O que podem corpos negros? Navegando pelas existências que habitam narrativas-rizoma-visceral

What can black bodies? A journey through the existences that inhabit rhizomatic visceral narratives

¿Qué pueden los cuerpos negros? Navegando por las existencias que habitan narrativas-rizoma-visceral

Paula Bertoluci Alves Pereira Valéria Monteiro Mendes Josiane Moreira Germano André Rodrigues Laura Camargo Macruz Feuerwerker Sobre os autores

Resumos

Convidamos a todos para navegar conosco por meio desta narrativa poética produzida durante o contexto da pandemia, que evidenciou em nossos corpos a necessidade de dar dizibilidade e visibilidade às potências, dores e resistências que ressoam em nossos corpos negros, em produção. Juntando nossas canoas, desbravamos das travessias de morte pelos mares e oceanos às Terezas de Benguela e Marielles, marcando o genocídio, o racismo, a necropolítica e os saberes-fazeres-viveres que são resistência e compõem, no e pelo corpo, essa frente de combate e enfrentamentos cotidianos.

Palavras-chave
Negritude; Produção de vida; População negra; Genocídio; Racismo


We invite readers to journey with us through this narrative poem written during the pandemic, which revealed through our bodies the need to give sayability and visibility to the potencies, pains and resistance that resound throughout our black bodies in production. Bringing together our canoes, we brave the crossings of death over the seas and oceans to the Tereza de Benguelas and Marielles, marking genocide, racism, necropolitics and the knowing-doing-living that are resistance and comprise, in and throughout the body, this front of daily combat and confrontations.

Keywords
Negritude; Life production; Black population; Genocide; Racism


Los invitamos a todos a navegar con nosotros por medio de esta narrativa poética producida durante el contexto de la pandemia que puso en evidencia en nuestros cuerpos la necesidad de dar pronunciabilidad y visibilidad a las potencias, dolores y resistencias que resuenan en nuestros cuerpos negros, en producción. Juntando nuestras canoas, exploramos por las travesías de muerte por los mares y océanos a las Terezas de Benguela y Marielles, señalando el genocidio, el racismo, la necropolítica y los saberes-haceres-viveres que son resistencia y componente en el cuerpo y por él ese frente de combate y enfrentamientos cotidianos.

Palabras clave
Negritud; Producción de vida; Población negra; Genocidio; Racismo


Introdução ou “Começando a travessia pelos bastidores de uma navegação-rizoma-visceral”

Essa navegação-composição se inicia a partir de uma narrativa reflexiva produzida pela autora(f(f)Narrativa reflexiva produzida durante o curso Educativa – “Aperfeiçoamento em Educação Médica e em Saúde com Ênfase em Metodologias Ativas de Ensino-Aprendizagem” e que possibilitou o encontro com outros navegantes, desencadeando na produção desta narrativa-espiral-rizoma.) para uma atividade intitulada Viagem Educacional, utilizada como um disparador educacional que busca desconstruir a dicotomia razão e emoção por meio da arte em processos formativos11 Mourthé Junior CA, Lima VV, Padilha RQ. Integrating emotions and rationalities for the development of competence in active learning methodologies. Interface (Botucatu). 2018; 22(65):577-88. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0846.
https://doi.org/10.1590/1807-57622016.08...
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O filme-faísca se chama “Invictus”, nome que faz alusão ao poema de William Ernest Henley e que Nelson Mandela carregava consigo para a luta permanente pela/com sua vida contra o Apartheid na África do Sul. Pelo período retratado nessa obra cinematográfica, navegamos com Mandela quando eleito presidente em 1994 na era dita Pós-Apartheid e que explicita todas as contradições de um país brutalmente estuprado pelo modus operandis massa-branca-ocidental-hegemônica. Necropolítica22 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1; 2018..

Atravessada pelo que borbulha nas existências de nossos parentes de lá e de cá, nasce uma narrativa-poesia agenciada intensamente pelos bastidores do cenário pandemônico, o qual continua a perpetuar a barbárie de uma política genocida e necropólita/necropolítica sobre os corpos e corpas(g(g)Termo produzido por Dandara Kuntê – mulher negra, atriz, escritora e integrante do Zona Agbara –, que subverte em suas escritas negras o uso masculino da palavra “corpo”. O encontro com Dandara e a Zona Agbara aconteceu a partir da pesquisa de doutorado de Mendes3.) pretas33 Mendes VM. Entre pontes, travessias e encruzilhadas: corpos em tensão, inventando existências e resistências rizomáticas [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2020. nessa terra “Brasilis”.

