A Saúde Coletiva e suas áreas: territórios ou aldeamentos?

Public health and its areas: territories or villagization?

La Salud Colectiva y sus áreas: ¿Territorios o asentamientos?

José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres Sobre o autor

Resumos

A progressiva conformação de áreas específicas de conhecimento e prática no interior do campo da Saúde Coletiva brasileira tem desafiado sua unidade e sua identidade enquanto tal. Como compreender o movimento centrífugo de diferenciação dessas áreas desde sua origem comum? Como resgatar uma identidade de campo e criar sinergias entre as áreas? O presente ensaio busca refletir sobre essas questões tomando por base aportes teórico-filosóficos da hermenêutica contemporânea (Gadamer, Ricoeur, Habermas). Critica-se a noção de territorialidade epistemológica e, recorrendo a uma identidade normativo-proposicional oriunda da facticidade do social na saúde, propõe-se a noção de “aldeamento” para (re)construir a unidade do campo em sua pluralidade, indicando-se alguns movimentos com potencial de estimular esse processo.

Palavras-chave
Saúde coletiva; Medicina social; Hermenêutica; Epistemologia


The progressive configuration of specific areas of knowledge and practice within the field of public health in Brazil poses a challenge for the maintenance of the field’s identity and unity. How can we understand the centrifugal movement of the differentiation of these areas away from their common origin? How can we restore the identity of the field and create synergies between areas? This essay reflects on these issues drawing on the theoretical and philosophical contributions of contemporary hermeneutics (Gadamer, Ricoeur, Habermas). We provide a critique of the notion of epistemological territoriality and, utilizing a normative and propositional identity derived from the facticity of the social in health, we propose the notion of “villagization” to (re)construct field unity in its plurality, indicating some movements that have the potential to stimulate this process.

Keywords
Public health; Social medicine; Hermeneutics; Epistemology


La progresiva conformación de áreas específicas de conocimiento y práctica en el interior del campo de la Salud Colectiva brasileña ha desafiado su unidad y su identidad como tal. ¿Cómo comprender el movimiento centrífugo de diferenciación de estas áreas desde su origen común?. ¿Cómo rescatar una identidad de campo y crear sinergias entre las áreas?. Este ensayo busca reflexionar sobre esas cuestiones, utilizando como base contribuciones teórico-filosóficas de la hermenéutica contemporánea (Gadamer, Ricoeur, Habermas). Se critica la noción de territorialidad epistemológica y, recurriendo a una identidad normativo-propositiva proveniente de la facticidad de lo social en la salud, se propone la noción de “asentamiento” para (re)construir la unidad del campo en su pluralidad, indicándose algunos movimientos con potencial para incentivar ese proceso.

Palabras clave
Salud Colectiva; Medicina Social; Hermenéutica; Epistemología


Áreas em interação?

Quando se discute a divisão do campo da Saúde Coletiva em áreas e, de forma correlata, a relação ou a integração entre essas diferentes áreas, é quase inevitável assumir uma postura atomizadora. Isto é, cada uma dessas áreas é tratada como se fosse uma “mônada”, uma unidade autônoma, singular e distinta das demais. Examina-se como cada uma delas se relaciona (ou não) com as demais nessa espécie de meio etéreo que se torna o campo da Saúde Coletiva, ao mesmo tempo as distinguindo e pondo em contato.

Mas será que essa é a melhor forma de pensar a questão? Será que, ao adotarmos essa leitura disciplinar (de disciplinas científicas), não estaremos caindo na armadilha do substancialismo no modo de entender os fenômenos que estudamos e, de modo relacionado, do objetivismo na compreensão do que fazemos quando produzimos conhecimento – o que faz, mesmo a contragosto, o positivismo ingênuo entrar pela porta dos fundos da discussão? Parece-me que sim, corremos esse risco, e o caminho para evitá-lo é opor resistência a essa forma mais confortável de pensar o conhecimento científico em que fomos aculturados, e revisitar as bases filosóficas do que temos efetivamente feito nas ciências, nas ciências da Saúde Coletiva em particular.

