O caso da fosfoetanolamina sintética e a preocupante flexibilização das normas sanitárias no Brasil

Cristiane Roberta dos Santos Teodoro Rosângela Caetano Sobre os autores

Há exatos 40 anos, a Lei n° 6.360 estabelecia o registro como pilar que antecede a utilização e comercialização de medicamentos no país, trazendo ao âmbito sanitário a necessidade de comprovações científicas de segurança, eficácia e qualidade dos produtos candidatos ao ingresso no mercado farmacêutico (BRASIL, 1976).

O cenário regulatório atual, não obstante, tem mostrado alguns retrocessos. O episódio recente da autorização do uso no Brasil da substância fosfoetanolamina sintética (FOS), para o tratamento de pacientes com neoplasias malignas (BRASIL, 2016), tem explicitado a vulnerabilidade regulatória a que o país está submetido. A FOS é classificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como medicamento, por ser tecnicamente elaborada e supostamente possuir propriedade terapêutica, ainda não aprovada para comercialização e uso no país. A discussão que envolveu recentemente essa substância é pautada na obtenção de medicamentos novos e não plenamente testados em pacientes com doenças terminais ou gravemente debilitantes.

É válido salientar a atribuição da Anvisa de "promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária" (BRASIL, 1999). Por essa razão, a Agência deve seguir procedimentos internacionalmente harmonizados, objetivando o cumprimento de exigências técnico-científicas para a aprovação de medicamentos, dentro de padrões éticos.

No entanto, o uso da FOS seguiu caminho diverso do preconizado. Partindo de ensaios pré-clínicos preliminares aparentemente favoráveis à substância, o pesquisador responsável decidiu, de forma independente, encapsulá-la e distribuí-la a pacientes voluntários com diversos tipos de neoplasias, por anos, mesmo sem monitoramento sistemático de eficácia/efeitos adversos, e sem a ciência da Universidade de São Paulo (USP) ou anuência da Anvisa. Adicionalmente, a entidade responsável pela produção da FOS era um laboratório de química analítica, não certificado por órgãos sanitários para a produção de medicamentos (USP, 2015).

Baseados na perspectiva sanitária, surgem alguns questionamentos: como um laboratório não credenciado junto às autoridades sanitárias consegue por tanto tempo manter a produção e distribuição não autorizada de uma substância? Por que a USP não foi acionada para discutir coletivamente a decisão unilateral tomada? Como pode uma substância que apresenta somente alguns resultados pré-clínicos favoráveis ser administrada em pacientes acometidos de diversos tipos de neoplasias, sob a possibilidade inclusive de abandono de seus tratamentos convencionais?

A RDC n° 38/2013 prevê a utilização de medicamentos em programa de uso compassivo. Esse tipo de programa consiste na disponibilização de medicamentos em qualquer fase do desenvolvimento clínico não registrados pela Anvisa, para uso pessoal de pacientes com enfermidades graves e/ou ameaçadoras da vida, desde que não exista alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país. Entretanto, estipula a obrigatoriedade do consentimento da Agência para a realização desse programa e exige a apresentação de informações de segurança e eficácia que respaldem a indicação do produto (ANVISA, 2013). Portanto, a situação da disponibilização da FOS não representa um programa de uso compassivo, conforme determinado na resolução citada.

Sob a prerrogativa do direito à saúde garantido pela Constituição, pacientes rotineiramente recorrem à via judicial para o fornecimento público de medicamentos, em alguns casos sem registro sanitário no país (GOMES; AMADOR, 2015Gomes, V. S.; Amador, T. A . Estudos publicados em periódicos indexados sobre decisões judiciais para acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 3, p. 451-462. 2015. DOI: 10.1590/0102-311X00219113.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0021911...
). Em 2015, com a midiatização do caso da FOS, observou-se grande número de liminares impetradas contra a USP para o fornecimento da substância, mesmo esta não possuindo qualquer característica representativa de medicamento para uso compassivo.

É internacionalmente notório o conflito existente no Brasil sobre esse tema. Editorial publicado em novembro de 2015 pela revista Nature expõe a fragilidade jurídica e regulatória brasileira, ao relatar a liberação do uso da FOS a partir de evidências pré-clínicas fracas e sem a realização de ensaios clínicos (NATURE, 2015). Desse modo, é necessário um olhar cuidadoso sobre a questão, visto a possibilidade de criar um precedente nocivo à saúde coletiva, na medida em que permite ao paciente com doença terminal submeter-se à incerteza de um tratamento ainda não testado. Indubitavelmente, os pacientes têm o direito legítimo de optarem por participar de tratamentos experimentais, mas desde que seja mediante protocolos bem elaborados, respeitando-se saúde e ética (NATURE, 2015; PRESCRIRE INTERNATIONAL, 2015).

