Elaborar, compartilhar, narrar: uma análise narrativa de três abordagens de comunicação em Saúde

Elaborar, compartir, narrar: un análisis narrativo de tres abordajes de comunicación en salud

Tatiana Milla Mandia Ricardo Rodrigues Teixeira Sobre os autores

Resumo

A comunicação, a despeito de ser considerada um aspecto primordial no exercício da prática médica, não ganhou tanta proeminência na literatura e formação médica quanto os aspectos tecnológicos e biomédicos. Em resposta a esse contexto, surgiram campos de conhecimento que se propõem a refletir e fortalecer aspectos da comunicação entre o médico e o paciente. No presente artigo, realizamos uma análise narrativa da literatura de três abordagens de comunicação em Saúde: Grupos Balint, Método Clínico Centrado na Pessoa e Medicina Baseada em Narrativa. Foram destacados aproximações e distanciamentos entre tais abordagens, com o reconhecimento da potência própria de cada uma delas nos diversos contextos da prática médica.

Comunicação; Método Clínico Centrado na Pessoa; Grupos Balint; Medicina Narrativa

Resumen

La comunicación, a pesar de considerarse un aspecto primordial en el ejercicio de la práctica médica, no obtuvo tanto destaque en la literatura y en la formación médica como el que tuvieron los aspectos tecnológicos y biomédicos. Como respuesta a ese contexto, surgieron campos de conocimiento cuya propuesta es reflejar y fortalecer aspectos de la comunicación entre el médico y el paciente. En este artículo, realizamos un análisis narrativo de la literatura de tres abordajes de comunicación en salud: Grupos Balint, Método Clínico Centrado en la Persona y Medicina Basada en la Narrativa. Se destacaron aproximaciones y distanciamientos entre tales abordajes, con el reconocimiento de la potencia propia de cada una de ellas en los diversos contextos de la práctica médica.

Comunicación; Método clínico centrado en la persona; Grupos Balint; Medicina narrativa

Introdução

A habilidade em comunicação tem sido considerada uma competência clínica fundamental. No encontro médico-terapêutico, parte-se de uma relação assimétrica em que alguém, que está em uma posição profissional, é procurado para oferecer cuidados a outro alguém que, muitas vezes, encontra-se em uma condição de fragilidade. Antes de esse encontro ocorrer concretamente, já existe um cenário condicionado por expectativas culturais e sociais operando de modo inconsciente sobre os personagens.

O profissional pode lançar mão de diferentes técnicas de conversa, com a utilização, por exemplo, de instrumentos capazes de incidir sobre a relação médico-paciente, modificando a dimensão pragmática do encontro. Segundo Teixeira 11. Teixeira RR . O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações . In: Pinheiro R , Mattos RA . Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde . Rio de Janeiro : IMS, ABRASCO ; 2003 . p. 89 - 111 . , a substância do trabalho em saúde – enquanto “trabalho vivo em ato” – é a conversa:

A grande vantagem que vemos em se admitir que a conversa é a própria substância do trabalho em saúde é o reconhecimento de que se age sobre um objeto, desde o princípio, partilhado, trabalhado em conjunto, de um modo mais ou menos simétrico. É só enquanto matéria necessariamente trabalhada por todos os atores em presença na conversa que esta ganha forma 11. Teixeira RR . O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações . In: Pinheiro R , Mattos RA . Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde . Rio de Janeiro : IMS, ABRASCO ; 2003 . p. 89 - 111 . . (p. 98)

A Medicina contemporânea sofreu significativo avanço científico-tecnológico nas últimas décadas, com uma crescente valorização e aprimoramento das técnicas, ao passo que os problemas associados à comunicação na relação médico-paciente não ganharam tanta proeminência, tendo sido, em certo grau, marginalizados, sobretudo no que diz respeito à inserção desse tema na formação do médico 22. Sucupira AC . A importância do ensino da relação médico-paciente e das habilidades de comunicação na formação do profissional de saúde . Interface (Botucatu) . 2007 ; 11 ( 23 ): 624 - 7 . doi: 10.1590/S1414-32832007000300016 .
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, 33. Ruiz-Moral R . Relação médico-paciente: desafios para a formação de profissionais de saúde . Interface (Botucatu) . 2007 ; 11 ( 23 ): 619 - 35 . doi: 10.1590/S1414-32832007000300015 .
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. Ainda assim, em resposta a essa ordem de problemas, vimos surgir novas abordagens que buscam repensar, expandir e fortalecer aspectos da comunicação entre médico e paciente e que passaram a fazer parte, ainda que de forma limitada, dos processos pedagógicos de ensino médico.

No presente artigo, realizamos uma análise narrativa, apresentando e cotejando três importantes abordagens comunicacionais da relação médico-paciente, selecionadas por preencherem os seguintes atributos: expressão internacional significativa; considerável grau de formalização e constituição de escolas de formação e grupos.

