Rede de Atenção à Saúde Mental: estudo comparado Brasil e Catalunha

Mental Health Care Network: comparative study between Brazil and Catalonia

THIAGO LAVRAS TRAPÉ ROSANA TERESA ONOCKO CAMPOS KAREN SARMENTO COSTA Sobre os autores

Resumo

O estudo pretende analisar e comparar as redes de atenção à saúde mental do Brasil e da Catalunha através dos componentes macroestruturais da política. Trata-se de uma revisão dos documentos orientadores da política de saúde mental do Brasil e da Comunidade Autônoma da Catalunha na Espanha. Ambos os territórios possuem leis que sustentam o modelo de saúde mental de base comunitária. Na Catalunha, a política é construída de modo mais técnico e verticalizado, influenciada pelas OMS, enquanto no Brasil a construção é ascendente, com ampla participação social na definição das ações. O financiamento na Catalunha é maior tanto na saúde global quanto, especificamente, na saúde mental; no Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde mental é área subfinanciada dentro de um sistema subfinanciado. Em ambos, o foco do financiamento vem se alterando, com maior investimento em serviços comunitários, mas a Catalunha ainda despende maior parte do financiamento para os hospitais. O modelo de gestão no Brasil ainda é, fundamentalmente, de gestão direta e na Catalunha, indireto. Ambos possuem uma rede ampla e diversificada de serviços, mas com necessidade de lidar com o contingente de moradores de hospitais psiquiátricos e avançar em mecanismos avaliativos que respondam à complexidade da política.

Palavra-chave:
sistemas de saúde; saúde mental; rede de atenção

Abstract

The study aims to analyze and compare the networks of mental health care in Brazil and Catalonia through the macrostructural components of the policy. This is a review of the guiding documents of mental health policy in Brazil and the Autonomous Community of Catalonia in Spain. Both territories have laws that support the community-based model of mental health. In Catalonia, the policy is built in a more technical and vertical way, influenced by the WHO, while in Brazil the construction is ascending with broad social participation in the definition of actions. Financing in Catalonia is greater both in global health and, specifically, in mental health; in the SUS, mental health is an underfunded area within an underfunded system. In both, the focus of financing is changing, with more investment in community services, but Catalonia still spends most of the funding for hospitals. The management model in Brazil is still, fundamentally, direct management and in Catalonia, indirect. Both have a wide and diversified network of services, but need to deal with the contingent of residents of Psychiatric Hospitals and advance in evaluation mechanisms that respond to the complexity of the policy.

Keywords:
health systems; mental health; healthcare

Introdução

A Política de Saúde Mental nos países com sistemas públicos universais de Saúde apresenta-se como um desafio na consolidação de modelos assistenciais que respondam a uma demanda cada vez mais crescente (DEMYTTENAERE et al., 2004DEMYTTENAERE, K. et al. WHO World Mental Health Survey Consortium, Prevalence, severity, and unmet need for treatment of mental disorders in the World Mental Health Organization World Mental Health Surveys. JAMA, v. 291, n. 21, p. 2581-90, 2004. ; KOHN et al., 2004KOHN, R. et al. The treatment gap in mental health care. Bulletin of the World Health Organization. Geneva, v. 82, n. 11, p. 858-66, 2004. ).

A utilização de valores classicamente utilizados no campo da saúde para avaliar a eficácia das ações (incidência, prevalência e mortalidade) não se mostra suficiente para analisar a cronicidade e a produção de “desabilidades” geradas nesse processo (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS, 2017TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R. The mental health care model in Brazil: analyses of the funding, governance processes, and mechanisms of assessment. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 51, n. 19, 2017. ). O índice utilizado pela Organização Mundial da Saúde - OMS (WHO, 2001), DALY (DisabilityAdjusted Life Years), contabiliza a morte prematura e anos de desabilidade gerados por determinada patologia. Nesse recorte, o impacto associado aos casos de saúde mental supera o de doenças cardiovasculares e é o dobro do câncer, por exemplo, sendo um dos maiores casos de incapacitações e perda de anos produtivos de vida no mundo (THORNICROFT; TANSELLA, 2008THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Quais são os argumentos a favor da atenção comunitária à saúde mental? Pesqui. Prát. Psicossociais, v. 3, n. 1, p. 9-25, 2008. ).

Essa demanda pressupõe a organização de uma política integrada em rede. A definição do melhor modelo passa por princípios organizativos legais, redefinição das instituições assistenciais, alteração na prática clínica, além da viabilidade política e de alterações estruturais que desafiam interesses corporativos e mudanças culturais (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS, 2017TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R. The mental health care model in Brazil: analyses of the funding, governance processes, and mechanisms of assessment. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 51, n. 19, 2017. ).

