Saúde materna, vulnerabilidade e vulneração: memórias de mulheres do nordeste brasileiro que vivenciaram a morte de perto

Maternal health, vulnerability and violation: memories of women from the northeast of Brazil who have had near-death experiences

Salud materna, vulnerabilidad y vulneración: memorias de mujeres del nordeste brasileño que vieron la muerte de cerca

Adriana Maria Alves Milena Gabriela dos Santos Silva José Adailton da Silva Karla Patrícia Cardoso Amorim Sobre os autores

Resumos

Experiências de complicações graves na gravidez podem revelar questões negligenciadas ou despercebidas no cuidado prestado. O objetivo deste estudo é compreender tais questões por meio das memórias de mulheres do interior do nordeste brasileiro que vivenciaram tais episódios. Para tanto, foi realizada pesquisa qualitativa mediante entrevistas semiestruturadas e análise de conteúdo, ancorada no Interacionismo Simbólico. Aponta-se uma avaliação negativa das mulheres quanto aos cuidados recebidos durante a gravidez. As cicatrizes dolorosas acompanham o cotidiano dessas mulheres, que seguem dilaceradas por consequências psicológicas, físicas e emocionais. Espera-se incitar reflexões urgentes e críticas entre os diferentes atores e instituições envolvidos na temática para impedir que mulheres sejam submetidas a situações iníquas e evitáveis de sofrimento, vulnerabilidade e vulneração, como vem ocorrendo.

Palavras-chave
Saúde materna; Gravidez; Complicações na gravidez; Estratégia Saúde da Família; Iniquidade em saúde


Experiences of severe pregnancy complications can reveal issues that have been neglected or overlooked during care. The aim of this study was to understand these issues from the memories of women living in the northeast of Brazil who have been through this experience. We conducted a qualitative study using semi-structured interviews and content analysis anchored in symbolic interactionism theory. The findings show that the women had a negative perception of the care received during pregnancy. The women carry painful scars and remain torn apart by the psychological, physical, and emotional consequences of their experiences. It is hoped that the findings of this study prompt urgent critical reflection by the different actors and institutions involved in this process in order help prevent women from being subjected to iniquitous and avoidable suffering, vulnerability and violation.

Keywords
Maternal health; Pregnancy complications; Family Health Strategy; Health inequity


Experiencias de complicaciones graves en el embarazo pueden revelar cuestiones desconsideradas o desapercibidas en el cuidado prestado. El objetivo de este estudio es comprender tales cuestiones por medio de las memorias de mujeres del interior del nordeste brasileño que vivieron esos episodios. Para ello, se realizó una investigación cualitativa mediante entrevistas semiestructuradas y análisis de contenido, anclada en el Interaccionismo Simbólico. Se señala una evaluación negativa de las mujeres con relación a los cuidados recibidos durante el embarazo. Las cicatrices dolorosas acompañan el cotidiano de esas mujeres que siguen dilaceradas por consecuencias psicológicas, físicas y emocionales. Se espera incitar reflexiones urgentes y críticas entre los diferentes actores e instituciones envueltos en la temática, para impedir que las mujeres sean sometidas a situaciones injustas y evitables de sufrimiento, vulnerabilidad y vulneración, como viene sucediendo.

Palabras clave
Salud materna; Embarazo; Complicaciones en el embarazo; Estrategia Salud de la Familia; Injusticia en salud


Introdução

A assistência materno-infantil almeja reduzir a morbimortalidade mãe-bebê por meio de ações que incluem cuidados integrais, tais como o pré-natal qualificado com foco na prevenção de agravos, na promoção da saúde e na condução de eventos mórbidos em tempo oportuno, evitando situações de vulnerabilidade e vulnerações11 Souza RA, Santos MS, Messias CM, Silva HCDA, Rosas AMMTF, Silva MRB. Avaliação de qualidade da assistência pré-natal prestada pelo enfermeiro: pesquisa exploratória. Online Braz J Nurs. 2020; 19(3):1-10. Doi: https://doi.org/10.17665/1676-4285.20206377.
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Entende-se por vulnerabilidade a possibilidade de ser atingido, ferido. Uma condição ontológica de qualquer ser humano e demais seres vivos. Todavia, a vulnerabilidade não é definida no plano ontológico, mas sim no plano ético, e é entendida como apelo a uma relação não violenta entre o eu e o outro22 Neves MCP. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. São Paulo: Ideias & Letras; 2007., e o respeito pela vulnerabilidade humana e integridade individual, como um princípio ético33 Unesco. Declaração universal de bioética e direitos humanos. Tradução brasileira sob a responsabilidade da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB). Paris: Unesco; 2005.. Haverá, assim, pessoas com probabilidade maiores de serem feridas, as quais consequentemente necessitam de maior proteção44 Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioet. 2008; 16(1):11-23.. A vulneração, nesse âmbito, é o ato ou efeito de vulnerar, ou seja, de ferir; sendo o ferido;o atingido considerado o vulnerado.

