Educação em saúde na atenção primária: as abordagens e estratégias contempladas nas políticas públicas de saúde

Health education in primary care: approaches and strategies envisaged in public health policies

Educación en salud en la atención primaria: los abordajes y estrategias contempladas en las políticas públicas de salud

Ana Lúcia de Magalhães Fittipaldi Gisele O’Dwyer Patrícia Henriques Sobre os autores

Resumos

Este estudo objetiva analisar as estratégias de educação em saúde descritas na formulação das políticas públicas por meio de análise documental, tendo como referencial teórico os enfoques da educação em saúde: preventivo; da escolha informada; do desenvolvimento pessoal; radical; e da educação popular em saúde. Identificaram-se três categorias que balizaram a análise: as abordagens preventivas e com foco no indivíduo; o enfoque radical e os macrodeterminantes da saúde; e as estratégias para incentivo à autonomia e à participação popular. Verificou-se a presença dos diversos enfoques nas políticas analisadas como estratégias educativas interativas e complementares, assim como a identificação de diretrizes para o fortalecimento da autonomia e da participação popular. Mesmo com limitações, as políticas dialogam entre si propiciando ferramentas para o trabalho cotidiano. O retrocesso político atual sinaliza a necessidade de rever as estratégias de educação e os seus impactos na saúde.

Palavras-chave
Atenção Primária à Saúde; Educação em saúde; Políticas públicas


This study analyzed the health education strategies described in the formulation of public policies using document analysis and drawing on the following approaches to health education as a frame of reference: preventive; informed choice; personal development; radical; and popular health education. We identified three categories that demarcate the analysis: preventive approaches focused on the individual; the radical approach and macro determinants of health; and strategies to encourage autonomy and public participation. The findings show that various approaches employing interactive and complementary education strategies were present in the policies analyzed by the study, together with guidelines for strengthening autonomy and public participation. Despite their limitations, the policies show similarities and complement each other, providing tools for everyday practice. Current regressive politics signal the need to review education strategies and their impact on health.

Keywords
Primary health care; Health education; Public policies


El objetivo de este estudio es analizar las estrategias de educación en salud descritas en la formulación de las políticas públicas por medio de análisis documental, teniendo como referencial teórico los enfoques de la educación en salud: preventivo; de la elección informada; del desarrollo personal; radical y de la educación popular en salud. Se identificaron tres categorías que delimitaron el análisis: los abordajes preventivos y con enfoque en el individuo; el enfoque radical y los macrodeterminantes de la salud; y las estrategias para incentivo a la autonomía y participación popular. Se verificó la presencia de los diversos enfoques en las políticas analizadas, en su calidad de estrategias educativas interactivas y complementarias, así como la identificación de directrices para el fortalecimiento de la autonomía y de la participación popular. Incluso con limitaciones, las políticas dialogan entre sí, propiciando herramientas para el trabajo cotidiano. El retroceso político actual señala la necesidad de revisar las estrategias de educación y sus impactos en la salud.

Palabras clave
Atención primaria de la salud; Educación en salud; Políticas públicas


Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) é reconhecida como o primeiro nível de atenção do sistema de saúde, sendo chamada de Atenção Básica (AB) no Brasil, embora os termos sejam equivalentes1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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. A AB tem na Estratégia Saúde da Família (ESF) o primeiro acesso preferencial, com seu foco em coordenar o cuidado e ordenar a Rede de Atenção à Saúde, construindo vínculos na perspectiva de gerar autonomia nos indivíduos e na comunidade1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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A educação em saúde é um componente importante, reconhecido como parte do processo de trabalho das equipes da AB1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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. Sua concepção sofreu mudanças ao longo do tempo, influenciada pelos contextos histórico e político. Na segunda metade do século 19, a educação em saúde surgiu como uma estratégia autoritária e normatizadora, que se valia de práticas coercivas, considerando que as doenças eram causadas pela não observação das normas de higiene por parte da população. Em seguida, em meados do século 20, assumiu um foco positivista, baseada no modelo biológico, informando a população sobre regras do bem-estar físico, mental e social para que, a partir disso, se tornasse responsável por sua própria saúde. A partir das décadas de 1960 e 1970, com o movimento para a reforma sanitária brasileira, a educação em saúde incorporou a discussão sobre a influência dos determinantes sociais da saúde, assim como os fundamentos da educação popular de Paulo Freire, e passou a propor soluções, por meio da problematização, para transformação da realidade2Reis TCR, Figueiredo MFS, Souza LPS, Silva JR, Amaral AKM, Messias RB, et al. Educação em saúde: aspectos históricos no Brasil. J Health Sci Inst. 2013; 31(2):219-23.,3Freire P. Pedagogia do oprimido. 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1978..

