O ensino da saúde do idoso no curso médico: os desafios na formação para o cuidado

La enseñanza de la salud del anciano en el curso médico: los desafíos en la formación para el cuidado

Carla Cristina Rodrigues Mônica de Ávila Todaro Cássia Beatriz Batista Sobre os autores

Resumos

A educação médica tem sido tensionada por diferentes modelos, que podem mobilizar conhecimentos essencialmente biomédicos ou também de ordem psicossocial. O presente artigo busca abordar como tais conhecimentos se relacionam com o ensino da saúde do idoso na disciplina Cuidado Integral à Saúde do Idoso, do curso médico de uma universidade pública do interior de Minas Gerais. Trata-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, na qual foram feitas observações de aulas teóricas e práticas, entrevistas e análise documental. Os resultados indicaram que as aulas teóricas não se orientam por meio dos cenários de práticas, e esses, por sua vez, demonstram potencial em apresentar aos estudantes a complexidade do processo saúde-doença. Por fim, as relações teoria-prática, escola-serviço e seus modelos de atenção são desafios na formação médica para o cuidado integral com o idoso.

Palavras-chave
Educação médica; Saúde do idoso; Ensino superior; Currículo


La educación médica ha sufrido tensión por diferentes modelos que pueden movilizar conocimientos esencialmente biomédicos o también de orden psicosocial. El presente artículo busca abordar cómo tales conocimientos se relacionan con la enseñanza de la salud del anciano en la asignatura Cuidado Integral de la Salud del Anciano, del curso médico de una universidad pública del interior del Estado de Minas Gerais. Se trata de una investigación de campo, de abordaje cualitativo, en la cual se realizaron observaciones de clases teóricas y prácticas, entrevistas y análisis documental. Los resultados mostraron que las clases teóricas no se orientan a partir de los escenarios de prácticas y estos, a su vez, demuestran potencial para presentar a los estudiantes la complejidad del proceso salud-enfermedad. Por fin, las relaciones teoría-práctica, escuela-servicio y sus modelos de atención son desafíos en la formación médica para el cuidado integral del anciano.

Palabras clave
Educación médica; Salud del anciano; Enseñanza superior; Currículo


Introdução

O mundo está passando por um quadro de transição demográfica: o ser humano está vivendo mais e simultaneamente desenhando um novo cenário social e epidemiológico. Tal fenômeno demanda que o sistema de saúde esteja devidamente preparado para lidar com as questões do envelhecimento, o que por sua vez envolve as instituições formadoras dos profissionais de saúde, seus currículos e projetos pedagógicos11 Giacomin KC, Maio IG. A PNI na área da Saúde. In: Alcântara AO, Camarano AA, Giacomin KC, organizadores. Política Nacional do Idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: IPEA; 2016. p. 135-74.

2 Rodrigues CC, Todaro MA, Batista CB. O ensino de saúde do idoso no curso de medicina da UFSJ. In: Ricardo EC. Pesquisa em educação: diversidade e desafios [Internet]. São Paulo: Feusp; 2019 [citado 3 Maio 2020]. p. 971-8. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/414
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/por...
-33 Rodrigues CC, Todaro MA, Batista CB. Saúde do Idoso: discursos e práticas educativas na formação médica. Educ Rev. 2021; 37:e20811.. É diante de tal contexto que apresentamos a questão que guia nosso trabalho: como tem sido ensinado o cuidado ao idoso nos cursos médicos?

A saúde no idoso não é determinada pela ausência de agravos, mas pela capacidade funcional, que se relaciona diretamente com a autonomia que o sujeito é capaz de manter no cotidiano44 Brasil VJW, Batista NA. O ensino de geriatria e gerontologia na graduação médica. Rev Bras Educ Med. 2015; 39(3):344-51.

5 Motta LB, Aguiar AC. Novas competências profissionais em saúde e o envelhecimento populacional brasileiro: integralidade, interdisciplinaridade e intersetorialidade. Cienc Saude Colet. 2007; 2(12):363-72.

6 Organização Mundial de Saúde. Relatório mundial de envelhecimento e saúde: resumo [Internet]. Genebra: OMS; 2015 [citado 9 Jul 2018]. Disponível em: sbgg.org.br//wp-content/uploads/2015/10/OMS-ENVELHECIMENTO-2015-port.pdf
sbgg.org.br//wp-content/uploads/2015/10/...
-77 Vianna LG, Vianna C, Bezerra AJC. Relação médico-paciente idoso: desafios e perspectivas. Rev Bras Educ Med. 2009; 34(1):150-9.; portanto, o olhar para o idoso demanda uma concepção ampliada de saúde, que não tenha como horizonte normativo a patologia. Nesse sentido, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI)88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.528, de 19 de Outubro de 2006. Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2006., que direciona a assistência ao idoso no Brasil, orienta que o cuidado com os idosos seja protagonizado pela Atenção Primária (AP) na perspectiva da promoção da saúde, reforçando a importância do ensino da saúde do idoso ainda nas graduações.