Desenvolvimento

Grupos Balint

Michel Balint (1896-1970), médico e psicanalista húngaro, atuou na Clínica Tavistock, em Londres, e, em colaboração com sua esposa, Enid Balint (1903-1994), economista inglesa, desenvolveu grupos compostos por General Practitioners (GPs) – do recém-lançado Sistema Nacional de Saúde (NHS) inglês –, para que eles pudessem ampliar a compreensão da relação médico-paciente como instrumento para fornecer um melhor cuidado 44. Crossman S . Investing in each other: Balint Groups and the Patient-Doctor Relationship . Virtual Mentor . 2012 ; 14 ( 7 ): 551 - 4 . . Ele sintetiza essas suas observações em um livro lançado em 1957: “O médico, seu paciente e a doença” 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

Para Balint, os grupos deveriam ser direcionados aos médicos generalistas, e não aos especialistas. Além disso, ele dava preferência aos médicos mais experientes, e não aos estudantes, por valorizar o fato de os primeiros já terem atravessado momentos desafiadores 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

Balint destacava que grande parte do cotidiano do clínico geral envolve casos em que a dimensão psicológica se faz muito presente. Mesmo em casos clínicos em que essa dimensão não esteja evidente, ela opera na relação médico-paciente. Balint denomina a habilidade de se manejar essa dimensão de “habilidade psicoterápica”. Para ele, a formação médica é muito teórica em relação a essa questão, que não prescinde da experiência direta e da prática, e a aquisição dessa habilidade consiste na transformação da personalidade do médico e da sua perspectiva subjetiva do mundo 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . . Essa visão evidencia o quanto as ideias de Balint seguem sendo atuais e relevantes, já que essa defasagem na abordagem da dimensão psicológica no ensino médico, mesmo depois de tantas décadas, ainda se perpetua 22. Sucupira AC . A importância do ensino da relação médico-paciente e das habilidades de comunicação na formação do profissional de saúde . Interface (Botucatu) . 2007 ; 11 ( 23 ): 624 - 7 . doi: 10.1590/S1414-32832007000300016 .
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, 33. Ruiz-Moral R . Relação médico-paciente: desafios para a formação de profissionais de saúde . Interface (Botucatu) . 2007 ; 11 ( 23 ): 619 - 35 . doi: 10.1590/S1414-32832007000300015 .
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.

Embora Balint tenha se formado em Psicanálise oficialmente em Berlim, o berço de sua formação psicanalítica foi Budapeste, onde fundou uma clínica psicanalítica, a Mészáros u. 12, cenário de frequentes encontros e palestras entre analistas experientes no qual discussões sobre a contratransferência eram privilegiadas. Assim, Balint se fundamentou no método de supervisão húngaro, no qual não há uma separação entre a análise pessoal do profissional e a supervisão psicanalítica dos casos que ele atende. Portanto, a abordagem dos fenômenos de transferência e contratransferência é realizada pelo mesmo profissional que o acompanha em seu processo psicoterapêutico, diferentemente do sistema psicanalítico de Berlim – que constitui a forma mais consagrada –, em que a análise pessoal e a supervisão dos casos atendidos são conduzidas por diferentes profissionais 66. Soreanu R . O estilo epistêmico de Michael Balint: “Grupos Balint”, utopias médicas e o legado da Escola de Psicanálise de Budapeste . Cad Psicanal (Rio J) . 2018 ; 40 ( 39 ): 229 - 50 . .

O primeiro esquema de treinamento de Enid e Michel Balint foi no Centro de Estudos Familiares, em Londres, com assistentes sociais que lidavam com problemas conjugais de seus clientes. Balint criou estratégias para que toda a contratransferência desses profissionais pudesse emergir tão livremente quanto possível. Portanto, nenhum material escrito era admitido nas reuniões 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

O assistente social tinha que relatar livremente sobre sua experiência com o cliente, algo muito semelhante à “livre associação” (técnica psicanalítica que exerceu certa influência nos grupos), permitindo todo tipo de distorções subjetivas, omissões e reflexões. Então, esse relato era interpretado de forma similar ao conteúdo manifesto no sonho e, daí, buscava-se inferir os fatores dinâmicos que lhe davam forma. Tanto as reflexões do relator quanto os comentários do grupo ouvinte eram tomados como uma espécie de associação livre 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

Essa dinâmica também passou a ser desenvolvida entre os clínicos gerais: o paciente era descrito sem esforço em editar ou censurar qualquer conteúdo. Assim, pensamentos e ideias que potencialmente pudessem ser suprimidas poderiam emergir. O material mais importante a ser examinado era a contratransferência do médico, isto é, o efeito produzido na relação por sua personalidade, por suas convicções científicas e por seus padrões de reação automática 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

O eixo do plano de Balint é a conferência semanal na qual se discutem os casos com aproximadamente oito pessoas e um líder. O papel dos líderes treinados do grupo consiste em: facilitar o processo; manter um ambiente de respeito, garantindo confidencialidade; evitar julgamentos, favorecendo, assim, que o apresentador expresse sentimentos de qualquer natureza; e orientar a discussão, assegurando que tanto o paciente quanto o cuidador recebam a atenção devida 44. Crossman S . Investing in each other: Balint Groups and the Patient-Doctor Relationship . Virtual Mentor . 2012 ; 14 ( 7 ): 551 - 4 . .

