanente com as equipes. Trocas de gestão com ausência de continuidade nas políticas públicas, as mudanças de estruturas e processos de trabalho nas equipes de saúde, a redistribuição e a qualificação dos profissionais das equipes de saúde, trouxeram repercussões nas ações desempenhadas pelos médicos pediatras do Nasf-AB.

[...] Primeiro éramos três, daqui a pouco ficou um, agora somos duas, aí a gente começa tudo de novo, né? Aquela equipe que você já estava formando um vínculo, que você já estava conhecendo, estava confiando em você [...] não, agora troca, [...] , vem uma outra pessoa [...], eu acho que a gente vai levar alguns meses pra conseguir de novo, né, começar tudo de novo, mas eu acho que é o que a gente está conseguindo fazer.

(Grupo focal)

Diferenças na organização, a transição e a incorporação de novos processos de trabalho não ocorrem apenas por determinação do nível central. Essa defasagem pode levar a relações conflituosas e até mesmo contraditórias dentro das equipes de saúde1616 Lancman S, Goncalves RMA, Cordone NG, Barros JO. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev Saude Publica. 2013; 47(5):968-75.,2020 Goncalves RMA, Lancman S, Sznelwar LI, Cordone NG, Barros JO. Estudo do trabalho em Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Rev Bras Saude Ocup. 2015; 40(131):59-74.. A articulação entre membros de uma mesma equipe, e dessa para outros níveis de atenção, Nasf-AB, distrito sanitário e nível central é fundamental. Essa articulação é percebida pelos pediatras do Nasf-AB.

Existem situações específicas para serem planejadas no nível local com as equipes e distritos, de acordo com as necessidades locais. Outras virão de diretrizes da política de saúde do município. De qualquer maneira, os distritos devem ter autonomia no planejamento, através da participação do pediatra do Nasf junto às coordenações de assistência (dos distritos sanitários) e vigilância em saúde.

(Questionário)

Apesar de muitos pediatras terem clareza a respeito da importância dos gestores para efetivar a Educação Permanente, observa-se que nem todos têm total compreensão a respeito da necessidade de integração entre os diferentes atores envolvidos para a Educação Permanente. Quando alguns manifestam que a elaboração da Educação Permanente deve estar sob a responsabilidade apenas dos gestores, demonstram desconhecimento a respeito do que é Educação Permanente e da importância de seu protagonismo para realizá-la.

A dimensão social

O alcance social da Educação Permanente implica o reconhecimento de que ela pode estar presente em todos os espaços de compartilhamento de situações-problema. Demonstraram-se atividades de educação em saúde na comunidade em que atuam.

[...] além de que fazemos educação para as equipes e comunidade [...]

(Grupo focal)

As atividades coletivas de educação em saúde estão previstas entre as atribuições do profissional do Nasf-AB. Entretanto, a frequência de educação em saúde voltada à comunidade promovida pelos pediatras do Nasf-AB ainda é incipiente. Os desdobramentos e benefícios decorrentes das atividades de educação em saúde no Nasf-AB são significativos, quando há engajamento dos que participam dela.

[...] eu realizo ações de prevenção e promoção à saúde, ações intersetoriais, atendimento individual e coletivo [...]

(Grupo focal)

Ainda que ocorram dificuldades, é unânime entre os pediatras do Nasf-AB o entendimento do impacto social de suas ações com educação em saúde.

Carrapato, Correia e Garcia destacam cinco grupos de determinantes da saúde, entre os quais os biológicos, econômicos e sociais, ambientais, o estilo de vida e incluindo o acesso aos serviços com educação, saúde, transporte, lazer etc.2222 Souza DO, Silva SEV, Silva NO. Determinantes sociais da saúde: reflexões a partir das raízes da “questão social”. Saude Soc. 2013; 22(1):44-56.,2323 Carrapato P, Correia P, Garcia B. Determinante da saúde no Brasil: a procura da equidade na saúde. Saude Soc. 2017; 26(3):676-89. O acesso à informação e a mudança de comportamento tornam-se assim objetivo central para a Atenção Primária, demonstrando a importância da Educação Permanente para as equipes de saúde, a fim de instrumentalizá-las para a educação em saúde voltada à comunidade.