Assim, ao conceituar educação em saúde é importante pontuar suas diferentes concepções. Tradicionalmente, é considerada um campo da saúde pública com o propósito de atuar na promoção da saúde e na prevenção de doenças. É considerada ainda como a transmissão de conhecimento, chamada por Paulo Freire de educação bancária, em que o educando se comporta como mero espectador, absorvendo as informações sem contextualização nem reflexão crítica3Freire P. Pedagogia do oprimido. 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1978.. Deve, ainda, ser entendida pela população como coadjuvante na compreensão das causas das doenças, como preveni-las e superá-las4Gomes LB, Merhy EE. Compreendendo a educação popular em saúde: um estudo na literatura brasileira. Cad Saude Publica. 2011; 27(1):7-18.. Na concepção adotada pelas autoras, e que denota a intencionalidade do presente estudo, a educação em saúde constitui-se em um instrumento de construção dialógica do conhecimento, bem como de estímulo à autonomia, à participação popular e ao protagonismo dos sujeitos no seu próprio cuidado.

Como componente inserido no cuidado prestado à população, a educação em saúde está contida no escopo de diversas políticas públicas, garantindo assim seu atributo e sua característica de serviço de saúde previsto em lei5Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2013..

As análises de políticas públicas de saúde encontradas na literatura abordam principalmente aspectos particulares de cada uma, bem como sua implantação pela gestão municipal, não apresentando um estudo amplo sobre a normatização das abordagens educativas em um grupo de políticas que orientam as práticas na AB. Assim, evidencia-se uma lacuna a ser preenchida que justifica a realização do presente estudo6Dias PC, Henriques P, Anjos LA, Burlandy L. Obesidade e políticas públicas: concepções e estratégias adotadas pelo governo brasileiro. Cad Saude Publica. 2017; 33(7):e00006016.

Souza TT, Rocha MS, Machado NMV, Da Ros MA. Educação popular como política pública de saúde: uma realidade? Rev APS. 2015; 18(4):430-7.

Labegalini CMG, Baldissera VDA. A construção de práticas educativas contra-hegemônicas: uma análise da influência de políticas e programas de saúde. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2021;13(1):72-9. Doi: http://dx.doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v13.7461.
https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo....
-9Carvalho MS, Merhy EE, Sousa MF. Repensando as políticas de saúde no Brasil: educação permanente em saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface (Botucatu). 2019; 23:e190211..

Dessa forma, a análise das abordagens oficiais sobre educação em saúde pode contribuir com a compreensão da natureza de ações que orientam a dimensão educativa do cuidado na AB. Nessa perspectiva, objetiva-se identificar e analisar as estratégias de educação em saúde descritas nas políticas públicas de saúde direcionadas especificamente para a AB, com base nas seguintes questões disparadoras: quais são as abordagens e estratégias de educação em saúde inseridas nas políticas públicas de saúde? Elas contemplam diretrizes e mecanismos para garantia da autonomia, participação popular e controle social?

Métodos

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa realizado por meio de análise documental de políticas públicas de saúde. Adotou-se a concepção de documento como prática discursiva que produz sentidos, institui processos, configura a própria realidade e subsidia a ação política, ao ser apropriado de forma distinta pelos sujeitos10Cellard A. Análise documental. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires AP, et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2008. p. 295-316..

Para seleção das políticas, partiu-se do documento “Consolidação das Normas sobre as Políticas Nacionais de Saúde do Sistema Único de Saúde” (SUS) que reúne as Políticas Nacionais de Saúde e revoga as portarias individuais1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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. Por meio desse consolidado identificaram-se três grupos: as Políticas de Organização do SUS, as Políticas Gerais de Organização da Atenção à Saúde e as Políticas Gerais de Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde. Entre elas foram escolhidas aquelas que apresentassem no seu escopo a dimensão educativa voltada para a saúde da população e o fortalecimento da participação popular, e que norteassem as ações desenvolvidas na AB. Ressalta-se que tal recorte não esgota a possibilidade de discussão, considerando-se a diversidade de políticas existentes, bem como a complexidade que a análise de políticas públicas representa.

Para além das políticas selecionadas, incluiu-se a Política Nacional de Humanização11Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013., por abarcar elementos da gestão em saúde que contribuem com as reflexões aqui propostas. Assim, foram contempladas as seguintes políticas publicadas entre 2004 e 2017 e que norteiam a operacionalização do cuidado em saúde na AB: Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa (ParticipaSUS)1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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, Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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, Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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, Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) 1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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, Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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, Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS)1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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, Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [citado 10 Mai 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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e a Política Nacional de Humanização (PNH)11Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013. (Quadro 1).