Nesse contexto, experiências frustrantes na gestação, parto e puerpério afetam os direitos sexuais e reprodutivos, configurando-se como problema de saúde, político, ético e social que perpassa por relações de saber e fragilizações na Rede de Assistência à Saúde55 Lage LR, Cal D, Silva BTV. Corpo e poder: as condições de vulnerabilidade da mulher mãe no debate midiático sobre o parto. Cad Pagu. 2020; (59):e205915. Doi: https://doi.org/10.1590/18094449202000590015.
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Mundialmente, a mortalidade materna declinou a partir de 1990. O Brasil obteve redução considerável em torno de 52%, ou seja, de 120 mortes maternas por cem mil nascidos vivos (NV) na década de 1990 para 58 por cem mil NV em 2008. Entretanto, o país esteve longe de atingir a 5ª meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODS), que era atingir menos de vinte mortes maternas por cem mil NV até 203011 Souza RA, Santos MS, Messias CM, Silva HCDA, Rosas AMMTF, Silva MRB. Avaliação de qualidade da assistência pré-natal prestada pelo enfermeiro: pesquisa exploratória. Online Braz J Nurs. 2020; 19(3):1-10. Doi: https://doi.org/10.17665/1676-4285.20206377.
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O estado do Rio Grande do Norte (RN), só em 2013, registrou, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), 972 óbitos de mulheres em idade fértil relacionada à gravidez e/ou ao puerpério. O município de Mossoró, campo desta pesquisa, no mesmo ano, era o local de residência de 8,6% das mulheres que vieram a óbito66 DATASUS - Tecnologia da informação a serviço do SUS. Óbitos de mulheres em idade fértil e óbitos maternos - Rio Grande do Norte [Internet]. Brasília: DATASUS; 2021 [citado 6 Nov 2021]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/mat10rn.def
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Diante desse panorama, pode-se inferir que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PHPN), a Rede Cegonha e a Estratégia de Saúde da Família (ESF), como ordenadora da rede de assistência a mulher, têm enfrentado dificuldades para operacionalizar mudanças nos fazeres cotidianos dos profissionais, comprometendo uma assistência integral, centrada na dignidade, na solidariedade, na empatia e no empoderamento das mulheres77 Silva LNM, Silveira APKF, Morais FRR. Programa de humanização do parto e nascimento: aspectos institucionais na qualidade da assistência. Rev Enferm UFPE online. 2017; 11 Supl 8:3290-3294..

À vista disso, faz-se necessário reorganizar a rede de atenção, proporcionando um cuidado transdisciplinar à mulher que transponha as falhas na cobertura e promova acesso igualitário aos serviços de saúde, com qualidade do atendimento, disponibilização de insumos e continuidade da assistência, independentemente do status socioeconômico da usuária em sofrimento, diminuindo as iniquidades em saúde.

Partindo do pressuposto de que o enfrentamento dessa problemática complexa dependerá do fortalecimento da rede assistencial e que as experiências concretas podem colaborar no diagnóstico dos problemas de saúde, bem como na construção e avaliação permanente das políticas públicas de atenção ao ciclo gravídico-puerperal, questiona-se: como as mulheres que vivenciaram e sobreviveram às severas complicações na gravidez enxergam os cuidados prestados a elas? Que vivências e experiências elas têm para compartilhar?

Por vezes, não é dada a oportunidade de fala aos usuários dos serviços de saúde, os quais têm a plena capacidade de contribuir com a sua melhoria. Nesse sentido, ao considerarmos que as experiências de graves complicações vivenciadas durante a gravidez podem revelar questões, em relação ao cuidado oferecido, que passam despercebidas ou são negligenciadas, justifica-se o mérito desta pesquisa. Portanto, buscou-se realizar um estudo com o objetivo de compreender essas questões, por meio das memórias de mulheres, do interior do nordeste brasileiro, que vivenciaram complicações graves na gravidez.

Percurso metodológico

Trata-se de um estudo de caso, com abordagem qualitativa, parte de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família da Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (Renasf), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

É pertinente destacar que o local do estudo, Mossoró, é a segunda maior cidade do estado do RN, em fase de implementação do Plano Estadual de Enfrentamento à Mortalidade Materna e na Infância, em consonância com o ODS – Agenda 203088 Rio Grande do Norte (Estado). Secretaria de Estado da Saúde Pública - SESAP. Plano Estadual de Saúde do Rio Grande do Norte 2020-2023. Natal: SESAP; 2020..

Foram elegíveis para participar do estudo mulheres que tiveram gestação de alto risco e foram internadas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de uma maternidade pública de referência no município estudado e realizavam o acompanhamento de pré-natal nas Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Mossoró.

Diante do objeto de pesquisa e da possibilidade de tais memórias acarretarem às participantes processos de sofrimento e tristeza ao serem revividas, a seleção foi estabelecida por conveniência. Assim, entrevistaram-se as mulheres, as quais se conseguiu acesso por meio de convite e mediação realizada pelos profissionais das USF, que aceitaram passar pelo desafio de reviver tais lembranças. É importante ressaltar que, nos estudos qualitativos, a amostragem não obedece a critérios numéricos, mas à possibilidade de permitir aprofundamento e abrangência na compreensão de uma situação99 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014..

