Os desafios dos Polos de Desenvolvimento na perspectiva dos atores sociais locais de Goiana, Pernambuco

Challenges of Development Poles in the perspective of local social actors of Goiana, Pernambuco state, Brazil

Tereza Maciel Lyra Anselmo César Vasconcelos Bezerra Maria do Socorro Veloso de Albuquerque Sobre os autores

Resumos

O município de Goiana-PE, marcado por problemas decorrentes do predomínio da monocultura da cana de açúcar, vem nos últimos anos compondo a "Nova Região de Desenvolvimento Econômico do Estado de Pernambuco, Brasil", com a implantação de polos farmacoquímico e automotivo. Neste artigo, analisou-se como os atores locais percebem o atual modelo de desenvolvimento e problematizam suas demandas, a partir da identificação dos problemas socioambientais e das propostas de enfrentamento. Trata-se de um estudo qualitativo, baseado em metodologias participativas com triangulação de dados (análise documental, leitura de paisagem, autodiagnóstico das comunidades e oficinas temáticas). Os resultados apontam para um diagnóstico negativo dos indicadores socioambientais. No saneamento, constataram-se problemas de desigualdades no acesso à água potável para o consumo humano e para esfera produtiva. Na saúde, identificou-se a vulnerabilidade dos trabalhadores e da juventude, agravada pelas deficiências da rede de atenção. Na questão ambiental, diagnosticaram-se os impactos das atividades produtivas, como a carcinocultura, a monocultura e a extração mineral, que geram conflitos entre grupos sociais. Em face disso, concluiu-se que, somado às precariedades já existentes, há o risco de o município de Goiana reproduzir experiências negativas de crescimento econômico sem desenvolvimento com sustentabilidade.

desenvolvimento sustentável; participação social; crescimento; desenvolvimento


Goiana, in Pernambuco State, marked by problems arising from the dominance of monoculture of sugar cane, has been part in recent years of the "New Economic Development Region of the State of Pernambuco, Brazil", with the implantation of pharmacochemical and automotive centers. It was analyzed how local actors perceive the current development model and problematize their demands, from the identification of social environmental problems and the proposals of coping. This is a qualitative study based on participatory methodologies with data triangulation (document analysis, landscape reading, self-testing communities and thematic workshops). The results point to a negative diagnosis of social and environmental indicators. In sanitation inequalities problems in access to potable water for human consumption and for productive sphere were found. In Health, it was identified the vulnerability of workers and youth, exacerbated by deficiencies in the care network. On environmental issues, the impacts of productive activities were diagnosed, such as carcinoculture, monoculture and mineral extraction, which generate conflicts among social groups. We conclude that, added to existing fragilities, Goiana risks undergoing negative experiences of economic growth without sustainable development.

sustainable development; social participation growth; development


Introdução

Nas três últimas décadas do século XX, foram intensos os debates acerca dos projetos de desenvolvimento nas múltiplas escalas espaciais. O discurso dominante sobre a necessidade do desenvolvimento com vistas à redução das desigualdades sociais, equidade no acesso a bens e serviços e melhoria da qualidade de vida das populações, foi difundido em todo o mundo, especialmente nos países pobres. Em paralelo a esse momento, surge a crítica conceitual ao que se entende por desenvolvimento e os questionamentos sobre a efetividade desse processo na garantia dos benefícios sociais e econômicos ao mundo não desenvolvido e também à parcela excluída do mundo desenvolvido.

A questão central dessa crítica era a ideia de que desenvolvimento não significava crescimento econômico. Sobre essa divergência conceitual e operacional, vários autores buscam esclarecer o principal problema em aceitar os termos crescimento e desenvolvimento como sinônimos (SACHS, 2004SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.; VEIGA, 2005VEIGA, J.E.da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; DALY, 2004DALY, H.E. Crescimento sustentável? Não, obrigado. Ambiente &. Sociedade. São Paulo, v. 7, n. 2, p. 198-201, 2004.). Para esse grupo de pensadores, o desenvolvimento nunca pode ser medido pelo potencial ou efetivo crescimento econômico de um determinado território, uma vez que está atrelado a aspectos qualitativos, que incluem variáveis sociais, econômicas, ambientais e culturais. Ao contrário, a compreensão de desenvolvimento como sinônimo de crescimento dá ênfase aos aspectos econômicos produzidos num território e analisados de forma quantitativa.

Ressalta-se, contudo, que não há exclusão entre os termos. Estes devem ser compreendidos e utilizados de formas diferentes. Amartya Sen (2000)SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. entende que o crescimento econômico é um dos meios para se atingir o desenvolvimento, desde que esse processo esteja centrado na capacidade de escolhas dos indivíduos em ter acesso aos bens e serviços necessários para uma vida plena e digna. Ratificando essa ideia, o desenvolvimento não é apenas um processo de acumulação e de aumento de produtividade macroeconômica, mas principalmente o caminho de acesso a formas sociais mais aptas a estimular a criatividade humana e responder às aspirações da coletividade (FURTADO, 2004FURTADO, C. Os desafios da nova geração. Revista de Economia Política. São Paulo, v.24 n. 4, p. 483-486, 2004.).

Essa discussão conceitual, que se prolonga até hoje, também influenciou e foi influenciada pelo surgimento no final da década de 1960 do movimento ambientalista, que veio agregar a questão socioambiental ao debate econômico. Um dos marcos desse momento foi a publicação do Relatório Limites do Crescimento, que introduziu a finitude na discussão econômica, de uma nova perspectiva (NOBRE, 2002NOBRE, M.; AMAZONAS, M. de C. (Orgs.). Desenvolvimento Sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília: IBAMA, 2002.). Um dos principais objetivos desse Relatório foi apresentar a proposta do crescimento zero, numa tentativa de mostrar ao mundo que os recursos naturais não suportariam o ritmo do crescimento econômico imposto pelo modelo capitalista vigente.