Como já explicitado, o objetivo das reuniões é ajudar os médicos a adquirirem maior sensibilidade ante o processo que se desenvolve, consciente ou inconscientemente, na mente do paciente e do médico quando ambos estão juntos. Houve grande dificuldade para fazer com que os médicos adotassem esse tipo de enfoque, já que a colheita da história clínica gira quase exclusivamente em torno de fatos objetivos, quando os que importam nesse processo são de caráter subjetivo. Para o autor, esses fatos só em parte são adaptações inteligentes ao meio em permanente transformação. Em grande parte, são governados por pautas quase automáticas, originadas principalmente na infância e influenciadas pelas experiências emocionais da vida posterior. O objetivo de Balint era tornar os médicos conscientes desses padrões automáticos; da influência destes sobre o paciente; e de suas relações com as pessoas e, especialmente, com seu médico 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

O autor salienta que também há padrões automáticos que exercem influência sobre o comportamento do médico em sua relação com o paciente. A interação desses dois jogos de padrões determina, em grande proporção, a eficácia de todo tratamento, principalmente nas doenças crônicas. Assim, o médico deve tomar consciência de seus próprios padrões automáticos e adquirir gradualmente uma maior liberdade em relação a eles 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

Foram propostas algumas categorias de análise que fundamentam a sua teoria, sendo “médico como medicamento” a mais conhecida. Segundo Balint, o medicamento mais frequentemente utilizado na clínica geral é o próprio médico e não existiria, ainda, nenhum estudo a respeito desta substância tão importante e nenhum manual que indique a dosagem que o médico deve prescrever de si mesmo, em que haja apresentação e posologia. Sobretudo, não haveria nenhuma referência sobre os possíveis riscos desse tipo de medicação e efeitos secundários indesejáveis dessa substância 55. Balint M . O médico, seu paciente e a doença . 2a ed. São Paulo : Atheneu ; 1988 . .

A função “medicamento” está relacionada à transferência e à contratransferência que ocorre entre o profissional e a pessoa atendida. Segundo a teoria da transferência, trazemos para cada um de nossos encontros interpessoais a nossa história encoberta de desejos, medos e traumas psíquicos. Para Freud, o inconsciente tem poder de influenciar as percepções que temos uns dos outros e as reações mútuas tanto na terapia quanto na vida. Ele também chama a atenção para a possibilidade de o analista manejar a transferência do paciente como um instrumento para o desenvolvimento de sua própria cura 77. Kahn M . Freud básico: pensamentos psicanalíticos para o século XXI . Rio de Janeiro : Civilização Brasileira ; 2003 . .

Um estudo denominado “O treinamento de Balint faz com que os GPs adquiram um melhor desempenho no trabalho” (tradução nossa) 88. Kjeldmand D , Holmström I , Rosenqvist U . Balint training makes GPs thrive better in their job . Patient Educ Couns . 2004 ; 55 ( 2 ): 230 - 5 . indicou uma maior satisfação relacionada ao trabalho e uma melhor relação médico-paciente entre clínicos que já haviam participado de grupos Balint. Eles relataram sentir menos incômodo com pacientes que apresentam sintomas psicossomáticos, menos propensos a encaminhar pacientes ou a pedir exames desnecessariamente para terminar a consulta mais brevemente.

Michael Balint faleceu em 1970; entretanto, sua prática não foi extinta, sendo ainda atual e oportuna. Seu legado ganhou proporções globais, o que pode ser comprovado pelo International Balint Federation c , que tem mais de quarenta anos de existência e pelo menos 23 sociedades nacionais em vários países. Seus grupos, pioneiros na Clínica Tavistok há sessenta anos, têm sido usados na graduação, pós-graduação, unidades de Atenção Primária à Saúde (APS) e em vários outros cenários nos quais a relação médico-paciente se faz presente. Há também algumas experiências de Grupos Balint on-line, para tornar possível a participação de pessoas que morem em cidades onde não há grupos presenciais. Assim, os Grupos Balint constituem o mais duradouro modelo de supervisão para médicos de família.

Método Clínico Centrado na Pessoa

O Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) surgiu no Departamento de Medicina de Família da Universidade de Western Ontário, fundado em 1968. Ian R. McWhinney, primeiro chefe desse departamento, começou a estudar o real motivo que leva uma pessoa a procurar um médico, o que desencadeou investigações sobre a amplitude dos problemas físicos, sociais e psicológicos dos indivíduos. Sua orientanda, a epidemiologista Moira Stewart, decidiu percorrer um trajeto de foco semelhante, baseando sua pesquisa de doutorado no relacionamento entre a pessoa que procura cuidado e o médico 99. Stewart M , Brown JB , Weston WW , McWhinney IR , McWilliam CL , Freeman TR . Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico . Burmeister A , Rosa SMM , tradutoras . 3a ed. Porto Alegre : Artmed ; 2017 . .

Apesar de esse modelo ter sido desenvolvido no contexto da Medicina de Família, os autores pretendem envolver todas as disciplinas médicas e outras áreas da saúde, como enfermagem, assistência social, fisioterapia e terapia ocupacional.

O termo “medicina centrada no paciente” foi criado por Balint para contrastar com “medicina centrada na doença”, fato que evidencia a forte ascendência que o autor representou para o método. Entre as influências que o MCCP sofreu, além de Balint, estão os trabalhos de Rogers 1010. Brasil . Ministério da Saúde . Política Nacional de DST/aids: princípios e diretrizes / Coordenação Nacional de DST e Aids . Brasília : Ministério da Saúde ; 1999 . sobre o aconselhamento centrado no cliente, muito presente em alguns materiais de aconselhamento em IST/AIDS do Ministério da Saúde, que se trata de um processo de escuta ativa e centrado no cliente – e não paciente, termo que, para o autor, denota passividade – que pressupõe “o resgate dos recursos internos da pessoa atendida para que ela mesma tenha possibilidade de reconhecer-se como sujeito de sua própria transformação” 1010. Brasil . Ministério da Saúde . Política Nacional de DST/aids: princípios e diretrizes / Coordenação Nacional de DST e Aids . Brasília : Ministério da Saúde ; 1999 . (p. 79).

