Cartas da Pandemia: ressonâncias, apreciações e desdobramentos de uma criação coletiva

Pandemic Letters: resonances, appraisals and developments of a collective creation

Cartas de Pandemia: resonancias, valoraciones y desarrollos de una creación colectiva

Eduardo Augusto Alves de Almeida Mariana Louver Mendes Isabela Umbuzeiro Valent Gisele Dozono Asanuma Sobre os autores

Resumos

Apresentamos aqui as Cartas da Pandemia, proposição do Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível (GEPPS) que, desde março de 2020, mantém um espaço de trocas e expressão em seu site, acompanhado de um convite para receber e publicar colaborações anônimas criadas sob o mote da pandemia de Covid-19. O objetivo, agora, é produzir uma dobra naquela proposição olhando algumas questões disparadas pelo gesto colaborativo original, de acordo com seus aspectos estéticos, políticos, clínicos e sociais, entre outros, e organizando-as em formato de verbetes. Tal exercício busca provocar reflexões, tensionar perspectivas e incitar outras leituras possíveis por meio das contribuições recebidas.

Palavras-chave
Covid-19; Curadoria; Estética e política; Arte; Coletivo


Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível. Cartas da pandemia [Internet]. 2020 [citado 30 Nov 2020]. Disponível em: http://www.gepps.com.br>This paper presents Letters from the pandemic, a proposal from the Group of Poetic and Political Experiments of the Sensible (GEPPS), which in March 2020 created a space on its website for sharing and expression, accompanied by an invitation to submit and publish anonymous collaborations on the theme of the Covid-19 pandemic. This article looks at some of the questions raised by this collaborative gesture, based on its aesthetic, political, clinical and social aspects, among others, and organizing these questions in the form of notes. This exercise aims to promote reflection, stretch perspectives and prompt other possible interpretations based on the contributions received.

Keywords
Covid-19; Curatorship; Aesthetic and politics; Art; The collective


Presentamos aquí las Cartas de la pandemia, propuesta del Grupo de Experimentaciones Poéticas y Políticas de lo Sensible (GEPPS) que, desde marzo de 2020, mantiene un espacio de intercambios y expresión en su página web, acompañado de una invitación para recibir y publicar colaboraciones anónimas creadas bajo el tema de la pandemia de Covid-19. Ahora, el objetivo es producir un doblez en aquella propuesta, considerando algunas preguntas disparadas por el gesto colaborativo original, de acuerdo con sus aspectos estéticos, políticos, clínicos y sociales, entre otros, y organizándolas en la forma de entradas. Tal ejercicio busca provocar reflexiones, tensar perspectivas e incitar otras lecturas posibles a partir de las contribuciones recibidas.

Palabras clave
Covid-19; Curaduría; Estética y política; Arte; Colectivo


Talvez esta seja nossa última carta. Não porque a pandemia terminou, nem porque não teríamos mais a escrever. A cada dia, um novo reposicionamento se faz necessário. Teremos a vacina? Sim! Então nos enchemos de esperança. Na sequência nos damos conta de que não, ainda não tão logo. Medidas de distanciamento são repensadas, flutuamos entre fases coloridas (vermelha, laranja, amarela, verde e de novo amarela) e o isolamento físico, que parecia afrouxar suas bordas, novamente precisa ser apertado.

Lançamos a ideia das “cartas ao vento” na mesma semana em que o início da quarentena foi decretado pelo Governo do Estado de São Paulo, em março de 2020. #fiqueemcasa era a palavra de ordem. E sentindo o avanço dos efeitos que não teríamos como dimensionar, propusemos um espaço de partilha. Elaborar com palavras, sons e imagens aquilo que avançava silenciosa e invisivelmente e talvez pudesse acolher ou fazer circular as inquietudes de um tempo que ainda insiste em não acabar. Cartas sem nome, sem autoria declarada e sem destino específico pareciam bastante propícias para as incertezas que começávamos a sentir.

Figura 1
Convite à participação nas Cartas da Pandemia (fotografia das publicações impressas em papel vegetal). GiseleDozono Asanuma.

Cartas da Pandemia

Cartas são mensagens que veiculam afetos, saudades, banalidades, atualizam fatos, levam notícias. São geralmente escritas em primeira pessoa e endereçadas a alguém próximo e ao mesmo tempo distante. Marcam afastamentos espaciais e temporais. As cartas da pandemia11 Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível. Cartas da pandemia [Internet]. 2020 [citado 30 Nov 2020]. Disponível em: http://www.gepps.com.br
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, por sua vez, também configuram mapas sensíveis – ou “cartografias”, para usarmos um termo que evidencia certa similitude – de um território profundamente impactado pelo novo coronavírus, obrigado a se reinventar com rapidez e contra muitas vontades, como vemos no convite à participação publicado no site do Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível (GEPPS). Ali reunidas e exibidas, tais cartas foram incitadas pela necessidade de conexão em um contexto de isolamento social e têm suas singularidades. Entre 24 de março e 5 de dezembro de 2020, 14 pessoas produziram 25 imagens e 31 escritos. Enquanto escrevemos esse verbete, no último mês do ano, o projeto e a pandemia continuam ativos. São criações plurais, tanto no que se refere ao destino incerto quanto aos remetentes anônimos. O que as mobiliza talvez seja o desejo de escutar e compartilhar experiências, sensações, sentimentos, sonhos, expressões, afetos. Lugar em que histórias mudas podem ser encontradas, contadas, reinventadas. Espaço para reunir solidões. Fazer marcas, produzir memórias, expressar o luto e elaborar o vivido. Como as pessoas estão narrando esse acontecimento? Como as subjetividades vão se construindo na intimidade de cada uma delas? O que estão criando, que sensibilidades, que poéticas?