Hermenêutica e ciências – Ontologia e Epistemologia

Em primeiro lugar, gostaria de afastar minha argumentação de qualquer simpatia por um “exorcismo” do “fantasma” positivista que precise recorrer a alguma leitura relativista ou niilista da Ciência. Embora reconheça a seriedade e a importância das críticas que certo niilismo contemporâneo faz ao fundamentalismo que reside em conhecimentos que pretendem ser a expressão da “realidade”, mesmo aqueles que assumem o caráter linguístico e dialógico da validade de suas proposições11 Vattimo G. Da realidade: finalidades da filosofia. Petrópolis: Vozes; 2019., não posso acompanhar essas críticas até o limite de considerar que as ciências são uma “invenção”, pura expressão de posições subjetivas que, por alguma razão, se impõem como leitura do mundo. Se é verdade a máxima nietzschiana de que não há fatos, apenas interpretações de fatos, posto que qualquer acontecer é sempre tornado fato “para alguém”, é também irrecusável aceitar, parece-me, que nem o acontecer nem o alguém para quem ele se torna fato estão postos sob o total domínio da liberdade do desígnio humano. Eles lhe escapam e determinam de tal forma que o interpretar será muito mais o mergulhar crítico na participação ativa nos processos que articulam esse “triângulo” (acontecer ⇔ fato ⇔ pessoas) do que o livre exercício de produção de narrativas que atribuam sentido aos fatos (pessoas => acontecer => fato). Mais ainda, se reconhecermos que, para cada pessoa, o outro, uma outra pessoa e nosso próprio si mesmo são sempre parte disso que escapa largamente ao total domínio da liberdade humana, então, precisamos ter clareza de que a participação interpretativa no acontecer é, imediatamente, compartilhamento (pessoas ⇔ fato ⇔acontecer ⇔ fato ⇔ pessoas).

A recusa ao par substancialismo/objetivismo caminha aqui, portanto, não pelo niilismo ou pelo relativismo forte. Há verdade para além da nossa liberdade! Mas verdade como uma experiência hermenêutica, diante da qual interpretar é sempre reconstruir significados com base em uma totalidade compreensiva que, por meio da experiência, confere sentidos possíveis aos acontecimentos22 Gadamer H-G. Verdade e método II: complementos e índice. Petrópolis: Vozes; 2002.. Interpretar é sempre reconstruir uma compreensão, e compreender é o acontecer de um entender-se com os outros a respeito de algo no mundo, entendendo-se a si mesmo33 Gadamer H-G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6a ed. Petrópolis: Vozes; 2004..

Isso posto, podemos, então, tratar das diversas ciências como campos discursivos que buscam estabelecer uma relação com os acontecimentos segundo uma facticidade que expressa, ao mesmo tempo, uma certa esfera de acontecer significativo para as pessoas (com variados graus de universalidade possíveis) e determinados recursos, interesses e poderes das pessoas envolvidas na construção desses discursos.

Sob essa perspectiva, toda ciência é uma hermenêutica. Em cada ciência, há a produção e a exploração especulativa de uma fenomenologia que nada mais é do que uma busca, de modo compartilhado, por interpretar acontecimentos para nós. Não faria sentido, portanto, a clássica divisão entre ciências nomotéticas e ideográficas, ou ciências naturais e ciências do espírito, ou, em tempos mais recentes, as correlatas distinções entre métodos quantitativos e qualitativos. De um ponto de vista estritamente lógico, se assumirmos como aceitável o conceito hermenêutico de verdade acima discutido, não faria sentido mesmo. Contudo não é isso que observamos na prática.

A distinção das ciências por seus processos de validação discursiva

É claramente distinto para nós, ao menos para a maioria de nós, que as ciências guardam diferenças marcantes entre si, não apenas nos fenômenos que tomam como objeto, mas também na forma de produzir e validar seu conhecimento, seja no modo de argumentar, seja nos recursos que utiliza, isto é, nos seus métodos. Compare-se o modo como conhece a Física com aquele da Biologia ou da Antropologia, só para citar exemplos mais extremos. Mas mesmo dentro do campo da Saúde Coletiva seria difícil identificarmos como hermenêutico um estudo de caso-controle, ou mesmo tomar como similares uma investigação antropológica sobre itinerários terapêuticos e uma análise de efetividade de uma política de saúde. Isso significa que é necessário distinguir dois planos em que falamos da dimensão hermenêutica das ciências. De um lado, de uma perspectiva ontológica, toda ciência pode ser tomada como uma hermenêutica no modo que a definimos acima – como de resto outros saberes não científicos que pretendam de alguma forma “atribuir sentido” aos acontecimentos. De outro lado, de uma perspectiva epistemológica, a experiência hermenêutica participa de formas diversas da construção e da validação do conhecimento.