Quadro 1
Objetivo, princípios e diretrizes das políticas analisadas.

Para identificar e analisar as estratégias de educação em saúde nas políticas elencadas, optou-se como referencial teórico pelos enfoques da educação em saúde descritos por Stotz12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57., revistos e ampliados pela tipologia proposta por Tones13Tones BR. Educación para la salud: prevención o subversión? Quadern CAPS. 1987; 8:27-37., sendo eles: preventivo; da escolha informada; do desenvolvimento pessoal; radical; e da Educação Popular em Saúde (EPS).

Segundo Stotz, a educação em saúde se conforma em um campo de disputa nos âmbitos teórico e prático, e se materializa por meio dos enfoques como estratégias para direcionar as práticas de educação no cuidado em saúde12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57..

O enfoque preventivo é orientado pelo modelo biomédico, baseado nos comportamentos individuais considerados como fatores de risco para o desenvolvimento de doenças. Esse modelo tende a impor padrões de comportamento considerados mais saudáveis, persuadindo as pessoas a modificar seus comportamentos de risco, sem considerar as suas subjetividades nem o contexto social em que vivem, transferindo para os indivíduos a responsabilidade pela saúde ou doença.

O enfoque da escolha informada foi proposto com base na eleição esclarecida sobre os riscos à saúde, em que, após a compreensão de tais riscos, o indivíduo estaria apto e livre para fazer suas escolhas. Nesse enfoque, existe a preocupação em considerar os valores e as crenças dos indivíduos sobre determinadas situações de saúde.

Um terceiro enfoque descrito pelo autor é o do desenvolvimento pessoal, que procura aprofundar as potencialidades individuais para controlar a própria vida e facilitar a escolha informada. No entanto, desconsidera as influências externas no processo saúde-doença.

O enfoque radical considera que as condições e a estrutura social são as causas básicas dos problemas de saúde. Baseia-se na perspectiva de transformação das condições geradoras de doenças pela luta política que envolve a modificação de leis e normas, para que influenciem positivamente a saúde da população. Como limitação, desconsidera a dimensão individual dos problemas de saúde ao não valorizar a dialética do individual e do social no cenário da saúde pública.

Para abarcar a complexidade da educação em saúde, Stotz12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57. acrescenta um novo enfoque à tipologia de Tones13Tones BR. Educación para la salud: prevención o subversión? Quadern CAPS. 1987; 8:27-37.: o da Educação Popular em Saúde. Com origem no movimento de mesmo nome, baseia-se na pedagogia de Paulo Freire3Freire P. Pedagogia do oprimido. 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1978., em que profissionais e pesquisadores consideram o diálogo constante – entre o conhecimento técnico-científico e aquele adquirido nas experiências e lutas populares pela saúde – como caminho para uma educação que possibilite o estímulo à autonomia e à construção compartilhada do conhecimento, para assim transformar a realidade.

Cabe ressaltar que essa análise visou estudar a formulação das políticas públicas, não a investigação de sua implantação. Assim, com base nas questões disparadoras e no referencial teórico do estudo, identificaram-se três categorias que balizaram o estudo: as abordagens preventivas e com foco no indivíduo; o enfoque radical e os macrodeterminantes da saúde; e as estratégias para incentivo à autonomia e à participação popular.

Resultados e discussão

A análise evidenciou a presença dos diversos enfoques da educação em saúde, como estratégias e abordagens interativas e complementares, presentes nas políticas públicas de saúde.

Abordagens preventivas e com foco no indivíduo

A seguir apresentam-se os resultados da análise pela perspectiva dos enfoques: preventivo, escolha informada e desenvolvimento pessoal.

Observou-se na PNAB que o enfoque preventivo é enfatizado ao considerar o desenvolvimento de ações de prevenção de doenças, priorizando os fatores de risco clínico, comportamentais e ambientais como componentes no processo de trabalho das equipes de saúde.

Tal enfoque também foi observado na análise da PNPS, considerando que seus temas prioritários apresentam propostas de ações e estratégias que, mesmo com um olhar ampliado da saúde, estão centradas na prevenção de doenças crônicas relacionadas a fatores de risco, como sedentarismo, tabagismo, má alimentação e consumo abusivo de álcool e drogas.

As estratégias preventivas são características da diretriz da PNAN, que trata da organização da atenção nutricional ao identificar indivíduos e grupos de risco que possam desenvolver agravos relacionados ao estado nutricional, propondo ações educativas no intuito de orientar a população na adoção de hábitos alimentares mais saudáveis.