Os dados foram coletados no período de novembro a dezembro de 2013, por meio de entrevista semiestruturada com base em um roteiro vinculado às questões de pesquisa e ao objetivo do estudo, as quais foram aprofundadas e ampliadas no momento da conversa.

Agendaram-se as entrevistas, individualmente, conforme disponibilidade das participantes da pesquisa, e foram realizadas na residência das mulheres pesquisadas, diretamente pela pesquisadora principal, enfermeira, mestre em Saúde da Família e com experiência no método, até ocorrer a saturação dos sentidos.

Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os depoimentos foram colhidos, gravados e, posteriormente, transcritos na íntegra. Vale ressaltar que, para garantir o anonimato das entrevistadas, as participantes foram identificadas pela sigla GAR (grávida de alto risco) seguida da sequência de números 1 a 4.

O tratamento dos depoimentos colhidos nas entrevistas se deu conforme os passos explicitados por Bardin acerca da técnica categorial de análise conteúdo: 1) pré-análise; 2) exploração do material; e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação1010 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016..

A pré-análise consistiu na organização propriamente dita do material compilado, identificando os pontos convergentes, representativos e significativos em relação ao tema.

A segunda fase foi de exploração do material empírico, pautada essencialmente em operações de codificação e decomposição. Foram definidas três categorias de análise: 1) Memórias das vulnerabilidades e vulnerações: as histórias vividas; 2) Sentimentos e significados frente às vulnerações e ao vivido; 3) Pós-fatos: as vulnerabilidades e as vulnerações marcando vidas. Em seguida, foram feitos os recortes das unidades de registro e o ulterior agrupamento, classificação, categorização e análise dessas unidades de significação. Foram consideradas como unidades de registro as ideias que estivessem relacionadas às categorias de análise.

Na terceira e última fase da análise de conteúdo, o tratamento dos resultados e interpretações permitiram que os conteúdos recolhidos se constituíssem em dados qualitativos e/ou análises reflexivas. Dessa forma, foram realizadas sínteses, inferências e interpretações, com articulações entre as informações obtidas, os princípios do Interacionismo Simbólico de Herbet Blummer1111 Blummer H. Symbolic interacionism perspective and method. Berkeley: Prentice-Hall; 1986. e o aporte teórico da pesquisa.

Para Blummer1111 Blummer H. Symbolic interacionism perspective and method. Berkeley: Prentice-Hall; 1986., os indivíduos se comportam em função do significado que as coisas possuem para eles; esse significado provém da interação social que a pessoa tem com seus semelhantes. Finalmente, o autor enaltece que, a depender de um processo interpretativo, os significados podem ser mudados, sofrer remanejamento e/ou serem utilizados pela pessoa para lidar com as coisas que ela se depara em seu cotidiano.

O estudo foi guiado pelo checklist Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

Precederam o início do estudo a submissão e aprovação do projeto pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), vinculado à UFRN, mediante o parecer CAAE n. 16565613.2.0000.5292 e parecer consubstanciado n. 369.825.

Resultados e discussão

Participaram do estudo quatro mulheres, donas de casa. Três residiam em casa alugada e uma, em casa própria. Quanto à renda familiar, a média corresponde a um salário-mínimo. No que concerne à escolaridade, três delas não concluíram o ensino médio e apenas uma relatou ensino médio completo. Com relação aos aspectos reprodutivos, somente uma das entrevistadas era primigesta, enquanto a média de gestações dessas mulheres ficou em torno de quatro.

Os demais resultados serão expostos por categorias de análise do estudo, buscando, por meio da interpretação ancorada no Interacionismo Simbólico, analisar os significados decorrentes da vivência dos cuidados recebidos pelas participantes deste estudo durante suas gravidezes complicadas.

Relatando vulnerabilidades e vulnerações: as histórias vividas

Esta categoria traz uma síntese geral do relato das grávidas de alto risco, com vistas a não perder o entendimento e o conteúdo de cada experiência em sua singularidade, expondo vulnerabilidades e vulnerações relacionadas às experiências vividas nos cuidados recebidos. Desse modo, segue-se o relato/síntese de cada caso:

Caso 1:

Tive depois de cinco meses de gestação pressão alta e pré-eclâmpsia. Eu inchei muito e quando fui ao pré-natal a enfermeira do posto pediu alguns exames, orientou diminuir o sal da comida e verificar a pressão todo dia. Fiz os exames e retornei para ela. Os exames deram alterações e ela encaminhou com urgência para o obstetra. Fui no mesmo dia e ele disse estar tudo bem e que desconsiderasse o que a enfermeira havia dito. Na semana seguinte a pressão ainda estava alta e os exames ainda mais alterados. A enfermeira chamou o SAMU e me encaminhou à maternidade. Lá o médico me levou para UTI, porque além da pressão alta eu urinava sangue. Fiquei 4 horas na UTI e fui para cesariana de emergência. Voltei para UTI e meu bebê foi para UTI neonatal. Ficou 10 dias lá.

