O uso do SUS como estigma: a visão de uma classe média

The use of SUS as a stigma and a threat to life: the vision of a middle class

CAROLINA LOPES DE LIMA REIGADA VALÉRIA FERREIRA ROMANO Sobre os autores

Resumo

Acesso é um conceito central para a efetivação da universalidade do SUS, mas pouco valorizado nas publicações oficiais do Ministério da Saúde. Talvez por isso, o acesso no SUS ainda seja visto como excludente. Desde a implantação da Estratégia Saúde da Família, houve importante melhora no acesso percebido pelos usuários, embora as classes médias permaneçam excluídas do SUS, atraídas pela compra de planos de saúde privados. Esse fenômeno foi observado no território de uma equipe de Saúde da Família do bairro do Grajaú, cidade do Rio de Janeiro, tradicionalmente de classe média, cujos moradores sistematicamente recusavam cadastro e acompanhamento pela equipe. O trabalho teve o objetivo de levantar e analisar as narrativas de recusa desses indivíduos, através de análise temática e de conteúdo. Percebeu-se um estigma associado ao uso do SUS e seus profissionais, e maior confiança na compra do serviço de saúde, justificada pelo medo da falta de leitos para internação e atendimento de emergência. Além disso, as entrevistadas não se apropriaram do SUS como direito. O Brasil atravessa grave crise política, e o SUS, que sempre resistiu sob ameaça, corre ainda maior risco. É necessário que a população possa enxergar um SUS que funciona e apropriar-se dele.

Palavras-chave:
Estratégia Saúde da Família; acessibilidade a serviços de saúde; classe social; comportamento social

Abstract

Access is a central concept for achieving the universality of SUS, but little valued in the official publications of the Ministry of Health. Perhaps because of this, access in the SUS is still seen as excluding. Since the implementation of the Family Health Strategy, there has been an important improvement in perceived access by users, although the middle classes remain excluded from SUS, attracted by the purchase of private health insurance plans. This phenomenon was observed in the territory of a Family Health team in the Grajaú neighborhood, Rio de Janeiro, traditionally middle class, whose residents systematically refused registration and follow up by the team. This paper aimed to analyze the narratives of refusal of these individuals, through thematic and content analysis. It was noticed a stigma associated to the use of SUS and its professionals, and greater confidence in the purchase of the health service, justified by the fear of the lack of beds for hospitalization and emergency care. In addition, the interviewees did not appropriate SUS as a right. Brazil is under serious political crisis and the SUS, which has always resisted under threat, is even more at risk. It is necessary that the population can see a functioning SUS and take ownership of it.

Keywords:
Family Health Strategy; Health Services Accesibility; Social Class; Social Behavior

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecido internacionalmente como um sistema público universal de saúde, com vitórias ao longo de seus 30 anos de existência, segue sendo, ambiguamente, pouco conhecido e malvisto pelos brasileiros (BARROS, 2015BARROS, F. P. C. A saúde como direito: o difícil caminho de sua apropriação pelos cidadãos. In: SANTOS, R. (Org.). CONASS: para entender a gestão do SUS. Direito à saúde. 2015. Disponível em: <http://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/colecao2015/CONASS-DIREITO_A_SAUDE-ART_11B.pdf>. Acesso em: 30/5/2017.
http://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/...
; MACINKO; HARRIS, 2015MACINKO, J.; HARRIS, M. J. Brazil’s Family Health Strategy - Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. N Eng J Med, v. 372, p. 2177-2181, 2015.). A opinião pública sobre o SUS - ou sua representação social - é de um sistema burocrático, engessado, pouco resolutivo e voltado para o cuidado da população de menor nível socioeconômico, em resumo, “um sistema pobre para os pobres” (BARROS, 2015; GÉRVAS; FERNANDÉZ, 2017) - apesar do sucesso de programas de alta complexidade em todo território brasileiro, como o de transplantes de órgãos, de imunização e de tratamento do HIV/Aids.

Segundo dados do Departamento de Atenção Básica, em janeiro de 2004 existiam 19.182 equipes de saúde da família (eSF), cobrindo cerca de 35% da população brasileira. Em 2010, já eram mais de 235.000 equipes, atendendo a 60,9% do território. Em 2016, eram 266.188 equipes trabalhando com cerca de 66,6% dos brasileiros (RIO DE JANEIRO, 2016).

Dessas equipes, 14.693 estavam no Rio de Janeiro, cidade que sofreu grande expansão de cobertura pela Atenção Primária à Saúde (APS): de 16% de cobertura populacional em 2010, saltou para 70%, em 2017. Tal expansão levou as eSF, nas Clínicas da Família (CF), a estenderem sua atuação para além das áreas de menor índice de desenvolvimento humano para incluir famílias de maior poder aquisitivo, chamadas de classe média pela definição de renda familiar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Apesar do potencial dessa expansão em facilitar o acesso ao SUS e assim caminhar na efetivação da universalidade e garantia da saúde como direito, observou-se que essas famílias recusavam o cadastro e acompanhamento pelas eSF, ou procuravam as unidades para uso pontual, como transcrição de pedidos de exames ou retirada de medicação, sem permitir que a CF se tornasse um espaço de cuidado integral. Esse fato, ao não ser observado em territórios de população de classe socioeconômica mais baixa, chamou a atenção das pesquisadoras por sua ocorrência repetida, estabelecendo relações entre o acesso e os bairros de classe média do Rio de Janeiro onde havia oferta de serviços em APS.