Da mesma forma, na PNSB, há ênfase no enfoque preventivo, já que as ações são baseadas no conhecimento dos fatores de risco para a saúde bucal, propondo então mudanças nos hábitos de vida da população.

Segundo Stotz12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57., o entendimento sobre o processo de adoecimento é baseado no modelo da multicausalidade, mas a maioria das abordagens adotadas para o seu enfrentamento é baseada na causalidade linear, ou seja, são reduzidas ao componente fisiopatológico, como o enfoque preventivo identificado nas políticas analisadas. Assim, tais abordagens estão ancoradas na concepção biológica da educação em saúde.

Em contrapartida, as medidas preventivas possuem o seu valor e contribuem com a redução da mortalidade materno-infantil e com a efetivação dos programas de vacinação, por exemplo. Entretanto, apesar da efetividade das intervenções em grupos específicos, as inequidades em saúde persistem e em muitos contextos continuam avançando, demonstrando que tais abordagens não são suficientes para combater as causas sociais das inequidades em saúde14Ottersen OP, Dasgupta J, Blouin C, Buss P, Chongsuvivatwong V, Frenk J, et al. As origens políticas das inequidades em saúde: perspectivas de mudança [Internet]. Lancet. 2014 [citado 30 Out 2020]. Disponível em: http://ecos-crisfiocruz.bvs.br/tiki-download_file.php?fileId=222
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Na análise da PNPS, identificou-se que o princípio do empoderamento propõe desenvolver habilidades pessoais no intuito de estimular o amplo controle de decisões e escolhas individuais, guardando íntima relação com os enfoques da escolha informada e do desenvolvimento pessoal. De forma semelhante, um dos valores fundantes da PNPS, a felicidade, procura contribuir com a capacidade do indivíduo de ser o ator principal de suas decisões, e desenvolver potencialidades na construção de projetos para superação das suas dificuldades.

Tais enfoques também foram evidenciados na análise da PNAN, na diretriz Promoção da Alimentação Adequada e Saudável, que prevê o investimento em ações educativas apoiando indivíduos no desenvolvimento de habilidades que contribuam com suas escolhas na prática da alimentação saudável e do autocuidado.

Na PNAB, esses enfoques estão evidentes na diretriz que trata do cuidado centrado no usuário, pois estimula o desenvolvimento de conhecimentos, competências e aptidões a fim de gerenciar e tomar decisões sobre sua própria vida, bem como na diretriz que prevê a longitudinalidade da Atenção à Saúde.

Na PNSB a educação em saúde tem destaque nas ações de promoção e proteção da saúde, inserindo a saúde bucal no contexto de cuidado integral dos sujeitos. Ela propõe que os indivíduos tenham conhecimento sobre o processo saúde-doença para realizar suas escolhas, caracterizando o enfoque da escolha informada.

Esses enfoques consideram que os indivíduos são livres e estão em condições de, com base na compreensão dos riscos à saúde gerados por seus comportamentos, modificar seus hábitos nocivos, embora uma grande parcela da população não se encontre em posição favorável para exercer essa escolha. Dessa forma, esses enfoques contribuem para que os governos transfiram para o indivíduo a responsabilidade de agir sobre problemas que são oriundos das relações sociais e da constituição da própria estrutura da sociedade12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57..

Essa ideia é corroborada por Mentrup et al.15Mentrup S, Harris E, Gomersall T, Köpke S, Astin F. Patients’ experiences of cardiovascular health education and risk communication: a qualitative synthesis. Qual Health Res. 2020; 30(1):88-104., que analisaram estudos com abordagens preventivas baseadas nas mudanças de estilo de vida por meio da perspectiva de indivíduos com doenças cardiovasculares. Os autores concluíram que as abordagens focadas em informação sobre os riscos futuros são insuficientes, muitas vezes geram incerteza, ansiedade e desencorajam a mudança de comportamento.

Os enfoques identificados até aqui são limitados, pois apresentam características individualizantes em busca de ideais de uma vida saudável, apostando no aperfeiçoamento do homem por meio da educação12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57.. Além disso, não é suficiente apenas fornecer informações no intuito de propiciar escolhas e desenvolver habilidades pessoais sem compreender que o indivíduo age além da racionalidade, e que a existência das subjetividades e o contexto social influenciam escolhas e ações16Onoko Campos RTO, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Fiocruz; 2009. p. 669-88..