(GAR 1)

Caso 2:

Eu tive pressão alta depois dos sete meses de gravidez. Eu tinha dor de cabeça e a pressão de 160 X 100. Eu estava em casa com dor no pé da barriga e fui pra consulta de pré-natal, me encaminharam para o Hospital da Mulher. Fui com pressão alta para cesariana de urgência. O bebê com 33 semanas foi para UTI neonatal. Com sete dias deram a alta dele para UCIN [Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais] porque precisavam da vaga para outro bebê mais grave que ele. No dia seguinte ele piorou e retornou para UTI neonatal. De madrugada ele morreu. Não entendi por que tiraram ele da UTI se ele ainda era grave. Foi só para morrer.

(GAR 2)

Caso 3:

Eu tive pressão alta durante toda gravidez. Fazia pré-natal com a enfermeira do posto e ela me encaminhou para o pré-natal de alto risco, mas não tinha vaga. Só conseguimos a vaga três meses depois. No dia que fui à consulta no alto risco a pressão estava 220 X 140, a médica chamou o SAMU e encaminhou para a maternidade. No Hospital da Mulher fui atendida pelo obstetra do plantão, que medicou e solicitou exames. Fui para UTI e a pressão não baixava. O médico disse que tinha que operar porque poderia morrer eu e o bebê. Feita a cesárea, voltei para UTI e o bebê foi para UTI neonatal e com três dias ele morreu por prematuridade extrema.

(GAR 3)

Caso 4:

Eu tinha pressão alta e proteinúria na gravidez. Fui atendida na ESF e no pré-natal de alto risco, não tive dificuldades de ser atendida pelos profissionais. Tive dificuldades de conseguir o medicamento que era vital para meu filho e nem a Secretaria de Saúde do Município, nem a do Estado, me ofertaram. Foi necessário entrar com ação no Ministério Público. Precisava também da ultraobstétrica com Doppler, que passei a fazer semanalmente a partir dos quatro meses de gestação até o parto. Só consegui fazer porque a obstetra do alto risco fazia pra mim por cortesia em seu consultório particular. Sem esse exame eu poderia ter perdido meu filho.

(GAR 4)

Os casos retratam não só o aumento da vulnerabilidade das participantes, mas também a vulneração dessas mulheres. Normalmente, entende-se por vulnerabilidade a possibilidade de ser atingido e ferido, conforme explicitado na introdução. Apesar de ser uma condição ontológica de qualquer ser humano e demais seres vivos, haverá aqueles que terão mais probabilidade de serem feridos, merecendo uma maior proteção, pois, conforme defende Schramm1212 Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioet. 2008; 16(1):11-23.:

Os suscetíveis podem tornar-se vulnerados, ou seja, diretamente afetados, estando na condição existencial de não poderem exercer suas potencialidades (capabilities) para ter uma vida digna e de qualidade. Portanto, dever-se-ia distinguir graus de proteção de acordo com a condição existencial de vulnerabilidade, suscetibilidade e vulneração, o que pode ser objeto de discussões infindáveis sobre como quantificar e qualificar tais estados existenciais.

(p. 20)

A experiência de cada uma dessas mulheres é qualitativamente autêntica e representativa de uma identidade comum. Logo, as memórias narradas são também memórias coletivas e fenômenos sociais, representativos da coletividade, à medida que ocorre a repetição de certos fatores, sentidos e significados nas narrativas das mulheres1313 Aguiar CA, Tanaka ACdʼA. Memórias coletivas de mulheres que vivenciaram o near miss materno: necessidades de saúde e direitos humanos. Cad Saude Publica. 2016; 32(9):1-13..

Comum – termo usado aqui no sentido de comunidade e de ser como a todos – também é o imperativo moral de prevenir e impedir dor, sofrimento e mortes evitáveis. Observam-se, igualmente, nas quatro narrativas, mulheres que foram feridas e encontravam-se sem “proteção”, isto é, mulheres vulneradas, que não conseguem se proteger sozinhas sem o amparo dos que podiam e deviam protegê-las naquela situação, a exemplo do Estado1414 Schramm FR. A bioética de proteção: uma ferramenta para a avaliação das práticas sanitárias? Cienc Saude Colet. 2017; 22(5):1531-1538..

O princípio ético do respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual deve ser o fio condutor do cuidado em saúde. Assim, a vulnerabilidade humana “deve ser levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e de tecnologias associadas”33 Unesco. Declaração universal de bioética e direitos humanos. Tradução brasileira sob a responsabilidade da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB). Paris: Unesco; 2005.. As participantes deste estudo com suas vulnerabilidades específicas deveriam ser protegidas e a integridade individual de cada uma, respeitada; entretanto, tal normativa ética não foi substancialmente posta em prática.

No primeiro caso, percebe-se que os sinais de agravamento gestacional não foram valorizados pelo obstetra, muito embora tenham sido enaltecidos pelo profissional da ESF, fato que nos chama a atenção para uma possível desvalorização dos saberes adquiridos na prática da Atenção Básica, por parte dos profissionais da média e alta complexidade.