Essa diversidade está presente na distinção que Habermas44 Habermas J. Conhecimento e interesse. São Paulo: Editora Unesp; 2014. estabelece entre as ciências empírico-analíticas e as ciências hermenêuticas. Para as primeiras, a perspectiva compreensivo-interpretativa está dada já como um a priori, um pressuposto do qual partem suas hipóteses e procedimentos, que buscam explorar regularidades, leis, relações de corte explicativo-causais. Já no caso das segundas, o procedimento compreensivo-interpretativo está na base mesma de sua discursividade; elas se interessam diretamente pelo “para nós” dos fatos sobre os quais discorrem. É o sentido mesmo do acontecer que está em questão55 Ayres JRCM. Prefácio - ciência, razão prática e os fundamentos da pesquisa qualitativa em saúde. In: Bosi MLM, Gastaldo D, organizadoras. Tópicos avançados em pesquisa qualitativa em saúde: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2021. p. 11-21.. Assim, as primeiras são ontologicamente hermenêuticas, mas epistemologicamente não hermenêuticas. Já as segundas são ontológica e epistemologicamente hermenêuticas, se entendermos o epistemológico em seu sentido lato, como relativo à fundamentação do conhecimento.

Ocorre que, no campo das ciências, a legitimação discursiva está inescapavelmente radicada na argumentação, na fundamentação da validade de uma crença na demonstração lógica e empírica de certa facticidade, isto é, na apreensão de um acontecer sob a égide de um certo compreender. Então, seja focando no conhecimento de relações explicativo-causais de um fato cujo sentido já está construído, não estando mais (ou ainda) em disputa, seja focando no sentido de um fato, cuja construção dependerá do comportamento de certas relações explicativo-causais às quais se atribui importância, haverá sempre, no que Ricoeur66 Ricoeur P. Del texto a la acción: ensayos de hermenêutica II. 2a ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica; 2010. chama de “via longa da hermenêutica” que é indispensável à práxis científica, uma intrínseca relação entre explicar e compreender, constituindo o “arco hermenêutico”: Compreende-se melhor quando se tem boas explicações, explica-se melhor quando se parte de uma boa compreensão.

Sempre haverá, portanto, algum traço de hermenêutica epistemológica nos estudos empírico-analíticos. Da mesma forma, haverá sempre algum elemento explicativo-causal nos estudos hermenêuticos. Entende-se aqui que o que diferencia os diversos tipos de ciência não é exatamente a presença ou a ausência do procedimento hermenêutico, ou compreensivo-interpretativo, mas o lugar que ele ocupa nas suas pretensões de validade discursiva77 Habermas J. Teoria do agir comunicativo - vol. 1: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2012.. Podemos assumir, então, que, na perspectiva epistemológica, estaremos sempre nos posicionando em algum ponto de um eixo que articula dois polos dialéticos – cada um dependendo do outro e o negando, simultaneamente: um “polo formal” (das explicações causais e estruturais, das regularidades, das quantidades) e um “polo hermenêutico” (da compreensão-interpretação, dos sentidos e significados, das qualidades).

Figura 1
Polos dialéticos

Entre validade proposicional e normativa

Em sua Teoria da Ação Comunicativa77 Habermas J. Teoria do agir comunicativo - vol. 1: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2012., Habermas desenvolve, com base em contribuições vindas de diferentes tradições teóricas, mas particularmente da Teoria dos Atos de Fala, de Austin, uma estrutura conceitual bastante fecunda para estabelecermos uma base analítica que permita empreender a via longa de uma hermenêutica dos discursos. Isto é, partindo do caráter compreensivo-interpretativo de toda abordagem da linguagem interessada no seu sentido prático para além de suas características formais, Habermas identifica na pragmática da linguagem, isto é, na análise dos atos de fala em sua dimensão ilocucionária (o que fazemos ao dizer), um acesso privilegiado aos diferentes tipos de pretensão de validade dos discursos e, de forma correlata, das diferentes exigências e condições de validação que lhe são cobrados.