A teoria de Rogers é caracterizada por dois aspectos: a consideração incondicionalmente positiva (o médico terá que aceitar os pacientes do jeito que eles são, ainda que não concorde com seus comportamentos, opiniões e sentimentos, o que implica respeito e alteridade em relação aos pacientes) e a empatia, descrita pelo autor a seguir:

Experimentar o mundo privado do cliente como se fosse o seu próprio, mas sem nunca perder a qualidade de “como se” – isso é empatia e parece essencial para a terapia. Sentir a raiva, o medo ou confusão do cliente como se fossem seus, sem permitir todavia que sua raiva, medo ou confusão e eles se acoplem, é a condição que tentamos descrever 1111. Van Der Molen HT , Lang G . Habilidades da consulta na escuta médica . In: Leite AJM , Caprara A , Coelho Filho JM , organizadores . Habilidades de comunicação com pacientes e famílias . São Paulo : Sarvier ; 2007 . p. 47 - 66 . . (p. 49)

Também exerceram influência sobre o MCCP os estudos de Newman e Young 1212. Newman BM , Young RJ . A model for teaching the total person approach to patient problems . Nurs Res . 1972 ; 21 ( 3 ): 264 - 9 . sobre a abordagem da pessoa como um todo – em que os autores expõem a visão de que a Enfermagem deve considerar todas as dimensões da pessoa, facilitando o alcance de um nível máximo de bem-estar.

Os autores acreditam que 99. Stewart M , Brown JB , Weston WW , McWhinney IR , McWilliam CL , Freeman TR . Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico . Burmeister A , Rosa SMM , tradutoras . 3a ed. Porto Alegre : Artmed ; 2017 .:

Essa proposta de cuidado pressupõe várias mudanças na mentalidade do médico. Primeiramente, a noção hierárquica de que o profissional está no comando e de que a pessoa que busca cuidado é passiva não se sustenta nessa abordagem. Para ser centrado na pessoa, o médico precisa ser capaz de dar poder a ela, compartilhar o poder na relação, o que significa renunciar o controle que tradicionalmente fica nas mãos dele. Esse é o imperativo moral da prática centrada na pessoa. Ao concretizar essa mudança de valores, o médico experimentará os novos direcionamentos que a relação pode assumir quando o poder é compartilhado. Em segundo lugar, manter uma posição sempre objetiva em relação às pessoas produz uma insensibilidade ao sofrimento humano que é inaceitável. Ser centrado na pessoa requer o equilíbrio entre o subjetivo e o objetivo, em um encontro entre mente e corpo 99. Stewart M , Brown JB , Weston WW , McWhinney IR , McWilliam CL , Freeman TR . Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico . Burmeister A , Rosa SMM , tradutoras . 3a ed. Porto Alegre : Artmed ; 2017 . . (p. 4)

Segundo Stewart 1313. Stewart M , Gilbert BW . Reflections on the doctor-patient relationship: from evidence and experience . Br J Gen Pract . 2005 ; 55 ( 519 ): 793 - 801 .:

Tendo observado uma prática que considera o indivíduo integralmente, pensei nos vários elementos que ela requer. Um deles é a abertura do médico para o aprendizado de todas as dimensões dos problemas de um paciente. Outro é a disposição para encontrar o paciente em um nível emocional, não somente para compreender seus problemas, mas também para facilitar a cura da pessoa como um todo. Aprendi, portanto, que esse jeito de ser médico exige um envolvimento nos níveis tanto cognitivo (o médico aprenderá mais sobre o paciente) quanto emocional (o médico sentirá a dor e o sofrimento do paciente), mas também explorando a intuição do médico, o lado criativo, o qual reúne teias complexas de diferentes tipos de informação (cognitiva, emocional e intuitiva), em uma nova e profunda percepção, não isolada, mas em comunhão com o paciente. A equipe de GPs com quem trabalho acredita que praticar a Medicina que cura envolve uma mudança de coração, bem como uma mudança de mentalidade. (tradução nossa) 1313. Stewart M , Gilbert BW . Reflections on the doctor-patient relationship: from evidence and experience . Br J Gen Pract . 2005 ; 55 ( 519 ): 793 - 801 . (p. 793)

Os quatro componentes do MCCP estão descritos no quadro a seguir:

Quadro 1
Os quatro componentes interativos do método clínico centrado na pessoa

Figura 1
O método clínico centrado na pessoa: quatro componentes interativos.

O terceiro componente do método, que constitui a tarefa de encontrar um terreno comum – do médico e da pessoa atendida – foi considerado por Moira Stewart o mais importante em predizer desfechos positivos 1414. Stewart M , Brown JB , Donner A , McWhinney IR , Oates J , Weston WW , et al . The impact of patient-centered care on outcomes . J Fam Pract . 2000 ; 49 ( 9 ): 796 - 804 . para os pacientes e, por isso, atualmente atingiu grande proeminência, constituindo tarefa central da Medicina centrada na pessoa 1313. Stewart M , Gilbert BW . Reflections on the doctor-patient relationship: from evidence and experience . Br J Gen Pract . 2005 ; 55 ( 519 ): 793 - 801 . .