Sob o olhar do Interacionismo Simbólico, a reação do ser humano é decorrente do sentido que instituições, ideias valorizadas e atividades de outros seres humanos têm para ele. Assim, claramente identificamos que o trabalho desempenhado e os saberes produzidos na Atenção Básica são vistos com desdém por parte de alguns profissionais que atuam em níveis de saúde com maior complexidade.

A ESF é enaltecida por vários documentos oficiais como ambiente privilegiado para a prática do exercício e coordenação da integralidade na prestação da assistência em saúde devendo, portanto, ser valorizada1515 Carnut L. Cuidado, integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saude Debate. 2017; 41(115):1177-1186..

No segundo e terceiro casos, vê-se o inconformismo de duas mães que perderam seus filhos por fragilidade no acesso à rede e linha de cuidado de atenção à saúde da mulher. Por fim, na quarta experiência, depara-se com a situação de carência de medicamentos e exames que teriam possibilidade de proporcionar segurança e qualidade na assistência pré-natal, reduzindo o risco de near miss ou óbito perinatal e, consequentemente, dor e sofrimento humano.

O percurso das gestantes na rede e linha de cuidado também é alvo de discussões, nas quais são ressaltadas questões como encaminhamento em tempo oportuno para o pré-natal de alto risco, maternidade de referência ao parto, oferta de medicamentos e exames básicos, apontando que as desigualdades na disponibilização desses serviços são refletidas e fragilizam o acesso enquanto direito inviolável de todo usuário do Sistema Único de Saúde (SUS)1616 Sanine PR, Venancio SI, Silva FLG, Aratani N, Moita MLG, Tanaka OY. Atenção ao pré-natal de gestantes de risco e fatores associados no Município de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2019; 35(10):e00103118. Doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00103118.
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Nesse sentido, Andrade e Vieira1717 Andrade MS, Vieira EM. Itinerários terapêuticos de mulheres com morbidade materna grave. Cad Saude Publica. 2018; 34(7):e00091917., em estudo com o objetivo de identificar os itinerários terapêuticos de mulheres acometidas por morbidade materna grave, observaram importantes pontos críticos em relação à assistência obstétrica, sendo a peregrinação por serviços de saúde, a demora do encaminhamento e a violência institucional realidades vivenciadas pelas mulheres.

Os sentimentos e os significados frente às vulnerações e ao vivido

Esta segunda categoria revela os significados e sentimentos atribuídos pelas mulheres ao experenciarem episódios graves durante as suas gravidezes.

A gravidez e os seus desdobramentos têm complexas repercussões na vida da mulher, haja vista as inúmeras questões e desafios imersos no ato de gestar carregado de elementos históricos, sociais, éticos/morais, políticos, econômicos e culturais1818 Miura PO, Santos KAM, Galdino EBT, Lima EFO, Pedrosa MMMP. Os significados da gravidez na adolescência para jovens sem histórico de gestação. Paideia (Ribeirão Preto). 2021; 31:e3114. Doi: https://doi.org/10.1590/1982-4327e3114.
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19 Silva MMJ, Lima GS, Monteiro JCS, Clapis MJ. Depressão na gravidez: fatores de risco associados à sua ocorrência. SMAD, Rev Eletronica Saude Mental Alcool Drog. 2020; 16(1):1-12. Doi: https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.153332.
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20 Brandão ER, Cabral CS. Da gravidez imprevista à contracepção: aportes para um debate. Cad Saude Publica. 2017; 33(2):e00211216.
-2121 Simas FB, Souza LV, Scorsolini-Comin F. Significados da gravidez e da maternidade: discursos de primíparas e multíparas. Psicol Teor Prat. 2013; 15(1):19-34.. Associado a isso estão aspectos biológicos próprios, que vão requerer cuidados adequados.

Assim, as mulheres que vivenciam a gestação atribuem a ela diversos significados relacionados às suas necessidades e às possíveis intercorrências (emergências hipertensivas, suas causas, ações a serem desempenhadas e disponibilidade de recursos em saúde que garantam uma assistência humanizada e integral à usuária, ou seja, que promovam o direito a uma saúde digna)2222 Cassiano AN. Repercussões da pré-eclâmpsia grave nos desfechos perinatais [dissertação]. Natal: Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2017..

Compreender as necessidades de saúde das gestantes, parturientes e puérperas é entender a realidade por meio de suas perspectivas, enquanto pessoas autônomas imersas em uma sociedade de direitos, e individualizar a assistência, buscando o melhor cuidado1313 Aguiar CA, Tanaka ACdʼA. Memórias coletivas de mulheres que vivenciaram o near miss materno: necessidades de saúde e direitos humanos. Cad Saude Publica. 2016; 32(9):1-13..

Vale salientar que os significados elaborados pelas mulheres influenciam em sua condição de saúde e no processo de cuidado em si; portanto, o medo e a vivência do internamento como algo ruim constituem-se, à luz do interacionismo simbólico, em um possível evento desencadeador de mais vulnerabilidades e vulnerações por aumentarem a complexidade no âmbito dessa assistência. Nas falas que seguem observa-se, entre outros significados, como essa vivência simbolizou um momento de solidão e apreensão para as entrevistadas:

Foi muito ruim, a gente acha que vai morrer bem velhinha e quando aconteceu isso fiquei apavorada e pensava quem iria cuidar de minha filha, e que também não iria vê-la crescer. É horrível.