O avanço do conhecimento e o acesso à informação, cada vez mais amplo e irrestrito, tem impulsionado os modelos a serem influenciados por inovações tecnológicas e incorporações de novas tendências. Os organismos internacionais produzem análises, evidenciam estudos acadêmicos e buscam consensos nas mais diversas áreas, serviços e tecnologias. Tais análises têm grande ascendência na constituição dos modelos assistenciais (THORNICROFT; TANSELLA, 2008THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Quais são os argumentos a favor da atenção comunitária à saúde mental? Pesqui. Prát. Psicossociais, v. 3, n. 1, p. 9-25, 2008. ). A OMS e seus escritórios regionais, por exemplo, produzem sistematicamente informes técnicos, relatórios e análises nos quais buscam estabelecer objetivos comuns e padrões para os sistemas de saúde e também para as políticas setoriais (WHO, 2001; 2013; 2010).

Em estudo (THORNICROFT; TANSELLA, 2008THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Quais são os argumentos a favor da atenção comunitária à saúde mental? Pesqui. Prát. Psicossociais, v. 3, n. 1, p. 9-25, 2008. ) que revisou artigos científicos de todo mundo num período de 23 anos, com o objetivo de analisar as evidências quanto ao melhor modelo de atenção à saúde mental, os autores pontuaram alguns importantes consensos: o modelo de atenção ideal passou por diversas mudanças e situa-se hoje em um modelo de atenção de base comunitária, com a definição de uma gama de serviços, desde a atenção primária, incluindo a internação para casos agudos em período breve e preferencialmente em hospital geral. As análises mostraram uma diferenciação entre a organização da rede assistencial em países com muito, médio e pouco recurso, mas com diversos aspectos em comum. O fracasso do modelo manicomial, a necessidade de implantação de uma rede ampla e diversificada, o papel prioritário da atenção primária à saúde, a integração entre os pontos de atenção, uma coordenação de casos e de rede que permita uma organização sistêmica racional sem perder a particularidade da clínica, são fatores que tornam a rede de atenção à saúde mental mais resolutiva e eficaz. Além disso, existe uma diferença entre as ofertas em países com maior orçamento, o que permite um número mais amplo de serviços e programas para grupos específicos. Um alerta lançado pelos autores é a implementação de um modelo comunitário com baixo orçamento, que pode esconder uma atenção negligente e pouco estruturada, uma vez que a transição do modelo manicomial para uma atenção em rede e de base comunitária não significa uma redução dos gastos assistenciais.

Mesmo havendo consensos técnicos a respeito da melhor forma de organizar uma rede de atenção à saúde mental, haverá sempre um distanciamento relativo ao território em que esta política será desenvolvida. Tais particularidades são resultado de uma fusão de elementos culturais, históricos, econômicos, políticos etc., que fundam as bases das políticas públicas. Os sistemas de saúde refletem as opções políticas e os valores de uma sociedade diante de uma necessidade da população, e por serem processos amplos, complexos e por vezes intangíveis, torna-se necessário realizar recortes para analisá-los. A partir de políticas setoriais, é possível reduzir variáveis, especificar com mais exatidão o objeto de análise, aproximar realidades distintas e comparar com diferentes realidades, situando-as num conjunto amplo e adequando-as a partir de exemplos exitosos (CONILL, 2006CONILL, E. M. Sistemas comparados de saúde. In: CAMPOS, G. W. S. et al. (Orgs.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 563-613. ).

Propomo-nos, neste estudo, a avançar nas comparações entre duas realidades distintas, colocando em paralelo a atual política de saúde mental do SUS do Brasil com o Sistema Nacional de Saúde da Comunidade Autônoma da Catalunha na Espanha. São realidades sociais, econômicas e culturais diferentes, mas que apresentam proximidades quanto ao modelo de saúde e objetivos da rede de atenção em saúde mental, conforme discutiremos.

Metodologia

Uma das estratégias utilizadas para analisar a política de saúde é comparando-a com outra realidade, fazendo emergir evidências que podem colaborar para mudanças no processo organizativo. A importância dos estudos comparados está no fato de eles evidenciarem aspectos convergentes e divergentes entre sistemas distintos, com especificidades em seu histórico social, mas que podem compartilhar semelhanças e diferenças complementares (CONILL; FAUSTO; GIOVANELLA, 2010CONILL, E. M.; FAUSTO, M. C. R.; GIOVANELLA, L. Contribuições da análise comparada para um marco abrangente na avaliação de sistemas orientados pela atenção primária na América Latina. Rev. Bras. Saúde Matern. Infant, v. 10, supl. 1, s14-s27, 2010. ). No bojo atual dos estudos comparados em saúde, evidenciam-se aqueles “que analisam poucos casos e examinam uma temática específica a partir de uma estrutura/matriz de análise comum, e/ou uma questão teórica principal” (GIOVANELLA; STEGMÜLLER, 2014).