O conceito de classe média é multidimensional, muda de acordo com o contexto de produção e trabalho e com a abordagem utilizada. Entendendo que a variável renda, sozinha, não define a classe social (COSTA, 2013COSTA, L. C. Classes médias e as desigualdades sociais no Brasil. In: BARTELT, D. D. (Org.). A “nova classe média” no Brasil como conceito e projeto político. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, 2013, p. 43-54.), podemos perceber a classe média de forma mais complexa, a partir de seu habitus: práticas cotidianas que constituem seu estilo de vida e padrões de consumo e lazer similares entre si (EDER, 2001EDER, K. A classe social tem importância no estudo dos movimentos sociais? Uma teoria do radicalismo da classe média. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 46, p. 5-27, jun. 2001.; BARATA et al., 2013BARATA, R. B. et al. Classe social: conceitos e esquemas operacionais em pesquisa em saúde. Rev Saúde Pública, v. 4, n. 47, p. 647-655, 2013.). No Brasil, o aumento na transferência de renda, inclusão social e elevação do salário mínimo aumentaram o poder aquisitivo de famílias, que emergiram da pobreza e iniciaram um padrão de consumo similar ao da classe média tradicional. Essas foram agrupadas na chamada “nova classe média” (NCM) (CHAUÍ, 2013CHAUÍ, M. Sobre as classes sociais: uma nova classe trabalhadora brasileira. In: Poverty in Focus. Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo. Grupo de Pobreza. Escritório de Políticas para o Desenvolvimento do PNUD. Brasília, 2013, p. 21-24.; ESTANQUE, 2013ESTANQUE, E. A “classe média” como realidade e ficção. Um ensaio comparativo Brasil-Portugal. In: BARTELT, D. D. (Org.). A “nova classe média” no Brasil como conceito e projeto político. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, 2013, p. 171-184.). Entretanto, autores discordam dessa denominação, pois não houve uma real mobilidade social e mudança na estrutura da sociedade, principalmente em países onde os serviços de direitos básicos ainda precisam melhorar, como o Brasil (COSTA, 2013; BHALLA; KHARAS, 2013BHALLA, S.; KHARAS, H. A angústia da classe média transborda. In: ______. Poverty in Focus. Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo. Grupo de Pobreza. Escritório de Políticas para o Desenvolvimento do PNUD. Brasília, 2013, p. 6-7.). A falta de políticas públicas seguras, a fragilidade de empregos e o endividamento pelo consumo tornam a situação dessas famílias instável (SOLIMANO, 2013SOLIMANO, A. Neoliberalismo, globalização e a classe média. In: Poverty in Focus. Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo. Grupo de Pobreza. Escritório de Políticas para o Desenvolvimento do PNUD. Brasília, 2013, p. 12-13. ).

Nesse sentido, o consumo de serviços particulares de saúde está no habitus da classe média, incorporado pelas famílias que foram categorizadas como NCM. Salm e Bahia (2013SALM, C.; BAHIA, L. Tênis, bermuda, fone de ouvido... Vai saúde e educação também? In: BARTELT, D. D. (Org.). A “nova classe média” no Brasil como conceito e projeto político. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, 2013, p. 115-123.) apontam que a NCM não renovou valores, apenas reproduziu um comportamento de consumo e significou, na prática, expansão do mercado e não transformação. Além disso, assinalam que o comportamento estatal reforça a mercantilização de direitos, ao transferir para empresas privadas a administração de bens públicos e quando representantes ministeriais falam da “insustentabilidade do SUS” e a necessidade de planos de saúde populares.

Este artigo pretende abordar o tema da recusa da população de classe média do bairro Grajaú ao cadastro e acompanhamento em uma CF, divulgando assim o resultado de um estudo qualitativo advindo de uma dissertação de mestrado profissional em APS realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano de 2017.

Metodologia

As famílias que recusaram o cadastro na CF, quando convidadas por um agente comunitário de saúde (ACS) ou outro profissional da CF, foram identificadas e convidadas a participar do estudo através de contato direto das ACS, busca ativa no território e pela internet. Foram identificadas oito famílias, que concordaram em participar. Essas responderam a entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio e posteriormente transcritas para análise de conteúdo, na vertente de análise temática, segundo Minayo (2012MINAYO, M. C. S.; GOMES, S. F. D. R. Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.). As oito entrevistadas foram mulheres, a maioria com mais de 60 anos, e todas se identificaram como pertencentes à classe média e apresentavam hábitos de lazer e consumo semelhantes. Em três ocasiões, o marido estava presente no momento da entrevista e participou pontualmente em algumas respostas fornecidas pelas entrevistadas.

O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, sob o número CAAE 59235716.7.0000.5257, e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (coparticipante), sob o número CAAE 59235716.7.3001.5279.

Optamos por transcrever diretamente a narrativa dessas pessoas entrevistadas, ofertando um valor emocional ao texto, na tentativa de sensibilizar você, leitor, para a relevância do tema.

Resultados e discussão

SUS? Existe SUS?

Muitas das entrevistadas aparentavam desconhecimento em relação ao SUS, não conheciam os serviços públicos de saúde de sua região, e uma não reconheceu a sigla:

E sobre o SUS, o que a senhora pensa sobre o SUS?

O SUS que você diz, o quê?

O Sistema Único de Saúde, nosso sistema público brasileiro (Entrevista 5).

Não, porque na verdade eu não tinha conhecimento desse serviço. Eu sabia que você trabalhava lá, né, de alguma forma, mas eu não sabia nem o que era, se tinha atendimento, essa coisa toda (Entrevista 1).

Uma constatação surpreendente foi que, apesar de a maioria dos entrevistados ter uma visão negativa do SUS - e por isso se esforçarem para pagar planos privados ou zelar pelos seus planos empresariais de saúde -, nas ocasiões em que tiveram contato e atendimento público, em geral, relataram experiências exitosas.

E foi bem atendida?

Olha... fui. Não posso dizer que não fui bem atendida. Eu dei muita sorte, né (Entrevista 1).

A entrevistada considera que o atendimento teve sucesso, mesmo assim, a concepção é que ela “deu sorte”, fazendo supor que o bom atendimento foi por acaso, não por competência usual do serviço.

Quando a sua mãe tratava no SUS, seu pai tratava no SUS, eles gostavam do atendimento? Que eles achavam do SUS?

Tinha que gostar, não tinha outro! Não tinha outro, né?

E vocês tiveram alguma dificuldade durante esse atendimento no SUS, esse acompanhamento?