É assim que, em diálogo com diversos teóricos da ação social – particularmente Weber –, Habermas distingue três grandes esferas de pretensões/condições de validação dos discursos: a normativa (relacionada à correção das nossas ações, à vida prático-moral, à regulação de nossa vida em comum); a proposicional (relacionada à verdade de nossas crenças, à objetividade do mundo intersubjetivamente compartilhado); e a expressiva (que diz respeito à expressão veraz e autêntica de nossa singularidade como sujeitos, de nosso “mundo interior”). Segundo Habermas, essas três esferas de validez estão sempre em operação em qualquer experiência linguisticamente mediada, mas quando externamos qualquer discurso que busque uma efetiva comunicação com o outro, um acordo racionalmente fundado, uma dessas esferas tenderá a se destacar das demais na busca de validade, ainda que as demais permaneçam como pano de fundo na totalidade compreensiva de que parte a argumentação.

É fácil compreender que, quando falamos das ciências, é no plano da busca de validade proposicional, no âmbito do valor verdade, que encontraremos as pretensões de validade dominantes nos discursos. Não estamos falando de correção moral ou sinceridade pessoal quando elaboramos um discurso científico, quando buscamos produzir esse tipo de conhecimento. Queremos saber se é possível acreditar que aquilo que está sendo descrito, explicado, compreendido, corresponde à realidade de um mundo em que habitamos. Ora, quanto menos imediatamente essa descrição, explicação ou compreensão, disser respeito às nossas vidas morais ou psicoafetivas, mais facilmente o aspecto epistemologicamente hermenêutico fica apartado da construção de validade do conhecimento e vice-versa, e mais nos aproximaremos do polo formal. Regularidades trabalhadas analítica, matemática e empiricamente podem dar conta de criar compartilhamento suficiente e produtivo nas nossas crenças sobre a realidade do mundo, alcançando com esses recursos plena validade proposicional, como acontece na Física, na Química e até, em certo grau, nas ciências da vida e da saúde. Mas esses procedimentos serão suficientes em todos os campos científicos?

Quando pensamos nas Ciências Sociais e Humanas, aquelas dotadas de uma constitutiva circularidade, isto é, aquelas nas quais quem pesquisa faz parte do que é pesquisado e nas quais esse pertencimento é necessário para a produção do conhecimento88 Dithey W. Introducción a las ciencias del espíritu. Madrid: Alianza Editorial; 1980., ou, dito de outra forma, aquelas cuja esfera de facticidade não se constitui apenas pelo acontecer descrito, mas inclui imediatamente o conhecimento do próprio sentido da passagem de um acontecer à sua facticidade, então aí a validação proposicional é simultaneamente uma busca de validade normativa, ainda que de forma não explícita. Essa inseparabilidade da dimensão normativa da proposicional nas Ciências Sociais e Humanas já apontada, com outra terminologia, por Dilthey será bem sintetizada por Adorno99 Adorno TW. Introducción. In: Adorno TW, Popper KR, Dahrendorf R, Habermas J, Albert H, Pilot H. La disputa del positivismo en la sociologia alemana. Barcelona: Grijalbo; 1973. p. 11-80. no clássico debate com Popper a respeito da Sociologia. Diversamente da fórmula “se ... ...então” da validação por meio da verificação de regularidades, próprias das ciências empírico-analíticas, diz-nos ele, na Sociologia a argumentação aproxima-se mais do modelo “dado que... é preciso”. Ou seja, ao descreverem seus fenômenos, as Ciências Sociais e Humanas estarão simultaneamente interpretando o que é bom ou ruim desde um ponto de vista normativo. Ao descreverem um “que é”, estarão simultaneamente prescrevendo um “que fazer”. Por isso, não há como manter a hermenêutica longe da epistemologia dessas ciências, e por isso seus métodos serão tão distintos daqueles das ciências empírico-analíticas.

Talvez com essas breves delimitações conceituais estejamos já em condições de voltar à nossa questão central a respeito da relação entre as diversas áreas da Saúde Coletiva – Epidemiologia, Ciências Sociais e Humanas em Saúde e Política, Planejamento, Gestão e Avaliação. O que essas áreas têm em comum e o que as distingue? Como se situam nelas o componente hermenêutico? O que esses aspectos têm a ver com o modo em que estão (ou não) em relação?