O quarto componente destaca a importância do desenvolvimento da dimensão subjetiva do profissional – autoconsciência e reconhecimento dos aspectos inconscientes da relação, como transferência e contratransferência –, sobre o qual podemos observar a influência dos trabalhos de Rogers e Balint, cujos trabalhos têm décadas de vida e mantêm relevância até os dias atuais, haja vista a insuficiência do espaço reservado à discussão sobre as diversas formas como se dá a relação médico-paciente no contexto da atenção médica no Brasil, sobretudo no ensino médico 1515. Leite AJM , Caprara A , Coelho Filho JM , organizadores . Habilidades de comunicação com pacientes e famílias . São Paulo : Sarvier ; 2007 . .

Nessa mesma direção, Ruiz-Moral, em seu artigo de 2007 – muitos anos após o lançamento dos trabalhos de Balint e Rogers, mas que joga luz sobre as mesmas questões tratadas por esses autores – denominado “Relação médico-paciente: desafios para a formação de profissionais de saúde” 33. Ruiz-Moral R . Relação médico-paciente: desafios para a formação de profissionais de saúde . Interface (Botucatu) . 2007 ; 11 ( 23 ): 619 - 35 . doi: 10.1590/S1414-32832007000300015 .
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, debate o valor do domínio da relação médico-paciente e suas implicações para o ensino médico:

Evidentemente, este desenvolvimento da Comunicação Clínica ou Relação Clínica (RC) no âmbito assistencial tem sido acompanhado por um desenvolvimento no campo da educação médica, que, no entanto, embora cada vez mais difundido, ainda é deficitário face à importância que a RC tem no âmbito da prática clínica. Os motivos deste atraso no ensino da RC relacionam-se, entre outros fatores, com a dificuldade em conjugar estratégias de ensino adequadas e eficazes, mas também com o peso excessivo que as abordagens biomédicas têm no ensino da Medicina nas nossas universidades [...] a RC [...] abre uma nova porta na educação e é aquela que visa considerar o próprio profissional como objeto de estudo e atenção; e aspectos do autoconhecimento e do crescimento pessoal do médico como parte fundamental da educação médica (tradução nossa) 33. Ruiz-Moral R . Relação médico-paciente: desafios para a formação de profissionais de saúde . Interface (Botucatu) . 2007 ; 11 ( 23 ): 619 - 35 . doi: 10.1590/S1414-32832007000300015 .
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. (p. 621)

Há estudos que indicam que entre os benefícios do MCCP para os médicos estão satisfação no trabalho, melhor uso do tempo 1616. Campbell MK , Silver RW , Hoch JS , Ostbye T , Stewart M , Barnsley J , et al . Re-utilization outcomes and costs of minor acute illness treated at family physician offices, walk-in clinics, and emergency departments . Can Fam Physician . 2005 ; 51 ( 1 ): 82 - 3 . e menos reclamações dos pacientes. Estes, conforme alguns estudos apontam, sentem-se mais satisfeitos com o método 1717. Wolf DM , Lehman L , Quinlin R , Zullo T , Hoffman L . Effect of Patient-Centered Care on Patient Satisfaction and Quality of Care . J Nurs Care Qual . 2008 ; 23 ( 4 ): 316 - 21 . , 1818. Kuipers SJ , Cramm JM , Nieboer AP . The importance of patient-centered care and co-creation of care for satisfaction with care and physical and social well-being of patients with multi-morbidity in the primary care setting . BMC Health Serv Res . 2019 ; 19 ( 13 ): 1 - 9 . .

Para os autores do método, o cuidado implica que o médico esteja integralmente presente e engajado com o paciente. A noção do médico imparcial e emocionalmente desconectado, o qual cultiva uma distância emocional segura, é substituída por uma ideia na qual o médico e o paciente estão interconectados em tamanha profundidade que o médico pode imergir-se inteiramente nas preocupações do paciente. Os autores ponderam que, embora as fronteiras possam se tornar mais confusas do que na relação tradicional e unidirecional, a proximidade restaura o senso de conexão da humanidade, que foi, provavelmente, rompida em decorrência de sofrimento físico e emocional 99. Stewart M , Brown JB , Weston WW , McWhinney IR , McWilliam CL , Freeman TR . Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico . Burmeister A , Rosa SMM , tradutoras . 3a ed. Porto Alegre : Artmed ; 2017 . .

No que diz respeito à confluência entre a Medicina Baseada em Evidências (MBE) e o MCCP, os autores relatam que:

Em resumo, a Medicina Baseada em Evidências e o Método Clínico Centrado na Pessoa não são ideias em conflito, mas conceitos sinérgicos. O campo de ação entre os dois pode ser entendido como uma área de tensão criativa. A ciência da complexidade (Plsek e Greenhalgh, 2001, p. 627) rotula de “beira do caos” as circunstâncias nas quais há “concordância e certeza insuficientes para que a próxima escolha seja óbvia, mas não tanta incerteza e discordância que levem o sistema a ser jogado ao caos”. Tudo isso exige comportamentos de adaptação complexos. Essas áreas de interação humana formam a gênese das ações morais, das quais surge o valor real. O método centrado na pessoa aborda explicitamente esse domínio 99. Stewart M , Brown JB , Weston WW , McWhinney IR , McWilliam CL , Freeman TR . Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico . Burmeister A , Rosa SMM , tradutoras . 3a ed. Porto Alegre : Artmed ; 2017 . . (p. 14)

Essa exigência de comportamentos de adaptação complexos no campo de ação entre a MBE e o MCCP descrita pelos autores pode nos remeter novamente à reflexão sobre a importância de uma prática médica reflexiva com abordagens que favoreçam o desenvolvimento de dimensões mais subjetivas dos profissionais, desde o ensino médico.

