As ciências humanas e sociais entre múltiplas epidemias

Sérgio Carrara Sobre o autor

Nessa reverberação de vozes, opiniões, análises e denúncias em torno da eclosão da Covid-19, alguém disse que o Brasil vive uma pandemia em meio a um pandemônio. Trata-se de um pandemônio ético-político que teve início bem antes da constatação dos primeiros casos da doença entre nós. Em seu âmbito, colocou-se em questão, entre múltiplos alvos, a relevância das ciências humanas e sociais, às quais se acusa de ser espécie de saber suntuário, um luxo descartável em tempos de escassez econômica. Em sua última manifestação a esse respeito, o atual ministro da Educação afirmou que ao invés de formar antropólogos, o sistema educativo brasileiro deveria ter se ocupado em formar profissionais mais “úteis”, como enfermeiros e veterinários (não sei se há nesta última preferência algum interesse particular ou pessoal...).

Estávamos, pois, antes da atual emergência sanitária, ocupados na improvável tarefa de demonstrar o óbvio, ou seja, que a separação entre as chamadas ciências hard e as ciências soft já estava em muito ultrapassada e que as humanidades e as ciências sociais brasileiras tinham desenvolvido, nas últimas décadas, tecnologias fundamentais para equacionar os múltiplos problemas nacionais - entre eles, especialmente, a profunda desigualdade social que assola a sociedade brasileira. A emergência sanitária imposta pela pandemia de coronavírus elevou para outro nível a necessidade de cooperação entre todos os diferentes campos do conhecimento, assim como demonstrou que o ethos vigente nas mais altas esferas do poder no país não é apenas anti-ciências humanas e sociais, mas anti-ciência tout court. É todo o campo científico, representado por suas mais atuantes associações, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ou a Academia Brasileira de Ciências, que vem agora reagindo com veemência aos (des)caminhos da política sanitária emanada do Governo Federal, seja em relação às formas de prevenção, seja em relação à terapia aconselhada para a Covid-19.

Tudo isso convida a reconsiderar a importância das ciências humanas e sociais de modo geral, mas particularmente na área da Saúde Pública. A cooperação entre aqueles saberes e os que se situam mais confortavelmente entre as chamadas “ciências da vida”, sobretudo a epidemiologia, acontece de modo sistemático há mais de meio século no país e é um dos exemplos mais interessantes de interação entre diferentes formas de conhecimento. Foi dessa interação que nasceu o campo da Saúde Coletiva, para cuja consolidação foi fundamental o trabalho editorial da Revista Physis. Nesse sentido, é mais que bem-vinda a iniciativa de divulgar uma série de comentários “a quente” sobre a pandemia de Covid-19 a partir da perspectiva das ciências humanas e sociais. No que segue, faço apenas breves apontamentos sobre o que me parece ser a principal contribuição das ciências sociais em contextos comparáveis e sobre como tal contribuição segue sendo crucial para enfrentar os desafios colocados pela atual pandemia. Tenho em mente, sobretudo, o que aconteceu décadas atrás em torno da epidemia de Aids.

Antes de mais nada, penso que as ciências humanas e sociais brasileiras têm desenvolvido com relativo sucesso a crítica sistemática de uma cosmovisão individualista, ainda bastante presente em certas formulações da Saúde Pública, e em cujos termos não existem “configurações sociais”, mas “populações”, compostas por indivíduos intercambiáveis e separáveis apenas em quatro grandes categorias: “susceptíveis”, “infectados”, “sobreviventes” e “mortos”. No panorama atual, essa cosmovisão continua a informar o modo como temos sido afogados por “grandes números” - 50 mil pessoas mortas nos EUA, centenas de milhares infectadas em diferentes países -, ou seja, o modo como pessoas são transformadas em estatísticas. Ela também aparece nas representações visuais que circulam em torno do modo de propagação do coronavírus. Uma dessas representações (de fato uma animação) tenta reproduzir os diferentes tempos e cenários da pandemia, conforme se adote ou não o chamado “isolamento social” (STEVENS, 2020STEVENS, H. Why outbreaks like coronavirus spread exponentially, and how to “flatten the curve”. March 14, 2020. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/graphics/2020/world/corona-simulator/?utm_campaign=wp_graphics&utm_medium=social&utm_source=twitter>.
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). Nela vemos uma série de pontinhos, representando pessoas movimentando-se aleatoriamente sobre uma superfície branca e retangular, sobre um quadro. Na medida em que se tocam, mudam de cor, indicando que teria havido contaminação. O tempo rápido da animação é a duração da pandemia, caso não sejam tomadas medidas de “isolamento social”. Outra animação comporta a mesma superfície, mas com algumas “pessoas-pontinhos” paradas. Nesse caso, é mais lento o tempo para que todos mudem de cor.