A dimensão humana

O modo como as experiências afetam as pessoas determina ações e reações que, na singularidade de cada um, serão capazes de construir uma dinâmica própria no ambiente de trabalho. Conflitos, sentimentos de frustração, o convívio com a dor e o sofrimento das pessoas exigem do profissional de saúde resiliência e capacidade de suplantar desafios2424 Espiridião E, Munari DB, Stacciarini J. Desenvolvendo pessoas: estratégias didáticas facilitadoras para o autoconhecimento na formação do enfermeiro. Rev Lat Am Enfermagem. 2002; 10(4):516-22.. É no exercício da “alteridade”, na troca e no compartilhamento que surge a oportunidade de crescimento e superação de dificuldades, possibilitando alcançar satisfação no desempenho profissional1414 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31a ed. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2005..

Alguns pediatras expressaram que se surpreenderam consigo mesmos à medida que desempenhavam a função de Educação Permanente.

[...] desde que a gente iniciou o trabalho no Nasf, [...] eu vou descobrindo novos processos, novas formas, eu vou aprendendo, [...] eu acho que hoje o trabalho que eu faço é muito diferente do que eu fazia lá quando a gente começou, né? Então ele é enriquecedor inclusive pra mim [...] a gente aprende a ter uma melhor relação com o colega, a gente começa a descobrir caminhos que às vezes a gente não conhecia [...]

(Grupo focal)

O ser humano revela a si mesmo no exercício do convívio. O “autoconhecimento” está entre os elementos reconhecidos pelos pediatras do Nasf ao tomarem consciência das mudanças em si ao longo do trabalho. Para as relações interpessoais, o autoconhecimento surge como condição inquestionável para a aproximação humana, tão necessária na área da Saúde2525 Hoga LAK. A dimensão subjetiva do profissional na humanização da assistência à saúde. Rev Esc Enferm USP. 2004; 38(1):13-20.. Na busca pela humanização, a ausência de espaço e tempo para a autorreflexão revela-se como elemento que prejudica a possibilidade de se descobrir no fazer profissional. O trabalho na Atenção Primária é bastante interdependente e obriga a reconhecer os demais partícipes como fundamentais para as atividades em Educação Permanente.

E nas equipes ESF [...] elas têm um olhar próprio, elas conhecem a família daquela criança, elas sabem quem é a mãe, elas sabem quem é o pai.

(Grupo focal)

O pediatra do Nasf é capaz de reconhecer que os esforços para conquistar a equipe de saúde que apoia, quando bem-sucedidos, trazem satisfação, motivação e vontade de aperfeiçoar o trabalho que desempenha. No exercício da Educação Permanente é o outro que, além de fornecer constante feedback da legitimidade das suas ações, permite um constructo que transforma e edifica. Diante dos desafios de uma sociedade cada vez mais individualista, manter a conexão com o outro, de modo genuíno, se torna um desafio2626 Sadala MLA. A alteridade: o outro como critério. Rev Esc Enferm USP. 1999; 33(4):355-7..

A presença do “vínculo” é que garante as relações interpessoais duradouras.

Acho superimportante [...] a gente tem que ter um vínculo estreito com a enfermagem, com médicos, com os auxiliares, e que todos fazem parte da equipe [...] não só o médico, tá?