Para analisar uma rede de atenção à saúde, foi proposta a definição em três dimensões interdependentes: macro (sistêmica), meso (institucional) e micro (clínica). Essa divisão permite maior aproximação do objeto para análise, considerando que existe uma assimetria de forças entre as dimensões, e que a organização de uma rede de atenção necessita, invariavelmente, de uma integração entre os diferentes níveis (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS; GAMA, 2015TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R.; GAMA, C. A. P. Mental health network: a narrative review study of the integration assistance mechanisms at the Brazilian National Health System. International Journal of Health Sciences, New Delhi, v. 3, n. 3, p. 45-53, 2015.).

Neste artigo, foi analisada a dimensão macro da política, enfatizando sua organização sistêmica, no que tange a financiamento, governança, modelo e foco da gestão, mecanismos avaliativos, colocando as políticas em paralelo e compreendendo-as em seu atual estágio. Trata-se de estudo comparativo descritivo que utilizou duas estratégias metodológicas: uma revisão e análise dos documentos orientadores da política de saúde mental no ano da análise (2014), incluindo-se leis, conferências, decretos, portarias e informes técnicos do Ministério da Saúde do Brasil e dos planos de governo do Departament de Salut da Catalunha, órgão máximo do sistema de saúde da Comunidade Autônoma. Para apoiar o debate, foram incorporados artigos científicos que trouxessem avaliações do modelo de atenção à saúde mental em sua dimensão macroestrutural.

Resultado e Discussão

Aspectos do Sistema de Saúde: Brasil e Catalunha

Os sistemas de saúde brasileiro e catalão apresentam similaridades, tanto na perspectiva do processo histórico, haja vista que ambos passaram por governos militares que atravancaram o avanço dos princípios democráticos que regem os sistemas universais de saúde, quanto na organização atual do modelo de atenção, o que nos permite compará-los com o objetivo de analisar suas potencialidades e fragilidades.

O regime ditatorial militar vigorou em ambos os países, com histórias distintas, mas com consequências para as políticas de saúde muito próximas. Até o fim dos regimes e a retomada do poder pelas vias democráticas, o conceito de saúde pública era algo intangível. Os sistemas eram segmentados, organizados por caixas de aposentadoria, e não permitiam o acesso a algumas parcelas da população diante de um sistema fragmentado, pouco resolutivo e iníquo (CAMPOS; GOMEZ, 1995CAMPOS, P. M.; GÓMEZ, J. M. S. La Salud Pública durante el franquismo. DYNAMTS. Acta Hisp. Med. Sci. Hist. Illus, n. 15, p. 211-250, 1995. ). No caso do Brasil, a realidade social da época, com grande desemprego e desigualdade social, deixava a maior parte da população à margem de qualquer oferta de serviço de saúde (PAIM, 1994PAIM, J. S. A reforma sanitária e os modelos assistenciais. In: ______. Saúde coletiva: textos didáticos. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994, p. 61-81. ). O regime ditatorial espanhol terminou antes do brasileiro, quando se iniciou o processo de maior independência das Comunidades Autônomas perante o governo central espanhol.

Os avanços das políticas públicas de saúde em ambos os territórios só foram possíveis com o declínio do poder autoritário. Na Espanha, a partir dos artigos 41 e 43 de 1978, a Saúde foi reconhecida como direito e incorporada à seguridade social. Ademais, somente em 1986, através da Lei General de Sanidade (LGS), foi instituído o Sistema Nacional de Salud (SNS) com seus preceitos e diretrizes. No Brasil, o movimento legalista incorporou a construção teórico-filosófica, que ocorria desde a década de 1970, capitaneada pelo Movimento de Reforma Sanitária, reunindo a garantia à saúde na Constituição de 1988 e posterior regulamentação pelas Leis nos 8.080 e 8.142 (BRASIL, 1990a, 1990b).

Tanto o SUS quanto o SNS, estruturaram seus valores em torno de objetivos que revertessem uma lógica predominantemente hospitalocêntrica e privatista na atenção à saúde, tendo como marcos teóricos princípios comuns: universalidade; equidade de acesso; concepção integral de saúde; descentralização; participação comunitária (ESPAÑA, 1986; BRASIL, 1990a). Um marco diferencial apontado por Franco e Hernaez (2013FRANCO, S. C.; HERNAEZ, A. M. Capital social e qualidade da atenção à saúde: as experiências do Brasil e da Catalunha. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 18, n. 7, p. 1.871-1.880, 2013.) é a existência, na Espanha, de uma Lei de Coesão e Qualidade, que orienta as ações para resultados, integra as ações, baseia suas propostas em evidências científicas e orienta um pacote de serviços aos cidadãos (Atenção Primária, Especializada, Farmácia, Urgência, entre outros), definindo tecnologias e procedimentos. No Brasil, esta relação se dá por um conjunto de normativas, decretos e portarias, visando responsabilizar, na maior parte dos casos, os municípios. No Brasil, o processo de descentralização incluiu os municípios, algo raro nos países com sistemas universais de saúde, e hoje são estes os principais gestores dos recursos da saúde. Na Catalunha, o processo de descentralização foi reforçado pela criação da Ley de Ordenacion Sanitaria de Catalunya (LOSC), que estabeleceu o modelo misto de gestão da saúde, de caráter público, separando o financiamento da provisão. O federalismo fiscal é organizativo tanto no Brasil quanto na Espanha, e em ambos as políticas de seguridade têm sido, ao longo dos anos, priorizadas e geridas pelos governos subnacionais. No caso da Espanha, 92% dos gastos em saúde estão descentralizados para os governos autonômicos.