Não... (Entrevista 2).

Novamente, a experiência com os serviços públicos foi positiva, entretanto, adota-se uma atitude de diminuição do serviço. No caso, a entrevistada considera que seus pais eram “obrigados” a gostar do atendimento, por falta de opção (que seria o plano de saúde privado).

Então eu acho também, a minha neta menor agora tá indo no SUS porque não estamos pagando plano de saúde pra ela. [...]. Eu não tenho o que reclamar. E a minha filha também não. Das pessoas que eu conheço e vão pro SUS (Entrevista 8).

Parece que quando as entrevistadas são atendidas em situações de emergência, ou têm contato com serviços públicos através de histórias de familiares, relatam boas experiências. Entretanto, ao longo das entrevistas, reafirmaram sua visão de mau funcionamento do sistema - mesmo sem ter experimentado essa precariedade. Repetem um discurso não vivenciado.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e publicada em fevereiro de 2011 mostrou que o SUS é melhor avaliado por quem o utiliza do que entre os não usuários do SUS - ou, pelo menos, entre aquelas pessoas que acham não utilizar o SUS. Entre aqueles que tiveram alguma experiência com o SUS, 30,4% avaliaram o serviço como bom ou muito bom; entre os que informaram nunca ter utilizado, somente 19,2% têm a mesma opinião. No caso da avaliação negativa, 34,3% dos que nunca utilizaram consideram o SUS ruim ou muito ruim, contra 27,6% dos que já utilizaram (DE LAVOR et al., 2011DE LAVOR, A.; DOMINGUEZ, B.; MACHADO, K. O SUS que não se vê. Revista Radis, n. 104, p. 9-17, abr. 2011. ).

Um trabalhador de um dos prédios da área da CF relatou o mesmo. Quando perguntado sobre os planos de saúde, afirmou ter um ‘planinho de saúde’ que julga ser muito bom, mas acha o SUS 90% melhor. Quando perguntado se as pessoas do prédio usavam a CF, afirmou:

...tem um preconceito da classe alta, porque não quer se misturar com o pessoal da comunidade [...]as pessoas que falam do SUS são as que nunca usaram o SUS.

Ao encarar o SUS sem conhecer suas particularidades, as entrevistadas não enxergaram os diferentes níveis de complexidade do sistema e sua abrangência em termos de serviços, entendendo o atendimento na APS como comparável ao dos serviços emergenciais e hospitalares. A falta de aprofundamento na questão possivelmente decorre da falta de interesse pelo SUS.

Precariedade: a faceta visível do SUS

O contato com o SUS parece melhorar a opinião do usuário sobre ele, mas no caso das entrevistadas, mesmo o bom atendimento não esmoreceu a visão negativa que possuíam sobre o SUS. A certeza sobre a precariedade do sistema parece sedimentada em seu imaginário, talvez pelo uso pontual e esparso que fazem do sistema; talvez por uma disposição quase visceral de desacreditar no que é público no Brasil.

Em uma das entrevistas, um casal que possui plano empresarial de saúde há cerca de 40 anos emitiu percepção positiva sobre o SUS, já que seus familiares o utilizaram para procedimentos de alta complexidade, como transplante, UTI neonatal, tratamento oncológico, grupos de educação em saúde e tratamento de tuberculose. Mesmo assim, viam o SUS como precário, pois o casal afirmava amiúde que não usava o SUS para “ ...não ocupar o lugar de quem precisa”, repetindo um discurso sobre a insuficiência do sistema, justificado com frases como: “Os postos são muito cheios”, mesmo não os frequentando pessoalmente. A representação solidificada no imaginário do casal não parecia ser compatível com a experiência relatada.11Para preservar o anonimato dos entrevistados, foram adotados nomes fictícios, que neste artigo estão assinalados com asterisco.

A senhora falou que a sua irmã transplantou lá no Fundão também, né?

É, transplantou no Fundão.

[...] Então, as experiências que a senhora teve no sistema público, no SUS ali no hospital do Fundão, foram como?

Maravilhosas! A minha irmã começou a fazer diálise [...]no Fundão, aí ela começou a se tratar com eles, foi assim, mas foi uma coisa maravilhosa. Meu irmão foi assim, operou, meu irmão teve tuberculose quando ele trabalhava no Caju, ficou internado naquele hospital que tem em Jacarepaguá, era super bem tratado.Minha mãe, no Hospital de Bonsucesso, ambulância ia buscar a gente em casa pra ver minha mãe. [...] E essa criança nasceu na Maternidade Escola da UFRJ, porque ela nasceu prematura. [...] Olha, eles me ensinaram tudo, de limpar, tudo. Foi maravilhoso. Tanto que o nome dela é Dione* por causa da enfermeira de lá, o nome dela é Dóris Dione*. [...] e graças a Deus fui muito bem tratada lá. E ela ficou lá, sendo coisa, até dois anos (Entrevista 8).

Parece que, apesar dos relatos de boas experiências no SUS, estas não foram suficientes para sensibilizar o casal entrevistado em conhecer o atendimento da CF do bairro, que continua sendo a segunda opção, já que o plano de saúde do casal, como a entrevistada descreve durante a entrevista, “é o melhor que tem”.

Uma das entrevistadas conhece e frequenta a CF, procurando vacina para as filhas e atendimento para ela e o marido. Elogiou o ambiente da CF, pois encontrou mais proximidade na relação com os profissionais. De qualquer forma, suas filhas têm plano privado de saúde, pois, segundo ela, “com elas [as crianças] não pode arriscar”.

Às vezes o... eu gosto do... de ir ali no posto, eu acho que as pessoas têm um pouco mais de proximidade.

Você falou que é um ambiente mais acolhedor...

Aham. Mas assim, o plano não... (Entrevista 7).