(GAR 1)

Foi muito ruim. Você fica fragilizada, não pode fazer nada, depende dos outros e tem muito medo deles errarem. Achei que não veria minha família de novo.

(GAR 2)

Fui para UTI à noite com 34 semanas de gravidez e pressão alta, pensei na morte e em não poder realizar o sonho de ser mãe. É uma sensação muito ruim e de muito sofrimento.

(GAR 4)

As entrevistadas atribuíram um significado negativo ao período de internamento em UTI a partir das interações que ocorreram entre elas e o mundo de objetos no decorrer de suas vivências nesse ambiente, ou seja, situações que foram desencadeadoras de “medo”, “pavor” e “sensação de fragilidade”, que certamente dificultaram a prestação da assistência e a reabilitação dessas mulheres.

Em relação a fala de GAR 1, um estudo que buscou identificar os fatores associados à morte materna em pacientes internadas em UTI revelou que, em uma análise comparativa entre desfechos por óbito e alta hospitalar, 82,1% dos óbitos se deram entre mulheres na faixa etária de 19 a 34 anos2323 Saintrain SV, Oliveira JGR, Saintrain MVL, Bruno ZV, Borges JLN, Daher EF, et al. Fatores associados à morte materna em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2016; 28(4):397-404., o que pode estar diretamente relacionado à maior frequência de gravidez nessa faixa etária.

Apesar de o Brasil ter alcançado uma redução expressiva nas mortes maternas, ainda não alcançou a meta da ODS de reduzir em 75% a taxa de mortalidade materna2424 Mourão LF, Mendes IC, Marques ADB, Cestari VRF, Braga RMBB. Internações em UTI por causas obstétricas. Enferm Glob. 2019; 53:318-331.. Tal mortalidade ainda se reflete nas falas das mulheres, nas diversas referências às expressões “medo” e “morte”.

Tive muito medo de morrer. Eu e meu bebê

Medo demais. Na hora que o médico disse que eu ia fazer a cesárea devido minha pressão muito alta, eu pensei que ia morrer.

(GAR 3)

Tive medo sim. Porque não conseguia ter os exames e medicamentos que precisava. Pensava em minha morte e morte de meu filho. Queria muito realizar o sonho de ser mãe, mas tive medo de não conseguir devido à falta do direito à saúde.

(GAR 4)

A vivência do internamento em UTI perpassa por concepções que velam o conhecimento do senso comum e, dentro de um processo interacionista (entre o Eu e o que passa no contexto), adquire um significado direcionado para o risco iminente de morte. Tal significado é corroborado no presente estudo. Partindo-se da premissa de que o indivíduo tem como base de suas ações os símbolos por ele interpretados e definidos, pode-se dizer que o conjunto integrado dos depoimentos colhidos, no contexto vivenciado, permite a interpretação e definição do internamento em UTI como fator predisponente a danos irreversíveis e, em particular, à morte.

Portanto, a morte é referenciada pelas mulheres como resultante das complicações vividas durante as gravidezes de alto risco, que as levaram a experienciar um sentimento negativo e, muito fortemente, o medo. Simbolicamente, a morte é concebida como o final de um percurso e, consequentemente, fragmentação de uma estrutura familiar.

Outrossim, a perda de um filho ainda na gestação causa reações diversas de sofrimento2525 Lemos LFS, Cunha ACB. Concepções sobre morte e luto: experiência feminina sobre a perda gestacional. Psicol Cienc Prof. 2015; 35(4):1120-1138. Doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703001582014.
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. Para alguns autores2626 Carvalho FT, Meyer L. Perda gestacional tardia: aspectos a serem enfrentados por mulheres e a conduta profissional frente a essas situações. Bol Psicol. 2007; 57(126):33-48.,2727 Farias LN, Villwock C. Luto na maternidade: a perda real [Internet]. Guaíba: Universidade Luterana do Brasil; 2010 [citado 2 Nov 2021]. Disponível em: http://guaiba.ulbra.tche.br/pesquisa/2010/artigos/psicologia/salao/655.pdf
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, esse tipo de perda é um acontecimento significativo que envolve memórias do passado e expectativas para o futuro, principalmente quando a gestação é planejada.

Conhecer as percepções das participantes do estudo acerca de suas experiências pode ajudar a compreender porque a morbimortalidade materna ainda tem atingido tantas pessoas, servindo também de instrumento para um diagnóstico da realidade e planejamento de ações que culminem na redução desses índices. Desse modo, são extremamente significativos os discursos das mulheres ao refletirem e relatarem o porquê das complicações e dos fatos experienciados terem ocorrido com elas:

Por que o médico não fez a parte dele. A enfermeira fez o que podia e quando chegou na parte do médico nada foi feito. Eu podia ter morrido ou meu filho. Agradeço a enfermeira pelo que ela fez.