As realidades são distintas em diversas perspectivas, influenciadas por distanciamento desde a realidade socioeconômica, política, cultural e, consequentemente, da organização do modelo assistencial. Diante de aproximações e distanciamentos, ressalta-se a importância de colocarmos os modelos de saúde mental em paralelo, possibilitando-nos analisá-los sob diferentes espectros que evidenciem suas potencialidades e fragilidades, a fim de subsidiar a tomada de decisão de trabalhadores e gestores, oferecendo elementos que possam qualificar os processos organizativos da rede assistencial.

Tabela 1
Características demográficas e econômicas do Brasil e Catalunha

A organização da política na Catalunha, desde sua concepção até sua execução, inicia-se a partir das orientações do Ministério da Saúde do Governo central da Espanha (DEPARTAMENT DE SALUT, 2010). A partir dos objetivos propostos, a comunidade autônoma organiza seus processos de gestão e formulação dos pontos de atenção e estratégias assistenciais. A cada mudança de governo autonômico é lançado um “plano diretor”, tanto de saúde geral, que contém, invariavelmente, componentes da saúde mental, como específico da área. Trata-se de um plano técnico, que analisa a situação, realiza diagnóstico e faz propostas operativas para os quatro anos consecutivos. A elaboração dos planos é realizada por diretores de área, assessores e técnicos dos quadros burocráticos do governo. Tanto para sua formulação quanto para sua execução, são criados grupos de trabalho organizados por área técnica, que apoiam a definição de objetivos, apontam fragilidades, propõem mudanças e analisam a implementação. São grupos compostos por representantes de diversos segmentos: associação de usuários e familiares, patronais, governo, sociedade científica, trabalhadores (figura 1). A OMS tem grande ascendência sobre os objetivos do plano (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS; GAMA, 2015TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R.; GAMA, C. A. P. Mental health network: a narrative review study of the integration assistance mechanisms at the Brazilian National Health System. International Journal of Health Sciences, New Delhi, v. 3, n. 3, p. 45-53, 2015.).

Figura 1
Estrutura do Plano Diretor de Saúde Mental da Catalunha

A definição das políticas, no Brasil, é mais complexa e possui caráter participativo (ESCOREL; BLOCH, 2005ESCOREL, S.; BLOCH, R. A. D. As Conferências Nacionais de Saúde na construção do SUS. In: Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 83-119. ). As Conferências Nacionais de Saúde e de Saúde Mental devem ser convocadas pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, pelos Conselhos de Saúde. No caso da Conferência de Saúde, ela deve se organizar a cada quatro anos, o que vem ocorrendo desde os anos 1990. Já a de saúde mental não apresenta uma periodicidade organizada, ocorrendo quatro vezes, desde 1987, com intervalos entre sete e nove anos. Para que a instância nacional aconteça, é necessário que os Conselhos de Saúde façam as conferências municipais e estaduais, que definem, além dos rumos da política local, os delegados de usuários, gestores e trabalhadores, que têm a função de representar sua região e levar as demandas para o nível nacional. Os conteúdos das conferências são marcos que devem ser seguidos pelo Poder Executivo na operacionalização das políticas de saúde (BRASIL, 1990a).

Historicamente, a política de saúde e, por conseguinte, de saúde mental, foi construída com forte influência de movimentos sociais. Na composição do Conselho Nacional de Saúde (instância máxima de deliberação do SUS), os movimentos sociais e de usuários detêm 50% das cadeiras, numa divisão paritária com gestores, prestadores e trabalhadores. Contudo, mesmo diante de uma tradição participativa, a operacionalização tem se mostrado burocratizada, com interesses corporativos e pouca estrutura para participação efetiva (MARTINS et al., 2008MARTINS, P. C. et al. Conselhos de saúde e a participação social no Brasil: matizes da utopia; Health councils and social participation in Brazil: shades of an utopia. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 105-21, 2008. ).