Como resultado do amadurecimento dessa discussão, foi publicado no ano de 1987, o Relatório Nosso Futuro Comum, que trouxe como centralidade o conceito de desenvolvimento sustentável. Tal conceito traduz a possibilidade do crescimento econômico associado à conservação dos recursos naturais com vistas às gerações futuras. Entretanto, existem muitos questionamentos sobre a operacionalização desse conceito. Discutem-se quais as razões que nos levam a julgar necessária a qualificação de sustentável ao desenvolvimento (VEIGA, 2005). Para o autor, o "uso do termo sustentável para qualificar o desenvolvimento sempre exprimiu a possibilidade e a esperança de que a humanidade poderá, sim, se relacionar com a biosfera de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos de 1970" (VEIGA, 2014, p. 19).

Ainda segundo Veiga (2014), a consagração da retórica sobre o desenvolvimento sustentável, que deu origem ao valor sustentabilidade, está ratificada na atual discussão sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que a Organização das Nações Unidas (ONU) pretende adotar em substituição aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Para ele, a essência da sustentabilidade está "numa visão de mundo dinâmica, na qual transformação e adaptação são inevitáveis, dependendo de elevada consciência, sóbria precaução e responsabilidade diante dos riscos e das incertezas." (VEIGA, 2014, p. 19).

Corroborando com esse debate, Cantú-Martínez (2015) defende que a promoção do desenvolvimento sustentável deve estar baseada na ética do cuidado, pensada a partir de duas escalas temporais: a do presente, no qual os benefícios do desenvolvimento devem atingir a todos por igual, e a do futuro, assegurando que esses benefícios também estarão disponíveis para todos. Nesse sentido, Veiga (2014) destaca a governança global e a cooperação como caminhos possíveis para a materialização do desenvolvimento sustentável.

Partindo para uma abordagem metodológica, Mauerhofer (2008)MAUERHOFER, V. 3-D Sustainability: An approach for priority setting in situation of conflicting interests towards a Sustainable Development. Ecological Economics, v. 64, p. 496-506, 2008. sugere pensar o desenvolvimento sustentável a partir das três dimensões da sustentabilidade: a econômica, a social e a ambiental. O modelo que defende está baseado no processo de tomada de decisão em situações de conflito de interesses. Para ratificar a pertinência da abordagem, utiliza exemplos em diferentes escalas espaciais, desde acordos de cooperação global a políticas locais.

O fato é que os avanços nos campos epistemológico e metodológico acerca do desenvolvimento sustentável não foram absorvidos na prática. No Brasil, por exemplo, nos últimos cinquenta anos, o modelo de "desenvolvimento" implantado se deu à custa de muitos impactos ao ambiente e à saúde da população (FREITAS; PORTO, 2006; RIGOTTO, 2008RIGOTTO, R. Desenvolvimento, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.). Um desenvolvimento planejado para curto prazo, a partir de estratégias que exploram pessoas e recursos naturais de forma inadequada, ecológica e socialmente, considerando essas dimensões como externalidades ao projeto central (PEREIRA, 2005PEREIRA, M.C.deB. Desenvolvimento e meio ambiente: o todo é maior que a soma das partes. Revista Plurais, Goiana, v. 1, n. 2, p. 265-272, 2005.). Assim, os processos econômicos que se materializam no território, transformando-o, são vetores de uma lógica produtiva tecnicamente fragmentada e geograficamente espalhada (SANTOS, 1999SANTOS, M. A Natureza do Espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.). Implantada verticalmente, essa lógica favorece o tencionamento das relações sociais, pois modifica a vida das pessoas e impacta o ambiente.

É no território que os projetos de desenvolvimento acontecem a partir de um arranjo de atores, que envolve as populações locais diretamente afetadas por esse processo, o poder público, com a capacidade de selecionar lugares e articular investimentos, e as empresas, que executam as ações que dão dinamismo econômico ao território. Esse fenômeno, muitas vezes, obedece a uma lógica extra local, afetando diretamente os nexos locais e transportando pressões sobre os sistemas ecológicos, gerando um processo perigoso no qual a vulnerabilidade ambiental pode aumentar com o crescimento econômico local (SANTOS, 2005).

O estado de Pernambuco, desde o início deste século, vem se destacando no cenário nacional pela capacidade de atração de múltiplos empreendimentos de impacto positivo no setor econômico, mas com consequências negativas no campo socioambiental. Esse processo elevou os índices de crescimento econômico do Estado a médias superiores às nacionais e regionais. O principal vetor desse crescimento é o Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), situado na porção sul do território, formado por um cluster de empresas dos ramos naval, petroquímico e de logística. A consolidação desse complexo ocasionou uma série de impactos e conflitos socioambientais no território, como por exemplo, a supressão de vegetação nativa e consequente eliminação das alternativas de sobrevivência de populações tradicionais de pescadores e agricultores de subsistência. Há problemas decorrentes de um grande afluxo populacional de migrantes de outras regiões do Estado e do país, que alterou toda a dinâmica urbana dos municípios do CIPS (Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca), com o crescimento significativo de problemas sociais, como o aumento no consumo de drogas ilícitas, a prostituição e a violência (PÉREZ; GONÇALVES, 2012).