O enfoque radical e os macrodeterminantes da saúde

A análise da Participa-SUS, demonstra que ela reforça a importância da participação da comunidade na formulação e no controle das políticas públicas de saúde, evidenciando o enfoque educativo radical. Seu texto deixa claro que a formulação das políticas deve ser construída por meio de uma gestão participativa, buscando o fortalecimento da participação popular com poder deliberativo.

O enfoque radical é percebido na PNPS, na diretriz que trata do estímulo à cooperação e à articulação intra e intersetorial, de forma que alcance os determinantes e condicionantes da saúde. Esse enfoque está presente também na PNAN, nos princípios que direcionam as ações educativas para divulgação do conhecimento sobre os determinantes socioeconômicos e culturais da alimentação, contribuindo com a mudança do modelo de produção e consumo de alimentos que são responsáveis pelo atual perfil epidemiológico da população brasileira.

A PNEPS-SUS aborda o enfoque radical ao propor – como um dos seus eixos estratégicos – a mobilização popular nos processos que envolvem formulação, implementação e gestão participativa das políticas públicas, incentivando o protagonismo dos sujeitos.

De forma semelhante, a PNSB prevê o enfoque radical assegurando a gestão participativa e o protagonismo de todos os atores envolvidos na definição das suas diretrizes. Entretanto, no item específico sobre as ações de educação em saúde, enfatiza a dimensão individual no controle dos fatores de risco para a saúde bucal.

A abordagem educativa radical não foi identificada na análise da PNAB, uma vez que o estímulo às ações de transformações macrossociais e políticas nas condições geradoras de doenças não está contemplado nas suas diretrizes. Essa ausência é um aspecto negativo, agravado por seu caráter de política pública de organização da Atenção à Saúde, deixando uma lacuna na AB, no estímulo às ações que vão além da responsabilização do indivíduo pelo processo saúde-doença.

Por fim, a PNH aborda o enfoque radical ao prever a cogestão dos serviços de saúde, no sentido de humanizar o cuidado e promover a participação popular na gestão dos processos cotidianos da AB.

Ainda que seja o objetivo deste estudo analisar a formulação das políticas e não a sua implantação, cabem algumas reflexões teóricas, sob a perspectiva do enfoque radical, sobre as limitações e os desafios na execução dessas políticas no cenário da educação em saúde na AB.

Iniciando esta reflexão pela PNPS, alguns trabalhos apontam contradições existentes na aplicação da PS no cotidiano das equipes de saúde17Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2010.,18Albuquerque TIP. Nas entrelinhas de uma política: uma análise da Política Nacional de Promoção da Saúde [tese]. Recife: Instituto Aggeu Magalhães; 2016.. A evolução histórica da PS mostra seu deslocamento de uma versão com características comportamentais para a Nova Promoção da Saúde (NPS). Ambas possuem em comum a crítica ao modelo biomédico e a necessidade de ampliar a compreensão do processo saúde-doença, mas a NPS transcende a anterior ao evidenciar a relação negativa entre iniquidade social e saúde. Ela aponta a correlação entre a forma como a sociedade se organiza e as condições de saúde, e propõe práticas apoiadas na transformação da realidade pela reflexão crítica e pelo fortalecimento comunitário17Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2010..

Esse deslocamento teórico se revela na revisão da PNPS, em 2014, ao evidenciar e valorizar a perspectiva ampliada da saúde. No entanto, a associação entre PS e o controle das doenças crônicas não transmissíveis, relacionando o termo “modo de viver” ao conceito de “risco”, na nova versão, provocou uma confusão conceitual levando à compreensão equivocada da PS como prevenção. Essa dualidade conceitual afeta a prática profissional na AB e limita o alcance do enfoque radical nas ações de educação em saúde17Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2010..

A PNAB aqui analisada foi a versão revisada, em 2017, em um contexto político e econômico muito diverso daquele em que as demais políticas foram publicadas. A instabilidade política que ocorreu a partir de 2013, agravada nos anos seguintes, aliada às medidas de restrições orçamentárias com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, teve relevante impacto no SUS19O’Dwyer G, Graever L, Britto FA, Menezea T, Konder MT. A crise financeira e a saúde: o caso do município do Rio de Janeiro, Brasil. Cienc Saude Colet. 2019; 24(12):4555-68.. Nesse contexto, a revisão da PNAB, apesar de manter a ESF como prioritária para expansão e consolidação da AB, oferece como opção aos municípios outras conformações de equipe, ou seja, o retorno ao modelo anterior ao da ESF. Propõe, ainda, a flexibilização na composição das equipes, com redução do número de agentes comunitários de saúde, além da maior flexibilidade da carga horária dos profissionais. Dessa forma, representa um retrocesso na Atenção à Saúde da população.