Segundo Pinheiro e Ceccim99 Pinheiro R, Ceccim RB. Experienciação, formação, conhecimento e cuidado: articulando conceitos, percepções e sensações para efetivar o ensino em integralidade. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA. Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco; 2005. p. 13-33., os estudiosos da formação profissional em saúde são unânimes na crítica ao modelo biomédico por priorizar procedimentos técnicos e padronizados, que trazem como consequência o fortalecimento do mercado tecnológico e a criação nos estudantes de perfil corporativista, que desvaloriza a Atenção Primária e dificulta sua inserção em equipes interprofissionais.

A crítica ao modelo biomédico de Atenção à Saúde versa sobre seu enfoque na doença e nas práticas de cura e intervenção com fármacos e cirurgias, com restrita abordagem ao doente em sua integralidade e pouca ou inexistente compreensão das dimensões de prevenção e promoção da saúde no processo de cuidado. Considerando que tal modelo tem sido hegemônico, tanto no ensino quanto na assistência em saúde1010 Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2001; 8(1):48-70., nos indagamos sobre o ensino do cuidado com o idoso diante de tal contexto, visto que o fazer médico se dá necessariamente na ordem da ação humana, e demanda tanto intervenções essencialmente técnicas como também conhecimentos e habilidades relacionais e psicossociais.

De acordo com Ayres1111 Ayres JR. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Editora do Cepesc; 2009., para que a transição do modelo biomédico para o cuidado se dê, é necessário o estabelecimento de uma relação dialógica entre profissional e paciente, que transcenda o fazer técnico para se inscrever na ordem da interação com o objetivo da construção compartilhada da saúde. O cuidado, como interação humana, requer a assunção dos determinantes sociais no processo saúde-doença, o que por sua vez não exclui a tecnologia, mas a coloca à disposição do humano. Estabelecer uma relação dialógica, no âmbito do cuidado, é, portanto, humanizar a saúde. E é nesse sentido que as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Medicina (DCNM)1212 Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 4, de 7 de Novembro de 2001. Diretrizes curriculares nacionais para o curso de graduação em medicina. Diário Oficial da União. 9 Nov 2001; sec. 1, p. 38-43.,1313 Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014. no Brasil têm trazido a proposta de humanização da formação médica.

Uma das estratégias de revisão política, ética e pedagógica do ensino médico no sentido da humanização e do cuidado tem sido a inclusão dos estudantes em serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) como cenário de aprendizagem desde o início do curso, possibilitando ao aluno conviver no território e compreender conceitos como comunidade, gestão e sistema de saúde, ressaltando a responsabilidade social da formação dos profissionais de saúde1414 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2014; 14(1):41-65.

15 Batista CB, Gonçalves L. Marcos sobre a integração ensino-serviço na formação de profissionais para a saúde. In: Kind L, Batista CB, Gonçalves L, organizadores. Universidade e serviços de saúde: interfaces, desafios e possibilidades na formação profissional. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas; 2011. p. 25-48.
-1616 Marins JJN. Apresentação. In: Marins JJN, Rego S. Educação médica: gestão, cuidado, avaliação. Rio de Janeiro: Hucitec, Associação Brasileira de Educação Médica; 2011. p. 11-8..

No intuito de compreender como tem se dado o ensino da saúde do idoso no contexto da busca pela humanização da formação médica, pesquisamos a unidade curricular intitulada Cuidado Integral à Saúde do Idoso (Cisi), que compõe a matriz curricular do curso médico de uma universidade federal do interior de Minas Gerais, sendo tal curso implantado já com as orientações das atuais DCNM1313 Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..

Percurso metodológico

A investigação, de abordagem qualitativa, problematizou como os conteúdos biomédicos e humanísticos se relacionam com os cenários de ensino da saúde do idoso em um curso médico. Para a coleta dos dados, optamos pela observação de aulas teóricas e práticas da disciplina Cisi com registro em diário de campo, entrevistas com estudantes e professores, e análise documental. Tais procedimentos objetivaram nos aproximar de representações, significados e interações sociais, priorizando a linguagem como mediador simbólico em um processo participativo e flexível, cujo objetivo é a compreensão1717 Gomes AMA, Paiva ES, Valdés MTM, Frota MA, Albuquerque CM. Fenomenologia, humanização e promoção da saúde: uma proposta de articulação. Saude Soc. 2008; 17(1):143-52..

A unidade curricular Cisi é ministrada a vinte estudantes no sexto período do curso médico. Conta com três docentes formados em Medicina e tem carga horária total de 108 horas/aula, sendo 36 de teoria e 72 de prática, que por sua vez ocorrem em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (Ilpi). A disciplina faz parte do eixo curricular Práticas de Integração Ensino, Serviço, Comunidade (Piesc), que atravessa o curso do primeiro ao oitavo período.