(Grupo focal)

O vínculo diz respeito às relações pessoais próximas e duradouras, promovendo a colaboração e o conhecimento mútuo2727 Brunello MEF, Ponce MAS, Assis EG, Andrade RLP, Scatena LM, Palha PF, et al. O vínculo na atenção à saúde: revisão sistematizada na literatura, Brasil (1998-2007). Acta Paul Enferm. 2010; 23(1):131-5.. Os pediatras do Nasf revelaram a dificuldade inicial de serem aceitos dentro das equipes; foram necessários tempo e vivências em comum para construírem laços de confiança. Gastal e Pilati2828 Gastal CA, Pilati R. Escala de necessidade de pertencimento. PsicoUSF. 2016; 21(2):285-92. observam que a característica do ser humano é viver em grupos e sua evolução está associada às ligações sociais que estabelece. A partir do momento em que os pediatras do Nasf percebem que são acolhidos e se tornam parte da equipe de saúde, há um salto qualitativo nas relações, contribuindo para um trabalho profícuo e gratificante.

[...] a partir do momento que você vinculou àquela equipe, aquela equipe te conhece como membro dessa equipe [...] porque às vezes o Nasf é considerado um ser à parte, né? [...] Então quando você consegue esse vínculo, consegue ser aceito, faz toda diferença.

(Grupo focal)

Há preocupação com a construção de “autonomia” na atividade com Educação Permanente.

A gente tem que gerar autonomia nas equipes. A gente teria que gerar autonomia também na população, na verdade.

(Grupo focal)

Em seu dicionário, Mora2929 Mora JF. Diccionario de filosofia abreviado. 3a ed. Barcelona: Edhasa; 2008. trata a autonomia em dois sentidos principais, o ontológico e o ético; assim, a autonomia do ser é regida por leis próprias, em que o ser tem fundamento em si mesmo, em sua própria razão.

Campos e Campos preconizam a construção da autonomia das pessoas, um dos objetivos centrais da gestão, da política e do trabalho em saúde. Para alcançar uma efetiva construção de autonomia, sugerem uma co-construção da autonomia dos profissionais de saúde com uma ampla reformulação tanto da gestão como do modelo de Atenção à Saúde3030 Campos RTO, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Fiocruz; 2006. p. 1-22.. As dificuldades diante de processos de trabalho podem assumir configurações diversas e limitantes à construção e ao exercício da autonomia. A liberdade para reflexão e a crítica sobre os processos vividos na dinâmica dos serviços de saúde contribuem para o desenvolvimento da responsabilidade sobre o fazer profissional. Essa autonomia está intimamente ligada à capacidade de reflexão sobre suas ações, suas motivações e seus objetivos.

Conclusões

O exercício da Educação Permanente pelos pediatras do Nasf-AB ocorre de modo diversificado entre as diferentes equipes de saúde.

Saber reconhecer os aspectos positivos no exercício do trabalho é importante para a motivação das pessoas e a valorização das estruturas e dos processos. Apesar de não serem todos, muitos pediatras do Nasf-AB relataram o benefício de poder transitar por diferentes espaços, seja nas salas de reuniões do nível central, nas unidades de saúde, no distrito sanitário, nos domicílios, nas creches e escolas, enfim no território em que atuam.

Como a Educação Permanente acontece no dia a dia das equipes de saúde, o ambiente físico das unidades de saúde é o principal espaço de sua atuação. Entre as facilidades para a realização da Educação Permanente no Nasf, destacam-se a proximidade e a integração com as equipes, o conhecimento da realidade local e sua própria bagagem de conhecimento.

O apoio matricial aparece como importante ferramenta para a Educação Permanente, pois é pelo cuidado compartilhado que se amplia a comunicação, a personalização, o vínculo, a responsabilização e o compromisso das equipes.

A compreensão do exercício da Educação Permanente pode ser aprimorada pelos próprios profissionais de saúde. Portanto, faz-se necessário o desenvolvimento de competências desses profissionais, instrumentalizando-os para a atividade diária de reconhecimento de necessidades, mobilização de saberes e aplicação prática com reflexão crítica, valor humano e ética.

A Educação Permanente pode e deve ser mais bem explorada como recurso à sensibilização e à conscientização não só das equipes de saúde, mas também da população, construindo um paradigma na saúde de corresponsabilização de todos os atores envolvidos, profissionais de saúde, gestores, serviços de saúde e sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2020
  • Aceito
    03 Maio 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br