A efetividade da PNSB também foi afetada na revisão da PNAB, ao retirar do texto a obrigatoriedade da presença de equipes de saúde bucal na AB, impossibilitando a operacionalização das suas ações.

Essas mudanças podem representar, entre outras questões, a limitação – e até a impossibilidade – do desenvolvimento de ações educativas pelas equipes de saúde, apesar de estarem no escopo de ações previstas na PNAB. Essas questões também refletem negativamente na operacionalização da PNH, entendendo que ela está ancorada nas diretrizes que preveem a valorização do trabalhador, a cogestão e a gestão participativa.

Tais retrocessos são exemplos claros da origem política das inequidades em saúde como um macrodeterminante. Os determinantes políticos da saúde promovem assimetrias de poder, contribuindo para a manutenção ou o agravamento das inequidades em saúde, afetando em maior escala os países mais pobres14Ottersen OP, Dasgupta J, Blouin C, Buss P, Chongsuvivatwong V, Frenk J, et al. As origens políticas das inequidades em saúde: perspectivas de mudança [Internet]. Lancet. 2014 [citado 30 Out 2020]. Disponível em: http://ecos-crisfiocruz.bvs.br/tiki-download_file.php?fileId=222
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Construir uma sociedade democrática significa criar espaços de democratização para promover a transformação nas relações de poder, permitindo protagonismo político em vez de resignação ou passividade dos sujeitos. Assim, torna-se importante criar condições para o desenvolvimento de processos de aprendizagem por meio da reflexão crítica, levando à liderança popular nas dimensões sociais, políticas e culturais da vida20Jara O. Desafíos para la educación popular en América Latina hoy. Interface (Botucatu). 2020; 24:e200151..

Entende-se que o atual contexto político e econômico do Brasil limita e dificulta o alcance de políticas públicas, com maior abordagem e ênfase nos aspectos sociais, como os aqui analisados. Além disso, há no Brasil a intencionalidade de redução do Estado, bem como dos benefícios sociais21Pedrosa JIS. A Política Nacional de educação popular em saúde em debate: (re) conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200190., semelhante ao que foi descrito por Stuckler e Basu22Stuckler DS, Basu S. A economia desumana: porque mata a austeridade. Lisboa: Editorial Bizâncio; 2014.. Os autores, ao estudarem as relações entre economia e saúde no mundo, demonstraram consequências negativas que as estratégias políticas e econômicas com restrições sociais podem ter sobre a saúde da população.

A pandemia do Covid-19, doença causada pelo Sars-CoV-223Organização Pan-Americana de Saúde Brasil. Folha informativa COVID-19 – Brasil [Internet]. Brasília: OPAS Brasil; 2020 [citado 2 Jul 2020]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
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, que teve início oficial registrado no Brasil em março de 2020, acentua ainda mais esse cenário, considerando as inúmeras desigualdades sociais, como o agravamento da insegurança alimentar e nutricional da população que extrapola a abrangência da PNAN e dificulta o alcance de suas diretrizes24Oliveira TC, Abranches MV, Lana RM. (In)Segurança alimentar no contexto da pandemia por SARS-CoV-2. Cad Saude Publica. 2020; 36(4):e00055220..

Em contrapartida, Vasconcelos25Vasconcelos EM, Vasconcelos MOD. Educação Popular. In: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 112-9. aponta um caminho promissor e esperançoso ao ressaltar a capacidade criativa e resiliente dos profissionais de saúde da AB que, apesar das dificuldades vivenciadas, se mobilizam enfrentando obstáculos para alcançar uma sociedade com mais saúde e maior participação popular, social e política.

As estratégias para incentivo à autonomia e à participação popular

O Brasil tem na publicação da PNEPS-SUS um marco institucional, assim como uma estratégia política e metodológica na ampliação da autonomia, da participação e do controle social, além da formalização do enfoque da EPS prevendo o fortalecimento das práticas populares de cuidado.

Identificou-se, por meio da análise de seus princípios, que os sujeitos são incluídos como protagonistas no enfrentamento dos determinantes e condicionantes sociais da saúde. Considera-se o diálogo como um encontro de conhecimentos, em que há o compartilhamento respeitoso dos diversos saberes, ampliando o conhecimento crítico e contribuindo com o processo de autonomia e emancipação dos sujeitos.

A PNEPS-SUS evidencia a importância da AB ao apoiar a gestão compartilhada entre trabalhadores e comunidades por meio da incorporação dos princípios da Educação Popular nas ações de Educação Permanente dos Trabalhadores, tendo os territórios de saúde como espaços de formulação de políticas públicas.