As observações das aulas da unidade curricular Cisi, acompanhadas do registro em diário de campo, ocorreram no segundo semestre de 2018, totalizando trinta horas de observação entre aulas teóricas e práticas.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com dois docentes e três discentes da disciplina. Os discentes entrevistados foram intencionalmente escolhidos com base nas observações das aulas: estudantes que se destacaram por suas colocações e aceitaram participar da entrevista(d(d)Usamos nomes de árvores para nos referir aos professores entrevistados, e flores para os alunos.). Essas ocorreram três meses após a conclusão da disciplina, em um único encontro com cada entrevistado.

O roteiro das entrevistas contava com as seguintes questões disparadoras: 1) Qual é sua opinião a respeito do conteúdo, da metodologia usada, da carga horária e dos cenários de prática presentes no Cisi? 2) Quais são as concepções de idoso, velhice e envelhecimento adotadas na disciplina? 3) Fale da relação do Cisi com os outros conteúdos estudados no curso médico. 4) Quais são as habilidades, competências e os objetivos de aprendizagem propostas na disciplina Cisi? 5) Você mudou seu olhar para o idoso após a disciplina? Em que sentido? 8) A disciplina Cisi contribui para a formação humana? Como? 9) Qual é a relação entre as aulas teóricas e as aulas práticas no Cisi?

Para a análise de documentos, utilizamos as DCNM1313 Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014., o Projeto Pedagógico do Curso1818 Universidade Federal de São João Del Rei. Projeto Pedagógico para o Curso de Medicina. São João De Rei: UFSJ; 2016. (PPC), o Plano de Aula1919 Vieira PMO. Plano de Ensino da unidade curricular Cuidado Integral à Saúde do Idoso. São João Del Rei: Universidade Federal de São João Del Rei; 2018. da unidade curricular Cisi e a PNSPI88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.528, de 19 de Outubro de 2006. Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2006..

Com todo o material empírico em mãos, recorremos aos procedimentos da análise temática de conteúdo de Bardin2020 Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Martins Fontes; 1977. que, por sua vez, consiste em um corte transversal dos dados que são projetados em categorias elencadas pela leitura exaustiva do material levantado ao longo da pesquisa de campo.

O processo analítico também considerou o campo de análise mais amplo, ou seja, uma revisão teórica do tema estudado e o contexto específico de produção de dados, elementos que compõem o exercício de organização e discussão dos dados em um diálogo de camadas de análise que foram agrupadas nas seguintes categorias: paradigmas da educação médica presentes na saúde do idoso; proposta pedagógica do ensino do idoso no currículo médico; o cotidiano do ensino da saúde do idoso; o tripé da formação médica; teoria e prática no ensino da saúde do idoso; o modelo de assistência humanista e biomédico no ensino do cuidado com o idoso. É válido ressaltar que nem todas as categorias estão sendo tratadas no presente artigo.

Todos os participantes e instituições envolvidos na pesquisa foram informados sobre ela e assinaram termo de consentimento. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, CAAE: 97006818.7.0000.5151, Parecer n. 3.049.012.

Formação humanista versus formação biomédica no cuidado com o idoso

O modelo biomédico, que tem predominado no ensino e na assistência desde o início do século 20, abstrai o caráter subjetivo do caráter objetivo do adoecimento, que passa a ser concebido como um fenômeno individual, fisiológico, apolítico e a-histórico, divergente das necessidades de saúde da população. A premência de melhorar a assistência em saúde, por sua vez, culminou na demanda de humanização do ensino, com revisão de concepções e práticas de saúde na formação médica1010 Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2001; 8(1):48-70.,2121 Nogueira MI. As mudanças na educação médica brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70..

A humanização do ensino está condicionada ao reconhecimento dos determinantes sociais no processo saúde-adoecimento e na incorporação de conteúdos psicossociais aos currículos. Todavia, a estruturação do ensino reflete as tensões engendradas pelas múltiplas forças que disputam espaço e poder na sociedade, de tal forma que a educação médica, então, tem sido organizada e tensionada por duas linhas diferentes: uma perspectiva biomédica/tecnocientífica e uma perspectiva biopsicossocial/humanística2222 Haddad AE, Morita MC, Pierantoni CR, Brenelli SL, Passarela T, Campus FE. Formação de profissionais de saúde no Brasil: uma análise no período de 1991 a 2008. Rev Saude Publica. 2010; 44(3):383-93. ,2323 Nogueira MI. A reconstrução da formação médica nos novos cenários de prática: inovações no estilo de pensamento biomédico. Physis. 2014; 24(3):909-30..

As DCNM1313 Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014. ressaltam que a formação deve ser humanista e ética, contemplando os determinantes sociais, comunitários e subjetivos do processo saúde-adoecimento da população. Os aspectos da diversidade humana devem ser considerados, e as habilidades de escuta e comunicação devem ser trabalhadas ao longo de toda a formação.

O PPC analisado atende às orientações das diretrizes, reafirmando o caráter humanístico da formação por meio do eixo Bases Psicossociais (BP), que integra o currículo do primeiro ao oitavo período do curso.

O plano de ensino da unidade curricular Cisi propõe abordar tanto questões técnicas em relação às patologias e biologia do envelhecimento, quanto questões psicossociais, demonstrando que há dialética na relação entre os conteúdos psicossociais e biomédicos.