Mais recentemente, Pernambuco, em parceria com atores privados, deslocou investimentos para a Zona da Mata Norte, especialmente para o município de Goiana. Até o início do século XXI, a estrutura econômica de Goiana era fundamentada na monocultura canavieira em grandes extensões de terra. Porém, nos últimos anos, o município assistiu serem implantados no seu território grandes empreendimentos, como um polo farmacoquímico, liderado pela Empresa Brasileira de Hemoderivados (Hemobrás), um polo automotivo, capitaneado pela montadora de veículos Fiat (Jeep) e outras indústrias de grande porte, como a Companhia Brasileira de Vidros Planos (CBVP). Também foram anunciados grandes empreendimentos imobiliários habitacionais, construção de hotéis, centros comerciais e de serviço.

Goiana possui 75.644 habitantes, concentrando mais de 75% nas áreas urbanas (IBGE, 2011). O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi de 0,651 no ano 2010, ocupando a 24ª posição no ranking do estado. Goiana se firmou na liderança econômica da região com Produto Interno Bruto de R$ 458 milhões no ano de 2007, cerca de 20% da riqueza gerada na Mata Norte. Embora, os dados de desenvolvimento humano e renda elevem o município à posição de destaque na região, os indicadores sociais não são bons. Por exemplo, quase 50% da população é beneficiária do Programa Bolsa Família do Governo Federal, um indicador, por si só, sugestivo de precárias condições de vida da população (EMPRESA BRASILEIRA DE HEMODERIVADOS, 2013EMPRESA BRASILEIRA DE HEMODERIVADOS. Análise Participativa da Realidade Socioambiental de Goiana. Recife: Hemobrás, 2013a.a; AGÊNCIA..., 2009).

Nesse cenário, a presente pesquisa parte do questionamento sobre as contradições desse modelo de desenvolvimento, já experimentado em outros polos no Brasil, como é o caso, por exemplo, de Macaé (CRUZ, 2011CRUZ, J. L. V da. Grandes investimentos e reestruturação do espaço regional no Norte Fluminense. In: CIRCUITO DE DEBATES ACADÊMICOS DO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS, 1., Anais...; Brasília: IPEA, 2011.Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/78527675/Anais-do-I-Circuito-de-Debates-Academicos-Sumario-II-CODE-Ipea-2011. Acesso em: 05 maio 2014.
http://pt.scribd.com/doc/78527675/Anais-...
) e Itaguaí (SANTANA; GUEDES; VILLELA, 2011SANTANA, J. S; GUEDES, C. A. M; VILLELA, L.E. Desenvolvimento territorial sustentável e desafios postos por megaempreendimentos: o caso do município de Itaguaí-RJ. Cad. EBAPE.BR, São Paulo, v. 9, n. 3, p. 846-867, 2011.), no Rio de Janeiro, e Suape em Pernambuco (PÉREZ; GONÇALVES, 2012). No caso de Goiana, buscou-se analisar como os atores sociais locais percebem o atual modelo de desenvolvimento que chega ao território, a partir da problematização de suas demandas, da identificação dos problemas socioambientais e do delineamento de propostas de enfrentamento.11 O artigo traz parte dos resultados da pesquisa intitulada Análise Participativa da Realidade Socioambiental do município de Goiana- PE, aprovada pelo comitê de ética em pesquisa do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco, Brasil (Parecer no 05/2012, aprovado em 07 de março de 2012).

Métodos

A pesquisa se desenvolveu no município de Goiana nos anos de 2011 e 2012. Trata-se de uma abordagem qualitativa, que buscou utilizar metodologias participativas, como a pesquisa baseada na comunidade (community-based research) (ISRAEL et al., 1998ISRAEL, B. A. et al. Review of community-based research: assessing partnership approaches to improve public health. Annu Rev Public Health, v. 19, p.173-202, 1998.; McALLISTER et al., 2003McALLISTER, C.L. Parents, Practitioners, and Researchers: Community-Based Participatory Research With Early Head Start. American Journal of Public Health, v. 93, n. 10, p. 1672-1679, 2003. ; SOUZA, 2000SOUZA, M.L. Desenvolvimento de Comunidade e Participação. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000. ). A essência dessa abordagem é a colaboração entre pesquisadores e membros das comunidades, na perspectiva de investigar, identificar e estudar problemas relevantes para os atores sociais locais de um dado território.

O estudo procurou integrar uma ampla variedade de evidências, viabilizada por diferentes fontes de informações e técnicas de coletas, compondo uma triangulação de dados (GOMES; MINAYO; SILVA, 2005GOMES, R.; MINAYO, M. C. S.; SILVA, C.F.R. Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. In: MINAYO, M. C. S.; ASSIS, S. G; SOUZA, E. R. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015. p. 185-221.). Foram utilizados como fontes primárias: o autodiagnóstico produzido pelas comunidades dos núcleos territoriais e o autodiagnóstico da juventude; os dados da leitura de paisagem coletados pelos pesquisadores e atores sociais locais e as oficinas temáticas. Foram fontes secundárias de informações a análise documental e dados do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2011).

Os sujeitos da pesquisa foram representantes da sociedade civil organizada, populações tradicionais (pescadores, agricultores de subsistência dos assentamentos rurais, quilombolas), representantes do movimento artístico e cultural, associações, moradores de forma geral e atores das instituições públicas. Já a equipe de pesquisadores teve caráter multidisciplinar, agregando sanitaristas, geógrafo, cientistas sociais e especialista em gestão ambiental.

Na fase de pré-campo, o município foi dividido em treze núcleos territoriais, caracterizados por áreas homogêneas por critério de proximidade geográfica, identidade cultural e situação socioeconômica, o que favoreceu uma análise desagregada da situação socioambiental e ampliou a participação dos atores locais (figura 1).

