Saúde e emancipação no Século XXI: reificação e vulnerabilidade no contexto das cibertecnologias**Comentário sobre o artigo "Epidemiologia del siglo XXI y ciberespacio: repensar la teoría del poder y la determinación social de la salud", de Jaime Breilh, para a Revista Brasileira de Epidemiologia.

José Ricardo de C. M. Ayres Sobre o autor

Foi com grande alegria que recebi o convite para comentar o instigante artigo deste querido e importante mestre da Saúde Coletiva, o Prof. Jayme Breilh. Desde meus primeiros passos na vida acadêmica aprendi, com seus trabalhos, sobre os desafios de uma prática teórica orientada pelo compromisso crítico com a emancipação humana, e a poderosa contribuição que a epidemiologia trazia e poderia trazer para esse processo. É, assim, uma enorme honra, e também responsabilidade, ter a oportunidade de participar deste debate público de mais uma original e relevante contribuição de Breilh às nossas reflexões sobre a epidemiologia e a saúde de modo geral.

Recebo este novo trabalho de Breilh no momento em que, em minha trajetória de sanitarista e pesquisador sobre atenção primária à saúde de adolescentes e jovens, vejo-me em situação de perplexidade e inquietação. Certamente não por acaso, encontro nas reflexões de Breilh forte ressonância para questões que me tenho feito a respeito dos desafios de cuidar da saúde desse grupo, relacionadas com os novos contextos de intersubjetividade e de relação público-privado nas quais vêm se conformando nossas identidades pessoais e coletivas nesta "era da Internet". E eis que Breilh, mais uma vez incitando-nos ao inconformismo e ao exercício crítico, aponta-nos as cibertecnologias e o ciberespaço como constitutivos de um novo momento da conformação econômica e cultural das sociedades capitalistas, apontando como compromisso político iniludível da universidade repensar as teorias de poder que instruem nossa compreensão sobre a determinação social dos processos de saúde-doença-cuidado.

Para além dos impactos físicos, cognitivos e afetivos que, como vêm mostrando as ciências biomédicas e estudos epidemiológicos, podem advir do uso excessivo e desassistido dos dispositivos que conectam crianças e jovens ao mundo digital, também citados por Breilh, motiva-me especialmente compreender as novas formas de sociabilidade adolescente conformadas nesta era das interações digitais. Parece-me que elas estão tornando cada vez mais distanciadas as imagens e preocupações que nós, profissionais e gestores de saúde, temos a respeito dos jovens e suas necessidades de saúde e aquelas que eles efetivamente experimentam em seu cotidiano, especialmente os jovens que vivem às margens (geográficas e simbólicas) das grandes metrópoles dos países industrializados. Esse distanciamento reduz nossas possibilidades de diálogo com essa população e, em consequência, nossa capacidade de compreender suas vulnerabilidades e produzir respostas convenientes e efetivas frente a seus projetos de felicidade11. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde 11a reimp. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2011.. O que Breilh nos oferece com seu artigo é um caminho compreensivo/interpretativo que, a partir da tradição crítica do marxismo, nos convida a pensar essas novas sociabilidades como estruturalmente determinadas por processos de acumulação capitalista, os quais se beneficiam do controle exercido ampla e capilarmente pelas cibertecnologias para diversas estratégias de produção de valor, seja se apropriando instrumentalmente de informações massivamente (e gratuitamente) produzidas pelas redes de comunicação digital, seja utilizando essas redes para induzir o consumo.

Breilh deixa claro, nessa sua hermenêutica, que a determinação econômica não deve ser entendida como uma relação mecânica e unilateral, mas como uma dialética, na qual os meios digitais são vistos também como uma possibilidade de resistência e superação da falsa socialidade, individualista e mercantilizada, que legitima e reproduz relações de dominação e exploração:

Y parece obvio que la respuesta a la subordinación cibernética no es la desconexión, que nos llevaría a prescindir de las ventajas de los herramientas cibernéticas; una alternativa que sería si no imposible al menos claramente desventajosa. Lo que debe generarse es una conciencia colectiva y una movilización desde todos los frentes para mantener el carácter abierto, neutral, democrático, solidario, no mercantil de la propuesta original de la red global, de tal manera de potenciar sus usos para el bien y frenar las tendencias para el monopolio privado y el sometimiento cultural.

É a abertura à dialética das interações no âmbito desse contexto cibernético, subjacente à proposição acima, que me parece especialmente relevante para abordar os desafios atuais da saúde, tais como o de cuidar de nossos adolescentes e jovens. Embora indissociável da dialética do trabalho, é no plano das interações que me parece residir a chave interpretativa mais fecunda para explorar a normatividade social no capitalismo avançado22. Habermas J. Trabalho e interação. In: Habermas J. Técnica e ciência como "ideologia". Lisboa: Edições 70; 1987. p. 11-43. e, de modo indissociável, a conformação das necessidades e práticas de saúde nesse contexto. Assim, sem desconhecer a relação dos regimes de poder e formas de organização cultural e institucional com os modos de reprodução material, parece claro que, pelas características mesmas dessas instâncias nas sociedades tardo-modernas, os processos de comunicação e produção de intersubjetividades assumem lugar central na construção da ordem social - fato que me parece testemunhado pela própria problemática levantada por Breilh no seu artigo. Sob essa perspectiva, para além do lugar das cibertecnologias nos processos de produção capitalista, seja no pólo da produção ou do consumo, caberá, portanto, indagar sobre o alcance e o caráter das interações intersubjetivas que estão sendo plasmadas e fortalecidas por essas tecnologias.