A Catalunha optou por um modelo de gestão executiva, prioritariamente vertical, e vem recebendo boas avaliações quanto à qualidade, no que tange à organização em rede, à gestão regional e aos contratos de gestão entre governo e prestadores. Nesse sentido, alertam-nos Franco e Hernaez (2013FRANCO, S. C.; HERNAEZ, A. M. Capital social e qualidade da atenção à saúde: as experiências do Brasil e da Catalunha. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 18, n. 7, p. 1.871-1.880, 2013.), atribui-se a qualidade alcançada pela rede assistencial primordialmente à estrutura organizacional e ao controle de processos, sendo os atores vistos como um dos recursos da organização, os recursos humanos, que precisam ser aperfeiçoados para lograrem um rendimento máximo (p. 1.872). De modo distinto, podemos situar o processo de construção do SUS baseado na utilização do capital social como estrutura primordial, haja vista a Lei no 8.142 (participação social) e a tradição de processos de planejamento e gestão baseados nos princípios da democracia institucional (CAMPOS, 2000CAMPOS, G. W. S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Sociedade e cultura. Goiânia, v. 3, n. 1-2, p. 51-74, 2000. ; 2010).

Em análise sobre diversas comunidades autônomas realizada em 2011 (DIMENSTEIN, 2011DIMENSTEIN, M. Experiências espanholas e sua contribuição à rede de recursos psicossociais no Brasil. Estudos de Psicologia, v. 16, n. 3, p. 363-72, 2011. ), conclui-se que a rede espanhola se organiza com muita centralidade nos médicos psiquiatras e de lógica tecnicista, e identifica boas práticas de gestão da clínica. Tal dado é corroborado pelo Atlas de serviços de saúde da Catalunha, no qual fica evidente em todos os serviços de saúde mental a predominância do profissional médico em detrimento de outras formações (SALVADOR-CARULLA et al., 2010).

O sistema de governança é bastante distinto entre os dois sistemas. No Brasil, o sistema é interfederativo, com responsabilidades dos três entes federados (União, estado e municípios) (LIMA et al., 2012LIMA, L. D. et al. Descentralização e regionalização: dinâmica e condicionantes da implantação do Pacto pela Saúde no Brasil. Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, p. 1903-14, 2012. ). As políticas estabelecidas pelo governo federal tem gêande influência e orientam o modelo assistencial. Isso se dá por conta do pacto fiscal existente, em que mais de 60% do que se arrecada no país vão diretamente para a União. Os repasses, chamados “fundo-a-fundo”, são dirigidos e feitos por “blocos”, via Fundo Nacional de Saúde diretamente para o Fundo Municipal ou Estadual de Saúde, que gerencia esta verba. O repasse tem aumentado desde o fim dos anos 1990, e hoje 74% do orçamento ministerial é transferido (43% aos municípios e 31% aos estados). Vale frisar que existe, desde os anos 1980, uma redução percentual expressiva de gastos do nível federal, que hoje participa com 44% do total aplicado ao SUS (SANTOS, 2014SANTOS, N. R. SUS: o desafio social da realização das diretrizes e rumos constitucionais, 2014 (versão preliminar).), consequência da EC nº 29/2000, que aumentou a dotação orçamentária dos outros entes para saúde, através de critério mínimo de aporte para o setor (PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. S. Financiamento público da saúde: uma história à procura de rumo. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2013. ).

No caso da saúde mental, o município é o maior gestor dos recursos assistenciais. Sob sua tutela estão a maior parte dos serviços de atenção primária, especializados e, em alguns grandes centros, também o nível hospitalar, que na maioria do país é de responsabilidade dos estados. Esse tipo de organização vem reforçando a fragmentação do sistema, por termos muitos municípios com baixa capacidade de gestão e com dificuldades em estabelecer pactos regionais (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, V. E. O municipalismo brasileiro e a provisão local de políticas sociais: o caso dos serviços de saúde nos municípios paulistas. 2007. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, 2007. ; TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS, 2017TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R. The mental health care model in Brazil: analyses of the funding, governance processes, and mechanisms of assessment. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 51, n. 19, 2017. ).

Na Catalunha, o modelo se estrutura em regiões de saúde administradas pela comunidade autônoma. São ao todo sete regiões de saúde, com uma média de 1.100.000 de habitantes em cada. Cada região é dividida por áreas básicas, com um Centro de Atenção Primária (CAP) de referência, serviços ambulatoriais e hospitais com três níveis de complexidade, podendo ser suprarregional (DEPARTAMENT DE SALUT, 2010). Ficou evidente a tentativa do Ministério da Saúde brasileiro de implementar uma mudança sistêmica, com foco nas regiões de saúde (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS; GAMA, 2015TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R.; GAMA, C. A. P. Mental health network: a narrative review study of the integration assistance mechanisms at the Brazilian National Health System. International Journal of Health Sciences, New Delhi, v. 3, n. 3, p. 45-53, 2015.; TRAPÉ, 2015TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R.; GAMA, C. A. P. Mental health network: a narrative review study of the integration assistance mechanisms at the Brazilian National Health System. International Journal of Health Sciences, New Delhi, v. 3, n. 3, p. 45-53, 2015.). O modelo de governança proposto guarda as peculiaridades da legislação brasileira no que tange à autonomia dos entes federados, mas podemos afirmar que a organização em Redes de Atenção à Saúde (RAS) proposta pelo Decreto no 7.508/2011 tem muitas similitudes com o modelo catalão.