Em relação ao atendimento na CF, todos os entrevistados que tiveram consultas elogiaram o atendimento, ou conhecem vizinhos que estão em acompanhamento e estão satisfeitos - com a CF do bairro e de outros bairros. Ainda assim, isto pareceu ser insuficiente para instigar os entrevistados a procurar o serviço para atendimento, ou repensar sua posição negativa sobre o SUS.

A sua filha também tá querendo usar a clínica aqui então?

É, ela queria, porque é mais fácil, né? Aqui pertinho. E também pelo atendimento, que ela achou que foi bom, com o pai dela, ela gostou. Poxa, que não sei quem, amiga dela, que veio aí também, todo mundo que vem, gosta do atendimento (Entrevista 5).

Reiterando que em alguns dos casos os entrevistados nunca foram à clínica, mas conheciam pessoas que foram; dessa maneira, quando perguntados o que acreditavam que os vizinhos pensavam sobre o atendimento, diziam que todos aprovaram. No entanto, durante os relatos, aparentavam descrença na informação dada pelo vizinho, como na entrevista abaixo. Nesse caso, chamou-nos a atenção que a entrevistada apontou para os vizinhos que estavam passando na rua com ar de superioridade, delimitando uma separação entre ela e eles, durante a entrevista. Mais tarde, explicou que os vizinhos que passaram a usar a CF não eram da mesma classe social que ela.

É. Mas... tem um pessoal por aqui que tá indo lá, acho que tá satisfeito (tom de voz de descrença) (Entrevista 3).

O preconceito e a vergonha associados ao uso do SUS

Uma das entrevistadas havia perdido recentemente sua cobertura privada de saúde, por impossibilidade de continuar pagando. Em vista disso, seu marido e duas filhas passaram a frequentar a CF e elogiaram o atendimento. Entretanto, ela mesma ainda não tinha ido ao serviço, e ao ser questionada sobre isto, demonstrou muita resistência em ter atendimento no SUS, afirmando que “o preconceito quanto ao atendimento público é muito grande”, em parte justificado pela precariedade da estrutura hospitalar pública que vivenciou, quando seu pai ficou internado no SUS. No caso dessa entrevista, notamos que o seu descontentamento com o serviço privado (que procurou, assim que pôde, pagar) se transformou em cobrança e exigência de melhorias. Já o descontentamento com o sistema público se transformou em rancor.

A senhora estava contando que está inscrita lá (na clínica da família), mas não está frequentando agora. [...]

Eu não, mas a impressão deles (marido e filhas) foi a melhor possível. Eles gostaram muito. [...] Chegou a fazer exames pelo SUS. Eu tô fora. Mas a família em si... quem frequentou, né? Gostou (Entrevista 4).

Apesar da aprovação do serviço da CF, o mesmo é considerado como uma segunda opção: recorre-se a ela na impossibilidade de pagar o plano de saúde. Essa sensação de descensão social pode explicar em parte o uso da expressão com conotação negativa para se referir ao uso do SUS: “dançou” todo mundo. Recorrer ao SUS é visto como sinônimo de fracasso: “dançou”, na linguagem popular.

E tem mais pessoas daqui do bairro que a senhora conhece que foram?

Quem é que foi lá? Calíope*, Euterpe*, Talia*... eu não sei... Erato*, a Urânia*, ela é até professora da UERJ, de enfermagem, e ela... todo mundo, isso aí dançou todo mundo. [...]

E o que elas falaram de lá?

Ah, elas também. Todo mundo falou bem, ninguém falou mal (Entrevista 4).

Apesar das experiências negativas relatadas em duas entrevistas, o verdadeiro motivo que parece estar por trás da resistência em ir à CF é o preconceito com o SUS.

O sistema público de saúde é entendido como um local para tratamento de pessoas que não têm dinheiro para pagar pelo privado. Dessa forma, ser usuário do SUS é um motivo de vergonha, e não orgulho, pois está associado a um estigma social. Em nossa experiência, percebemos essa vergonha quando pacientes que moravam em prédios se recusavam a receber os ACS ou pediam que eu não contasse aos vizinhos que estavam frequentando a CF.

Observamos também que durante a coleta de dados, ao falar sobre a CF, a maioria dos moradores respondia com agressividade. De fato, tratavam-me com mais cortesia quando eu me apresentava como médica, mas todos disseram não precisar perder tempo com informações sobre a CF, pois tinham plano de saúde. Em uma das casas, a empregada doméstica disse que a ACS já havia oferecido o cadastro aos moradores, mas “eles recusaram porque são muito nariz em pé”.

Percebemos que há preconceito com o serviço público. Por exemplo, em uma entrevista, a entrevistada já tinha tido contato com alguns profissionais da CF, sua impressão sobre eles foi positiva, mas não se interessou em conhecer o serviço, pois achava que o atendimento que receberá será ruim. Nesse caso, o preconceito com o sistema público ficou em evidência, e a contradição entre a realidade vivida pelas pessoas e a representação que têm sobre o SUS também.

Mas nesse dia que você desceu no elevador com as pessoas que trabalhavam lá [na CF]. O que você sentiu quando eles perguntaram?

Muita cortesia, muita cortesia, achei eles muito bem afeiçoados, muito comunicativos, convidativos, mesmo. [...]

E se precisasse, você acha que iria na clínica da família, aceitaria esse convite dessas pessoas que encontrou no elevador?

Com certeza, com certeza. Mesmo sem convite. Se eu necessitasse eu ia correr lá. Mesmo sem convite, mesmo sem saber como é. Se eu tivesse necessidade eu ia correr lá. Gostaria de ser bem atendida. Mas de antemão você já sabe que... é difícil ser bem atendida.

Mas você achou que as pessoas estavam simpáticas?

Simpáticas e cumprindo direitinho o ofício deles e tudo o mais. Aí me falaram que vinham ali periodicamente e eu acreditei. Falei: muito interessante isso (Entrevista 1).

A entrevistada abaixo nunca foi atendida em nenhum serviço público de saúde, mas não acreditava em sua mãe quando ela afirmava gostar do atendimento que recebia no SUS.

