Pesquisa na saúde: um ensaio sobre o conceito de acontecimento

Investigación en salud: un ensayo sobre el concepto del acontecimiento

Edith Lucia Mendes Lago Ana Lúcia Abrahão Magda de Souza Chagas Ândrea Cardoso de Souza Sobre os autores

Resumos

Este ensaio se trata de uma reflexão teórica sobre o exercício da pesquisa qualitativa na saúde e apresenta o conceito de acontecimento em Foucault e Deleuze, por meio da produção de um grupo de pesquisadores em uma investigação multicêntrica. O acontecimento é explorado como elemento em devir, como suporte para o deslocamento do pesquisador no ato da investigação, e sua perspectiva está centrada no processo de subjetivação dos sujeitos envolvidos no estudo. Na pesquisa, o acontecimento depara-se com diferentes conjunturas que produzem desvios no caminho anteriormente traçado e convocam a novos territórios. Outrossim, o conceito de acontecimento na pesquisa em saúde consiste na construção de uma investigação permeável com base na singularidade do sujeito, na subjetividade, que acontece nos encontros, que não está descolada do cotidiano e requer disponibilidade para atravessamentos, afetações e estranhamentos advindos dos processos de cuidado.

Palavras-chave
Pesquisa qualitativa; Saúde; Conceito; Acontecimento


Este ensayo muestra una reflexión teórica sobre el ejercicio de la investigación cualitativa en salud y presenta el concepto de acontecimiento en Foucault y Deleuze, a partir de la producción de un grupo de investigadores en una investigación multicéntrica. El acontecimiento se explora como elemento en devenir, como soporte para el desplazamiento del investigador en el acto de la investigación y su perspectiva se centra en el proceso de subjetivación de los sujetos envueltos en el estudio. En la investigación, el acontecimiento se depara con diferentes conjeturas que producen desviaciones en el camino anteriormente trazado y que convocan para nuevos territorios. Por otro lado, el concepto de acontecimiento en la investigación en salud consiste en la construcción de una investigación permeable con base en la singularidad del sujeto, en la subjetividad, que sucede en los encuentros, que no está separada del cotidiano y requiere disponibilidad para travesías, afectaciones y extrañezas provenientes de los procesos de cuidado.

Palabras clave
Investigación cualitativa; Salud; Concepto; Acontecimiento


Introdução

Quando tomamos o campo da Saúde como cenário de investigação, é possível reconhecer um território fértil e com muitas possibilidades de desenhos metodológicos, haja vista a sua intensa e complexa rede de questões de ordem social, educacional, política, epidemiológica, clínica, econômica, de gestão, de cuidado etc. Na área da Saúde, circulam distintos objetos com potencial a ser pesquisado, cabendo aos interessados identificar qual o melhor caminho a seguir para a construção da investigação.

A maneira de desenvolvermos pesquisa no campo da Saúde pode ser apresentada como estudos que empregam variáveis numéricas, que resultam em investigações de base quantitativa e em estudos cuja questão principal está relacionada com o que é produzido no encontro entre pessoas, ao singular, com a vida que está também nos números ou onde os números não conseguem acessar. Entretanto, a pesquisa qualitativa ainda é considerada por alguns como um tipo de abordagem superficial, portadora de fragilidade empírica e neutralidade duvidosa11 Taquette SR, Minayo MCS. Ensino-aprendizagem da metodologia de pesquisa qualitativa em medicina. Rev Bras Educ Med. 2015; 39(1):60-7.. Nesse caso, quando entendida dessa forma, deixam de considerar ou perceber que são estudos compromissados em compreender a realidade vivida com todas as suas impertinências, incongruências e irregularidades, típicas do movimento da vida.