Nessa mesma direção, a PNSPI88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.528, de 19 de Outubro de 2006. Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2006. adota uma perspectiva abrangente e processual de saúde, que transcende aspectos biomédicos e curativos ao relacionar a heterogeneidade do processo de envelhecimento com as condições de vida, além de realçar os fatores psicossociais e a importância da convivência familiar e comunitária.

Nas DCNM, no PPC e no Plano de Ensino, observamos a intenção de uma permeabilidade entre perspectivas técnicas e psicossociais, de forma que o ensino se dê em um conceito ampliado de saúde, que considere as múltiplas condições no processo de saúde-adoecimento dos idosos.

Ao longo da pesquisa de campo observamos, no entanto, que as questões sociais e familiares parecem ser discutidas quase exclusivamente nos cenários de prática, sendo que as aulas teóricas enfatizam os aspectos biomédicos e patologias. Tal perspectiva aparece nas falas dos estudantes:

[...] A gente tinha um conteúdo, eu sabia, por exemplo, a pessoa tem esse quadro, essa doença, só que isso fica só na parte patológica, a parte de como entender, de como eu vou abordar esse idoso... [...] mais do que você saber da doença tem que saber de como você cria esse vínculo com a pessoa [...] E ai? Isso não é abordado. Então eu acho talvez falta trazer essa realidade daqui, para a sala de aula para a gente discutir, por exemplo, eu, como médico, vou trabalhar no posto, o que vou fazer com isto? Não é só falar: olha você tem infecção urinária, você trata assim. Isso é importante, é lógico que é, mas se o viés da universidade é a humanização...

(Entrevista aluna Begônia)

[...] poderia ter investido mais nas questões sociais, inclusive em uma das aulas eu perguntei para a professora dos “Is” que ela estava falando que tem vários Is no idoso, mas eu falei que também tem uma insuficiência social né? Que a insuficiência social vai onde nesses Is? Foram vários Is de incontinência, uma coisa muito biologicista, mas onde que entra o social aí desse idoso, acho que esse aspecto comunitário, familiar, de determinantes de saúde também poderia ter sido mais investigado.

(Entrevista aluno Gerânio)

Conforme evidenciado pelo conteúdo das entrevistas, parece que nas aulas teóricas os determinantes sociais são preteridos em relação aos conteúdos com ênfase biologicista, de tal forma que se criou uma polarização entre as aulas teóricas, que priorizam conteúdos biomédicos, e as aulas práticas, que trazem um olhar mais abrangente e humano para o processo saúde-adoecimento dos idosos.

Nota-se que, na medida em que os estudantes interagem com a realidade dos serviços e com as necessidades de saúde dos idosos, aspectos essenciais do cuidado, como vínculo e responsabilização, são integrados ao aprendizado, que por sua vez é construído de forma ativa ao longo das aulas práticas. Nesse sentido, a interação da Instituição de Ensino Superior com os cenários de aprendizagem da rede, tal como tem sido feito na Cisi, apresenta-se como ferramenta essencial de incorporação da humanização à formação médica1414 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2014; 14(1):41-65.,2424 Dias MMS, Carvalho JL, Landim LOP, Carneiro C. A integralidade em saúde na educação médica no brasil: o estado da questão. Rev Bras Educ Med. 2018; 42(4):123-33.. Todavia, tais práticas suscitam algumas problematizações: que ética e prática de cuidado têm sido ensinadas nos cursos de Medicina?

O estudo da ética integra o currículo do curso no eixo BP; entretanto, um eixo específico para a dimensão humanística da prática médica deve ser compreendido na relação com os demais eixos, pois há a orientação de que cada unidade curricular retome os conteúdos de humanidades com os sujeitos e cenários de práticas. Embora valorizada em todos os documentos analisados, nota-se que talvez seja pertinente ampliar o debate sobre a ética no curso médico, principalmente quando se trata dos cenários de prática, pois observamos, pelas falas de uma das alunas entrevistadas, que há circunstâncias desagradáveis para os pacientes que mereceriam um aprofundamento:

A gente teve no quinto período ética, mas a ética muito curtíssima. [...] vou dar um outro exemplo que acontecia em uma disciplina: é lindo você chegar e falar assim, ah... tem que humanizar, ah, o espaço do paciente, ah... só que aí, quando chega na beira do leito, eu cheguei para atender uma paciente, ela estava desesperada porque ela estava com lúpus, ela não queria falar comigo, estava claro! [...] Aí o professor olhou pra mim e falou, você devia ter insistido, você tem que insistir. Aí eu discuti: eu falei não, eu tenho que insistir quando isso for trazer algum benefício para o paciente, agora o que de bom eu vou causar nela? Nada... Eu só vou fazer um bando de pergunta sem sentido pra ela, porque é pra gente treinar anamnese, que eu vou ser beneficiada, mas ela não. Então porque eu vou incomodar? Vamos procurar alguém que esteja disposto. Daí ele ficou um pouquinho bravo comigo. Já aconteceu de mandar a gente conversar com quem está com máscara de oxigênio... Então essa falta sabe? Do que é discutido em sala com o que realmente acontece na prática [...].