Mas essa escrita não podia caminhar só. Exigiu desdobrar-se pela multiplicidade das vivências, dos (in)dizíveis e (in)visíveis lugares de fala. Fundamental convocar corpo e encontro. Misturar. Rizomar-se44 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34; 1995. v. 1.. Produzir alteridade. (Re)conhecer e fabricar devir-corpo-negro em cada um de nós.

Assim, fomos nos juntando e tecendo uma narrativa-poesia, a partir do que os encontros foram produzindo em nossos corpos – corpo vivo55 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002., em ato. Uma travessia habitada por vários corpes em diferentes momentos e tempos. Narrativa-tempo-espiralar(h(h)Utilizamos a noção de tempo espiralar – proposta pela dramaturga, poeta e ensaísta brasileira Leda M. Martins –, que se refere à correlação entre passado, presente e futuro, de forma que os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estejam em processo de uma perene transformação e concomitantemente correlacionados.)66 Cardoso JTA. O tempo espiralar na narrativa de Orlanda Amarílis. Cad CESPUC Pesqui. 2011; (18):79-87.

7 Martins LM. A oralitura da memória. In: Fonseca MNS. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica; 2001. p. 61-86.

8 Martins LM. Performances do tempo espiralar. In: Ravetti G, Arbex M, organizadores. Performances: errâncias territoriais e textuais, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Poslit; 2002. p. 69-91.
-99 Ramos JS. O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro. Rev Bras Estud Presença. 2017; 7(2):296-315..

Os fios-intercessores que compõem essa espiral-rizomática44 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34; 1995. v. 1.,66 Cardoso JTA. O tempo espiralar na narrativa de Orlanda Amarílis. Cad CESPUC Pesqui. 2011; (18):79-87.

7 Martins LM. A oralitura da memória. In: Fonseca MNS. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica; 2001. p. 61-86.

8 Martins LM. Performances do tempo espiralar. In: Ravetti G, Arbex M, organizadores. Performances: errâncias territoriais e textuais, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Poslit; 2002. p. 69-91.
-99 Ramos JS. O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro. Rev Bras Estud Presença. 2017; 7(2):296-315. perpassam pelas vivências, experimentações e lugares ocupados por cada um/uma de nós; pelas reflexões realizadas no grupo Micropolítica e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP); pelos movimentos na vida (no andar e mover-se a partir de nossas conexões, existências, saberes, fazeres, memórias que o corpo pulsa e carrega); pelos caminhos que as pesquisas cartográficas com diferentes coletivos e produções singulares nos planos do (in)visível para muitos vêm nos afetando; e pela intensidade agenciada pelos afetos pulsantes ao nos des-territorializar, territorializar e re-territorializar44 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34; 1995. v. 1. nesse devir-corpo-negro.

Por mares de afetos, intensidades e diferentes campos de sensações navegamos e nos desdobramos em forma de poesia-narrativa-denúncia-combate. Arte-Resistência necessária para produção de vida e enfrentamentos permanentes. Escrita-espiral-rizoma-visceral44 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34; 1995. v. 1.,66 Cardoso JTA. O tempo espiralar na narrativa de Orlanda Amarílis. Cad CESPUC Pesqui. 2011; (18):79-87.

7 Martins LM. A oralitura da memória. In: Fonseca MNS. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica; 2001. p. 61-86.