Os estudos qualitativos consideram a singularidade do indivíduo porque sua subjetividade é uma manifestação do viver total22 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-6. (p. 623). Entrar em contato com o singular do outro inclui o estabelecimento de relações entre humanos; se o maior quantitativo das pesquisas opera na construção e na correspondência da neutralidade entre sujeito e objeto, isso não deveria e não invalida que outras relações, como a relação sujeito-sujeito, possam coexistir nos territórios dos campos de pesquisa. Há, sim, outras formas de expansão do contato que colaboram e facilitam a produção do conhecimento. Um movimento que nos coloca perante diferentes conjunturas que produzem desvios e constroem novos territórios para o cenário de pesquisa.

A pesquisa que avança para a construção de um campo de investigação em circunstância real, com sujeitos reais – que, diante dos vários modos de vida, nos lança como pesquisadores a situações inesperadas –, tem, por muitas vezes, essas situações não consideradas como fonte para a construção do conhecimento. São circunstâncias que produzem fatos, acontecimentos, que lançam diferenças na construção do conhecimento hegemônico e que fogem ao desenho anteriormente estabelecido para a pesquisa que denominaremos de repetição.

Se etimologicamente a palavra método significa metá ‘atrás, em seguida, através’ e hodós ‘caminho’, deveríamos considerar que existe apenas uma maneira de construir caminhos? Ou podemos elaborar modos de fazer por meio da observação e da demanda do que estudamos? Se elaboramos um caminho que reflita o que pede o campo pesquisado, é importante incorporar que caminhos singulares podem produzir desvios e, assim, colocar o pesquisador em novos e diferentes territórios da existência.

Apostamos na construção de pesquisas que avancem na radicalidade da manifestação do viver intenso e que passem a refletir a postura dos pesquisadores em campo, ou seja, uma investigação em que os novos territórios possam ser incorporados como elementos da pesquisa, produzindo mudanças no pesquisador, nos participantes e no contexto, ao mesmo tempo que lança a investigação a diferentes formas de conhecimento. É uma formulação de pesquisa em que os participantes integram o cenário da investigação e se produzem como sujeitos no mesmo ato da produção do conhecimento, em uma dupla construção: sujeito e conhecimento33 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M, et al. O pesquisador IN-MUNDO e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. In: Gomes MPC, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida; 2014.; uma dinâmica do viver total que se constrói pelo problema a ser investigado em territórios capazes de produzir mudança sobre a realidade vivida, incorporando o acontecimento, aquilo que provoca alterações no desenho da pesquisa e no incremento do estudo.

Neste ensaio, buscamos trabalhar com a ideia de acontecimento como central para a produção da pesquisa com o objetivo de apresentar a reflexão de um grupo de pesquisadores, destacando o debate com base no conceito construído por Deleuze e Foucault associado à dinâmica dos sujeitos envolvidos. É uma reflexão teórica que tem origem em uma investigação multicêntrica em Unidades de Saúde da Família, no período de 2013 a 2016, na cidade do Rio de Janeiro.

Prescrever um modelo de investigação qualitativa não é nossa intenção, pois entendemos que cada investigação é única e singular. O que intencionamos é provocar o debate sobre as várias formas de produção de conhecimento que tenham por base a singularidade do sujeito e, portanto, a subjetividade do viver. Trata-se, então, de colocar à disposição da comunidade acadêmica a nossa experiência e uma reflexão teórica sobre a produção de pesquisa no campo da Saúde.

Refletir sobre pesquisa qualitativa por meio do conceito de acontecimento em Foucault e Deleuze

De onde parte a reflexão

O ensaio apresentado explora o conceito de acontecimento como elemento central para a produção da pesquisa e partiu de uma investigação multicêntrica, denominada Observatório Nacional de Produção de Cuidados, em diferentes modalidades à luz do processo de implantação das redes temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde (SUS): avalia quem pede, quem faz e quem usa, no período de 2013 a 2016. A investigação, que teve como objetivo avaliar a produção do cuidado em diversas áreas do SUS, envolvendo gestores, trabalhadores e usuários por meio de uma Rede de Atenção Compartilhada (RAC), foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, parecer CEP n. 876.385.