A Catalunha optou pela incorporação das unidades assistenciais já existentes no momento da criação do seu sistema público de saúde, e como consequência, existe uma série de provedores de caráter público-privado (CAMACHO; VASQUEZ, 2002CAMACHO, J. E.; VAZQUEZ, M. L. El Sistema de Salud Español. Master en gestión de centros y servicios de salud. Universitat de Barcelonas Virtual, 2002. ). No entanto, 85% da atenção primária é de gestão pública direta, com contratos laborais diferenciados, gerenciados pelo Instituto Catalão de Saúde (ICS) (ente estatal que gere a área assistencial). Na saúde mental, 95% dos provedores são instituições públicas de direito privado (associações, ONGs, organizações filantrópicas) sem fins lucrativos, que prestam serviços e são reguladas por contratos de gestão. Algumas análises na Catalunha demonstram que a multiplicidade de provedores impõe maior fragmentação na organização da rede assistencial (VARGAS LORENZO et al., 2008), mas faltam estudos mais aprofundados sobre o tema. No Brasil, os modelos de gestão também são diversos, com crescimento de contrato público-privado (MARTINS; MOLINARO, 2013MARTINS, M. I. C.; MOLINARO, A. Reestruturação produtiva e seu impacto nas relações de trabalho nos serviços públicos de saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p. 1667-1676, 2013.), principalmente como resposta à Lei Federal de Responsabilidade Fiscal, que estipula uma valor percentual máximo da receita líquida dos municípios no gasto direto na contratação de pessoal (BRASIL, 2000), e como forma de fugir da burocracia imposta pela Lei de Licitações (BRASIL, 1993).

Tanto o SUS quanto o SNS têm caráter público, universal e são financiados por impostos. No Brasil, gastam-se somente 3,8% do PIB em saúde pública contra 5,4% na Catalunha. A média de gastos da Catalunha per capita é muito superior à brasileira, com média estipulada em torno de US$ 1.500 por ano, enquanto no Brasil este valor é de cerca de US$ 400. Deste montante, 2,3% (valor de investimento federal) são aplicados em ações específicas de saúde mental, enquanto na Catalunha este investimento soma 3,5%. Contudo, a destinação do financiamento na Catalunha é de 51% para ações hospitalares e 49% para atenção comunitária; no Brasil, esta relação é de 28% e 72%, respectivamente.

A oferta de leitos hospitalares é distinta. No Brasil, o fechamento de hospitais e redução de financiamento resultaram em 19 leitos (somados hospitais monovalentes, hospital geral) para cada 100 mil habitantes (BRASIL, 2012). Na Catalunha, este índice é de 58 leitos por 100 mil habitantes. Para compararmos, na Europa, a média é de 87 leitos para 100 mil habitantes; em contrapartida, a África (continente com menos recursos para saúde mental) disponibiliza, em média, 3,4 leitos para a mesma população (THORNICROFT; TANSELLA, 2008THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Quais são os argumentos a favor da atenção comunitária à saúde mental? Pesqui. Prát. Psicossociais, v. 3, n. 1, p. 9-25, 2008. ). A rede hospitalar é distinta em extensão, mas próxima quanto ao perfil.

Uma rede equilibrada necessita de leitos de internação prioritariamente em hospitais gerais. Tanto na Catalunha quanto no Brasil, a concentração de leitos se dá em hospitais monovalentes de psiquiatria (Catalunha, 89%; Brasil, 90%), o que pode ser associado ao poder do establishment psiquiátrico em ambos os territórios, os quais iniciaram tardiamente suas reformas e contavam com uma estrutura exclusivamente hospitalar com um contingente amplo, influente e dispendioso. Também se trata de uma falha de ambas as políticas, no sentido de reorientar o foco das internações, com políticas de subsídios para hospitais gerais diferenciadas das dos leitos em instituições tradicionais. O Governo da Catalunha tem como prioridade a redução dos leitos de média e longa permanência (DEPARTAMENT DE SALUT, 2010). Isso se dá por conta do número considerado excessivo de pacientes nos serviços sociossanitários (rede de serviços não hospitalares, com foco na reabilitação), que demandam 25% de todas as vagas, além dos leitos de média e longa permanência em hospitais psiquiátricos, que somam 38 pacientes-moradores para cada 100 mil habitantes (65% de todos os leitos disponíveis).