8 Martins LM. Performances do tempo espiralar. In: Ravetti G, Arbex M, organizadores. Performances: errâncias territoriais e textuais, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Poslit; 2002. p. 69-91.
-99 Ramos JS. O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro. Rev Bras Estud Presença. 2017; 7(2):296-315.. Encruzilhamo-nos(i(i)Inspirado na concepção proposta por Martins8 e Ramos9-11, referindo-se a um lócus de intermediação, formando um novo espaço – “ponto de interseção”, “espaço do entre”, espaço atravessado de encontros, desencontros, mudanças e alternâncias, que, por mais que carreguem algumas características formadoras, estão em plena transformação a partir da constituição de novas experiências e memórias.)88 Martins LM. Performances do tempo espiralar. In: Ravetti G, Arbex M, organizadores. Performances: errâncias territoriais e textuais, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Poslit; 2002. p. 69-91.,99 Ramos JS. O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro. Rev Bras Estud Presença. 2017; 7(2):296-315.

10 Ramos JS. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões sobre a encruzilhada como espaço de interseção. Anais ABRACE. 2019; 20(1):1-17.
-1111 Ramos JS. Notas sobre o corpo-encruzilhada: entre o ritual e a cena [tese]. Rio de Janeiro: Unirio; 2010..

O que podem corpos negros?

O que pode um corpo-negro? Pode ele ser doutor? Médico, advogado, juiz, fisioterapeuta, bailarino, atleta, cientista, poeta, estudante ou o que ele quiser?

O que pode um corpo-negro? Amordaçado e escravizado por esta sociedade por tantos e tantos séculos. Separado brutalmente de suas famílias. Tentaram lhe tirar tudo: sua origem, sua língua, seus sonhos, seu direito de ser cidadão.

O que pode um corpo-negro? Mercantilizado. Desumanizado, zoormorfizado. Busca feroz de reduzir a potência de seus corpos a um corpo-amassa-barro. Corpo-objeto. Homem-mineral, homem-moeda, homem-metal1212 Mbembe A. Crítica da razão negra. 3a ed. São Paulo: N-1; 2019.. Sequestrado de seu continente, o corpo negro atravessou o Atlântico.

Milhões chegaram. Muitos ficaram.Pelos caminhos...Lançaram-se aos mares. Foram lançados, multidões de corpos massacrados.Kalunga grande.Travessias para mortes físicas e existenciais.Travessias para formulações de um novo... território/país/nação?Travessias para atualizações de saberes e viveres.Ancestralidade.Travessias para séculos de disputas pela vida.Reterreirização...Desterreirização...Terreirização...Reterreirização...Terreirização...Desterreirização...Diáspora.Sankofa.O que pode um corpo-negro? Objetificado. Deram-lhe nome: criado-mudo. Não fala, não sente, não chora, não olha, não respira, não pira. Só serve.Só obedece. Não grita. Paira o medo...“Apanha”, todos os dias?Silencia?Morre?Tentáculos do genocídio(j(j)O Monstro do Genocídio do Povo Negro é uma figura arquetípica executora da máquina genocida ocidental. Representa um monstro que mira o Povo Negro, não apenas ele, mas toda a diversidade que a alteridade ao Ocidente pode conter, em suas pluriterritorialidades e pluriculturalidades. Há negros com mais de um tentáculo sobre seus corpos, sendo que o ataque genocida não é apenas físico, mas também psicológico, espiritual, ontológico, semiótico, nutricida e epistemicida13 (p. 179).)1313 Njeri A. Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. Ítaca. 2020; (36):164-226.. Açoite da modernidade-colonialismo-escravidão.Múltiplas marcas...

O que pode um corpo-negro? Liberdade no papel. Só no papel. Abandonado, ativamente renegado. Preso no mesmo corpo-negro-amassa-barro, lá no morro, nas periferias. Continua a servir o corpo-massa-branca. (In)visível lutador.

O que pode um corpo-negro? Devir-resistência, dos quilombos, às periferias, à cidade grande. Batalha cotidiana em que resistir é viver. Zumbi, Dandara, Aqualtune. Miguel, João Pedro, Ágatha, Kauan, Jenifer, Kethelen, Marielles... e... e...

O que pode um corpo-negro? Pode tudo. Deveria. Muito lhe é negado. Desde a existência até o sonhar. Sonhar ser ele o que quiser.

Muitos desses corpos tombam...E tombam antes dos seus sonhos ou, mesmo, de saber o que é isso.

O que pode um corpo-negro? Lutar, sempre. Incansavelmente, ainda que o corpo peça... arrego? Ainda que nossas mulheres, homens e crianças pretas continuem a ser mortas cruelmente. Ainda que, das formas mais sutis, um pedaço de nós seja morto cotidianamente. Ainda que essa batalha pareça não acabar. Ainda.