(Entrevista aluna Begônia)

Parece importante refletir se o aprendizado técnico não tem se sobreposto à abordagem ética do cuidado. Segundo Nogueira2323 Nogueira MI. A reconstrução da formação médica nos novos cenários de prática: inovações no estilo de pensamento biomédico. Physis. 2014; 24(3):909-30., apesar da medicina ainda tentar negar seu caráter interpretativo, a racionalidade científica não dá conta do sofrimento humano, fazendo que o profissional de saúde tenha que lidar cotidianamente com as tensões entre técnica e sabedoria prática na organização do trabalho. Essa sabedoria prática, por sua vez, é interpretativa, fundada no saber ético e moral trazido pelo profissional, o que reforça ainda mais a importância do debate ético ao longo da formação médica no sentido de preparar o estudante para lidar com os dilemas da vida profissional.

Na disciplina investigada, o cenário de aprendizagem prática potencializa o caráter humanístico no ensino do cuidado integral com o idoso; porém, apesar de os documentos analisados reafirmarem a prioridade do caráter humanístico na formação, parece que o modelo biomédico prevalece implícito ao longo do eixo longitudinal do curso, denotando tensões e disputa de modelos de atenção.

Sobre a relação entre a formação humanística e a formação biomédica no curso pesquisado, podemos destacar uma declaração da professora entrevistada, ao afirmar que é positivo que a disciplina Cisi seja ministrada no sexto período, pois no decorrer da formação o ensino tende a ficar mais tecnicista e perder o caráter humanístico. Nesse sentido, na medida em que progride no curso, o estudante acaba sendo levado, por meio do aprofundamento técnico, a desaprender o cuidado.

Tal dado se alinha à literatura científica sobre a educação médica, que por sua vez indica que, apesar de alguns cursos terem incorporado conteúdos humanísticos aos currículos, tais conteúdos têm permanecido desvalorizados em relação aos conteúdos biomédicos, concebidos como científicos e carregados por um discurso de valorização tecnológica que favorece o mercado2121 Nogueira MI. As mudanças na educação médica brasileira em perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):262-70.

22 Haddad AE, Morita MC, Pierantoni CR, Brenelli SL, Passarela T, Campus FE. Formação de profissionais de saúde no Brasil: uma análise no período de 1991 a 2008. Rev Saude Publica. 2010; 44(3):383-93.
-2323 Nogueira MI. A reconstrução da formação médica nos novos cenários de prática: inovações no estilo de pensamento biomédico. Physis. 2014; 24(3):909-30.,2525 Gomes AP, Rego S. Paulo Freire: contribuindo para pensar mudanças de estratégias no ensino de medicina. Rev Bras Educ Med. 2014; 3(38):299-313..

Cenários de aprendizagem e a relação teoria-prática no ensino da saúde do idoso

Os cenários de aprendizagem proporcionados pela graduação são diversos, como disciplinas, estágios, pesquisa, extensão, eventos, monitoria e outros2626 Carmona DRS, Batista CB. Cenários de aprendizagem e noções de saúde: a percepção dos estudantes de Psicologia sobre sua formação. Psicol Rev. (Belo Horizonte). 2016; 22(1):46-68.. Na formação de profissionais de saúde, os cenários de prática ocupam um lugar de destaque na organização curricular, principalmente aqueles que compõem os serviços de saúde do SUS.

Segundo o PPC estudado, todas as disciplinas do eixo Piesc (no qual se insere a unidade curricular Cisi) têm a rede de saúde como cenário de práticas, configurando-se como aprendizagem em serviço. A inserção dos estudantes na rede tem sido uma estratégia de superação do distanciamento entre teoria e atuação prática, que se dá pela contextualização do aluno na realidade do SUS ao longo da formação.

Nessa perspectiva, toda a rede de saúde tem potencial de atuação como cenário de aprendizagem; no entanto, a efetivação do plano de ensino desse tipo de disciplina (teórico-prática) no serviço necessita de um trânsito contínuo entre conteúdos preestabelecidos e conteúdos emergentes do cotidiano; a metodologia, o ritmo e a organização do processo de ensino-aprendizagem exigem flexibilidade, já que parte do conteúdo é conduzida pelo campo de prática. Na medida em que isso não ocorre, os estudantes deparam-se com uma realidade que não é moldada pelo controle curricular, mas sim pelas complexidades e dificuldades do cotidiano (que incluem problemas socioeconômicos, moradias precárias e limitações do próprio sistema de saúde), levando-os a constatar a insuficiência da teorização diante da realidade, e resultando em frustrações e dificuldades em lidar com questões encontradas no cenário de práticas, conforme observamos nas falas dos estudantes entrevistados:

[...] Eu acho que isso foi difícil em certos aspectos porque a gente não teve uma explicitação em sala, de como é a abordagem com o idoso. A gente teve, de forma geral, sobre as grandes síndromes do idoso, mas como abordar o idoso, a gente não viu isso, isso não foi falado em sala de aula. [...] Então, acho que são demandas que são feitas sobre os estudantes, mas que não são trabalhadas dentro de sala, que não são trabalhadas dentro do curso de forma geral.