Para isso, iniciou-se uma série de ações visando à ampliação de serviços residenciais (DEPARTAMENT DE SALUT, 2010, 2014), que são hoje 12,6 vagas para cada 100 mil habitantes, focadas para a população com deficiência intelectual, idosa com comorbidades psiquiátricas e pacientes adultos com transtorno mental severo. Para Desviat (2011DESVIAT, M. La reforma psiquiátrica 25 años después de la Ley General de Sanidad. Revista Española de Salud Pública, v. 85, n. 5, p. 427-436, 2011. ), a manutenção de muitos hospitais de larga estância é a prova de uma implantação desigual da política na Espanha, relacionada à ambivalência do governo central perante a política e fatores econômicos para implantação de serviços comunitários. No Brasil, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) estão distribuídos em 610 unidades com 2.031 moradores, média de 1,01 morador para cada 100 mil pessoas (BRASIL, 2015), e vêm contribuindo para a redução dos leitos em hospitais psiquiátricos e ampliando a capacidade resolutiva dos serviços de atenção comunitária. Contudo, o país ainda conta com um grande número de internos de longa permanência em processo de desinstitucionalização e necessitaria ampliar esses serviços (FURTADO, 2013FURTADO, J. P. Subsídios para a diversificação de moradias destinadas a pessoas com transtorno mental grave no Brasil: uma revisão. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 17, p. 635-647, 2013.). Ressalta-se que o Brasil possui um programa específico para pacientes egressos de internação psiquiátrica de média e longa permanência (Programa de Volta para Casa, regulamentado pela Lei no 10.708/2003), que disponibiliza um valor financeiro mensal para o egresso, com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares e possibilitar autonomia e reinserção social. Segundo os últimos dados (BRASIL, 2015), o programa tinha 4.349 mil cadastrados.

A análise da política de saúde mental brasileira (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS, 2017TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R. The mental health care model in Brazil: analyses of the funding, governance processes, and mechanisms of assessment. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 51, n. 19, 2017. ) evidenciou o foco atual no enfrentamento às drogas, em especial ao crack, com a proposição de um modelo assistencial com diversos pontos de atenção, utilizando a estrutura de instituições público-privadas com foco na internação (comunidades terapêuticas), que se mostra anacrônica quanto ao seu financiamento e modelo organizativo. A Catalunha também possui uma rede específica para população usuária de álcool e outras drogas (XAD - Xarxa d'Atenció a les Drogodependències) com ações desde a atenção primária, com diversas unidades comunitárias (CAS - Centros de Atención y Seguimiento a las Drogodependencias), serviços de reabilitação e leitos de internação próprios, com proposta integrada à rede de saúde mental.

As informações referentes ao destino do financiamento na Catalunha são mais claras, com sistemas de dados que possibilitam analisar os gastos com psicofármacos, atenção a pacientes crônicos, a leitos de urgência, entre outros. É possível visualizar os gastos de todo o sistema de saúde por seus diferentes componentes, estruturas, unidades e práticas assistenciais, cenário até o momento inviável no Brasil, onde o arranjo interfederativo se organiza com diferentes fontes de dados e, por conseguinte, informações dissociadas. O Brasil mostrou ter poucos recursos avaliativos incorporados às políticas de saúde mental (TRAPÉ; ONOCKO CAMPOS, 2017TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R. The mental health care model in Brazil: analyses of the funding, governance processes, and mechanisms of assessment. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 51, n. 19, 2017. ). Nesse ponto, a Catalunha apresenta uma série de indicadores, banco de dados, informações primárias que permitem maiores análises e são utilizadas como requisito para o diagnóstico da situação da rede assistencial e consequente propostas nos planos de saúde. No entanto, os mecanismos avaliativos específicos da rede de saúde mental merecem aprimoramentos (TRAPÉ, 2015TRAPÉ, T. L.; ONOCKO CAMPOS, R.; GAMA, C. A. P. Mental health network: a narrative review study of the integration assistance mechanisms at the Brazilian National Health System. International Journal of Health Sciences, New Delhi, v. 3, n. 3, p. 45-53, 2015.). Trata-se de adaptar as informações já existentes em torno dos objetivos da política.

Ademais, podemos afirmar que a Catalunha tem uma tradição de vanguarda nos mecanismos avaliativos e uma estrutura avançada para conceber um sistema que responda às demandas da política de saúde mental. Podemos inferir que o fato de a rede assistencial ser, em grande parte, composta por instituições público-privadas, impôs maior controle do Estado ante as práticas decorrentes do financiamento público. A relação entre governo e os prestadores se dá por meio de contratos de gestão, a separação entre o financiamento (público) e a provisão, definida em seu marco legal (LOSC - Lei d'Ordenació Sanitària de Catalunya), impulsiona maior utilização de mecanismos avaliativos como forma de controle das instituições e viabilidade de execução dos objetivos específicos da saúde mental.