Tombou.Mais um corpo negro no chão.Azeviche-sangue.Caiu do prédio.Azeviche-sangue.Foi morto dentro de casa.Azeviche-sangue.Quarentena.Azeviche-sangue-negro.A bala veio não se sabe de ondeO CEP-destino é certeiro.Azeviche-sangue.Política de morte.Azeviche-sangue-negro-escorrendo no chão.

O que pode um corpo-negro? Sobre-viver. Viver. Sobre. Sobre qualquer circunstância. Sobre todas as formas que há de (re)existir. Sobre o racismo que impera, vocifera e se espalha rasteiro e gentil. Recreativo. Violento. Não pede licença pra entrar. Prende suas raízes onde nem podemos imaginar. Brutal. Permanente. Imaginar-eu-racionalidade-branco-massa. Porque o corpo-negro sente como uma faca seu corpo rasgar. Corrosivo.

“Leva RG!”“Tira boné! Não corre! Não fala! Abaixa a cabeça! Não encara!”“Não encara!”“Encaro!”, feroz.

O que pode um corpo-negro? Corpo-devir-crespo-bailarino que pulsa nas batidas do rap cotidiano. Tum tum tá. Carrega uma força ancestral imensurável, saberes de seus povos, de seus corpos, dos seus cantos, dos seus orixás, das suas danças, das rezas, das tramas crespas de seus cabelos, do compartilhar, do estar no mundo, do inventar muitos outros. Pá-tum Pá-tum Pá-tum Tum.

Rebolando e gingando com as palavras e batalhas diárias do viver. Tá-ca-tá tá-ca-tá tá-ca-tá Tá. Enfrentando os fantasmas que não cessam em querer te ver no chão. Rá tá-tá-tá. E vai ao chão... não como um corpo que tomba. Vai ao chão como um corpo que dança-ginga-vive-luta com outros corpes. Pá-Tum...

O que pode um corpo-negro? Guerreiro, mesmo que não se sinta preparado para lutar. Mesmo que não se sinta representado nos espaços em que quer chegar. Guerreiro de seus sonhos. Combate incessante. Alvo incessante. Mas essa história há de mudar.

Será?O que será que será?Atravessamentos.Tensões...Invenções.Micropolíticas das tramas.Histórias começam a mudar.Encontros.Negros... brancos... indígenas... e...O que será que será?O racismo é problema de todes!

O que pode um corpo-negro? Pode? Negro-corpo. Preto. É! É potência, é luta, é resistência. Sempre. Só não viu quem se cegou por essa luta. Só não viu corpo-racionalidade-branco-massa. Só não viu quem continua a matar e a repetir o mesmo sistema escravocrata de tantos e tantos séculos. Só não viu a branquitude que se impôs como “maioria” nesta terra brasilis usurpada por... brancos... brancos que na história oficial a “descobriram”. Oficial? O que é “oficial” desde então? Genocídios... genocídios... genocídios. História oficial pouco contada. Disso, um mito de que somos todos iguais, indígenas, brancos e negros. Disso... naturalizações. Disso... mais genocídios... genocídios... genocídios.

O que pode um corpo-negro? Guerra. Luta. Na dor ou no amor, escancarar o genocídio do corpo-preto-periférico cujos milésimos de segundos não são de paz. (Não) se sabe de onde vem a violência... mas que ela vem... ah, vem!

Corpos-alvos! Quem tem paz?O racismo deixa viver em paz?Viver sem temer, temendo.Temer.Correr.“Não, não pode!”Pode um corpo negro correr? Holofotes.Genocídio sob holofotes: é espetáculo.Mata.Estado genocida.Espetáculo-tentáculo.Racismo-tentáculo.Genocídio-tentáculo.Na escola, na igreja, na saúde, na educação, no trabalho, no lazer, no prazer, até na doença...Tentáculos de produção de morte. Corpos-alvo. Morte ao corpo negro: testa! Testa, testa a vacina!Esta carne é servida, e é servida crua, promoção!Em nome da ciência, sem benevolência! Qual é a maleficência? Testa o corpo negro!Azeviche-sangue.Morte ao corpo negro!O que pode um corpo-negro? Morrer?O que pode um corpo-negro-indígena? Morrer?O que pode um corpo-negro-indígena-nordestino? Morrer?O que pode um corpo-negro-indígena-nordestino-nortista-sulista? Morrer?O que sobra ao corpo negro?Tum tum.Tum tum.Tum tum.Tum tum.Tuuuuuuuuuu... e agora? Parou!