Figura 1

Houve a mobilização das comunidades por núcleo territorial, que culminou com a apresentação e discussão do projeto de pesquisa e com a indicação dos atores sociais locais que conduziriam, junto com a equipe de pesquisadores, as oficinas de autodiagnóstico em cada núcleo e a leitura de paisagem.

Nas discussões baseadas na comunidade, utilizou-se a técnica de autodiagnóstico por meio de oficinas, uma vez que essa expressa uma modalidade do fazer e que tem o sentido de experiência partilhada e de reflexão coletiva, conforme ressalta Campos (2011)CAMPOS, R.O. Fale com eles! O trabalho interpretativo e a produção de consenso na pesquisa qualitativa em saúde: inovações a partir de desenhos participativos. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1269-1286, 2011.. Tanto nas oficinas de autodiagnóstico quanto nas temáticas, os pesquisadores facilitaram as discussões e sistematizaram os resultados. Já os atores sociais locais tiveram o papel de problematizar suas necessidades e demandas a partir do processo de transformação pelo qual passa o município.

Além dos autodiagnósticos dos núcleos, no decorrer da pesquisa, optou-se por realizar o autodiagnóstico da juventude nas escolas do município, com colaboração dos professores da rede municipal de ensino, com o objetivo de incentivar a participação direta dos jovens na discussão de suas necessidades e na expressão de seus saberes.

A técnica de leitura de paisagem é um instrumento bastante utilizado pela Geografia (NICOLA, 2002NICOLA, M.P. Leitura de Paisagem - uma análise do seu papel como instrumento de abordagem participativa para diagnóstico rural rápido da realidade municipal: o caso de Santa Vitoria do Palmar. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2002.) e foi ajustado para o desenvolvimento da presente pesquisa. Consistiu em combinar e/ou confrontar o conhecimento acumulado que os atores locais tinham do território com o conhecimento resultante da observação direta da equipe técnica. Na fase de pré-campo, foram identificados informantes-chave com amplo conhecimento sobre o território para compor o grupo que conduziria a leitura de paisagem. Dentre esses, se destacaram os agentes comunitários de saúde e membros da Associação Escoteira Prof. Antonio Rufino Ribeiro. Na leitura de paisagem, priorizou-se em cada núcleo territorial levantar informações sobre a situação de uso e ocupação do solo, dos recursos hídricos e florestais, das áreas de proteção ambiental, dos potenciais conflitos socioambientais, da oferta e disponibilidade de infraestrutura urbana, dentre outros aspectos.

Somando-se à utilização de múltiplas fontes de dados, como estratégia de validação da pesquisa, realizou-se um seminário de apresentacação dos resultados até então levantados, com o intuito de partilhar o trabalho de interpretação com os participantes da pesquisa. Como resultante desse processo, foram planejadas oficinas temáticas, visando não apenas ampliar a compreensão dos fenômenos estudados, mas produzir um consenso sobre as propostas de alternativas e soluções para as questões levantadas. Além dos atores sociais dos núcleos territoriais, foram mobilizados representantes de instituições públicas locais e estadual com conhecimento sobre a problemática socioambiental da Zona da Mata Norte de Pernambuco.

O tratamento dos dados passou por um intenso e criterioso processo de manuseio de todo o material obtido nas oficinas de autodiagnóstico, na leitura de paisagem e na pesquisa documental, tendo como unidade de análise os núcleos territoriais. Trabalhou-se com análise de conteúdo do tipo temática (BARDIN, 2004BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004.). A partir das questões comuns, levantadas no autodiagnóstico e identificadas na leitura de paisagem e na análise dos dados secundários, foram realizadas as oficinas temáticas. Optou-se por triangular os resultados, sempre referindo o principal momento no qual a questão surgiu, por considerar que a discussão compartimentalizada não espelharia toda a riqueza dos achados.

Foi realizado um seminário de devolutiva, no qual se apresentaram os resultados da pesquisa, que foram disponibilizados em CD-ROM para os presentes e posteriormente para as diversas entidades da sociedade civil e política. Atualmente, os resultados estão disponibilizados na internet.

Resultados e discussão

O município de Goiana é repleto de potencialidades expressas na sua população e pelo seu patrimônio natural e cultural. A presença histórica de comunidades tradicionais, como quilombolas, pescadores e marisqueiras, é destacada pela convivência harmônica com os ecossistemas locais, representados pelos manguezais, praias, restingas e mata atlântica. Além disso, existem áreas de assentamentos rurais habitadas por agricultores familiares com o cultivo orgânico. Outra potencialidade do município é a produção do artesanato em barro e madeira e um expressivo número de artistas e atividades culturais.

A expansão urbana, em Goiana, quase sempre limitada pelos canaviais, aconteceu de forma acelerada nas últimas décadas, principalmente em função da migração das populações rurais para as periferias urbanas, fenômeno intensificado a partir da década de 1980, com a crise do setor sucroalcooleiro. Esta foi identificada pelos atores sociais locais como uma das causas do aumento das ocupações irregulares e do surgimento de favelas em todos os núcleos urbanos do município, inclusive em áreas de risco de desastres naturais.

Somando-se às vulnerabilidades decorrentes do predomínio do latifúndio e da monocultura da cana de açúcar (ANDRADE, 2001ANDRADE, M.C.O. A cana de açúcar na Região da Mata Pernambucana - Reestruturação produtiva da área canavieira de Pernambuco nas décadas de 80 e 90: impactos ambiental, socioeconômico e político. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2001. ), o município assiste à implantação de grandes empreendimentos em seu território, sem que previamente tenha havido qualquer estruturação no sentido de abrigar as novas demandas por infraestrutura, a consolidação de instrumentos de planejamento urbano que democraticamente discutam e regulamentem o uso e ocupação do solo e outros instrumentos que possam melhorar as condições de vida da população local.