Medicina Narrativa

A publicação do livro “ Narrative based medicine1919. Greenhalgh T , Hurwitz B . Narrative based medicine: dialogue and discourse in clinical practice . London : BMJ Books ; 1998 . , em 1998, pela editora do British Medical Journal, Trisha Greenhalgh, pode ser considerada o marco da constituição da Medicina Baseada em Narrativa (MBN), termo criado pela autora juntamente com Brian Hurwitz, que empregam a palavra “ based ” como uma referência explícita à MBE.

O termo foi cunhado deliberadamente para assinalar sua distinção da Medicina Baseada em Evidências, contrapondo-se às suas supostas falhas. A MBN é concebida em um contexto em que a MBE era considerada uma verdade que deveria embasar todas as decisões na área médica, o que faz aquela, portanto, opor-se à visão de que a prática médica é uma prática racional por excelência. Para a MBN, há, no encontro clínico, o imponderável e aspectos que a MBE não considera, como narrativas sobre experiências individuais e sobre o impacto da doença na vida dos pacientes.

Segundo Greenhalgh e Hurwitz 1919. Greenhalgh T , Hurwitz B . Narrative based medicine: dialogue and discourse in clinical practice . London : BMJ Books ; 1998 . , no ensino médico convencional, os estudantes aprendem a olhar a Medicina como uma ciência e o médico como um investigador imparcial. A tomada de decisão clínica baseada em evidência, frequentemente, parte de uma premissa incorreta de que a observação clínica é totalmente objetiva e deveria, como todas as medições científicas, ser cientificamente reproduzível.

Por outro lado, embora Greenhalgh e Hurwitz apreciem a narrativa da experiência da doença e os aspectos intuitivos e subjetivos do método clínico, eles não rejeitam os princípios da MBE. Para eles, a verdadeira prática baseada em evidência realmente pressupõe um paradigma interpretativo no qual o paciente experiencia a doença de um modo único e contextual. Somente por meio desse paradigma interpretativo que um clínico pode significativamente lançar mão das evidências para atingir um julgamento clínico integrado 1919. Greenhalgh T , Hurwitz B . Narrative based medicine: dialogue and discourse in clinical practice . London : BMJ Books ; 1998 . . Greenhalgh, inclusive, é pesquisadora sênior do National Institute for Health Research, sendo reconhecida como uma das autoras mais importantes da MBE na atualidade.

Um dos desdobramentos importantes dessa abordagem foi a publicação, nos EUA, do livro Narrative Medicine 2020. Charon R . Narrative medicine: honoring the stories of illness . New York : Oxford University Press ; 2006 . , em 2006, pela internista americana Rita Charon, cujo prefácio define “Medicina Narrativa” (MN) – termo que se consagrou entre diversos autores –como “Medicina praticada com competência narrativa para reconhecer, absorver, interpretar e ser sensibilizado por ’estórias’ de doenças” (tradução nossa). Segundo Charon, a competência narrativa permite reconhecer pacientes, suas doenças e seus contextos familiares. Isso pode conduzir a cuidados mais humanos, mais éticos e mais efetivos 2020. Charon R . Narrative medicine: honoring the stories of illness . New York : Oxford University Press ; 2006 . .

A autora criou o termo MN, apropriando-se do close reading – escuta ou leitura atenta –, um método formalista de análise de literatura e que constitui o método de assinatura da MN, segundo a autora 2121. Charon R . Close reading: the signature method of narrative medicine . In: Charon R , DasGupta S , Hermann N , Irvine C , Marcus ER , Colon ER , et al . The principles and practice of narrative medicine . New York : Oxford University Press ; 2017 . p. 157 - 79 . .

A técnica emergiu na década de 1920, na Inglaterra, por autores que procuraram superar a concepção tradicional de crença no autor como figura necessária à interpretação das obras. Mais tardiamente, nas décadas de 1930 e 1940, foi resgatada nos EUA, por autores – bastante divergentes na formação intelectual e na ideologia em relação aos britânicos – que compuseram um movimento denominado New Criticism 2222. Wellek R . John Crowe Ransom theory of poetry . In: Brady F , Palmer J , Price M . Literary theory and structure . New Haven, London : Yale University Press ; 1973 . . Os novos críticos adotavam uma abordagem imanente do texto literário, afirmando existir uma leitura “correta” e estruturalista, a qual deveria estar sob orientação de um aporte teórico objetivo, aplicável a qualquer texto literário. Os estruturalistas preocupavam-se em elaborar uma espécie de gramática estrutural dos textos literários, na qual fosse possível englobar de maneira universalizante as formas estruturantes das narrativas. Esses críticos elaboravam um exame sistemático e particular das obras, encarando-as como um objeto que é o resultado de uma particularização de estruturas possíveis 2323. Gremião Neto A . Revisitando a crítica literária: pensando percursos . Alumni Rev Discente UNIABEU [ Internet ]. 2013 [ citado 7 Ago 2022 ]; 1 ( 2 ): 1 - 10 . Disponível em: https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/alu/article/view/1308/981
https://revista.uniabeu.edu.br/index.php...
.