Nesse sentido, a Educação Popular encontra na AB um terreno rico e propício para seu crescimento e desenvolvimento. Em contrapartida, a AB se qualifica e se fortalece em práticas inovadoras em saúde. De fato, identificou-se, na análise da PNAB, a presença do enfoque da EPS, uma vez que prevê a participação dos indivíduos na construção do vínculo e do cuidado em saúde como forma de participação popular e controle social nas políticas públicas no âmbito da AB. Prevê também o estímulo ao desenvolvimento da autonomia por meio de ações educativas com o objetivo de intervir no processo de saúde-doença, com respeito às diversas experiências e vivências, para construir possibilidades terapêuticas e de vida mais autônomas e efetivas. No entanto, esse enfoque aparece em menor evidência na PNAB, uma vez que não existe indicação de planejamento para ações educativas com base nas experiências dos usuários, o que é central no enfoque da EPS.

De forma semelhante à PNAB, a PNPS também dialoga com a PNEPS-SUS por meio dos temas que abordam os Determinantes Sociais da Saúde (DSS), a equidade e o respeito à diversidade, bem como por meio da diretriz que incentiva a gestão democrática e participativa, buscando somar esforços na redução das desigualdades injustas e evitáveis, e estimulando o diálogo entre os saberes técnicos e populares. Portanto, a educação em saúde está presente na PNPS como uma estratégia para se alcançar os objetivos da Promoção da Saúde (PS) por meio da proposta de desenvolver habilidades pessoais para ampliação da autonomia, com ênfase na participação social e na corresponsabilização.

Encontrou-se também, na análise da PNSB, o enfoque da EPS ao incentivar a autonomia dos sujeitos, ampliando o cuidado em saúde bucal para além das consultas clínicas, produzindo conhecimento que atinja responsabilização, protagonismo e humanização das práticas de saúde em diálogo com a PNPS e PNH.

O enfoque da EPS é também abordado pela PNAN, por meio da Promoção da Alimentação Adequada e Saudável, que prevê o diálogo entre profissionais e população, desenvolvendo práticas educativas que considerem a realidade local e as diversidades, reforçando a autonomia e o protagonismo da população na luta por seu direito à saúde e à alimentação.

A análise da PNEPS demonstrou a presença do enfoque da EPS quando prevê que a formação do profissional, no cotidiano de trabalho, tenha como referência, além das necessidades de saúde da população, o desenvolvimento da educação popular com ampliação do controle social sobre as políticas públicas.

Ao analisar a Participa-SUS, identificou-se o enfoque da EPS na diretriz que propõe a ampliação de espaços de diálogo para construção de saberes, afirmando o protagonismo da população na busca por saúde, assim como na proposta que prevê a sensibilização e a capacitação dos diferentes atores para promoção da educação em saúde e controle social. Ressalta-se, como atribuição das três esferas do governo, o fortalecimento das ações educativas para interferência no processo saúde-doença, bem como o incentivo à EPS.

A educação em saúde não ganhou destaque na PNH. Foi necessário ler nas entrelinhas para identificar as estratégias propostas nesse sentido, inseridas nos seus princípios de transversalidade no cuidado, protagonismo e corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos. Assim, a PNH propicia ações com enfoque na EPS ao propor diretrizes que são baseadas na escuta qualificada por meio do diálogo entre gestores, profissionais e usuários, possibilitando decisões compartilhadas e estímulo à autonomia; e na criação de espaços coletivos de cogestão, garantindo a participação dos usuários e familiares no cotidiano da gestão das unidades de saúde.

A autonomia, como um dos objetivos da educação em saúde, deve ser compreendida como a capacidade dos sujeitos de agirem sobre si mesmos, sendo influenciada por diversos fatores que a limitam ou condicionam em certa medida, como a existência de leis que podem ser mais ou menos democráticas, a presença de políticas públicas sociais, e os contextos socioeconômico e cultural em que estão inseridos16Onoko Campos RTO, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Fiocruz; 2009. p. 669-88..

Está, ainda, relacionada ao acesso dos sujeitos à informação a fim de interpretá-la no contexto da sua realidade para, assim, transformá-la. Dessa forma, o sujeito autônomo é aquele que reflete e age, mas sua autonomia depende de sua capacidade de agir e interferir no mundo3Freire P. Pedagogia do oprimido. 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1978.,16Onoko Campos RTO, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Fiocruz; 2009. p. 669-88..