(GAR 1)

Pela irresponsabilidade da equipe do hospital. A equipe da UTI neonatal foi negligente em dar alta ao meu filho sem condições para isso, só porque precisavam da vaga. Meu filho foi escolhido para morrer.

(GAR 2)

Por falta de garantia dos nossos direitos. Só tenho esse bebê vivo porque tive a ajuda das pessoas da ESF e da médica de alto risco.

(GAR 4)

Esses são relatos fortes, que revelam no mínimo a insatisfação e, por vezes, a culpabilização das pessoas pelo ocorrido devido à negligência de alguns profissionais. Experiências malconduzidas pelo serviço de saúde podem gerar consequências danosas e uma cisão permanente no vínculo e na relação de cuidado, deteriorando de forma irreversível a confiança na relação profissional-paciente. Infelizmente, questões como essas também são relatadas e discutidas em outros estudos1313 Aguiar CA, Tanaka ACdʼA. Memórias coletivas de mulheres que vivenciaram o near miss materno: necessidades de saúde e direitos humanos. Cad Saude Publica. 2016; 32(9):1-13.,1717 Andrade MS, Vieira EM. Itinerários terapêuticos de mulheres com morbidade materna grave. Cad Saude Publica. 2018; 34(7):e00091917.,2828 Costa RLM. Percepções de mulheres que vivenciaram a peregrinação anteparto na rede pública hospitalar. Rev Baiana Enferm. 2018; 32:e26103..

Percebemos nessas últimas falas de GAR 1 e GAR 4 a atribuição de um significado positivo à assistência dispensada pela enfermeira, equipe da ESF e médico do pré-natal de alto risco, por contribuírem com o suporte social e emocional a essas mulheres. O cuidar ocorre quando a existência de alguém tem relevância para o outro que, então, passa a se dedicar a ele; dispondo-se a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos, enfim, de sua vida2929 Boff L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 20a ed. Petrópolis: Vozes; 2014..

Outrossim, destaca-se que toda gestante tem direito a um atendimento digno e de qualidade, com acompanhamento adequado durante a gestação, parto e puerpério, bem como a assistência neonatal, de forma humanizada e segura, e cabe ao Estado prover as condições necessárias para que isso ocorra3030 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 569, de 1 de Junho de 2000. Diário Oficial da União. 8 Jun 2000..

O pós-fatos: as vulnerabilidades e as vulnerações marcando vidas

A qualidade de vida é algo inerente a cada indivíduo e, indubitavelmente, poderá estar fragilizada diante da necessidade de seguir em frente após um evento traumático2222 Cassiano AN. Repercussões da pré-eclâmpsia grave nos desfechos perinatais [dissertação]. Natal: Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2017.. Tal fragilização é externada pelas mulheres nas falas que seguem:

Bastante nervosa. Precisei ir ao psiquiatra e faço uso de medicamentos controlados.

(GAR 2)

Eu fiquei com pressão alta, depressiva, porque queria minha filha viva e ainda sinto muita dor de cabeça. A tristeza de perder um filho é muito dolorosa.

(GAR 3)

Hoje tenho um filho de um ano, sou hipertensa, uso medicamentos anti-hipertensivos e preciso de remédio para dormir, pois ainda tenho medo de ficar sem meu filho e passar por tudo novamente.

(GAR 4)

Esses depoimentos revelam, sob a ótica do Interacionismo Simbólico, que as mulheres participantes deste estudo estabeleceram um processo interativo com as mais variadas situações vivenciadas em seu ciclo gravídico-puerperal, levando-as a reputar a estadia em UTI, mediante o evento mórbido vivido, como algo que afetou drasticamente sua qualidade de vida. Observa-se que as percepções e experiências das mulheres com relação à morbidade materna grave podem ser agravadas por manejo e cuidados clínicos inadequados3131 Furuta M, Sandall J, Bick D. Women’s perceptions and experiences of severe maternal morbidity - a synthesis of qualitative studies using a meta-ethnographic approach. Midwifery. 2014; 30(2):158-169. Doi: https://doi.org/10.1016/j.midw.2013.09.001.
https://doi.org/10.1016/j.midw.2013.09.0...
.

Socialmente, moldou-se uma imagem romantizada acerca da gestação como uma experiência única à mulher e seus familiares. No entanto, esse estereótipo não abrange a realidade de boa parte das mulheres, mesmo aquelas em que a gravidez tenha sido planejada. Cada gestante, especialmente as que passaram por falhas na condução de seu pré-natal, estará vulnerável a problemas de ordem psicológica que abalarão substancialmente sua qualidade de vida3232 Trombetta JB, Traebert J, Nunes RD, Freschi LD. Fatores associados à qualidade de vida em gestantes de alto risco. ACM Arq Catarin Med. 2019; 48(4):75-87..