No campo da Medicina Narrativa, o close reading é amplamente citado, lecionado e aplicado, enfatizando o singular e o particular em detrimento do geral, por meio da leitura atenta de cada palavra, da sintaxe, da ordem na qual as sentenças de desenrolam e das estruturas formais. A autora Rita Charon é bastante enfática quanto à importância de não deixar passar detalhes. Na Universidade de Columbia, na qual leciona, utiliza um guia de leitura para lembrar os leitores de procurar no texto aspectos como: temporalidade, contexto, narrador, metáfora, aspectos sensoriais, detalhes, descrições, perspectivas representadas, gênero, humor e movimento 2424. Charon R , Hermann N , Devlin MJ . Close reading and creative writing in clinical education: teaching attention, representation, and affiliation . Acad Med . 2016 ; 91 ( 3 ): 345 - 50 . .

Segundo Rita Charon, as narrativas produzidas pelos pacientes são capazes de trazer, além do diagnóstico “codificado”, outros importantes aspectos. À medida que o relato é desenvolvido, podem emergir compreensões profundas e terapêuticas de sintomas e sofrimentos. Se não há espaço para a fala, não somente o tratamento, mas o sofrimento também poderá se tornar fragmentado 2020. Charon R . Narrative medicine: honoring the stories of illness . New York : Oxford University Press ; 2006 . .

A MN também sofreu influência do pós-estruturalismo e do construcionismo social. John Launer, outro importante autor do método, cujo trabalho se aproxima do de Rita, ressalta a importância da MN no contexto da APS. Ele descreve uma abordagem que ele chama de “conversas que convidam à mudança” 2525. Launer J . Narrative-based primary care: a practical guide . Abingdon : Radcliffe Medical Press ; 2002 . (p. 36), que utiliza conceitos originados na terapia familiar. Para ele, as conversas não são como um veículo para o tratamento, mas o tratamento propriamente dito, processo que envolve a saída de uma ideia de resolução do problema em direção à ideia de dissolução do problema. O clínico, em vez de desempenhar o papel de um conselheiro ou reparador, torna-se um questionador e um propositor de histórias reestruturadas. Segundo o autor, a conversa deve ser um processo no qual duas pessoas entrelaçam suas histórias originais, para que elas possam criar uma história, em um processo de cocriação 2525. Launer J . Narrative-based primary care: a practical guide . Abingdon : Radcliffe Medical Press ; 2002 . .

Já a autora Sayantani Das Gupta, que cunhou o termo “humildade narrativa” e que indica a postura a partir da qual devemos testemunhar histórias de sofrimento, destaca o fato de que a história do paciente, pelo menos inicialmente, pertence inteiramente a ele. Para ela:

[...] nós, entrevistadores e testemunhas cuidadosos, investimos e nos tornamos envolvidos e coautores das narrativas da doença de nosso paciente, mas não podemos jamais pretender compreender a totalidade da história de outra pessoa 2626. DasGupta S . Narrative humility . Lancet . 2008 ; 371 ( 9617 ): 980 - 1 . . (p. 980, tradução nossa)

Segundo a autora 2626. DasGupta S . Narrative humility . Lancet . 2008 ; 371 ( 9617 ): 980 - 1 .:

A humildade narrativa reconhece que as histórias de nossos pacientes não são objetos que podemos compreender ou dominar, mas sim entidades dinâmicas que podemos abordar e com as quais podemos nos envolver, ao mesmo tempo que permanecemos abertos à sua ambiguidade e contradição; e nos engajamos em constante autoavaliação e autocrítica, tais como nosso próprio papel na história, nossas expectativas em relação à história, nossas responsabilidades com a história e nossas identificações com a história –, por exemplo, como a história pode nos atrair ou nos repelir porque nos lembra de inúmeras histórias pessoais 2626. DasGupta S . Narrative humility . Lancet . 2008 ; 371 ( 9617 ): 980 - 1 . . (p. 981, tradução nossa)

A humildade narrativa permite que os médicos reconheçam que cada história que ouvimos contém elementos que não são familiares – sejam eles culturais, socioeconômicos, sexuais ou religiosos. Assumir que nossa leitura da história de qualquer paciente é a interpretação definitiva dessa história é correr o risco de nos fecharmos às suas nuances e a particularidades mais valiosas 2626. DasGupta S . Narrative humility . Lancet . 2008 ; 371 ( 9617 ): 980 - 1 . .

A humildade narrativa também aborda o desequilíbrio hierárquico da relação clínica. Ela reconhece que o papel socialmente mais poderoso – o clínico – deve se colocar em uma posição de alguma transparência. O clínico deve não apenas ver, mas ser visto e, ao fazer isso, habilitar-se a ver ainda mais claramente. Em outras palavras, ao assumir uma postura de humildade narrativa, o médico está promovendo um estado em que, como Broyard 2727. Broyard A . Intoxicated by my illness and other writings on life and death . New York : Ballantine Books ; 1992 . observou, mesmo quando o médico examina o paciente, o paciente é capaz de examinar o médico. A função de testemunho, tão crucial para o médico, torna-se mútua, apoiando e nutrindo ambos os indivíduos, ao mesmo tempo que possibilita uma relação clínica mais profunda e fecunda 2626. DasGupta S . Narrative humility . Lancet . 2008 ; 371 ( 9617 ): 980 - 1 . .