Postagens

Cartas mais afeitas às nuvens não se espalham ao vento. Elas se organizam por datas e se movimentam sequencialmente quando acionamos a barra de rolagem que comanda o aparelho digital. Cartas-posts, substituindo as cartas postadas, selam um momento e perduram; mesmo sem destinatário definido, têm uma localização precisa. Torná-las materialmente palpáveis – imprimindo todas as 56 em papel vegetal – possibilitou uma leitura à moda antiga, em mãos, e deu volume à quantidade recebida. Fotografá-las trouxe outra visualidade em relação àquela do site e novas possibilidades de ordenação. Operação trabalhosa e quase em desuso, cuja manipulação trouxe surpresas: tocar e sermos tocados por quem não está aqui, mas está. Na forma de rastros, vestígios, palavras e imagens. Formas abertas.

Figura 2
Coletânea de Cartas da Pandemia (fotografia das publicações impressas em papel vegetal). Gisele Dozono Asanuma.

Quaisquer

As inserções anônimas no site têm o propósito de instaurar um comum entre participantes de diferentes idades, etnias, condições socioeconômicas, graus de instrução etc. Trata-se de um artifício que possibilita aparecer sem se mostrar, dizer sem identificar, pertencer como estrangeiro entre demais estranhos de uma terra devastada. Substituímos o nome próprio por um si mesmo que se manifesta, ao mesmo tempo, plural e comum. O artifício nos torna equivalentes em nossas diferenças, todos sob uma condição maior que, ainda assim, estabelece inúmeras condições menores, particulares, borradas pela ausência de nomes. Assim, criações individuais não identificadas deram a ver uma composição coletiva, preservando o lugar de uma experiência subjetiva compartilhada que não precisa se diluir em números, gráficos, curvas, cores, regras – a qual diz muito daquilo que nos resta para sobrevivermos: os cuidados de um, a saúde de todos. A vulnerabilidade inerente de estarmos vivos atravessando essa onda nos conecta por meio de um sentimento de comunidade, evidenciando tensões e torções da existência necessariamente sociopolítica. De modo que as Cartas da Pandemia são obras de quaisquer viventes, que pulsam sua singularidade na manifestação de uma experiência comum. Despersonalização, polifonia; uma voz expressando uma pluralidade de vozes. Um qualquer que, seja quem for, importa.

Memória

Aquilo que mantemos por intermédio de imagens, sons, aromas, sensações corporais, tecnologias. Marcas de histórias, fatos ou invenções que criamos para seguir a vida. Fabulações de experiências que conservamos conosco. Talvez um modo para suportarmos o que se foi, talvez um modo para nos reavermos com o que restou. Reuniões de vídeo gravadas, atas digitais, fotografias, backups de mensagens ou manufaturas criadas com materiais concretos. Que memórias guardaremos desses tempos? Como dar forma a elas? Como compartilhá-las, como elas podem alcançar uma dimensão coletiva? Por qual motivo? O que acontece quando as memórias particulares se tornam coletivas?

Geramos esse baú virtual de cartas que talvez tenha como destinatário comum um futuro porvir ou mantenha um fio de ligação com certo passado ainda presente, dada a configuração de tempo cada vez mais difícil de se estabelecer. O “velho normal”, que se pretende “novo”, apesar de os dias parecerem todos iguais. A dificuldade de estarmos realmente presentes e produzirmos presença. Que marcas permanecerão? Quais apagaremos?

Diário

Formato de organização sequencial, cujos itens se classificam de acordo com a data de entrada no rol – não a data em que aconteceram, realizaram-se ou foram criados, como por vezes somos levados a acreditar. De todo modo, uma sequência linear, desenvolvida no tempo – cronológico –, desde um passado antigo ao mais recente, que lemos no presente e às vezes aponta futuros. Um diário íntimo diz sobre seu autor e seu contexto; e o diário coletivo, feito de vozes anônimas, dissonantes, oriundas de experiências diversas? A obra criada para ser publicada ainda guarda algum tom íntimo? Quando lemos um diário aleatoriamente, é ainda um diário? Um dia qualquer do passado pode se tornar atualizado porque é lido hoje? Nem ontem ou amanhã. Uma senhora diz que sua mãe morria de medo da gripe espanhola, que assolava sua juventude. Gripe espanhola no Brasil? Não temos certeza porque ela não deixou registros.