A pesquisa apresentou como finalidade adentrar nas redes de Atenção à Saúde e avaliá-las por quem pede, quem faz e quem usa a produção do cuidado no SUS, ou seja, os usuários, os gestores e os profissionais. Uma avaliação compartilhada sob o olhar desses atores, buscando produzir conhecimento na manifestação do viver total. “Isso porque o conhecimento a ser produzido não pode prescindir do que ocorre no ato do cuidar, uma vez que só os envolvidos nesse lugar podem trazer para a cena da pesquisa, mesmo de modo fragmentário, certas informações”44 Feuerwerker LCM, Merhy EE, Silva E. Como temos armado e efetivado nossos estudos, que fundamentalmente investigam políticas e práticas sociais de gestão e de saúde? A pesquisa sobre acesso e barreira na saúde mental. In: Feuerwerker LCM, Bertussi DC, Merhy EE, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes - Livro 2. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. (p. 13).

A proposta do estudo se diferencia das pesquisas tradicionais, pois constrói um território de investigação arquitetado no encontro entre os atores que fizeram parte da pesquisa. Uma metodologia centrada na singularidade da produção do cuidado em saúde e do movimento das redes de atenção instituídas pelo Ministério da Saúde como política para o SUS. Um movimento que convoca as dinâmicas e disputas que habitam o campo da produção do cuidado e do conhecimento em saúde.

Como um estudo multicêntrico, houve diferentes frentes de investigação da RAC distribuídas no país; precisamente 12 estados participaram do estudo com inserções e estratégias distintas nas redes de atenção centradas na necessidade de construção de encontros dos sujeitos nas redes de saúde.

Os encontros, realizados nos diferentes campos, ocorreram com base no que chamamos de in-mundização33 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M, et al. O pesquisador IN-MUNDO e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. In: Gomes MPC, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. entre os diversos sujeitos implicados nos objetivos da RAC. Experimentar ser pesquisador “in-mundo” é romper com a estrutura sujeito-objeto. “Outras formas de produção de conhecimento não operam na cisão paradigmática sujeito-objeto das chamadas ciências duras, ao contrário, operam na perspectiva da constituição do sujeito pesquisador no mundo, in-mundo, com o objeto”33 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M, et al. O pesquisador IN-MUNDO e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. In: Gomes MPC, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. (p. 156).

Tomando como base o encontro e o acompanhamento do movimento das redes de atenção no campo de pesquisa qualitativa, iniciamos um debate sobre as várias formas de produção de conhecimento que tenham por base a singularidade do sujeito e, portanto, a subjetividade do viver. Ao acompanhar o movimento dos gestores, usuários, profissionais de saúde e o próprio movimento de cada pesquisador, identificamos um processo de conhecimento que se construía no decorrer do estudo.

O conceito e a ferramenta acontecimento

A proposta da RAC, orientadora do estudo, implicava produção de encontros em atos coletivos capazes de produzir conhecimento sobre o cuidar. O encontro provoca e produz movimentos duplos de linhas de fuga, revela debates, disputas, acomodações e ganha concretude ao inaugurar novas formas de verbalizar o acontecimento e a produção de conhecimento entre os atores envolvidos na pesquisa55 Deleuze G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva; 2007..

Tomamos, assim, neste ensaio, o conceito de acontecimento55 Deleuze G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva; 2007.:

O brilho, o esplendor do acontecimento, é o sentido. O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera. Segundo as três determinações precedentes, ele é o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece55 Deleuze G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva; 2007.. (p. 152)