(Entrevista aluno Gerânio)

[...] Mas isso é uma queixa que conversando entre a gente, ficou muito claro: o que a gente pegava lá no posto ou aqui, a gente não via na teoria, ou a gente não conseguia lidar com a situação.

(Entrevista aluna Begônia)

Nota-se que os estudantes, em suas colocações, demandam um aprender sobre o cuidado com o sujeito idoso e não sobre as doenças que acometem essa população. Os conteúdos de suas falas demonstram que os estudantes entrevistados já estão operando no modelo do cuidado e questionando a organização do ensino pelo modelo biomédico, que fixa a organização do conteúdo das doenças sem dialogar com a realidade encontrada no serviço de saúde. Ainda assim, percebe-se também um apego ao modelo de ensino que acredita que primeiro se aprende a teoria para depois aplicá-la na realidade, de tal forma que a prática seria um espaço de comprovação da teoria estudada, em uma concepção que mantém o hiato entre essas dimensões do aprender e do pensar.

Kind e Coimbra2727 Kind L, Coimbra JR. Revezamentos entre teoria e prática na reorientação da formação em saúde. In: Kind L, Batista CB, Gonçalves L. Universidade e serviços de saúde: interfaces, desafios e possibilidades na formação profissional em saúde. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas; 2011. p. 68-83. nos convidam a pensar a relação teoria-prática como um sistema de revezamentos. Essa perspectiva do eixo teoria-prática na formação universitária nos aproxima da reflexão crítica de Freire2828 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 57a ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Paz e Terra; 2018. no sentido da superação do blábláblá da teoria versus o ativismo da prática. Ambos os conhecimentos, científico ou profissional, são construídos e elaborados na experiência. Assim, tomaríamos o universo profissional ou o mundo do trabalho não apenas como campo de intervenção, mas também como campo contínuo de aprendizagem e de produção de conhecimento.

O formato de revezamento teoria-prática exige dos professores e dos estudantes outro modo de se relacionar com o aprender, com a aula, com o conhecimento, com o estudo, com as avaliações, mas principalmente com a desconstrução da crença na polarização ou na contraposição entre teoria e prática. Segundo Martins2929 Martins PH. MARES (Metodologia de Análise de Redes do Cotidiano): aspectos conceituais e operacionais. In: Pinheiro R, Martins PH. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro, Recife: Cepesc – Ims/UERJ – Editora Universitária UFPE – Abrasco; 2009. p. 61-94., o olhar em polos reduz a totalidade a dualidades simplificadoras e fixas, que negam o caráter complexo e dinâmico das relações, dos valores e conceitos circulantes na vida social.

Observamos, na unidade curricular pesquisada, que as aulas teóricas contam com conteúdos preestabelecidos que não se (re)organizam por meio do cenário de práticas, de tal forma que quase não há espaço para a problematização das questões trazidas pelos estudantes de tais cenários. A problematização das vivências do cenário de aprendizagem prática pode auxiliar os estudantes na síntese entre teoria e realidade, inclusive por colaborar na compreensão de que a experiência da saúde e/ou da doença é, também, um processo subjetivo que se relaciona intimamente com as crenças, os valores, a cultura, o contexto socioeconômico e familiar do sujeito adoecido2525 Gomes AP, Rego S. Paulo Freire: contribuindo para pensar mudanças de estratégias no ensino de medicina. Rev Bras Educ Med. 2014; 3(38):299-313.,3030 Czeresnia D, Maciel EMGS, Oviedo RAM. Os sentidos da saúde e da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013.,3131 Mitre SM, Batista RS, Mendonça JMG, Pinto NMM, Meirelles CAB, Porto CP, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):2133-44..

Os cenários de prática da disciplina têm proporcionado aos estudantes conviver tanto com idosos mais fragilizados e dependentes, quanto com os que mantêm maior capacidade funcional e autonomia. Esse dado se alinha à literatura a respeito do tema, pois segundo Xavier e Koifman3232 Xavier AS, Koifman L. A educação superior no Brasil e a formação dos profissionais de saúde com ênfase no envelhecimento. Interface (Botucatu). 2011; 15(39):973-84. a academia tem a função social de mostrar ao aluno a heterogeneidade e a complexidade do processo de envelhecimento, assim como dos diferentes locais de assistência aos idosos.

Nesse sentido, é válido destacar que o idoso, como categoria social, carrega traços simbólicos inerentes ao envelhecimento e à velhice, que por sua vez influenciam as decisões em saúde no âmbito das políticas, dos técnicos, dos próprios sujeitos3333 Souza MAA. Luta por reconhecimento na saúde de idosos(as): subjetividade, decisão e redes na atenção básica. In: Pinheiro R, Martins, PH. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro, Recife: Cepesc – Ims/UERJ – Editora Universitária UFPE – Abrasco; 2009. p. 171-86. e, portanto, dos alunos e professores ao longo do ensino médico.