A Catalunha oferece mais tipos de programas e serviços focalizados em algumas patologias e objetivos, como o programa contra estigma, suicídio e depressão. Segundo análise de Thornicroft e Tansella (2008THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Quais são os argumentos a favor da atenção comunitária à saúde mental? Pesqui. Prát. Psicossociais, v. 3, n. 1, p. 9-25, 2008. ), essa amplitude de ofertas especializadas é uma das diferenças entre uma rede com muitos recursos e outra com médio. Ambas possuem uma ampla gama de serviços assistenciais com objetivos diversos, principalmente na área comunitária. No Brasil, existe uma centralidade no CAPS como unidade estratégica para todas as ações assistenciais e articulações entre os pontos de atenção. No caso da Catalunha, a atenção primária assume a função de porta de entrada e estruturante da rede, sendo responsável pelo fluxo, alta resolutividade, priorização na identificação dos casos e manejo clínico para grande parte dos casos de saúde mental. A centralidade nos CAPS é conflitante com o modelo de atenção em Redes de Atenção à Saúde, o qual prioriza a APS como porta de entrada e estruturante da rede assistencial.

Tabela2
Comparação Brasil-Catalunha por componentes da Política de Saúde Mental

Conclusão

A genealogia da construção de cada uma destas políticas revela valores culturais e históricos diferentes, além de idiossincrasias muito complexas de capturar em um estudo comparativo. Todavia, por se tratar de propostas organizativas próximas e com muitos objetivos comuns, o método ganha potência e as análises ganham maior relevo, permitindo compreender o atual estágio de ambas as políticas com maior criticidade.

A comparação percentual entre o valor global, o recorte específico da saúde mental e os valores per capita reforçam as análises sobre o subfinanciamento crônico da saúde e da saúde mental brasileira. Em contraste, o foco do investimento no Brasil é mais adequado ao modelo psicossocial, com ampliação das ações comunitárias em detrimento às práticas hospitalares. Ressalta-se a necessidade de aprimorar o perfil de internação e a contínua ampliação dos programas de desinstitucionalização em voga. Podemos afirmar que o foco do financiamento no Brasil é correto, porém insuficiente. Os desafios da Catalunha passam pela ampliação desta gama de dispositivos, que permitam uma redução potencial dos moradores de hospitais psiquiátricos e menor participação do hospital na rede assistencial, ainda central.

Os sistemas de informação são pontos fundamentais na definição do diagnóstico da rede e aprimoramento nos processos de planejamento e gestão. Nesse aspecto, a Catalunha se mostra muito à frente do Brasil, desde a estruturação das bases de dados até a utilização destas fontes pelos serviços. No entanto, os dados perdem a potência se não tivermos padrões de análise consensuados. Nesse sentido, ambas as redes precisam definir mecanismos avaliativos que possam sintetizar a complexidade de seus objetivos. Quanto a isso, estudos participativos com os atores da política (trabalhadores, gestores e usuários) são importantes referenciais para defini-los.

Em ambas as redes analisadas, o processo histórico influiu no movimento de fechamento progressivo de leitos, com foco na abertura de serviços comunitários. Hoje, podemos afirmar que ambas as redes têm como objetivo um modelo equilibrado, que se define como: próximo da população, com internação em hospitais gerais, presença de equipamentos residenciais para atenção prolongada nas comunidades, serviços com atenção domiciliar, foco do tratamento tanto nos sintomas quanto nas desabilidades, atenção com projetos individuais, modelos signatários de convenções de direitos humanos (THORNICROFT; TANSELLA, 2008THORNICROFT, G.; TANSELLA, M. Quais são os argumentos a favor da atenção comunitária à saúde mental? Pesqui. Prát. Psicossociais, v. 3, n. 1, p. 9-25, 2008. ).

O método utilizado permitiu uma análise aprofundada das redes de atenção à saúde mental no nível macro da política. Como discutimos anteriormente, é necessário articular esses achados com estudos na dimensão institucional e clínica, para analisarmos a influência da política oficial e identificar possíveis vazios e incoerências. Contudo, os elementos aqui analisados são recortes e consequências do que está sendo feito nas múltiplas unidades, cotidianamente. Estudos desta natureza evidenciam, além das questões estruturais, uma fotografia do momento atual de ambas as redes em seus diversos níveis, já que as dimensões de análise são, por princípio, interdependentes.11T. L. Trapé e R. T. O. Campos realizaram a pesquisa de campo, coleta, análise e interpretação dos dados e redação do artigo. K. S. Costa redigiu o artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2018
  • Aceito
    04 Ago 2018
  • Revisado
    10 Set 2018
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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