A facticidade social nas ciências da saúde

Um dos pioneiros na teorização da especificidade das Ciências Sociais e Humanas, Dilthey88 Dithey W. Introducción a las ciencias del espíritu. Madrid: Alianza Editorial; 1980., na obra acima citada, já chamava a atenção para a necessidade de se buscar compreender o modo de validação desse conhecimento científico no enraizamento de sua práxis na vida humana, exatamente em razão dessa característica que descrevemos como a indissociabilidade entre o proposicional e o normativo em suas construções. E, nesse sentido, propunha o resgate da história desses saberes como exigência para compreender sua epistemologia – o que não se coloca com a mesma exigência quando se trata de compreender as bases de validação atual de campos de saber como a Física, a Química, etc. (ainda que, mesmo nesses casos, a história ajude a compreender suas epistemologias e vice-versa1010 Canguilhem G. Estudos de história e filosofia das ciências: concernentes aos vivos e à vida. Rio de Janeiro: Forense; 2012. A história das ciências na obra epistemológica de Gaston Bachelard; p. 181-96.).

Em nosso caso, parece pertinente remeter a raiz histórica da Saúde Coletiva1111 Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M Jr, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2015. p. 17-37. à emergência de uma consciência generalizada acerca da determinação social dos processos saúde-doença. Se é certo que a Saúde Coletiva, como campo de conhecimento, não se resume a uma única ciência, nem se organizou em torno de uma única esfera de facticidade1212 Vieira-da-Silva LM. O campo da Saúde Coletiva: gênese, transformações e articulações com a reforma sanitária brasileira. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA, Editora Fiocruz; 2018., é também verdade que foi em torno dessa consciência social dos fenômenos da saúde que se conformaram as áreas de sua produção científica, seja como nova ciência, seja como ciências reconstruídas em seu âmbito.

Essa consciência social da determinação dos processos saúde-doença está relacionada à emergência, consubstanciada na construção das sociedades modernas sob o modo de produção capitalista, de uma expansão normativa das práticas de saúde para o tecido social1313 Donnangelo MCF. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976.. A Medicina, a partir da passagem do século XVIII para o XIX, passará progressivamente a “ler”, no corpo dos indivíduos doentes, os efeitos de seu modo de inserção na vida social, ao tempo em que as patologias lidas na economia orgânica desses doentes, pela emergente anátomo-fisio-patologia, passam a traduzir de forma naturalizada o que deve ou não ser tolerado na vida social, e de que modo o intolerável deve ser transformado. A expressão sintética desse movimento dialético no seu polo individual é o nascimento da Clínica Médica, como apresentado em suas linhas gerais pelo clássico trabalho arqueológico de Michel Foucault1414 Foucault M. O nascimento da clínica. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1980.. No polo oposto e articulado, o da Epidemiologia1515 Mendes-Gonçalves RB. Reflexão sobre a articulação entre a investigação epidemiológica e a prática médica a propósito das doenças crônicas e degenerativas. In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, Sociedade & História. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017. p. 127-82., constituiu-se a emergência do que chamei em outro estudo de “o espaço público da saúde”1616 Ayres JRCM. Epidemiologia e emancipação. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2011..

O espaço público moderno pode ser sinteticamente caracterizado como a disposição material, cultural e institucional do compartir a vida social, segundo o princípio de conciliação/disputa (consensual ou conflituosa) dos diversos interesses dos sujeitos privados em interação em um dado contexto histórico1616 Ayres JRCM. Epidemiologia e emancipação. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2011.. Com a emergência das sociedades e do Estado modernos, passam a ser necessários saberes científicos capazes de orientar o domínio técnico do processo saúde-doença no âmbito de seus espaços públicos. A Higiene moderna será a matriz disciplinar na qual vão ser gerados esses saberes. Conforme Arnould, apud Arouca1717 Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Ed. Unesp, Ed. Fiocruz; 2003. (p. 111): “L’Hygiène est l’étude des rapports sanitaires de l’homme avec le monde extérieur et le moyans de faire contribuir ces rapports à la viabilité de l’individu et de l’espèce”(b(b)“A higiene é o estudo das relações sanitárias do homem com o mundo exterior e dos meios de fazer contribuir essas relações à viabilidade do indivíduo e da espécie” (Tradução livre deste autor).).