Os achados da pesquisa indicam que a população de Goiana apresenta na atualidade um contexto vivenciado por outros territórios, que recebem grandes investimentos econômicos, fenômeno ligado a uma lógica global de acumulação capitalista, conforme destacam autores como Pérez e Gonçalves (2012), Cruz (2011) e Santana, Guedes e Vilela (2011). Esse processo ocorre através da seleção de espaços favoráveis à implantação de grandes projetos, que não priorizam a identificação dos possíveis impactos socioambientais, bem como as necessidades da população local.

Conforme Rigotto (2008), as escolhas de localização e, não raro, de relocalização de grandes empreendimentos, em particular industriais, saudadas em geral como fonte de progresso e crescimento econômico, são responsáveis por profundas contradições, quando analisadas sob o ponto de vista das populações locais.

No caso de Goiana, apesar da expectativa da criação de emprego e renda, os achados da pesquisa apontam que parcela da população identificou as tensões daí resultantes, bem expressas no relato de um ator local durante uma oficina temática:

[...] as pessoas me dizem: tente um emprego na Fiat, mas não me interessa, quero viver da minha arte.

Experiências anteriores, como a de Macaé e outros municípios do Norte Fluminense (CRUZ, 2011), a de Itaguaí, Região Metropolitana do Rio de Janeiro (SANTANA; GUEDES; VILELA, 2011), e a de Suape em Pernambuco (PÉREZ; GONÇALVES, 2012), evidenciaram que o processo de investimento econômico no território, articulado a partir de decisões externas, propiciou ao mesmo tempo um aumento da renda média dos municípios e o crescimento de fenômenos indesejados, como a favelização, o aumento da violência e o caos na mobilidade urbana.

Os resultados apontam ainda que Goiana vem apresentando uma falta de ordenamento urbano, à qual se somam o recente fenômeno de crescimento, a mudança de perfil econômico e os anúncios de bairros planejados. Esse processo já vem se manifestando no município através da crescente especulação imobiliária, que tem deslocado os habitantes das áreas centrais para as periferias. Diante do anúncio de bairros planejados, os participantes da pesquisa temem a criação de nichos privilegiados, nos quais o acesso aos bens públicos será garantido em quantidade e qualidade satisfatórias, enquanto a Goiana tradicional, com seu rico patrimônio arquitetônico e cultural, poderá permanecer à margem dos efeitos benéficos que possam advir do crescimento econômico.

Conforme destacado pelos atores sociais locais durante as oficinas de autodiagnóstico e aprofundado durante as oficinas temáticas, o Plano Diretor tem um papel estratégico, sendo urgente a sua revisão e atualização com ampla participação da sociedade civil. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Goiana foi aprovado em 2006 (Lei Municipal no 1.987/06). No entanto, naquele momento, não estavam previstos os novos empreendimentos industriais e habitacionais e nem os efeitos da expansão urbana acelerada.

Os conflitos relativos ao saneamento ambiental foram temas recorrentes em todas as etapas da pesquisa. O acesso à água potável teve destaque. Apesar de disponível em abundância e identificada como grande potencialidade do município, o acesso a esse recurso apresenta-se bastante desigual. Os dados oficiais apontam que 65% dos domicílios estão ligados à rede geral de abastecimento; porém, além da irregularidade, identificou-se que significativa parcela da população busca soluções alternativas, tais como a perfuração de poços e utilização das águas de nascentes sem nenhum tratamento, aspecto identificado durante a leitura de paisagem e ratificado pela população durante as oficinas. As falas dos atores durante o autodiagnóstico foram emblemáticas:

[...] tem encanação, mas não tem água.

[...] sobrevive quem pode cavar poço. Quem não pode, compra água.

A precariedade de acesso à água leva ao uso inadequado de um bem necessário, seja para o consumo humano, como bebida e para preparo de alimentos, seja para uso cotidiano (higiene pessoal, do ambiente, etc.). Como salientam Pontes e Schramm (2004)PONTES, C. A. A; SCHRAMM, F. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 1319-1327, 2004., o acesso à água mediante poços, cacimbas ou outros meios não garante a qualidade necessária para a proteção à saúde das populações.

O não acesso ao saneamento adequado influi na qualidade de vida das pessoas, podendo levar à ocorrência de doenças e agravos tanto relacionados à inadequada higiene pessoal e doméstica, quanto causados por contato com a água contaminada. Soma-se a isso o risco de doenças crônicas (como dores nas costas) causadas pelo esforço repetido na coleta e no transporte manual da água ou em práticas inadequadas induzidas pelo não acesso em torneiras domiciliares, como a lavagem de roupa em bacia disposta em altura insuficiente ou no chão, tarefa executada, sobretudo, por mulheres e crianças (RAZZOLINI; GUNTHER, 2008RAZZOLINI, M. T; GUNTHER, W.M.R. Impactos na saúde das deficiências de acesso à água. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 21-32, 2008.). Esse fenômeno foi bem expresso em um dos desenhos do autodiagnóstico da juventude, que retrata uma mãe e seu filho com latas d'água na cabeça (figura 2).

Figura 2

A distribuição desigual do recurso, num contexto marcado por relações sociais desiguais, tem feito com que muitas indústrias se transfiram para locais ricos em água por exigirem grandes volumes em seus processos de produção, diretamente embutidos no produto, tanto num contexto internacional quanto nacional (PORTO-GONÇALVES, 2008). Goiana espelha tal situação, com grande oferta de água subterrânea (Aquífero Beberibe), um dos motivos da implantação da indústria automotiva.