Dessa forma, descartamos a ideia de acontecimento como uma sucessão de fatos, como rotina cotidiana ou como algo inerente à cultura, ou ainda algo descolado do coletivo ou transcendente ao encontro. Olhamos o que poderia ser considerado um fato banal pela repetição e damos a ele o olhar singular; extraímos ali na repetição a diferença, o que é. O que une a noção de acontecimento à história é a novidade da teoria foucaultiana das práticas66 Deleuze G. Foucault. Paris: Les Éditions de Minuit; 1986.. O livro Ordem do discurso77 Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France. São Paulo: Loyola; 2009., ao abordar acontecimento, faz distinção entre o presente e o atual, entre o hoje e o agora, considerando a interrogação da atualidade uma forma de problematizá-la como acontecimento, uma reativação permanente de uma atitude88 Foucault M. Nietzsche, Freud e Marx e o Theatrum Philosoficum. Porto: Publicações Anagrama; 1980., sendo a verdade indissociável da singularidade do acontecimento99 Foucault M. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard; 1972.. O que é considerado como verdadeiro não se estabelece no ato, é produzido como acontecimento, com espaço e tempo particulares, uma verdade não universal, que se produz no acontecimento1010 Candiotto C. Verdade e diferença no pensamento de Michel Foucault. Kriterion Rev Filos. 2007; 48(115):203-17. Doi: https://doi.org/10.1590/S0100-512X2007000100012.
https://doi.org/10.1590/S0100-512X200700...
. Portanto, uma verdade que merece ser interrogada e problematizada no tempo e no espaço do acontecimento, permitindo conhecer e entrar em contato com as verdades que circulam no campo, no território do vivido.

Incorporamos acontecimento como o que é, no ato e na essência, uma reativação permanente e em devir, uma força minoritária de um processo de idas e vindas cujo objetivo é a transformação, o vir a ser, no encontro. São singularidades que se apresentam naquele momento e que podem nos desterritorializar, deixando-nos descontextualizados momentaneamente, impelindo-nos irremediavelmente à reflexão. Guarda em si uma potência criativa, essa mesma necessária para a reorientação da lógica de serviços (como, por exemplo, a reorganização de um processo de trabalho ou a oferta de serviços) e para a construção de sujeitos.

Acontecimento como força na pesquisa é o resultado dessa reflexão, o seu sentido, aquilo que nos provoca a produzir uma reflexão horizontalizada sobre o processo de produção de conhecimento; uma reconstrução do território em que se estabelece a relação sujeito-objeto; um território da pesquisa em outra perspectiva.

Nesse caso, não nos referimos à perspectiva clássica e sim à construção em que

Viveiros de Castro adota o perspectivismo ameríndio que tem como base reconhecer o lugar do outro e suas formulações/reflexões, não se tratando de buscar a reflexão sobre o outro e sim a reflexão do outro. Aqui está expresso um princípio interessante, em que não é o sujeito que tem o ponto de vista do objeto e sim de que o ponto de vista cria o sujeito, ou ainda que será sujeito quem se encontrar ativado pelo ponto de vista. Deste modo, o estar em linha com o outro deixa claro que todos são sujeitos1111 Chagas MS. Chamei a morte para roda ela quis dançar ciranda, mudança: estudo descritivo sobre o processo de cuidar diante da finitude [tese]. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016.. (p. 57)

A pesquisa, quando incorpora o acontecimento, provoca um exercício em que o desenho metodológico é produzido no contato com o campo, na medida em que o sujeito se encontra ativado pela vista do ponto, permitindo que as múltiplas possibilidades do experimentar passem a exigir esta ou aquela técnica de pesquisa (aqui o pesquisador podendo valer-se das diferentes técnicas de investigação qualitativa), com espaço para a construção de inovações metodológicas durante o estudo. Nesse sentido, o pesquisador está “levemente” preparado para o campo, pois se vale do seu arsenal metodológico, sua caixa de ferramentas teórico-metodológica, mas com plasticidade para a incorporação do acontecimento, das exigências que o campo aciona com os encontros entre os participantes do estudo.