Estudos demonstram, nos casos graves de morbidade materna, a importância de se garantir a segurança e a qualidade das intervenções intraparto, bem como de se aprimorar modelos de atenção pós-natal, para reduzir ou prevenir as implicações subsequentes provenientes desse evento agudo nas mulheres e suas famílias3131 Furuta M, Sandall J, Bick D. Women’s perceptions and experiences of severe maternal morbidity - a synthesis of qualitative studies using a meta-ethnographic approach. Midwifery. 2014; 30(2):158-169. Doi: https://doi.org/10.1016/j.midw.2013.09.001.
https://doi.org/10.1016/j.midw.2013.09.0...
. Também tem sido observado que, nessas situações de morbidade materna graves, o suporte social positivo funciona como um agente “protetor” frente ao risco de doenças provindas de estresse3333 Silveira MS, Gurgel RQ, Barreto ÍDC, Galvão LPL, Vargas MM. Morbidade materna grave: estresse pós-traumático e suporte social. Rev Bras Enferm. 2018; 71 Supl 5:2139-2145..

É fato que essas mulheres carregarão para sempre as marcas de um ciclo gravídico-puerperal mal-assistido. Suas consequências são dolorosas e carregadas por consequências psicológicas, físicas e emocionais. Para transpor tais consequências, tais mulheres necessitariam de continuidade no acompanhamento em saúde, mediante articulação da rede assistencial.

Abre-se, nesse momento, uma importante provocação ética: será utopia e inoportuno imaginar cuidados pós-fatos, ou é um dever moral? As grávidas, mormente as grávidas de alto risco, são vistas como grupo prioritário pelo Ministério da Saúde e, mesmo assim, foram vulneradas, tendo os seus direitos desrespeitados. Então, o que dizer agora que não integram mais os grupos de maior vulnerabilidade? Defende-se que cuidar das consequências deixadas no processo de (des)cuidado, individualmente e no âmbito familiar, é um imperativo ético primário, bem como evitar que se repitam.

O direito à saúde, enquanto garantia constitucional, deve ser efetivado. No que concerne as gestantes, de modo especial, as que apresentam alguma síndrome hipertensiva gestacional ou outra complicação, reitera-se que a implementação de fato das políticas públicas já existentes possibilitaria a redução da morbimortalidade feminina com a ampliação, qualificação e humanização da assistência no âmbito do SUS3434 Brasil. Ministério da Saúde. Programa humanização do parto: humanização no pré-natal e nascimento. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.,3535 Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS. Humanização do parto e do nascimento. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. v. 4..

A realidade é que as mulheres ainda lutam para usufruir dos seus direitos sexuais e reprodutivos, inclusive aqueles relacionados aos serviços de cuidados obstétricos2828 Costa RLM. Percepções de mulheres que vivenciaram a peregrinação anteparto na rede pública hospitalar. Rev Baiana Enferm. 2018; 32:e26103.. Nesse contexto, é oportuno ressaltar que as vulnerações e iniquidade no processo de atenção à gestação e ao parto ainda podem ser maiores a depender do grupo étnico, pois é observado um gradiente que vai de pior para melhor cuidado para mulheres pretas, pardas e brancas, respectivamente3636 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica. 2017; 33 Supl 1:e00078816.,3737 Theophilo RL, Rattner D, Pereira ÉL. Vulnerabilidade de mulheres negras na atenção pré-natal e parto no SUS: análise da pesquisa da Ouvidoria Ativa. Cienc Saude Colet. 2018; 23(11):3505-3516.. Ou seja, há muito a se fazer.

Considerações finais

Ao ouvir as mulheres que tiveram gravidezes de alto risco e foram internadas em UTI, dando legitimidade às memórias enquanto fenômenos sociais, pode-se depreender lacunas e uma avaliação negativa do processo de cuidado prestado pelo sistema de saúde, capaz de aumentar a vulnerabilidade e vulneração das mulheres, inclusive decorrentes de um processo não humanizado, como preconizam as normas legais do SUS.

Ademais, tomar conhecimento da percepção das mulheres a respeito de suas experiências apontou falhas no acesso; na humanização; e na carência/fragilidade dos fluxos, protocolos e linha de cuidado, o que fornece subsídio para traçar um diagnóstico situacional e, posteriormente, fomentar o planejamento de ações e avaliação contínua da assistência. Aponta-se também para a obrigação ética de se cuidar das consequências provenientes do processo de (des)cuidado vivenciado.

Este estudo levantou uma série de desafios, bem como apontou nós críticos a serem enfrentados visando a uma transformação da realidade. Entretanto, não se esgota aqui o assunto, tampouco esta pesquisa contém verdades absolutas; pelo contrário, tem-se a consciência de que isso é o início de um longo trajeto a ser percorrido.

Espera-se que os resultados ora apresentados possam incitar um pensar crítico e um agir urgente dos diferentes atores e instituições envolvidos na temática para impedir que mulheres sejam submetidas a situações iníquas, sofrimentos evitáveis, vulnerabilidades e vulnerações, que parecem ainda se repetir.

Esta pesquisa foi realizada com um número reduzido de participantes, não permitindo representar o cenário global do Brasil. Assim, a sua maior intenção, neste momento, não é generalizar a situação revelada, mas contribuir para as reflexões, discussões e práticas, além de estimular estudos similares na perspectiva da saúde materna, vulnerabilidade e vulneração, visando a um maior conhecimento dessa complexa questão.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2022
  • Aceito
    29 Jun 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br