Além disso, historicamente, em Goiana, a água nunca faltou para a irrigação da cana de açúcar; no entanto, durante o autodiagnóstico, os representantes dos assentamentos rurais destacaram como ter acesso à água permanece difícil:

Apesar da disponibilidade de água não se tem estrutura de captação para a produção e nem para beber.

É importante salientar que a população percebe tal contradição, na medida em que foram propostos, durante a oficina temática sobre meio ambiente, a revisão de estudos de demandas e disponibilidade da água, priorizando o consumo humano, a outorga da água subordinada ao reflorestamento e o pagamento por serviços ambientais por parte das empresas.

O esgotamento sanitário apresenta uma baixa cobertura, alcançando mais de 50% em apenas duas localidades municipais, em áreas mais centrais. Caracteriza-se pela falta de tratamento, levando à destinação inadequada dos efluentes domésticos, agrícolas e industriais. Os problemas daí decorrentes vão desde a contaminação do solo e subsolo, dos aquíferos, dos cursos de água até repercussões nas condições de saúde da população (EBH, 2013a; BEZERRA et al., 2013BEZERRA, A. C. V. et al. Condições Sanitárias no Município de Goiana-PE: construindo um diagnóstico com a participação das comunidades. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, v. 50, p. 48-56, 2013.).

Enquanto nos núcleos mais urbanizados a coleta de lixo alcança em torno de 80%, nas áreas rurais e litorâneas há uma precariedade severa, levando a soluções alternativas, como a queima ou deposição em locais inapropriados, fato observado durante a leitura de paisagem. Os desafios decorrentes dos resíduos sólidos sofrem a influência dos problemas causados pelo aterro sanitário municipal. Localizado muito próximo de um remanescente florestal, o aterro funciona em condições precárias, com a estação de tratamento do chorume e sistema de drenagem sem funcionamento adequado, levando à possível contaminação do solo.

Um segundo aterro, privado, teve sua localidade modificada em função da pressão de uma indústria de bebidas, sendo remanejado para a fronteira entre os municípios de Igarassu e Goiana, próximo do assentamento rural Ubu, situação destacada pelos assentados como problema, na medida em que temem que um acidente aconteça. Apesar das garantias dadas por especialistas, com respaldo de autoridades ambientais, de que as condições técnicas de controle e mitigações de impactos ambientais estão previstas em caso de desastre, a falta de precisão das informações e de diálogo, tanto por parte dos empreendedores quanto dos órgãos fiscalizadores, contribui para que os assentados se sintam ameaçados e questionem a viabilidade ambiental do empreendimento (SILVA, 2009).

Convém lembrar que não se identificaram durante os trabalhos de campo em Goiana, nenhuma estratégia de coleta seletiva, associações de catadores ou outras estratégias de gestão dos resíduos sólidos.

Também não foram identificadas, no decorrer da pesquisa, propostas de gerenciamento dos resíduos industriais e dos bairros planejados a serem implantados no município. Para Gouveia (2012)GOUVEIA, N. Resíduos sólidos urbanos: impactos socioambientais e perspectiva de manejo sustentável com inclusão social. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 6, p. 1503-1510, 2012., só o enfrentamento coordenado e integrado dos problemas relacionados ao gerenciamento de resíduos sólidos, entre atores diversos (esfera pública, população e empresas locais), poderá apontar para a redução dos impactos severos ao meio ambiente e consequentemente, à qualidade de vida das pessoas.

Para os atores sociais locais, as questões relacionadas ao acesso à agua, resíduos sólidos e destino de dejetos precisam ser enfrentadas urgentemente e de modo coordenado. Para tanto, foi ressaltada a necessidade da elaboração e implementação do Plano Municipal de Saneamento Básico e do Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, incluindo a coleta seletiva para aproveitamento de recicláveis.

O município de Goiana tem duas unidades de conservação: a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de Tabatinga e a Reserva Extrativista (Resex) Acaú-Goiana. Embora identificadas pelos atores sociais locais como potenciais, inclusive turísticos, não foram consideradas capazes de responder às necessidades de preservação dos ecossistemas existentes. As reservas têm papel estratégico para a proteção do solo e do relevo, manutenção dos recursos hídricos superficiais e recarga dos aquíferos subterrâneos. Porém, o desmatamento, a cultura da cana, a extração de madeira e mais recentemente a implantação de loteamentos, vêm causando impactos ambientais. A Resex Acaú-Goiana é utilizada por populações tradicionais que exercem o extrativismo; logo, os danos causados a ela interferem na capacidade de preservação da cultura e dos meios de vida da população extrativista.

Durante as oficinas, representantes das atividades da pesca artesanal de Goiana ressaltaram o impacto ambiental causado pelas usinas, indústrias, esgotos domésticos e pela carcinocultura, que têm reduzido a produção, além de agredirem os manguezais. Ademais, enfatizam que a pesca artesanal está ameaçada pela inexistência de legislação que delimite seu território estratégico. Os problemas ambientais, levantados por pescadores e pescadoras durante as discussões na oficina temática, têm sido identificados em todo o litoral pernambucano (AGÊNCIA..., 2008; PÉREZ; GONÇALVES, 2012).

Os tanques de criação de camarão e jazidas minerais com vida útil esgotada foram apontados como os passivos ambientais mais significativos do município, aspecto também ressaltado por Araújo e colaboradores (2007), e claramente observados durante a leitura de paisagem. Também se observou a supressão da vegetação de praia e restinga, causada pela implantação de empreendimentos imobiliários e pelo crescimento desordenado dos núcleos urbanos.