O pesquisador levemente preparado está sensível e disponível para os vários tipos de acionamentos que o campo provoca, sendo capaz de lançar mão de técnicas, conceitos-ferramenta e métodos de pesquisa de acordo com a convocação feita pelos encontros construídos no cenário de investigação, ou seja, estar levemente preparado é ter caixa de ferramentas criativas e ameríndias.

Acontecimento, como reflexão no ato de investigar, leva-nos à reflexão sobre o encontro:

Encontro é algo que faz os corpos colidirem mesmo sem contato visceral, direto, físico, mas que altera os corpos, afetando-os, efetuando não só a mistura dos mesmos, mas modificando-os, aumentando ou diminuindo a sua potência de ação no mundo, forjada em ato. Deste modo, o usuário também é produtor de saber, contudo, saber não dominado, não hierarquizado, mas transversalizado, indutor da desacomodação e distribuição das relações de saber-poder, criando redes de sustentabilidade e produção da vida. Saber imprescindível para os arranjos das tecnologias leves1212 Santos AM, Cunha ALAl, Cerqueira P. O matriciamento em saúde mental como dispositivo para a formação e gestão do cuidado em saúde. Physis. 2020; 30(4):e300409.. (p. 8)

O acontecimento como uma ferramenta na pesquisa opera na plasticidade do estar diante do outro, ao que ele traz consigo como verdade, assim como as verdades que carregamos. Nesses encontros, entramos em contato com os diferentes regimes de verdades que operamos no nosso cotidiano. Esse mecanismo exige análise das lógicas e racionalidades presentes no ato do encontro. Um movimento delicado de construção é essencial no desenvolvimento de uma pesquisa que toma como foco a singularidade do sujeito, a subjetividade na manifestação do viver total, incorporando o acontecimento como o que é, puro no ato.

Uma pesquisa que se propõe a incorporar o acontecimento e que coloca o encontro como algo fundamental e singular não apresenta facilidades para o pesquisador porque desconstrói o construto de que existiria um condutor nesse processo, uma vez que horizontaliza a relação pesquisado-pesquisador ao refazer a relação sujeito-objeto e passa a trabalhar a noção de sujeito-sujeito. Esse modo de operar é distinto da maioria das pesquisas e carrega em si a necessidade de um pesquisador que se permita estar no encontro com o outro e não busque o controle total do próximo passo, que aprenda a vivenciar o acontecimento, que seja protagonista da pesquisa tanto quanto o outro, o que, a princípio, seria o “objeto” de estudo.

Na relação horizontalizada, os encontros incidem diretamente em nossa potência de existir e agir, provocando, respectivamente, seu aumento ou sua diminuição. Esses encontros são produzidos juntos, não há separação; porém, há variabilidade. Tudo o que pode surgir por meio deles, inclusive possíveis ações concretas, vai depender efetivamente do movimento do que é afetado1313 Abrahão AL, Gomes MPC, Chagas MS, Costa MA, Santos NLP, Freire MAM, et al. O pesquisador, o objeto e a experimentação: a produção do conhecimento IN-MUNDO. In: Feuerwerker LCM, Bertussi DC, Merhy EE, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes - Livro 2. Rio de Janeiro: Hexis; 2016.. Entretanto, mais do que o resultado, ou se foi um encontro potente ou não, aqui se distanciando dessa forma dicotômica de olhar a realidade, é importante perceber e refletir sobre o impulso produzido nos encontros que nos atravessam.

O acontecimento como devir inclui olhar e acolher os maus encontros também, mesmo que encontremos resistência que nos desmotivem, tanto nas pesquisas quanto nos trabalhos que desenvolvemos no sistema de saúde. Todavia, como fazem parte do cotidiano, não podem ser ignorados; e, se revisitados, podem se constituir em uma fonte de análise muito potente1414 Gomes MPC, Merhy EE, Silva E, Abrahão AL, Viana L, Rocha MC. Uma pesquisa e seus encontros: a fabricação de intercessores e o conhecimento como produção. In: Gomes MPC, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida; 2014..