Vulnerabilidade

Condição comum a todos os corpos existentes: estarem vulneráveis a. Porosidade em relação aos vírus, bactérias, micro-organismos de todo o tipo e aos afetos. O que tensiona a ideia de saúde encerrada em um corpo individual. Suscita a oposição entre a ideia do humano forte, autônomo, que “só tem uma gripezinha”, e a da vida em sua interdependência: somos todos vulneráveis. Estamos vivos na relação com o todo, os contextos, os ambientes, os seres humanos e não humanos.

Curadoria

Cuidar, zelar, trabalhar com as intensidades de uma coisa ou de um conjunto. Criar narrativas a respeito. Lidar com diferenças. Não houve restrições a quem se propôs participar das Cartas da Pandemia. Em alguns casos, dialogamos para acordar a forma da publicação, como com imagens dispostas em mosaicos, em sequência ou mesmo distantes umas das outras. Consideramos que a apresentação sugere significados e impossibilita outros. Restam somente as consequências, é com elas que lidamos. Temos agora este outro exercício poético, crítico e curatorial – um painel de verbetes –, que vê as cartas como um todo e sugere reverberações com base nos problemas que elas levantam. Como se essas cartas se tornassem mesmo um mapa da vida humana ameaçada. Quando, na realidade, suas singularidades continuam à procura de um outro que as receba em seu próprio lar – um lar chamado ser, um ser chamado humano. Bilhões de vidas em busca de cura.

Figura 3
Detalhe das Cartas da Pandemia (fotografia das publicações impressas em papel vegetal). Gisele Dozono Asanuma.

Pensando que essa talvez seja a última, não podemos deixar de recordar as cartas que escrevemos sobre gritos sufocados, agonia do isolamento, reordenação de modos de viver, inquietudes esquadrinhadas por telas de TV, celulares e computadores, números crescentes de vidas perdidas, o descaso dos líderes em vários lugares do mundo, os buracos de nosso sistema de Saúde. Noções sobre urgência se impuseram: aonde estamos indo? Como organizar as novas temporalidades? E o público e o privado, o pessoal e o profissional? Fronteiras borradas. Qual é o impacto do clima sobre a doença? Das diferenças sociais?

Nas cartas remetidas também aparecem pequenos encantos, banalidades cotidianas que à sua maneira foram se assentando na rotina. As danças no supermercado, tentando manter tacitamente as distâncias. Os gestos das crianças, ora estendendo um lápis da cor preferida, ora se escondendo em uma caixa e gritando para sair e ver as coisas de perto. Gestos de gratidão pelos profissionais da linha de frente e em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). A dor das distâncias e das perdas humanas.

Uma troca de mensagens que se deu também pelos canais de comunicação do GEPPS no Instagram e no Facebook, e que celebramos aqui por elas terem sido produzidas e remetidas. Celebramos sua existência, que criou uma zona híbrida do pensar e do sentir com palavras, imagens, gestos, ativando uma partilha sensível do momento e criando algum comum. Na ausência de destinatário e remetente conhecidos, a escrita colocou em suspensão o “eu” identificado, para dar voz a uma multidão de nós, do encontro com o outro, algum tipo de rede solidária de trocas, em certa medida pertencentes a todos.

Talvez logo seja necessário cantarmos, criarmos um sarau, inventarmos outro dispositivo. Por ora, as Cartas da Pandemia selam a partilha de momentos difíceis, de uma travessia sem data para acabar, que em tantas linhas e imagens constituíram uma rede tecida a várias mãos e deram alguma dimensão de pertencimento e conexão em tempos tão turbulentos. Partilhas de solidões, elas nos fizeram companhia. Lembraram-nos de nossas fragilidades, de quanto a vida é vulnerável, o seu funcionamento é sistêmico, e todos nós, dependentes uns dos outros, sem exceção.

Vozes

Como dar conta de tantas vidas, experiências, elaborações tão singulares? A questão permanece aberta, não importa o número e a qualidade das respostas. A exposição virtual das Cartas da Pandemia, no site do GEPPS, é parte de um trabalho que encontrou, aqui, um desdobramento. Buscamos assim uma nova forma de conexão com as contribuições que recebemos. Seja por meio de uma possível última carta, seja com verbetes de apreciação e questionamento ou, ainda, com a colagem a seguir, realizada com fragmentos dessa polifonia que, ao mesmo tempo, assume a voz de uma humanidade posta à prova e, até então, jamais experimentada nesses termos.

Figura 4
Painel criado com fragmentos textuais das Cartas da Pandemia. Gisele Dozono Asanuma.

  • Almeida EAA, Mendes ML, Valent IU, Asanuma GD. Cartas da Pandemia: ressonâncias, apreciações e desdobramentos de uma criação coletiva. Interface (Botucatu). 2021; 25 (Supl. 1): e200881 https://doi.org/10.1590/interface.200881

Referência

  • 1
    Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível. Cartas da pandemia [Internet]. 2020 [citado 30 Nov 2020]. Disponível em: http://www.gepps.com.br
    » http://www.gepps.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2020
  • Aceito
    18 Ago 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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