As potencialidades turísticas do território estão ligadas ao patrimônio histórico, arquitetônico, cultural e natural. Goiana possui grupos de forte tradição ligada à cultura indígena, como os Caboclinhos, destacando-se, dentre outros, os de Caetés, Canindé, Carijós, Sete Flechas e Tabajara, e assiste na atualidade ao surgimento de novos grupos e atividades (EBH, 2013b). Nas oficinas temáticas, foi destaque a preocupação com o crescimento econômico e a possível supremacia dos interesses das empresas sobre os bens culturais (material e imaterial), conforme relatos dos atores sociais locais a seguir:

[...] O rápido crescimento econômico do município pode levar ao esvaziamento dos grupos culturais, principalmente quando se tem um baixo investimento público para a cultura.

[...] Não é possível que o município permita que as empresas mexam no calendário cultural de Goiana.

No momento da pesquisa, uma das novas grandes empresas pressionava o poder público para a redução de feriados vinculados à cultura local, como a comemoração do dia de São Pedro. Ademais, registrou-se a incipiente atuação do poder público no que diz respeito à implantação de uma política voltada para o segmento da arte e da cultura. Consequentemente, dentre as propostas surgidas durantes as oficinas estão a criação do Plano Municipal de Cultura e Turismo e do Conselho Municipal de Cultura e Turismo.

De modo geral, a estrutura de saúde foi caracterizada como insuficiente em cobertura e complexidade para atendimento da demanda local, destacando-se a necessidade de ampliação da rede, considerando a capacidade instalada, a perspectiva de crescimento populacional e de seu envelhecimento. Diante dessa situação, os atores sociais locais identificaram a necessidade de elaboração do Plano Diretor de investimentos para estruturação de uma rede regional de assistência de média complexidade e efetiva regulação regional.

Dentre as questões consideradas como desafios para o setor saúde estão a ausência de política voltada para a saúde do trabalhador e, consequentemente, a necessidade de sua estruturação, que deve levar em conta o duplo perfil produtivo. Pode-se considerar que os trabalhadores municipais estão expostos a velhos e novos riscos à saúde decorrentes do modelo de desenvolvimento recente e dos processos produtivos tradicionais.

No contexto da cultura canavieira do Nordeste do país, historicamente, os trabalhadores estão expostos às queimadas da cana, às jornadas exces sivas de trabalho, à exposição ao sol, à alimentação inadequada, ao transporte inseguro, à desvalorização financeira, aos riscos de acidentes e aos fatores psicológi cos, expressos na forma de descontentamento, estresse e ansiedade (ABREU et al., 2011ABREU, D. et al. A produção da cana-de-açúcar no Brasil e a saúde do trabalhador rural. Revista Brasileira de Medicina do Trabalho. São Paulo, v. 9, n. 2, p. 49-61, 2011.). No âmbito da indústria automotiva, estudos como o de Lima e Batista (2003)LIMA, M. E. A; BATISTA, M.A. As novas exigências de qualificação e a saúde no setor automotivo. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 9, n. 13, p. 159-164, 2003. indicam o crescimento de casos de alcoolismo, de distúrbios mentais e de LER/Dort, além dos casos de surdez e leucopenia. Esse padrão de desgaste aparece junto com as inovações tecnológicas e as exigências de mercado da atual indústria automotiva.

Para os participantes da oficina temática de saúde, em particular os atores públicos, a saúde do trabalhador de Goiana enquanto política pública deverá atuar conforme a Política Nacional (BRASIL, 2012), na promoção e proteção da saúde dos trabalhadores e na redução de morbimortalidade decorrente das atividades laborais, mediante ações de promoção, vigilância, diagnóstico, tratamento, recuperação e reabilitação.

Três aspectos importantes, que vieram à tona em diferentes etapas do trabalho de campo, merecem ainda destaque: a prostituição infantil, agravada com o fluxo de trabalhadores temporários, o crescimento da drogadição e do consumo de álcool e a violência, que atingem, sobretudo, a parcela mais jovem. Como exemplo, citamos as falas, fortes de significado, dos atores sociais, expressas durante o autodiagnóstico dos núcleos:

O desemprego gera a prostituição, e, em virtude disso, tem até mães estimulando a prostituição das filhas.

Há um grande número de pessoas usando e vendendo drogas, jovens e adultos. Porque não têm o que fazer.

Para os atores, fazem-se prementes a ampliação da rede CAPS e a implantação de ao menos um CAPS Alcool e Drogas atuando de forma integrada com a rede básica de saúde.

A população identificou a relação entre a escalada da violência e do consumo de drogas e álcool com a falta de expectativa da juventude e de ofertas de lazer ou outras atividades para os jovens. Chama atenção a colocação de um ator público local:

[...] a proliferação da droga gera violência entre crianças e adolescentes.

Vale salientar que Goiana ocupa a 24ª posição dentre os 100 municípios do país com maiores taxas de homicídios de crianças e adolescentes - 44,9/100 mil habitantes (JACOBO, 2012JACOBO, W.J. Mapa da Violência 2012: crianças e adolescentes no Brasil. Rio de Janeiro: FLACSO, 2012.).

Para a população e professores da rede pública, as escolas não incorporam atividades relacionadas à arte, cultura, tecnologia e esporte que as tornem mais atrativas aos jovens. Muito menos o poder público apresenta propostas inclusivas da parcela jovem da sociedade. A evasão escolar em Goiana é significativa (15% até o nono ano e de 43% na Educação de Jovens e Adultos - EJA), o que agrava a situação de vulnerabilidade dos jovens. Diante disso, ganham relevância as propostas concebidas pelos atores sociais locais durante as oficinas, sobre a criação de planos intersetoriais entre saúde, educação e assistência social e esporte, lazer e cultura, o que chama atenção para o compromisso e a capacidade analítica e propositiva da população goianense.