Discussão

As três abordagens: uma análise comparada

O método Balint, nascido na década de 1950, é o mais antigo. Consolidou-se ao longo do tempo, tendo influenciado o MCCP e a MN, abordagens mais tardias e do final do século XX. O MCCP sofreu poucas alterações e a MN segue recebendo influências, remodelando-se e, embora tenha sido criada quase que simultaneamente ao MCCP, de forma independente e por diferentes autores, ela sofrerá influência desse método ao longo de sua evolução, o que denota maior vitalidade dessa abordagem em se abrir para correntes de pensamento mais contemporâneas.

A MN tem como ponto central aquilo que é propriamente produzido no encontro, que é uma narrativa coconstruída. Não coloca o inconsciente, a transferência e a contratransferência – focos do método Balint –; ou a pessoa atendida – foco do MCCP – como cerne da abordagem, mas sim desloca-se para um objeto relacional. Pessoa não é relação, mas um dos elementos dela. Contratransferência é fenômeno individual, ainda que tenha sido deflagrado em uma relação. Dessa forma, não é preciso lançar mão do imperativo moral de que o médico deve “dar poder” ao paciente, pois a MN parte do pressuposto de que a narrativa é realmente coconstruída. Assim, o que o paciente traz será realmente levado em consideração.

Outro aspecto que a MN pode trazer é o da materialidade: a relação parte do abstrato e conflui para uma construção concreta, uma narrativa. Porém, um dos efeitos colaterais de uma certa leitura do pós-estruturalismo é o de que o mundo é feito de uma disputa de narrativas, o que representaria um empobrecimento da abordagem. Por isso, é importante destacar o conceito de “conversas que convidam à mudança”, sendo um veículo para dissolução do problema (e não resolução) por meio da construção narrativa e da coprodução linguística.

Balint pretende interferir na qualidade da relação médico-paciente pelo acionamento de um dispositivo conversacional paralelo (o Grupo Balint) que obedece a determinadas regras conversacionais, ou seja, que funciona como uma técnica de conversação. Tal dispositivo incidirá no encontro clínico por meio da transformação do médico pela via de sua maior consciência dos processos transferenciais e contratransferenciais presentes na relação, porém, não há prescrição de regras conversacionais para a comunicação médico-paciente. Já o MCCP propõe um dispositivo conversacional estruturado e a MN oferece técnicas específicas para o desenvolvimento de narrativas.

O MCCP defende que a MBE e o MCCP constituem conceitos sinérgicos. Já a MN contrapõe-se, de forma marcada, às falhas existentes na transposição da teoria da MBE para a prática clínica, desde seu surgimento, embora não rejeite seus princípios.

Na MBN, o conceito de humildade reforça a importância do médico e do paciente serem ambos sujeito e objeto da relação terapêutica; dessa forma, o paciente também deve ser capaz de examinar o médico para que haja uma relação clínica profunda. Tal conceito dialoga com a proposta de cuidado da MCCP, que defende que, quando o paciente deixa de ter uma postura passiva no encontro clínico, o médico – se mantiver uma posição menos objetiva e insensível – experienciará novos direcionamentos que a relação poderá assumir 99. Stewart M , Brown JB , Weston WW , McWhinney IR , McWilliam CL , Freeman TR . Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico . Burmeister A , Rosa SMM , tradutoras . 3a ed. Porto Alegre : Artmed ; 2017 . .

O método Balint elege os clínicos gerais como participantes dos grupos por julgar que a atmosfera de um hospital e o enfoque técnico do especialista não sejam favoráveis para o desenvolvimento de sua prática. Mais do que isso, aliás, o autor foi categórico em seu apoio ao papel do generalista como médico pessoal de longa duração em um tempo em que tais conceitos se tornavam obsoletos e os generalistas estavam sendo substituídos por especialistas nos países escandinavos e nos EUA 2828. Horder J . The first Balint Group . Br J Gen Pract . 2001 ; 51 ( 473 ): 1038 - 9 . .

Embora muitos conceitos do MCCP tenham se originado de trabalhos na área de Atenção Primária, o método pretende ter aplicação ampla e capacidade de ser transferido para médicos de todos os níveis de atenção, assim como para outros profissionais de Saúde. A APS é destacada como o espaço mais fértil para a MN segundo alguns atores, embora também esteja presente em outros contextos, como na Atenção Terciária e em cuidados paliativos.

Os autores tanto do MCCP quanto da MBN dão grande importância ao ensino dos métodos nas faculdades e residências médicas. Já Balint julga que o ensino de seus conceitos não deve ser obrigatório, privilegiando os médicos formados e mais experientes em relação aos estudantes de Medicina.

Assim, foram destacados aproximações e distanciamentos entre as três linhas de abordagem tratadas neste estudo. Durante a análise, não houve intenção de eleger uma em detrimento de outra. Buscou-se, sobretudo, conhecê-las e absorvê-las para que fosse possível o reconhecimento da pertinência e potencialidade própria a cada uma delas nos diversos contextos da prática do profissional de Saúde desde o ensino médico, tendo a construção de uma relação terapêutica como direção.

Quadro 2
Análise comparada entre as abordagens

Agradecimentos

À Luísa de Aguiar Destri, pelas trocas nos primórdios da escrita deste texto, que colaboraram com a abordagem da Medicina Narrativa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    26 Fev 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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