Por outro lado, os bons encontros, por aumentarem a nossa potência de existir, são muito mais fáceis de ser acolhidos. Refletir sobre o impulso dos encontros é difícil, pois estão relacionados com a singularidade dos corpos afetados. Algumas vezes, temos simplesmente a satisfação do dever cumprido; outras, de descoberta de fio da meada, instigando o profissional à ação; outras ainda, somos invadidos pelo desânimo e nos deixamos envolver pela ausência de potência.

Para o pesquisador, a persistência em não desistir, de tentar mais uma vez conviver com o óbvio, como uma novidade – que, na maioria das vezes, sempre esteve presente displicentemente à nossa disposição –, é sempre um desafio. Faz parte do ofício, ficando enraizado em nós. Assim, é necessária certa plasticidade, acolher o inesperado e estar disposto a se reeditar como profissional e como pessoa, reconhecermos que o outro é diferente de nós e que isso não deve impedir experimentações na perspectiva do acontecimento.

Apontamentos finais para reflexão

A forma de produção de conhecimento que tenha por base a singularidade do sujeito e, portanto, a subjetividade do viver, com a apresentação de uma reflexão teórica sobre o campo em uma pesquisa, guiou a produção deste ensaio. Apontamentos nos permitem tomar o conceito de acontecimento na pesquisa em saúde como a construção de uma investigação permeável ao que surge nos encontros, pois busca evitar pensamentos e posicionamentos a priori e tem um compromisso com a transformação dos sujeitos (pesquisadores, profissionais de saúde e usuários) e não deve estar descolada do cotidiano.

Quando colocamos o experimentar como elemento-chave para conhecer e produzir conhecimento, estamos nos reportando à ideia de estarmos disponíveis para atravessamentos, afetações e estranhamentos advindos dos processos de cuidado no campo da Saúde, em que as técnicas de investigação qualitativas são incorporadas nesse processo, estabelecendo um campo de pesquisa em circunstância real, com sujeitos reais.

Podemos identificar como novidade, no exercício de produção de conhecimento, o que pode ser ou estar naquilo que se considera já conhecido, mas que pode ganhar novos olhares sobre o fazer diário que é capaz de ser provocado à revisão por meio do questionamento de alguém de fora, ou do próprio sujeito, a fim de resolver rever o seu próprio agir e fazer. Essas “provocações”, convites a refletir sobre o que se faz, ocorrem à medida que a pesquisa transcorre e que o fazer junto aparece e deve ser problematizado.

O “fazer com” reconhece que todos os sujeitos envolvidos na pesquisa são pesquisadores, copartícipes do processo de investigação e, portanto, detentores de saberes diferentes, que, ao se misturarem, são capazes de produzir algo novo ou até mesmo produzir forma de dizer diferente algo que já estava posto. Ao provocar reflexão sobre as formas de fazer que ocorrem horizontalmente, o dizer desses arranjos, que estão postos no campo de pesquisa, ganha outro formato. Não se trata de produzir novidades, mas de revelar outra perspectiva sobre o mesmo ponto, estimulando o sujeito a ser ativado pelo ponto de vista.

Refletir sobre pesquisa qualitativa, incluindo o devir acontecimento, constitui reconhecer as potências e as ofertas presentes de conhecimentos existentes no campo da Saúde para, assim, evitar dicotomias, avançando na produção de modos de conhecer mais próximos da realidade vivida.

Referências

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    » https://doi.org/10.1590/S0100-512X2007000100012
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    Chagas MS. Chamei a morte para roda ela quis dançar ciranda, mudança: estudo descritivo sobre o processo de cuidar diante da finitude [tese]. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016.
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    Gomes MPC, Merhy EE, Silva E, Abrahão AL, Viana L, Rocha MC. Uma pesquisa e seus encontros: a fabricação de intercessores e o conhecimento como produção. In: Gomes MPC, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2021
  • Aceito
    30 Nov 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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