A minha mãe frequenta, sempre frequentou. A minha mãe tem 88 anos, e ela sempre frequentou o SUS. E ela sempre dizia pra gente; não vejo nada diferente do seu plano de saúde pro meu SUS. Ela sempre falou isso. Eu digo: ah, mãe, peraí. Que isso? (Entrevista 4).

Em outro contato, com outra moradora do Grajaú, que desconhecia a CF, ela relatou que não achava que a eSF teria adesão dos moradores do bairro, afinal, “...a classe média é cheia de pessoas orgulhosas que não aceitam nem doação de móveis, seria ultrajante”.

Nesse caso, o direito à saúde pública universal parece ser visto como um favor, um ato filantrópico, uma doação aos mais necessitados, não o exercício do direito como cidadão. Essa mesma moradora, quando questionada sobre os impostos que paga e seu direito ao SUS, responde que: “Se meu imposto puder ser revertido para pessoas que não podem pagar, eu acho ótimo”, mesmo que ela própria não desfrute dos serviços, para “não tomar o lugar de quem não pode pagar pelo plano”, o qual, na verdade, seria a primeira opção. Nessa entrevista, foi muito reforçada a preferência por um serviço customizado, residencial, exclusivo - em detrimento a um serviço coletivo.

Como é pra senhora ver essa coisa da classe média frequentando o SUS?

Eu acho que deve... na cabeça das pessoas deve estar muito difícil isso. Porque a gente foi acostumado a, não vou lá, tenho meu médico. [...]

E a senhora nunca usou o SUS. Sua mãe usava, seu pai, as filhas usam...

Não, eu nunca usei.

Nem vacina?

Não! Meus filhos eu vacinei todos em clínicas particulares, nunca vacinei ninguém no SUS, nunca fiz nada, entendeu? Nunca quis fazer nada. Desde que eu me entendi por gente, fui trabalhar fora, paguei meu plano de saúde (Entrevista 4).

Uma das entrevistadas trabalha em uma clínica privada e tem vergonha de contar à dona dessa clínica que frequenta a CF, pois acredita que sua chefe também teria vergonha por ter suas funcionárias, que trabalham em uma empresa privada, frequentando o SUS.

Aí, não tem plano de saúde, sou obrigada a... ah, eu quero ir no médico [...] eu falo pra gerente que eu trabalho com ela: tô precisando ir no médico, tu não conhece ninguém pra fazer uma cortesia, não? Ela num instante arranja. Não tem plano de saúde, é uma vergonha pra ela, não dar plano de saúde pros outros, tem dinheiro pra caramba, a dona da empresa. A minha chefe, ela fala: ah, quer ir, vê se atende com o meu cartão, mas eu não gosto de ir com o plano dos outros. [...]

E se a senhora falasse com a médica lá que é dona da empresa que a senhora vem na clínica e gostou muito da clínica da família, [...] Você acha que ela vinha?

Ela vir? Pra que, pra ser atendida? Aaah, mas não vem mesmo, nem pra passar, nem passa aqui.

Por quê?

Os médicos normalmente são muito esnobes. Tem alguns que.... mas, não chega a esse ponto não.

Aqui é mais a galera do povão.

Eu acho que são os médicos que estão começando, que se sujeitam assim a trabalhar nesses hospitais públicos, porque quando ele monta um consultório, ele cai fora (Entrevista 5).

Muitas entrevistadas entendiam que a CF atendia somente a moradores da comunidade próxima ao bairro, não a qualquer um do território:

Até julgava que fosse pra comunidade, porque ali é praticamente dentro de uma comunidade, né? (Entrevista 1).

Então pra classe média, usando a clínica lá, pode ser uma coisa um pouco...

É, eu acho... é...fica uma coisa meio difícil, primeiro porque as pessoas têm uma noção assim, eu vou entrar dentro de uma comunidade, [...]Eu acho que existe esse preconceito da gente também, a gente tem um pé na frente e outro atrás das coisas, o que pode acontecer (Entrevista 4).

Usar o SUS é ser estigmatizado: saúde pública é direito ou filantropia?

Nas duas entrevistas abaixo, percebe-se que as entrevistadas procuraram mostrar que as pessoas que conhecem e fazem uso da clínica da família estão socialmente afastadas delas: não são da família, não são amigas próximas.

Você conhece alguém que já procurou (a clínica da família)?

(Silêncio) olha, eu... conheço, mas assim, não tenho intimidade, não tenho... conheço pessoas de vários lugares que eu já frequentei e tudo o mais, que vão aos postos de saúde, mas não sei detalhes, sei que vão, mas não sei detalhes. [...]

Essas pessoas que você conhece, que vão em postos de saúde, são pessoas também da classe média?

Não. Não são totalmente pobres, mas são uma classe abaixo da média.

Você conhece alguém da classe média que vá na saúde da família?

Não! [...]

E elas (as amigas) vão em posto de saúde também?

Não! (Entrevista 1).

Nas duas entrevistas a seguir, a relação feita entre classe social e uso do SUS fica mais evidente:

Então eles não quiseram? (os vizinhos da entrevistada)

Não sei se não quiseram...Mas eles tinham um plano, depois perderam o plano, entendeu? Agora eu sei que eles estão cadastrados lá.

E o que a senhora acha disso, de eles estarem usando a clínica agora?

Ah, aquele negócio, né? Agora tão indo mesmo por necessidade, né. Porque não têm mais plano. [...]

Mas você acha que eles perderam poder aquisitivo, é isso?

É [...] Aliás, a maioria que tá entrando é porque tá perdendo o plano e não pode pagar, né? Tá difícil mesmo.

Mas aí a senhora não acha que eles estão tirando o lugar de outras pessoas, com menos dinheiro ainda? Só seguindo seu raciocínio.

É. Bom, eles não estão na mesma situação que eu, tá? Tão com dificuldade, então... aí é o caso, né? Se eu entrar, vou estar tirando o lugar de um outro que tá precisando mais. Realmente agora eles tão precisando (Entrevista 3).