A discursividade que herdou mais precoce e legitimamente a autoridade científica, em moldes modernos, sobre a facticidade delimitada originariamente pela Higiene moderna foi, sem dúvida, a Epidemiologia. Foi ela que combinou de forma histórica e socialmente mais efetiva o interesse normativo de controle técnico do espaço público da saúde, validado por proposições científicas acerca do comportamento coletivo dos fenômenos de saúde-doença, construídas, por sua vez, na linguagem empírico-analítica da variação quantitativa desses fenômenos1818 Ayres JRCM. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2008..

Mas a matriz da Higiene apontou para uma facticidade que extrapola a fenomenologia e o campo normativo a que foi se limitando a Epidemiologia no seu processo de formalização como discurso científico. A proposta de uma Antropologia Médica, com Rudolf Virchow na Alemanha1919 Ackerknecht EH. Rudolf Virchow: doctor, statesman, antropologist. Madison: The University of Visonsin Press; 1953., ou mesmo de uma Medicina de Estado, com Henry Acland na Inglaterra2020 Acland HW. National health. Oxford: James Parker and Co; 1871., dão indícios de outras áreas disciplinares que viriam a se desenvolver a partir das bases normativo-proposicionais de validação do conhecimento inauguradas pela Higiene moderna.

Não cabe aqui uma recuperação do complexo processo histórico em que esses diversos ramos da matriz higienista moderna se desenvolveram, diversificaram, afastaram-se ou aproximaram-se dela, incorporaram elementos originários de outras matrizes discursivas – nem o autor estaria capacitado para tanto. O que é importante destacar perante essa complexidade é que nenhuma identidade disciplinar (História, Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Economia, etc.) em abstrato, tampouco os métodos tradicionalmente relacionados às diferentes “grifes” científicas são capazes de indicar o que são as áreas desta expressão brasileira e sul-americana do movimento da Medicina Social: a Saúde Coletiva. Mesmo a “menos bastarda” das filhas da Higiene moderna, a Epidemiologia, já se ramificou tanto e diversificou tanto que não se pode relacionar automaticamente sua identidade disciplinar e seus métodos ao mesmo complexo normativo-proposicional que a vincula à Saúde Coletiva, como testemunhou o debate acerca da Epidemiologia Clínica2121 Mendes-Gonçalves RB. Epidemiología y práctica médica. Salud Colect. 2022; 18:e4013..

Não é de estranhar, portanto, o frequente relato de historiadores, sociólogos, antropólogos, juristas, economistas, jornalistas, entre outros, que pesquisam no campo da Saúde Coletiva, de que são tratados como estranhos nas suas disciplinas de origem, quando não vistos mesmo com certa inferioridade. Por sua vez, os “nativos” do campo frequentemente estranham o modo como a saúde é trabalhada pelas ciências radicadas em contextos normativo-proposicionais diversos daqueles da Saúde Coletiva.

Por isso, defendo aqui a posição de que “territórios” disciplinares, sejam eles delimitados por campos fenomenológicos ou pela aplicação de determinadas estratégias ou ferramentas metodológicas, são incapazes de nos levar a uma adequada compreensão do que são as áreas da Saúde Coletiva e quais as relações possíveis entre elas. Eles se interpenetram, rearranjam, interpelam-se mutuamente, interna e externamente ao campo da Saúde Coletiva, de modo que fica difícil delimitar suas fronteiras, cartografar sua extensão, relevos, habitantes, ainda que as instituições que regulam a práxis científica reclamem essa territorialização. A própria Saúde Coletiva brasileira, que durante cerca de 13 anos comportou-se como uma discursividade coesa, embora plural, sobre o espaço público da saúde, começou a adotar, a partir dos anos 1990, uma certa divisão territorial interna à sua comunidade de pesquisadores; um movimento centrífugo desde uma facticidade sociossanitária comum rumo a diferenciações discursivas que geram a atual necessidade de “estabelecer diálogos” entre as áreas.