Outros aspectos relacionados à educação, tanto no que tange à insuficiente estrutura existente, quanto aos desafios lançados diante do crescimento populacional previsto para Goiana, foram ressaltados. A taxa de analfabetismo caiu de 36,6%, em 1990, para 18,3% em 2010; porém, o município mostra ainda dados preocupantes, com áreas rurais com taxas acima de 50% (IBGE, 2011). A merenda escolar foi identificada como um problema de dimensão intersetorial, na medida em que é disponibilizada em quantidade, qualidade e equilíbrio nutricional insuficiente, não incorporando, por exemplo, a produção proveniente da agricultura orgânica familiar local.

Especificamente na educação, tem-se o desafio de avançar na redução do analfabetismo e da evasão escolar, reduzindo as desigualdades sociais por microrregião, classe, gênero e raça-etnia. Portanto, foi reforçada a necessidade de reestruturação das escolas, criação de creches, melhoria dos equipamentos escolares - inclusive com criação de ambientes para atividades coletivas -, além de adequação da formação técnica dos jovens às novas demandas criadas pelo novo parque industrial. A necessidade de valorização dos professores foi enfatizada, não só em relação aos aspectos salariais como na necessidade de sua formação continuada.

Atualmente, observa-se que o município de Goiana apresenta várias carências, construídas por um modelo de produção socialmente excludente e com significativos impactos socioambientais. A síntese dos resultados aponta que a nova dinâmica econômica em curso no território está gerando diversas expectativas e tensões na população local, que anseia que os resultados desse processo gerem, de fato, uma maior possibilidade na capacidade de escolhas dos indivíduos (SEN, 2000), garantia fundamental para uma vida digna e saudável.

Considerações finais

Partindo do reconhecimento de que toda ciência é comprometida, a perspectiva política da pesquisa foi de fortalecer a capacidade dos atores sociais locais na identificação e apreensão da realidade, de forma analítica e crítica, contribuindo para que exerçam seu protagonismo nos modelos de desenvolvimento em disputa no município - um baseado no crescimento exclusivamente econômico e outro que possibilite aos indivíduos ter acesso aos bens e serviços de maneira equânime e justa.

Considera-se que o desenho metodológico desta pesquisa, ao priorizar a participação social, possibilitou a quebra da invisibilidade das demandas e necessidades da maioria da população goianense. Durante os trabalhos de campo, foram evidenciadas as inquietações e, particularmente, a consciência que os atores sociais locais têm sobre os problemas atuais e a perspectiva de seu agravamento, assim como os novos problemas potenciais diante do processo de rápido crescimento vivenciado pelo município.

Vale destacar a percepção por parte dos cidadãos goianenses do significado simbólico e econômico da implantação dos novos empreendimentos. Se, de um lado, potencialmente trarão riquezas, também trazem problemas das mais diversas magnitudes. É o exemplo da identificação da rápida e desordenada expansão urbana que vem ocorrendo em Goiana, sem que tenha havido um redesenho do seu Plano Diretor, discutido com a sociedade civil organizada, sobretudo a apropriação do território por grandes empreendimentos sem a definição de áreas de interesse social. Isso porque os impactos oriundos do crescimento sem planejamento não afetam a sociedade de forma homogênea, concentrando-se, sobretudo, nas parcelas historicamente excluídas.

Conclui-se que o Estado tem atuado de forma incipiente na regulação dos processos produtivos instalados no território. As políticas públicas na região de Goiana têm se voltado para a implantação da infraestrutura necessária para a reprodução do capital, com poucos investimentos voltados para a população em geral e para as comunidades tradicionais. Historicamente, o grande capital do agronegócio foi beneficiado com recursos públicos por meio dos incentivos fiscais e de obras de infraestrutura. Na atualidade, o mesmo vem ocorrendo na esfera da cadeia produtiva da indústria farmacoquímica e automotiva, e tais questões não passam despercebidas dos atores sociais locais.

Pensar em projetos de desenvolvimento, seja em qualquer escala, é antes de tudo questionar sobre que bases será constituído esse projeto. Partindo-se da convicção que não há desenvolvimento quando há exclusão social, considera-se que o município de Goiana tem grandes desafios a enfrentar. É necessário que os resultados das novas dinâmicas econômicas implantadas no território se traduzam na conservação dos recursos naturais, na melhoria das condições de vida da população e no respeito à cultura local, cenário não identificado nos achados desta pesquisa. Em face disso, e apesar da capacidade e compromisso da população com seu município, corre-se o risco de Goiana reproduzir experiências negativas, com crescimento econômico sem desenvolvimento com justiça social e equilíbrio ambiental.22 T. M. Lyra, A. C. V. Bezerra e M. S. V. Albuquerque participaram da concepção, análise, interpretação dos dados e redação do artigo.

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  • 1
    O artigo traz parte dos resultados da pesquisa intitulada Análise Participativa da Realidade Socioambiental do município de Goiana- PE, aprovada pelo comitê de ética em pesquisa do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco, Brasil (Parecer no 05/2012, aprovado em 07 de março de 2012).
  • 2
    T. M. Lyra, A. C. V. Bezerra e M. S. V. Albuquerque participaram da concepção, análise, interpretação dos dados e redação do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2014
  • Aceito
    28 Jun 2015
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