O que pode um corpo-negro? Tudo! Que seja eu-corpo-sabedoria-poesia-negra a decidir. Decidir pela vida, pela morte, pelos sonhos, por onde quero e quem quero ser. Pelos caminhos, bailarinos, a construir. Pelos trajetos a desbravar e esbravejar. Gritar. Sorrir. Chorar. Livre, sem notas de rodapé a definir-relegar o lugar a calar. Livre. Sem censura, sem amarras, sem medo. Livre, para calar corpo-racionalidade-branco-massa. Livre, para tecer sua arte-vida-poesia. Livre, para escreviver.

O que pode um corpo-devir-negro?

O que pode um corpo-devir-massa-branca?

Como esses corpos nos atravessam, versam e habitam sobre os modos de viver-corpo-experiência? Escrevivências1414 Evaristo C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas; 2017.,1515 Evaristo C. Da grafia-desenho de Minha Mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Antônio AM. Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições; 2007. p. 16-21.. Podem nossos corpos escreviverem(-se)?

O que pode um corpo negro? Habitar a cidade, andarilhar. Andar. Sem ver passos a se apressar e atravessar da minha presença. Sem pressa. Sem medo. Sem ser presa. Sem ser preso. Encarcerado. Experiência de estar vivo, de se sentir vivo, de tecer relações de afeto com quem e onde quiser. Experiência de se produzir como um corpe-negro-coletive.

“Livre” e escrevivente. Sobrevivente.Liberdade.Sono tranquilo.Rua, tranquilo.Cidade, tranquilo.Bares e becos, tranquilo.Pretos e pretas que querem os corpos dos seus livres. E dos seus ventres livres.Descendências livres. Ancestralidades livres.Liberdade aclama. Reza baixinho. Ora. Vibra, faz prece.Pede baixinho ou esgoela. Berra. Escancara, denuncia.Baixinho ou não. Sozinhos ou não: aquilombamo-nos. Na favela-quilombo-urbano.Nas periferias que também são centros, nas ruas...Liberdade. É uma luta constante. Nossa liberdade é uma luta constante, cotidiana.Porque eles têm medo de corpos pretos “livres”?O que um corpo preto “livre” produz-afeta? Significa? Ameaça? Quem tem medo?Quem tem medo de Marielles, Dandaras, Terezas de Benguela?Corpos como de Marielle, desabrocham, polinizam. Semente. Cultivos. Rizoma.Forças pulsantes. Forças que emergem em outros corpos: no meu corpo, no seucorpo e em todos os corpes em defesa da vida.Contra o genocídio. Contra a violência que tem passaporte, naturalizada noBraZil de poucos.Contra um BraZil esvaziado. Vazio.Para nós, Marielles e Dandaras vivem.Nem cárcere, nem tiro. Sem corpos pretos em valas.Corpos vivos. Povo vivo.Nós somos sementes.Potentes. Fortes. Frutíferas.Resistentes. Resistência. Re-existência. Existência. Coexistência.O que pode um corpo-negro?Quem tem medo do corpo-negro?

  • Pereira PBA, Mendes VM, Moreira JG, Rodrigues A, Feuerwerker LCM. O que podem corpos negros? Navegando pelas existências que habitam narrativas-rizoma-visceral. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210196 https://doi.org/10.1590/interface.210196
  • Financiamento

    Pereira PBA, Mendes VM e Rodrigues A receberam apoio financeiro por meio da bolsa de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)/PROEX pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, durante a elaboração do presente trabalho.