Mas será que esse é um destino inexorável? Será que, como se costuma ouvir nos congressos e nos fóruns do campo, esse é o preço a pagar pela especialização própria à práxis científica contemporânea de modo geral? Talvez possamos resistir a essa tendência com o mesmo ímpeto reconstrutivo que anima as medicinas sociais desde suas origens oitocentistas. Quero, a título de conclusão, arriscar que a imagem de um “aldeamento”, mais que de uma territorialização, possa ser fecunda nesse sentido. Talvez ela possa não apenas clarificar os modos de convivência já existentes entre as diversas práticas científicas do campo, como também apontar possibilidades de renovar afinidades normativo-proposicionais.

Aldeamentos para uma saúde de fato coletiva

No recente movimento social dos povos originários brasileiros, uma expressão passou a ser uma espécie de bandeira: “aldear a política”. A expressão engloba vários sentidos: ao mesmo tempo que remete a se fazer presente nas instâncias decisórias, nos núcleos de poder, tornando visível o modo de vida, valores e necessidades das populações indígenas, significa também reunir diferentes tribos em uma única aldeia, que transcende territórios, etnias, línguas. Como que invertendo o sentido colonial original de uma territorialização imposta desde fora, o aldear político significa romper barreiras que preservam pelo isolamento, reorganizando-se por dentro, borrando fronteiras e tornando-as permeáveis a trocas, a interações, negando a alternativa entre exclusão ou descaracterização.

O recurso à ideia de aldeamento, com a devida reverência à potência política de que a expressão foi investida pelos povos indígenas brasileiros, pode servir de metáfora para resistir ao movimento monádico e centrífugo das áreas da Saúde Coletiva. Não cabe reunir em “tribos” territorializadas desde fora, por força das instituições hegemônicas da Ciência, as diversas discursividades científicas oriundas da matriz higienista, isolando-as e restringindo progressivamente suas trocas e seus potenciais dialógicos.

Aldear a Saúde Coletiva significa superar territórios fenomênico-metodológicos, reunindo os “povos” desse campo em uma solidariedade normativo-proposicional em que cada diferente tradição científica possa enriquecer, com suas leituras próprias, onde se situa hoje o espaço público da saúde e qual papel político cabe ao conhecimento científico na reconstrução emancipadora desse espaço público. O que revelam os procedimentos empírico-analíticos sobre as possibilidades de apreensão explicativa dessa dimensão supraindividual dos processos saúde-doença? E o que nos permitem ver as aproximações compreensivo-interpretativas sobre os horizontes normativos que orientam a práxis científica no campo?

Se olharmos com atenção, veremos que parte dessas respostas já está em curso, desde que se começam a adotar combinações de métodos (os chamados estudos quanti-quali) e a formação de equipes multiprofissionais para pesquisas interdisciplinares e intersetoriais. Mas é preciso compreender quais horizontes normativo-proposicionais estão embasando esse movimento. Talvez o movimento de expansão do campo normativo que visa o social na saúde, do nacional para o global2222 Biehl J, Petryna A. When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press; 2013., seja também uma forma importante de identificar a facticidade que realmente importa para pensar o espaço público hoje. Por outro lado, talvez a perspectiva dos Direitos Humanos2323 Ayres JRCM. Health and human rights: contributions of hermeneutics to a necessary dialogue. Glob Public Health. 2022; 1-11. doi: 10.1080/17441692.2022.2113814.
https://doi.org/10.1080/17441692.2022.21...
, e não a da sociedade “higienista”, seja um horizonte discursivo fecundo para construir exigências e condições de validade científica mais capazes de fazer dialogar o normativo com o proposicional no campo da Saúde Coletiva no cenário atual.

Não temos, evidentemente, como antecipar o futuro do campo da Saúde Coletiva. Talvez ele possa até vir a desaparecer como tal. Mas enquanto houver, naqueles que encontramos na busca de uma saúde efetivamente coletiva, um sentido prático-moral para nossa atividade científica, então teremos razão suficiente para buscar identificar nossas tribos, seja em que território estiverem, e aldear.

  • (b)
    “A higiene é o estudo das relações sanitárias do homem com o mundo exterior e dos meios de fazer contribuir essas relações à viabilidade do indivíduo e da espécie” (Tradução livre deste autor).

Referencias

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    » https://doi.org/10.1080/17441692.2022.2113814

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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