E tinha alguma coisa além disso de ter o pé atrás com o SUS, por causa das histórias negativas, algum outro motivo (para não ir à clínica da família) além do espaço? Quando pensou, quando ela (a ACS) veio aqui e falou... Assim, porque o rosto que a senhora fez foi de estranhamento.

É. É. É. Eu falei assim: mas porque... não, foi até a pergunta que eu fiz. Porque que vocês estão num bairro aparentemente, né... bem residencial, bem assim, vocês fazendo esse tipo de coisa? Porque na minha concepção isso seria feito dentro de uma comunidade, por uma pessoa, né, pras pessoas de lá! Não estariam fazendo assim pras pessoas normais do asfalto, ainda mais num bairro como o bairro do Grajaú. Quer dizer, se você tá num outro bairro, apesar de ser um bairro, você tá lá num Méier, você tá numa coisinha assim, num outro tipo de bairrozinho, você ainda vê a possibilidade, mas você tá num bairro do Grajaú, que é um bairro de classe média razoável. Então você já pensa assim: não tem como fazer pesquisa. Porque, vai chamar pra ir por SUS (entonação de descrença/desdém)? Aqui, eu... na minha concepção, todo mundo tinha plano de saúde por aqui. Eu achava que todo mundo tinha plano de saúde. Só quando eu fiquei sem o meu também eu acabei vendo que não é bem por aí, né? Mas a gente achava que todo mundo ia ter seu plano de saúde, que aqui não estava com necessidade de eles irem, só o pessoal da comunidade. Ela disse: não, é pro pessoal da comunidade e pro pessoal do asfalto. As duas coisas. [...]

É o mesmo medo... preconceito com os serviços do SUS?

Exatamente. Exatamente, A gente é muito preconceituoso mesmo, a gente tem preconceito e a gente achou que era alguém que queria fazer uma propaganda dizendo que tá lá no asfalto, procurando alguém, porque é o que você deduz (Entrevista 4).

Nessa fala, a entrevistada aborda não só o preconceito com o SUS, apontado como um serviço destinado a pessoas mais pobres, mas também uma diferenciação entre as pessoas que moram nas comunidades e as pessoas denominadas como “normais”, que moram no asfalto. É salientado, aqui, como usar o SUS pode ser estigmatizante. Também aponta para uma relação que aparece muitas vezes ao longo da entrevista: a relação existente entre ser da classe média e ter um plano de saúde. Parece ser um objeto de consumo obrigatório à essa população.

No trecho abaixo, a entrevistada ressalta que, para que fosse até a CF, ela teria que estar dentro do Grajaú. Apesar de ela morar a menos de um quilômetro da CF, a distância torna-se proibitiva. Uma clínica dentro do Grajaú, destinada a atender só aos seus moradores, seria mais aceita. Os moradores da comunidade dos Macacos teriam que ser atendidos em uma clínica separada. Novamente, surge a cisão social.

Mas o que teria que mudar pra senhora passar a ir lá? [...]

Eu achava, assim... aqui no Grajaú, né? Tão dizendo que vão fazer uma aqui dentro.

É, na Caçapava.

Vão fazer mesmo? Eu achava que tinha que ter mais proximidade da casa das pessoas, assim mais perto, essa tá lá.

Essa tá dentro do antigo Jardim Zoológico.

É, vai atender mais o pessoal do [Morro do] Macaco, pessoal todo. Aqui, o pessoal do Grajaú (Entrevista 8).

Estigma é palavra de origem grega que remete a sinais corporais que marcam pessoas consideradas diferentes. Esses sinais, mesmo físicos, guardavam relação com a moral do indivíduo (MELO, 2017; ARAGÃO, 2014ARAGÃO, P. F. P. Estigma e pobreza: reflexões sobre a assistência social em espaços de transição em Fortaleza. 2014, 55 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014. ). Atualmente, entende-se que uma pessoa estigmatizada é inferior, má, excluída moralmente e até fisicamente da sociedade (MELO, 2017), mesmo que seu estigma não esteja claramente assinalado em sua pele.

Erving Goffman (1922-1982) faz uma relação entre o estigma e o estereótipo. Para os chamados normais ou não estigmatizados, um estigma marca o indivíduo e define sua identidade ao colocá-lo dentro de um rótulo. Dessa forma, outros traços do estigmatizado, que poderiam ser aceitos e admirados, não são vistos (ARAGÃO, 2014ARAGÃO, P. F. P. Estigma e pobreza: reflexões sobre a assistência social em espaços de transição em Fortaleza. 2014, 55 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014. ).

Ao estigmatizar um indivíduo, não é necessário mais que um contato breve para o identificar: é tido como conhecido pelo mecanismo de identificação preconceituoso concebido pela sociedade. Por outro lado, a estigmatização de um grupo opera reafirmando a normalidade do outro grupo, e a sua superioridade (ARAUJO, 2011ARAÚJO, F. C. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Revista Liberdades, n. 8, p. 111-118, set.-dez. 2011.). Um indivíduo estigmatizado receia sobre sua interação social, tanto por medo do julgamento e da não aceitação, como por saber que qualquer pequeno desvio - que, para o não estigmatizado, seria relevado - pode reafirmar sua condição de “outsider” (ELIAS; SCOTSON, 2000ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.).