Essa capacidade, e possibilidade, de ação no mundo impacta positivamente a qualidade de vida dos sujeitos. Está atrelada aos aspectos que envolvem as condições de vida, como moradia, transporte e mobilidade urbana, bem como as redes de apoio social e os espaços de socialização, principalmente de adultos e idosos26Bay AA, Prizer L, Orusa A, Hart AR, Perkins MM, Hackney ME. Effects of a health education and research participation enhancement program on participation and autonomy in diverse older adults. Gerontol Geriatr Med. 2020; 6:1-13..

Portanto, a autonomia é também uma questão política e um exercício de cidadania. Para que ela seja de fato alcançada, é fundamental que o sujeito exerça seu protagonismo e que haja compromisso das políticas públicas com a participação popular27Pedrosa JIS. Gestão participativa, controle social e educação popular em saúde: socializando saberes e práticas. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 167-85..

Além dos reconhecidos DSS – moradias seguras, acesso à alimentação e trabalho –, é importante reconhecer também, como fatores subjacentes às condições de vida, o protagonismo político reforçando o direito que todo indivíduo tem de participar das decisões políticas do seu país14Ottersen OP, Dasgupta J, Blouin C, Buss P, Chongsuvivatwong V, Frenk J, et al. As origens políticas das inequidades em saúde: perspectivas de mudança [Internet]. Lancet. 2014 [citado 30 Out 2020]. Disponível em: http://ecos-crisfiocruz.bvs.br/tiki-download_file.php?fileId=222
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As abordagens educativas coletivas realizadas na AB são, em geral, restritivas, baseadas nos saberes técnicos, desconsiderando as subjetividades e a participação popular. Assim, reforçam o fosso cultural existente entre profissionais e população, não contribuindo com a construção da autonomia nem com o protagonismo dos sujeitos12Stotz EN. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: Ministério da Saúde. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. p. 46-57.,16Onoko Campos RTO, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Fiocruz; 2009. p. 669-88.,27Pedrosa JIS. Gestão participativa, controle social e educação popular em saúde: socializando saberes e práticas. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 167-85..

Seria, então, necessário rever as práticas educativas na AB, considerando as dimensões subjetivas, sociais e políticas como componentes indissociáveis do cuidado em saúde16Onoko Campos RTO, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Fiocruz; 2009. p. 669-88.,27Pedrosa JIS. Gestão participativa, controle social e educação popular em saúde: socializando saberes e práticas. In: Vasconcelos EM, Prado EV, organizadores. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 167-85..

Considerações finais

A análise aqui apresentada demonstra a presença dos diversos enfoques educativos como abordagens e estratégias educativas. Ainda que nem todos os enfoques estejam presentes em todas as políticas analisadas, as suas concepções diversas e complementares representam a potência no alcance da integralidade da abordagem educativa no cuidado em saúde na AB.

As estratégias de educação em saúde presentes nos documentos analisados refletem a relevância da inserção de todos os atores envolvidos nas etapas do processo educativo. Assim, contemplam diretrizes que visam a participação da população – bem como o seu fortalecimento como sujeitos autônomos –, entendendo que, para efetividade dos processos educativos, é necessário construí-los por meio de protagonismo, corresponsabilidade e autonomia.

Importa ressaltar que, com exceção da PNAB 2017, as políticas públicas foram elaboradas e/ou revistas e ampliadas em um contexto político que apresentava propostas progressistas e compromissos com as questões sociais, dando maior visibilidade às classes populares e minorias. Assim, houve investimento em políticas públicas coerentes com o SUS, apresentando incentivo e ampliação da AB em uma gestão participativa, incentivando o controle social, apesar das restrições e limitações orçamentárias vigentes.

No entanto, é fundamental considerar que o cenário político atual representa um retrocesso e uma mudança nas prioridades do governo, levando à ruptura das abordagens que impactam diretamente nos condicionantes e determinantes sociais da saúde, já evidenciado na revisão da PNAB em 2017. Dessa forma, fica clara a necessidade de avaliar futuramente a influência dessa ruptura na inserção da educação em saúde nas políticas públicas, bem como a sua implementação na prática profissional e, assim, identificar os reais impactos na saúde da população.

Ainda que apresentem muitas limitações, as políticas públicas analisadas possuem o potencial de dialogar entre si, propiciando aos profissionais de saúde ferramentas no enfrentamento das dificuldades destacadas.

  • Fittipaldi ALM, O’Dwyer G, Henriques P. Educação em saúde na atenção primária: as abordagens e estratégias contempladas nas políticas públicas de saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200806 https://doi.org/10.1590/interface.200806

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br