Os valores a que nos convida o horizonte normativo da crítica de Breilh podem ser lidos, sob essa ótica, como a busca de espaços de intersubjetividade efetivamente capazes de construir uma ordem social justa e democrática, conforme os quatro "S": Até que ponto, e em que condições, pode a tecnologia cibernética favorecer ou obstaculizar interações potentes na busca de sociedades sustentáveis, soberanas, solidárias e seguras? E, mais, se conduzirmos essa questão ao plano de práticas em que estamos especificamente interessados, cabe investigar: Qual o impacto efetivo da rede global sobre o modo como as pessoas constroem uma vida saudável no que se refere ao seu trabalho, consumo e vida doméstica, organização e suportes sociais, cultura e construção de identidade e relação com o meio ambiente?

Temos razões historicamente bem fundadas para crer que respostas a perguntas como essas não podem aspirar qualquer tipo de universalidade e positividade sem uma dose de ingenuidade, no mínimo, conduzindo-nos à arbitrariedade ou violência. Tais respostas precisam ser encontradas contrafaticamente, na relação com a experiência, a partir dos obstáculos que concretamente negam a realização dos valores que as orientam. Não se pode, portanto, esperar da epidemiologia, nem de qualquer outro ramo do conhecimento no campo da saúde, qualquer tipo de inferência a respeito de um modo, ou modos, de organização e/ou utilização da rede global que garantam diálogos bem sucedidos e produtivos na direção dos quatro "S". Contudo, e concordando com Breilh em que precisamos, sim, de novas teorias que nos ajudem a dar inteligibilidade e respostas às situações de opressão que obstaculizam a construção dessas sociedades, parece-me que a epidemiologia e as ciências sociais e humanas aplicadas à saúde podem (e devem) contribuir ao dar visibilidade às situações de interdição a diálogos interessados em tal construção, expressas em situações de adoecimento ou carecimento de cuidado.

Para que possamos caminhar nessa direção, concordo com Breilh que necessitamos revisitar as teorias sociais que temos utilizado no campo da Saúde Coletiva, seja as oriundas do marxismo, da teoria crítica frankfurtiana ou do pós-estruturalismo. Contribuições relativamente recentes em Filosofia Política33. Ricoeur P.Percurso do reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola; 2006. 44. Honneth A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais São Paulo: Ed. 34; 2003., que me parecem muito promissoras nesse sentido, buscam localizar no plano das interações intersubjetivas os processos de construção da ordem social e identificam nos processos de busca por reconhecimento a dinâmica constitutiva de sujeitos e a legitimação de suas aspirações e necessidades. A luta por reconhecimento, segundo Honneth, é o que leva as diversas perspectivas dos sujeitos a constituírem-se umas perante as outras e que, por isso mesmo, permite identificar, nos planos das relações interpessoais, do exercício dos direitos e da estima social as situações de desrespeito que denunciam a opressão ou mesmo de busca de supressão de uns pelos outros. Poderia tal construção conceitual servir de referência aos empreendimentos críticos da epidemiologia e das ciências humanas em saúde para investigar as relações entre cibertecnologias e processos saúde-doença-cuidado? Não seria possível rastrear, com a ajuda das experiências de desrespeito/não reconhecimento, os sentidos práticos concretamente assumidos pelas cibertecnologias, avaliando por seus efeitos, a salvo de moralismos formalistas, o horizonte normativo sobre o qual se apoiam suas diversas operações e recursos? Não seria possível interpretar a vulnerabilidade aos diversos agravos à saúde como um não reconhecimento sistemático e/ou reiterado de determinados sujeitos como pessoas, cidadãos e/ou seres humanos?

Para além dessa instância de construção intersubjetiva da normatividade social, Honneth ainda aponta uma dimensão do reconhecimento que a antecede e que se configura como uma pré-condição para ela: trata-se da experiência de um estar no mundo e em relação com o outro como momento constitutivo de nossa capacidade mesma de objetivar a existência - das coisas, das outras pessoas e de nós mesmos55. Honneth A. Reification: a new look at an old idea. New York: Oxford University Press; 2012.. Esse "ser afetado" pelo entorno e "afetá-lo" igualmente como condição de possibilidade da construção do sentido com que delimitamos objetivamente (ou intersubjetivamente) nossa realidade, cuja descrição Honneth encontra em filosofias tão diversas quanto as de Heidegger, Dewey e Adorno, leva-o a revisitar um autor e um conceito que me parecem dialogar diretamente com a problemática levantada por Breilh: trata-se do filósofo Georg Lukács e seu conceito de reificação.