Não se trata obviamente, aqui, de negar simplesmente tais modelos, mas de problematizá-los, sustentando, como as ciências humanas e sociais já fizeram em outras ocasiões, que, orientados por essa cosmovisão individualista, eles procedem a uma tripla simplificação ou a uma tripla falácia. A primeira é a de que os pontinhos, representando indivíduos que se movem, são equivalentes uns aos outros, apenas distinguindo-se naquelas quatro categorias mencionadas acima. Não há singularidade, não há outras diferenças que remetam a outros marcadores sociais relevantes, como raça, classe, gênero, geração ou sexualidade. A segunda simplificação refere-se à ideia de que indivíduos se movimentam em uma espécie de branca planície, uma superfície plana, lisa e homogênea, contida apenas pelas bordas do quadro, cujo significado desconhecemos. Seriam as fronteiras de um país? As muralhas de uma cidade? A superfície do mundo? De onde adviria seu poder para conter tão eficazmente em seus limites as “pessoas-pontinhos”? O que haveria, afinal, para além dessas bordas? Finalmente, a última simplificação decorre das duas primeiras e diz respeito à suposição de que as “pessoas-pontinhos” e o quadro em que se movem são “coisas” ou “realidades” distintas e independentes.

De modo geral, frente a esse tipo de simplificação, mesmo com ênfases distintas, as ciências humanas e sociais têm procurado mostrar a um só tempo que (i) essa equivalência, essa intercambialidade entre as “pessoas-pontinhos” é falaciosa, uma vez que algumas delas são maiores que outras, mais velozes, mais “comunicantes”, mais resistentes a mudarem de “cor” etc.; (ii) que o espaço social onde circulam em nada lembra uma planície, uma vez que possui uma topografia ou relevo específico, às vezes bastante revolto, com fronteiras internas, espaços “naturalmente” confinados e sinuosos canais de comunicação; (iii) e que, finalmente, a própria diferenciação ou densidade diferencial de fato existente entre as pessoas e categorias sociais é produto do espaço social que simultaneamente as materializa e é materializado por elas, pelo seu incessante movimento, pela sua trajetória, pela sua direção e velocidade.

Em relação à crítica a essa cosmovisão, penso ser importante voltarmos aos tempos da Aids, para lembrar os trabalhos pioneiros que, na ABIA, em meados dos anos 1980, com apoio da Fundação Ford do Brasil, os saudosos Carmen Dora Guimarães (uma antropóloga) e Herbert Daniel (um ativista e pensador) fizeram sobre os prontuários dos primeiros pacientes e vítimas da doença no Rio de Janeiro. Foram eles que iniciaram naquele momento a “corporificação” das estatísticas, indo além da quantificação dos casos. De certo modo, dando cara e corpo às “pessoas-pontinhos” dos modelos epidemiológicos de então, iniciaram discussões fundamentais para a Saúde Pública a respeito dos caminhos (pauperização, feminização, juvenilização) da epidemia entre nós. Talvez seja o caso de perguntar ao ministro acima citado se agora serão os veterinários que irão estudar a trajetória que a pandemia da Covid-19 irá descrever na acidentada topografia social brasileira. Será a eles que a Saúde Pública perguntará como a epidemia irá acontecer nas comunidades, nas prisões, nos quilombos, entre mulheres ou populações indígenas?

Além disso, as ciências humanas e sociais também acompanharam de perto a epidemiologia e a Saúde Pública em um passo complementar ao descrito acima, quando, em relação à Aids, algumas pessoas começaram a ser agregadas nos então chamados “grupos de risco”, ou seja, em coletivos especialmente suscetíveis a serem vitimados pelo mal e a transmiti-lo. Aqui a incidência da reflexão das ciências humanas e sociais caracterizou-se muito mais pela introdução na cena da luta contra a epidemia, de uma perspectiva que problematizava processos de estigmatização e de difusão de pânicos morais e sexuais. Tratou-se de uma incidência no plano da (bio)ética, mas que teve profunda implicação no modo como os dados epidemiológicos eram produzidos e divulgados. Em questão, estava o modo como a epidemia de Aids estava sendo “domesticada” e instada a “funcionar” de modo muito preciso no âmbito de uma biopolítica que, ao final, promovia a sexualidade heteronormativa e cisgênera. Não se tratava apenas de denunciar que “epidemias” e “doenças”, enquanto empiricidades, existem em regimes discursivos que, misturando coisas a valores, materializam-nas como fatos científicos. Tratava-se de defender que os valores a ser agregados a essa “mistura” deviam pautar-se pelos direitos humanos, ou seja, pelo respeito à diferença e à dignidade da pessoa humana e pela promoção da responsabilidade social frente à doença. Tudo isso levou a uma importante discussão sobre processos de politização de doenças e epidemias, que, de certo modo, constituiu-se na força moral motora da abordagem que se convencionou chamar de “construcionismo social”. Nessa linha, lembro, ainda em relação ao contexto brasileiro da Aids, das análises primorosas de cientistas sociais como Cristiana Bastos, Kenneth Camargo, Jane Galvão, Sílvia Ramos, entre tantos outros.