Nas entrevistas, os estudantes ressaltaram que estar em diferentes cenários da rede oferece aprendizagens para um cuidado integral, vivenciando a saúde ampliada em suas dimensões econômicas, sociais, subjetivas e institucionais. Uma das estudantes relatou que:

[...] Estar na UBS ou estar na Ilpi, são dois mundos muito diferentes, porque você pega um idoso que está trancado, trancado com muitas aspas né? E você pega um idoso que tecnicamente, que está bem, dentro da casa. Aí você vê dois cenários. Eu, por exemplo, peguei uma situação péssima, uma idosa que a família abandonou ela, e uma idosa que [...] a filha parou de trabalhar para cuidar só dessa idosa, então eu tive um choque muito grande, de como que muda esse idoso, de quando ele é bem cuidado, tem pessoas que gostam dele perto, de como é a mente dele sabe? Eu acho que isso é muito importante. Então eu acho que o cenário, estar na prática é muito bom.

(Entrevista aluna Begônia)

Para os professores entrevistados, a Atenção Básica (AB) é o cenário de prática mais adequado para a aprendizagem clínica, pois permite um acompanhamento mais amplo do idoso por sua condição de autonomia em relação aos idosos na Ilpi, que tendem a apresentar maior fragilidade e dependência. Um dos professores, inclusive, demonstrou certa ambiguidade em relação à Ilpi:

[...] então nós priorizamos a estratégia de saúde da família, eu acho que esse cenário, ele é o melhor cenário mesmo, porque o médico tem que aprender na Atenção Básica a fazer uma avaliação do idoso [...]. O outro cenário de prática que escolhemos foi a Ilpi, para mim sempre foi um questionamento, [...] e para o aluno é um grande desafio porque é um confronto de idoso, exatamente daquilo que a gente não quer, sem independência e sem autonomia, em um ambiente fechado, um ambiente muito coletivo, sem muita individualidade [...]. Será que é a hora? Do sexto período? [...] mas eu acho que o cenário de prática está bom. [...] porque eles no final avaliam de forma positiva. “Vocês acham que deve parar?” “Não, não, foi bom”. Mas assim você vê aluno sofrendo né, então será meu Deus do céu... É a primeira decepção, né?

(Entrevista professor Jacarandá)

Enfim, disciplinas com grande carga horária de aula prática no serviço demandam uma organização de conteúdo passo a passo com os acontecimentos no cenário externo à universidade, e por vezes se confundem com disciplinas de estágio profissional que têm outras competências e habilidades a serem desenvolvidas. No caso da disciplina pesquisada, nota-se que a questão de lidar com a fragilidade, associada ao acompanhamento do paciente idoso, tem sido fonte de angústia nos estudantes.

A formação de profissionais de saúde: angústias nos cenários de prática

A disciplina Cisi conta com um portfólio reflexivo, a ser feito em um ambiente virtual, que atuaria como instrumento para os estudantes tratarem das expectativas e sentimentos gerados ao longo das práticas, pois tal discussão não é feita nas aulas teóricas. Entretanto, os discursos dos alunos revelaram a queixa da ausência de espaços presenciais para a problematização das vivências no cenário de prática da unidade curricular:

[...] sobre como ver o idoso, como ele era tratado, se isso não causava um adoecimento do próprio aluno. E isso foi pouco trabalhado pelos professores da unidade, às vezes o professor falava alguma coisa, mas não via o aluno integralmente, não via as angústias, o que estava acontecendo. Acho que isso devia ser mais bem olhado também para que a Saúde Mental do estudante seja preservada. [...] Acho que foi sofrido para quase todo mundo [...] tiveram muitos comentários do quanto era triste ver dentro da Ilpi, ou quando a gente ia nas casas e via o contato desse idoso com a família, ou com os cuidadores... Acho que poderia ter sido trabalhado em algum momento isso: as angústias que a unidade trazia para o estudante.

(Entrevista aluno Gerânio)

[...] perceber que o idoso pode ser tão vulnerável o quanto eu vi na instituição, me chocou. Eu saí muito mal, muito mal mesmo. Teve dias na Ilpi que foi muito ruim, tanto que para mim escrever o portfólio da mulher de lá, eu fui deixando, deixando e deixei para escrever na última hora, e quando eu sentei para escrever, me machucou muito e me deixou angustiada. / [...] e aí você para pra pensar... [...] você não muda isso [...] e foi muito angustiante/ A gente tem o nosso portfólio, que é para colocar algumas angústias, mas aí fica muito vago, porque aquela angústia não é debatida, entende?