A pobreza, na sociedade onde o acúmulo de capital é entendido como sucesso, pode ser vista como uma condição estigmatizante. Georg Simmel (1858-1918) mostra como o pauperismo faz com que o indivíduo, desprovido de recursos, faça parte de um grupo em que há mais direito ao socorro. Entretanto, se o socorro é visto como ajuda, não há espaço para o entendimento que o serviço público é direito do cidadão, e não ajuda por compaixão (ARAGÃO, 2014ARAGÃO, P. F. P. Estigma e pobreza: reflexões sobre a assistência social em espaços de transição em Fortaleza. 2014, 55 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014. ). Então, o indivíduo desempenha o papel social de “pobre” ao aceitar o socorro do Estado, ou do poder instituído, visto como benfeitor. Sem limitar a definição de pobre à variável renda, o pobre a quem Simmel se refere é aquele que provoca a reação social ao pedir “ajuda” - ou seja, ao usufruir de direitos civis. Só assim, o pobre desempenha o seu papel social esperado: pela reação que produz na interação social (COURA, 2009COURA, C. P. Nos limiares da pobreza e do estigma: um diálogo entre Simmel e Goffman. In: _____. Juventude e Segregação urbana em Belo Horizonte: um estudo de trajetórias e representações sociais no Conjunto Taquaril. 2009. Dissertação (Mestrado) - 2009. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/nos_limiares_da_pobreza_e_do_estigma%5B1%5D.pdf>. Acesso em: 30 maio 2017.).

Nesse sentido, o Estado tem a obrigação moral de prestar o socorro a quem necessita, mas como o pobre é destituído de capacidade, estabelece-se uma relação sem reciprocidade, que define a caridade: do Estado, do cidadão que paga seus impostos, mas não os utiliza nos serviços públicos. Em vez de direito, a saúde pública é benesse. Essa confusão está presente quando uma das pessoas que participou das discussões sobre o SUS na convocação pelo Facebook responde: “Sus: me sinto com sorte de ter sido atendida satisfatoriamente todas as vezes que precisei, emergência, ambulatório e farmácia popular [...]. Eu me sinto grata, e não sei definir se sou sortuda ou privilegiada.” Fala-se em gratidão, sorte e privilégio - não em direito.

Na sociedade atual, podemos pensar que, em vez da assistência social ser vista como direito, é entendida como humilhação, ou uma desqualificação social. Necessitar do serviço público é encaixar-se em um grupo estigmatizado. O serviço público de saúde é visto como um favor do Estado àqueles que não têm recursos. Nesse sentido, serviços de assistência social podem ser vistos não como forma de equalizar a sociedade, e sim como forma de controle dos pobres, de evitar manifestações da pobreza extrema e, assim, manter a estrutura social inalterada (COURA, 2009COURA, C. P. Nos limiares da pobreza e do estigma: um diálogo entre Simmel e Goffman. In: _____. Juventude e Segregação urbana em Belo Horizonte: um estudo de trajetórias e representações sociais no Conjunto Taquaril. 2009. Dissertação (Mestrado) - 2009. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/nos_limiares_da_pobreza_e_do_estigma%5B1%5D.pdf>. Acesso em: 30 maio 2017.).

Ora, se receber assistência é degradante, diminui o indivíduo em seu papel social, e, ironicamente, fazer uso dos serviços públicos o faz ter menos direitos que os cidadãos não estigmatizados, compreende-se a resistência das entrevistadas em associar-se ao SUS. Utilizar o sistema público é um golpe a sua imagem social. Não gostariam de ser incluídas no grupo estigmatizado que faz uso do SUS, ou seja, os pobres.

Elias e Scotson (2000ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.) e Goffman (ARAGÃO, 2014ARAGÃO, P. F. P. Estigma e pobreza: reflexões sobre a assistência social em espaços de transição em Fortaleza. 2014, 55 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014. ) ressaltam que o estigma se perpetua na sociedade porque o grupo estigmatizado também incorpora o preconceito com que a sociedade os define. Há um sentimento de menos-valia no grupo estigmatizado, que é menos coeso, e sente-se inferior em relação ao grupo dominante. Esse estigma com o serviço público se confunde não só com os usuários do sistema, mas também com os profissionais que nele trabalham, facilitando que aceitem condições ruins de trabalho, sem que fiquem indignados e façam as cobranças que seriam não só necessárias, mas urgentes, como visto na entrevista 4. Além disso, faz com que os profissionais muitas vezes tenham pouco comprometimento e irresponsabilidade no cumprimento de sua carga horária e atuação profissional, como também foi visto em algumas entrevistas.

O preconceito e o estigma tornam também aceitável o reforço negativo que a mídia faz do SUS. É fácil, para os entrevistados, acreditar nas notícias sobre as calamidades públicas em geral, em saúde ou não, enquanto são muito desconfiados de notícias positivas sobre esses serviços. Infelizmente, a mídia costuma dar muita visibilidade às notícias sobre precariedade e erros do sistema público, sem dar a justa repercussão aos pontos positivos. As pessoas que não usam o SUS só têm acesso à informação sobre ele através das notícias negativas, reforçando o preconceito já existente na representação social: se é público, é ruim.

A revista Radis, publicada em abril de 2011, lembra que, em 2005, muitas instituições públicas não exibiam a logomarca do SUS, obrigatória não só na fachada dos prédios, mas também em uniformes, veículos, publicações. Além disso, boa parte da população não sabia dizer o significado do signo. Na mesma reportagem, Mario Scheffer dizia que “O lado bom do SUS é pouco conhecido, há preconceito, desinformação e até má-fé de setores que lucram com a exposição negativa dos serviços públicos de saúde” (DE LAVOR et al., 2011DE LAVOR, A.; DOMINGUEZ, B.; MACHADO, K. O SUS que não se vê. Revista Radis, n. 104, p. 9-17, abr. 2011. ).

Segundo a própria revista, há dificuldade em expor, na mídia, os sucessos do SUS, pois os pontos positivos do sistema não recebem a mesma atenção pelos jornalistas. Epidemias, filas, superlotação, falta de medicamentos são muito mostrados, enquanto sucessos no tratamento da Aids, melhora nos indicadores de saúde, rede de transplantes e doadores de medula óssea não são transmitidos com a mesma dedicação. Umberto Trigueiro, que foi diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, acha que a grande mídia tem “má vontade” em relação ao SUS. Considera que esse viés midiático é resultante da ideologia neoliberal, que incentiva a privatização, assumindo uma postura que “o público não funciona”, não só na saúde, mas também em outros serviços públicos, como os transportes (DE LAVOR et al., 2011DE LAVOR, A.; DOMINGUEZ, B.; MACHADO, K. O SUS que não se vê. Revista Radis, n. 104, p. 9-17, abr. 2011. ).