No plano internacional, seria talvez interessante comparar a situação brasileira atual em torno da Covid-19, como o que descreve Didier Fassin sobre o contexto da Aids na África do Sul de Thabo Mbeki. Lá também, um governante desafiava o consenso científico internacional, colocando em risco de vida a população do país. Em ambos os casos, temos uma epidemia que se instala em contexto social fortemente dividido, intensamente polarizado e saturado de desconfianças mútuas, de medos conspiratórios e de nacionalismos exacerbados. Se “vencer uma epidemia” significa promover algum grau de consenso e união entre diferentes forças políticas, acho que estamos em maus lençóis no Brasil, assim com estavam os sul-africanos de então. Entre nós, por exemplo, uma intensa politização da pandemia e dos meios de contê-la faz com que os favoráveis ao chamado “isolamento horizontal” sejam imediatamente identificados como antibolsonaristas e os que insistem na eficácia da hidroxicloroquina sejam identificados como apoiadores do Presidente. Seja através da difusão de um perverso neo-darwinismo social, segundo o qual os mais susceptíveis à Covid-19 (pessoas mais velhas ou com problemas de saúde) devem ser abandonadas à própria sorte, seja através de fantasias conspiratórias e racistas que transformam o coronavírus em “vírus chinês”, processos comparáveis aos que vimos com a emergência da Aids voltam a acontecer no Brasil e devem ser igualmente criticados com todo o vigor.

Quando pensamos nas contribuições das ciências humanas e sociais em tempos de pandemia de coronavírus, outro ponto importante a ser destacado remete-se à reflexão sobre processos de difusão e recriação de mensagens emanadas da “comunidade científica”, ou seja, ao modo como discursos e práticas se propagam entre diferentes grupos e categorias sociais. No Brasil, por exemplo, onde parte significativa da população não é servida por água tratada ou sistema de esgoto, o que podem significar as exortações pela higiene pessoal? O que significariam apelos ao “confinamento social” em populações precarizadas, cuja reprodução social, como já se demonstrou em tantas etnografias sobre as classes trabalhadoras, depende da densidade das relações familiares, de amizade e de vizinhança? O que pode significar “fique em casa”, entre moradores de rua ou presidiários? O que pode significar “isolar os mais vulneráveis” em habitações com poucos cômodos? Essas são questões cuja resposta é urgente, como também o foram questões semelhantes que, em tempos de Aids, cientistas sociais como Daniela Knauth, Ondina Fachel Leal, Regina Facchini ou Richard Parker procuraram responder.

Enfim, penso que, com as outras ciências humanas, a contribuição das ciências sociais continua sendo, sobretudo, a de pensar epidemias e pandemias como fenômenos biopolíticos por excelência. Fenômenos que podem ser capturados ou apropriados por determinadas necropolíticas, mesmo sob a ideia de que se trata de uma ameaça a todos, à nação, à humanidade etc. Talvez devamos mesmo, como cientistas sociais que trabalhamos na área da saúde, insistir que a pandemia de Covid-19 é um problema global, uma “ameaça à humanidade”, mas não no sentido de que possa implicar a extinção de nossa espécie, e sim no sentido de que, como em outras tantas calamidades ou infortúnios coletivos, ela coloca em questão os valores que nos tornam humanos. Na Covid-19, assim como na Aids antes dela, não é a humanidade que está em jogo, mas a nossa humanidade. E, no futuro, tal humanidade será certamente medida pelo grau de solidariedade que cada sociedade conseguirá promover nessa travessia; pela força de que se reveste, em cada uma delas, o princípio de que ninguém, por qualquer razão que seja, merece ser relegado a figurar como apenas mais um número nas estatísticas letais da Covid-19.

Referência

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2020
  • Aceito
    23 Abr 2020
  • Revisado
    27 Abr 2020
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