A Anvisa, por sua vez, divulgou posicionamento contrário à liberação do uso nas circunstâncias apresentadas, esclarecendo que a autorização do uso da FOS infringiu preceitos básicos da legislação sanitária em vigor, como a proibição da utilização ou da entrega para o consumo de medicamentos não registrados no país. Acrescenta ainda que, apesar de o grupo de pesquisa ter apresentado produções em revistas científicas indexadas, diversos ensaios não clínicos não haviam sido realizados, como o estudo de farmacocinética, genotoxicidade e toxicidade em doses repetidas, que dariam suporte ao início da pesquisa clínica em humanos (BRASIL/MCTI, 2015).

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação anunciou, no final de 2015, investimento de R$ 10 milhões em pesquisas aceleradas relacionadas à FOS. Os primeiros resultados dos ensaios pré-clínicos com a substância, porém, foram desalentadores. Relatório sobre a caracterização do conteúdo das cápsulas de FOS por ressonância magnética nuclear apontou que somente 32,2% de seu peso eram de fato a substância fosfoetanolamina, contrariando o rotulado, 500mg de FOS. Adicionalmente, outros dois compostos possivelmente ativos - a fosfobisetanolamina e a monoetanolamina - foram detectados, bem como importante variação de peso entre as cápsulas e grande quantidade de impurezas no produto analisado. Testes realizados para avaliação da citotoxidade e atividade antiproliferativa da FOS em células humanas de carcinoma pancreático e melanoma mostraram que a substância não apresentava tais atividades (BRASIL/MCTI, 2016). Os resultados preliminares já disponíveis não representam um bom prognóstico para a realização de ensaios clínicos em humanos, muito menos para a obtenção de registro sanitário.

A partir desses achados, pode-se indagar as justificativas dadas para o aceleramento da pesquisa sobre os efeitos da FOS, assim como o volume de recursos emergencialmente deslocados, sobretudo na conjuntura de crise econômica vigente no país.

Segmentos da sociedade e parte da mídia se mostraram a favor do uso da FOS, sob a alegação de que o produto era produzido no país e de baixo custo, e que a oposição da Anvisa estaria associada aos interesses da indústria farmacêutica, por razões de mercado. Tal justificativa não se aplica, visto que o parecer da Anvisa, nessa situação, está embasado na melhor tradição sanitária.

O Congresso Nacional, pressionado pela repercussão do caso, aprovou em regime de urgência a Lei n° 13.269, que, sancionada pela Presidência, autorizava o uso da FOS por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna (BRASIL, 2016). Cabe ressaltar que a interferência dos poderes Legislativo e Judiciário sobre a competência técnico-sanitária da Anvisa reflete uma grave ameaça ao seu papel regulatório de proteção à saúde pública, deixando-a refém da opinião pública, de parlamentares e de juízes, a maioria tecnicamente leigos no assunto.

A aprovação da Lei gerou grande mobilização de diversas entidades médicas e, em 19 de maio, o Supremo Tribunal Federal deferiu a ação direta de inconstitucionalidade protocolada pela Associação Médica Brasileira, determinando que a Lei ficaria suspensa até o julgamento definitivo do tema, sem data para acontecer até a elaboração do manuscrito. No mesmo julgamento, os ministros mantiveram suspensas decisões judiciais que obrigavam o governo a fornecer a FOS.

A despeito da suspensão, a questão traz consigo os riscos da criação de uma suposta "jurisprudência", ou seja, a liberação do uso de um medicamento não aprovado no país poderia ocasionar um entendimento futuro semelhante sobre o assunto. Ademais, muitas das associações de pacientes, advogados e sociedades médicas recebem suporte de empresas farmacêuticas, os quais prestam um "serviço" importante a tais empresas, pelo poder que possuem de mobilizar a opinião pública a favor de seus pleitos. O surgimento de outros casos semelhantes à FOS poderia resultar em aceleramento do processo de desenvolvimento de medicamentos, visando unicamente à concessão de registro sanitário no país. Tal aceleramento tem importantes implicações negativas, entre elas: (i) multiplicidade de ensaios clínicos aprovados com resultados tendenciosos e baseados em evidências mais fracas e períodos de tempo menores; (ii) lacunas de informações fidedignas sobre a utilização e riscos dos medicamentos envolvidos; (iii) a simples disponibilização de novas terapias sem garantias de melhorias reais da saúde e da qualidade de vida, podendo levar ao agravamento dos quadros de doença; e (iv) geração de custos desnecessários aos sistemas de saúde (PRESCRIRE INTERNATIONAL, 2015).

Até que um medicamento seja considerado inseguro pelas autoridades sanitárias, muitas pessoas terão sido expostas. Portanto, frente aos preceitos da Lei n° 6.360, o caso da FOS mostra como o controle sanitário no país se flexibilizou, sem garantia de ganhos à saúde dos indivíduos, deixando-os à mercê de riscos irreparáveis. Não deveria ser assim.

Agradecimento

À Dra Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, pela revisão crítica do conteúdo intelectual.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2016
  • Aceito
    01 Jul 2016
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