  • (f)
    Narrativa reflexiva produzida durante o curso Educativa – “Aperfeiçoamento em Educação Médica e em Saúde com Ênfase em Metodologias Ativas de Ensino-Aprendizagem” e que possibilitou o encontro com outros navegantes, desencadeando na produção desta narrativa-espiral-rizoma.
  • (g)
    Termo produzido por Dandara Kuntê – mulher negra, atriz, escritora e integrante do Zona Agbara –, que subverte em suas escritas negras o uso masculino da palavra “corpo”. O encontro com Dandara e a Zona Agbara aconteceu a partir da pesquisa de doutorado de Mendes33 Mendes VM. Entre pontes, travessias e encruzilhadas: corpos em tensão, inventando existências e resistências rizomáticas [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2020..
  • (h)
    Utilizamos a noção de tempo espiralar – proposta pela dramaturga, poeta e ensaísta brasileira Leda M. Martins –, que se refere à correlação entre passado, presente e futuro, de forma que os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estejam em processo de uma perene transformação e concomitantemente correlacionados.
  • (i)
    Inspirado na concepção proposta por Martins88 Martins LM. Performances do tempo espiralar. In: Ravetti G, Arbex M, organizadores. Performances: errâncias territoriais e textuais, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Poslit; 2002. p. 69-91. e Ramos99 Ramos JS. O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro. Rev Bras Estud Presença. 2017; 7(2):296-315.-11, referindo-se a um lócus de intermediação, formando um novo espaço – “ponto de interseção”, “espaço do entre”, espaço atravessado de encontros, desencontros, mudanças e alternâncias, que, por mais que carreguem algumas características formadoras, estão em plena transformação a partir da constituição de novas experiências e memórias.
  • (j)
    O Monstro do Genocídio do Povo Negro é uma figura arquetípica executora da máquina genocida ocidental. Representa um monstro que mira o Povo Negro, não apenas ele, mas toda a diversidade que a alteridade ao Ocidente pode conter, em suas pluriterritorialidades e pluriculturalidades. Há negros com mais de um tentáculo sobre seus corpos, sendo que o ataque genocida não é apenas físico, mas também psicológico, espiritual, ontológico, semiótico, nutricida e epistemicida1313 Njeri A. Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. Ítaca. 2020; (36):164-226. (p. 179).

  • Errata

    No artigo O que podem corpos negros? Navegando pelas existências que habitam narrativas-rizoma-visceral, com número de DOI: 10.1590/interface.210196, publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 2022; 26:e210196:
    Onde se lia:
    Josiane Germano Moreira
    Leia-se:
    Josiane Moreira Germano

Referências

  • 1
    Mourthé Junior CA, Lima VV, Padilha RQ. Integrating emotions and rationalities for the development of competence in active learning methodologies. Interface (Botucatu). 2018; 22(65):577-88. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0846.
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0846
  • 2
    Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1; 2018.
  • 3
    Mendes VM. Entre pontes, travessias e encruzilhadas: corpos em tensão, inventando existências e resistências rizomáticas [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2020.
  • 4
    Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34; 1995. v. 1.
  • 5
    Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.
  • 6
    Cardoso JTA. O tempo espiralar na narrativa de Orlanda Amarílis. Cad CESPUC Pesqui. 2011; (18):79-87.
  • 7
    Martins LM. A oralitura da memória. In: Fonseca MNS. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica; 2001. p. 61-86.
  • 8
    Martins LM. Performances do tempo espiralar. In: Ravetti G, Arbex M, organizadores. Performances: errâncias territoriais e textuais, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Poslit; 2002. p. 69-91.
  • 9
    Ramos JS. O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro. Rev Bras Estud Presença. 2017; 7(2):296-315.
  • 10
    Ramos JS. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões sobre a encruzilhada como espaço de interseção. Anais ABRACE. 2019; 20(1):1-17.
  • 11
    Ramos JS. Notas sobre o corpo-encruzilhada: entre o ritual e a cena [tese]. Rio de Janeiro: Unirio; 2010.
  • 12
    Mbembe A. Crítica da razão negra. 3a ed. São Paulo: N-1; 2019.
  • 13
    Njeri A. Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. Ítaca. 2020; (36):164-226.
  • 14
    Evaristo C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas; 2017.
  • 15
    Evaristo C. Da grafia-desenho de Minha Mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Antônio AM. Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições; 2007. p. 16-21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2021
  • Aceito
    09 Fev 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br