Honneth vê uma forte atualidade desta célebre construção de História e Consciência de Classe como recurso para uma teoria crítica das sociedades contemporâneas. Discorda de Lukács quanto à redução que entende fazer esse autor da reificação - ou "coisificação" das pessoas e relações sociais - ao compreendê-la como resultante exclusiva das trocas mercantis, mas retém a importância desta "segunda natureza" criada por processos de reificação na elucidação dos processos de opressão social e consumo predatório de recursos naturais que acompanham o capitalismo. Honneth define reificação como "esquecimento do reconhecimento", isto é, a interdição de um retorno crítico ao tipo de engajamento prático no mundo que origina as identidades objetivas que atribuímos às coisas, aos outros e a nós mesmos, condenando-nos assim a identidades rígidas e unilateralizadas, "naturalizando-as" e cristalizando-as, substraindo-as, assim, da possibilidade de reconstrução crítica. Não é esse processo de reificação especialmente presente nas formas de comunicação operadas nas cibertecnologias? Em uma definição de cibernética divulgada online encontramos literalmente a seguinte afirmação: "Cibernética é a ciência que estuda homens, animais e máquinas como um todo mais interessada nas semelhanças que na diferença entre esses três reinos"66. Dicionário Informal. Disponível em: Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/cibernetica/ (Acessado em 18 de maio de 2015).
http://www.dicionarioinformal.com.br/cib...
. Pode haver exemplo mais expressivo de "esquecimento do reconhecimento"?

Não há dúvida de que, para além dos aspectos de dominação e exploração apontados por Breilh, há potenciais críticos e libertários na rede global, só tornados possíveis com as tecnologias e dispositivos da era da comunicação digital em tempo real, conforme o instigante estudo da antropóloga canadense Gabriella Coleman77. Coleman G. Hacker, hoaxer, whistleblower, spy: the many faces of anonymous. New York: Verso; 2014.. Mas, ainda assim, é de se perguntar se a aparente plasticidade e dinamicidade da construção de identidades e movimentos políticos propiciados pela rede reflete, efetivamente, uma capacidade de religar o sentido de engajamento prático-afetivo-cognitivo - no sentido do cuidar heideggeriano ou do envolvimento prático de Dewey33. Ricoeur P.Percurso do reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola; 2006. - com a identidade objetiva de nossas representações do eu, do outro e do mundo. A própria máscara de Guy Fawkes, usada no mundo inteiro pelos adeptos da estratégia do Anonymous77. Coleman G. Hacker, hoaxer, whistleblower, spy: the many faces of anonymous. New York: Verso; 2014., é apenas símbolo da horizontalidade política defendida por esse movimento ou indício de uma massificação reificadora? Com efeito, é possível que, a subsunção das singularidades subjetivas em identidades "impessoais" na ação política de movimentos como o Anonymous descole tais ações dos engajamentos práticos que, de fato, constroem sujeitos/intersubjetividades - o que talvez explique, de um lado, o caráter nebuloso e efêmero de parte significativa das suas manifestações públicas recentes e, por outro, a crise de legitimidade das representações políticas tradicionais.

Em suma, ao final desta primeira e breve reação às reflexões trazidas por Breilh neste seu novo trabalho, fica a forte impressão de que se não nos debruçarmos sobre as questões acima, se não nos propusermos a identificar os modos pelos quais se dão os processos de reconhecimento mútuo que sustentam a normatividade social contemporânea, assim como as formas de reificação/desrespeito que interditam o acesso ao sentido existencial, ou engajamento prático, de nossa leitura da realidade, a epidemiologia, a saúde dos adolescentes, os ideais de uma saúde coletiva de modo geral, não passarão de discursos distópicos, levando-nos por sua inadequação, na melhor das hipóteses, ao progressivo afastamento do engajamento prático originário que nos faz vincular radicalmente os sentidos de saúde e emancipação.

REFERÊNCIAS

  • 1. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde 11a reimp. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2011.
  • 2. Habermas J. Trabalho e interação. In: Habermas J. Técnica e ciência como "ideologia". Lisboa: Edições 70; 1987. p. 11-43.
  • 3. Ricoeur P.Percurso do reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola; 2006.
  • 4. Honneth A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais São Paulo: Ed. 34; 2003.
  • 5. Honneth A. Reification: a new look at an old idea. New York: Oxford University Press; 2012.
  • 6. Dicionário Informal. Disponível em: Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/cibernetica/ (Acessado em 18 de maio de 2015).
    » http://www.dicionarioinformal.com.br/cibernetica/
  • 7. Coleman G. Hacker, hoaxer, whistleblower, spy: the many faces of anonymous. New York: Verso; 2014.

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    Comentário sobre o artigo "Epidemiologia del siglo XXI y ciberespacio: repensar la teoría del poder y la determinación social de la salud", de Jaime Breilh, para a Revista Brasileira de Epidemiologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out-Dec 2015
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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