(Entrevista aluna Begônia)

Segundo Grosseman e Karnopp3434 Grosseman S, Karnopp ZMP. Relação médico-paciente, terapêutica e a formação médica: a ética, a cidadania e o cuidado nas interações. In: Marins JJN, Rego S. Educação médica: gestão, cuidado, avaliação. Rio de Janeiro, São Paulo: Hucitec, Associação Brasileira de Educação Médica; 2011. p. 131-73., lidar com pacientes terminais, ou sem possibilidade de cura, prepara o estudante para situações de perda e, principalmente, o sensibiliza para a própria finitude, o que seria positivo no estabelecimento de melhores relações com os pacientes. O que parece adequar-se, também, no caso do ensino da saúde do idoso, pois, de acordo com o relato da professora entrevistada, “o cenário de práticas traz aproximação e até identificação com o envelhecimento, na medida em que o idoso é personificado e visto como avô ou avó de alguém” (Entrevista professora Ipê). Entretanto, é fundamental, segundo as autoras citadas, a disponibilidade de espaços adequados para debater as angústias vivenciadas ao longo do curso, de forma a auxiliar o estudante no desenvolvimento de reflexões e ferramentas para lidar com seus sentimentos e frustrações.

Durante a pesquisa, os professores da unidade curricular Cisi demonstraram esforço em estabelecer relação dialógica e democrática com os estudantes. Foi consenso, entre os estudantes entrevistados, a importância da disciplina no aprendizado sobre a saúde do idoso, especialmente em relação a sensibilização quanto à fragilidade do idoso e a compreensão do cuidado integral. Os alunos destacaram, de forma unânime, a postura humana dos professores nos cenários de prática no decorrer da disciplina.

Observamos, ainda, que os espaços nos quais a disciplina Cisi insere a carga horária prática proporcionam aos estudantes circular pelo território e interagir com os idosos e suas famílias. Nesse sentido, o ensino deixa de ser atribuição exclusiva da universidade para ser exercido também pelos serviços da rede, que por sua vez se apresentam como cenários de aprendizagem privilegiados1414 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2014; 14(1):41-65.. Todavia, por não problematizar efetivamente as vivências dos estudantes nos cenários de prática, a disciplina acaba de certa forma por manter a cisão entre teoria e prática, amplificando as dificuldades e angústias vivenciadas pelos estudantes na rede.

O currículo forma identidades3535 Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3a ed. Belo Horizonte: Autêntica; 2009. e, no caso das graduações, identidade profissional. Na medida em que a formação médica é permeada por diferentes discursos e práticas educativas, o estudante vivencia antagonismos e contradições entre o currículo formal e o que é ensinado. Mesmo a relação professor-aluno, que deveria ser exemplo de dialogicidade e de aprendizagem do cuidado, passa a ser vivenciada de forma incoerente, gerando ambiguidades e sofrimento nos estudantes3636 Rios IC, Schraiber LB. Uma relação delicada: estudo do encontro professor-aluno. Interface (Botucatu). 2011; 15(36):39-51..

Considerações finais

Em linhas gerais, o presente estudo evidenciou que os cenários de aprendizagem na rede, que se configuram como cenários de prática, demonstram grande potência no sentido de apresentar aos estudantes de medicina a riqueza e a complexidade dos territórios, que são os espaços sociais nos quais saúde e doença são vivenciados pelos idosos.

A interseção entre o mundo do trabalho e o mundo da formação, que se apresenta nos cenários de aprendizagem prática, está repleta de diferentes experiências, concepções e conflitos sobre o próprio fazer e a reflexão sobre esse fazer. Dicotomizar teoria e prática, hierarquizar saberes da ciência e saberes do trabalho, descolar a ciência da realidade social, ou reforçar qualquer subordinação de uma pela outra, alimentam uma única leitura de mundo, empobrecendo o ensino.

As vivências do cenário de aprendizagem, devidamente articuladas aos conhecimentos teóricos, podem diminuir o distanciamento entre teoria e prática na medida em que o cuidado se torne o horizonte da formação. Nessa linha, o ensino deve transcender a aplicação de conhecimentos técnicos para se ater, também, às relações estabelecidas entre professores, estudantes, profissionais da rede e usuários, considerando-se as múltiplas possibilidades que tais relações podem engendrar.

O presente estudo limita-se às peculiaridades da instituição pesquisada e, por ser singular, não tem a proposta de generalização, mas de compreensão de uma dada realidade. Acreditamos que nossa contribuição pode gerar reflexões sobre outros contextos nos quais o ensino médico se insere. De todo modo, defendemos que os envolvidos na educação médica, e principalmente na formação de profissionais voltados ao cuidado com a saúde dos idosos, problematizem os modelos de ensino e se abram para a escuta dos estudantes, pois eles estarão nos cenários de prática, no futuro, como médicos.

  • (d)
    Usamos nomes de árvores para nos referir aos professores entrevistados, e flores para os alunos.

  • Rodrigues CC, Todaro MA, Batista CB. O ensino da saúde do idoso no curso médico: os desafios na formação para o cuidado. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200715 https://doi.org/10.1590/interface.200715
  • Financiamento

    O presente artigo é resultado de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) na forma de Bolsa de Mestrado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPEDU) da Universidade Federal de São João Del Rei.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2020
  • Aceito
    10 Jul 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br