Comunicação, na grande mídia, deve ser técnica, mas tem um importante papel político. Como o SUS não investe em marketing, e os próprios gestores e profissionais não se preocupam em valorizar o “SUS que funciona”, sobressaem os aspectos negativos. Como exemplo, o antigo secretário de saúde do Rio de Janeiro, Hans Dohmann, entrevistado pela revista (DE LAVOR et al., 2011DE LAVOR, A.; DOMINGUEZ, B.; MACHADO, K. O SUS que não se vê. Revista Radis, n. 104, p. 9-17, abr. 2011. ), relata que normalmente os projetos de gestão esquecem de projetar o SUS, não dando a devida importância à comunicação estratégica: “Infelizmente não me recordo, nesse tempo em que estou diretamente envolvido com a área da saúde, de ter visto um plano de gestão voltado para a comunicação estratégica.” Ele apontou como exemplo as próprias CF, cuja expansão iniciou-se durante sua gestão. Durante a entrevista, percebe que os anúncios dos serviços das clínicas estavam sendo feitos no rádio, TV e jornal, entretanto, em nenhum momento havia menção ao SUS. Como resultado, a invisibilidade do SUS se perpetua: Hans relatou que, mesmo com placas mostrando a logomarca do SUS na entrada das clínicas, algumas pessoas perguntavam qual seria o valor do serviço.

Então tá tudo igual, nessa parte. Tá tudo igual. A gente escuta muito aí na televisão, a carência que tá os hospitais, né? Não tem isso, não tem aquilo. Tem lugar que não tem nem algodão (Entrevista 2).

Sobre isso que a senhora está falando: alguém já conversou com a senhora quando foi no SUS, essa história da senha... falou sobre isso, que tinha que pegar senha, que não tinha mais senha, alguém já conversou sobre isso?

Não. Isso eu ouvi muito nessas campanhas que fizeram aí, que falaram toda hora da senha, que chegou depois, que pegou.

Notícia de televisão, né?

É. Entendeu (Entrevista 3).

E o que está acontecendo de ruim hoje em dia no SUS? Que a senhora já viu acontecendo, já escutou falar?

Não, é tudo notícia de televisão (Entrevista 8).

Considerações finais

Nas entrevistas, percebemos sentimentos contraditórios em relação ao SUS e seu funcionamento. Ao mesmo tempo que muitos tiveram experiências positivas em contatos com os serviços públicos de saúde, a opinião geral é que o sistema é falho e precário. Em muitas falas, a certeza que o sistema não funciona e o escárnio associado a ele parecem um estigma associado ao uso do SUS, baseado em representações sociais, porém antagônico às experiências pessoais.

Em relação às opiniões sobre os profissionais trabalhando no SUS, parece que, ao incluir o profissional e os hospitais nesse conjunto denominado “público”, médico e serviço tornam-se anônimos e aparentemente inalcançáveis. A população não entende o público como direito, como um sistema passível de reprimenda e melhorias.

Há, ainda, outra observação a partir da entrevista 2, no trecho apresentado anteriormente, em que a entrevistada considera que seus pais gostavam do SUS, pois não tinham alternativa. Aqui surge uma nova variável, que é a falta de opção. Em um sistema público e universal, igual para todos os cidadãos, há menos alternativas de serviços a escolher, quando se compara à oferta de serviços privados, principalmente nos grandes centros, quando o poder de capital define a capacidade de acesso do usuário. Em uma sociedade de consumo, essa homogeneização do serviço público, ou as poucas alternativas - não relacionadas à renda -, parece refletir menor qualidade, pois limita o ranqueamento de hospitais, profissionais, serviços. A impressão seria: se todos os serviços são similares e servem a todos, todos devem ter uma menor qualidade, já que não há serviços mais exclusivos, “vips”.

No contexto atual, de sociedade virtualmente dividida entre extremos políticos, e a aparente estigmatização associada ao uso do SUS, fica a dúvida se esse sistema único para todos, que garante o direito universal à saúde mas uniformiza os cuidados, está no interesse da maior parte da população consumidora de saúde - ou, pelo menos, da maior parte da população ativa nas decisões políticas. Entretanto, se a classe média não chega ao SUS pelo preconceito, e não acredita que as classes populares possam julgar o que é bom para ela, como alcançar a opinião da classe média? A conscientização da importância de um sistema universal de saúde não é facilmente construída - afinal, até hoje não conseguimos fazê-la. Como tornar atraente à classe média a ideia de desfrutar de seus direitos civis em um serviço público?

Como visto, os serviços públicos são usados pelas camadas com menor nível socioeconômico e, em geral, a voz dos mais pobres é silenciada na mídia e opinião pública. Mesmo com melhoria no acesso e efetividade dos serviços, como aconteceu recentemente na APS no Rio de Janeiro, fica o questionamento se as classes média e alta irão acreditar neles. E se acreditarem, se aceitarão essa mescla social, ser atendido pelo mesmo médico que atende o “favelado”.

Será que as pessoas das classes média e alta acreditarão quando as pessoas das classes populares falarem: “sim, o SUS que eu frequento está funcionando”? Ou acharão que esse SUS é bom para a classe popular, mas não para si? Ou, ainda, qual subterfúgio essa classe média vai usar para continuar se diferenciando da classe popular, se todos usarem o mesmo sistema de saúde?22C. L. L. Reigada e V. F. Romano realizaram a revisão bibliográfica, coleta e análise de dados, redação e revisão final do artigo.

Referências

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  • 1
    Para preservar o anonimato dos entrevistados, foram adotados nomes fictícios, que neste artigo estão assinalados com asterisco.

  • 2
    C. L. L. Reigada e V. F. Romano realizaram a revisão bibliográfica, coleta e análise de dados, redação e revisão final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2018
  • Revisado
    13 Jun 2018
  • Aceito
    22 Jun 2018
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