Exame de Papanicolaou em mulheres encarceradas

Celene Aparecida Ferrari Audi Silvia Maria Santiago Maria da Graça Garcia Andrade Priscila Maria Stolses Bergamo Francisco Sobre os autores

RESUMO:

No Brasil, em 2012, 6,4% da população carcerária era constituida por mulheres. O objetivo do estudo foi verificar a cobertura do exame de Papanicolaou segundo características sociodemográficas e problemas de saúde referidos entre mulheres encarceradas. Estudo transversal realizado entre agosto de 2012 e julho de 2013. Consideraram-se os registros de 702 reeducandas com idade entre 25 e 64 anos de idade e tempo de reclusão igual ou superior a 12 meses. A média de idade das mulheres entrevistadas foi de 34,7 anos. A realização de citologia oncótica cervical foi referida por 26,3% das reeducandas. Não foram encontradas diferenças nas prevalências segundo variáveis selecionadas. A condição de confinamento possibilita a implementação de ações preventivas, como o oferecimento e a realização do exame de Papanicolaou para a maioria das reeducandas. Os resultados observados são preocupantes e divergem de forma importante daqueles apresentados em diagnóstico nacional sobre a saúde das mulheres encarceradas.

Palavras-chave:
Teste de Papanicolaou; Prisões; Saúde da mulher; Prevenção primária; Estudos epidemiológicos; Neoplasias do Colo do Útero

De acordo com a Organização Mundial da Saúde11. World Health Organization. International Agency for Research on Cancer. Globocan 2012: estimated cancer incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. Disponível em Disponível em http://globocan.iarc.fr/ (Acessado em 19 de maio de 2015).
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, com cerca de 530 mil casos novos por ano no mundo, o câncer do colo do útero é o quarto tipo de câncer mais comum entre as mulheres e é responsável pelo óbito de 265 mil mulheres por ano. Essa neoplasia representa um grave problema de saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento, onde ocorrem cerca de 85% dos casos e óbitos decorrentes da doença, respondendo por 13% de todos os cânceres femininos22. ICO Information Centre on HPV and Cancer (HPV Information Centre). Human papillomavirus and related cancers report. Disponível em Disponível em http://www.hpvcentre.net/statistics/reports/XWX.pdf (Acessado em 04 de maio de 2015).
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,33. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015..

No Brasil, o câncer de colo de uterino é o terceiro tumor mais frequente na população feminina, suplantado apenas pelo câncer de mama e do colorretal33. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015.. Em relação aos óbitos, é a quarta causa de morte de mulheres por câncer33. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015.. O país avançou na sua capacidade de realizar diagnóstico precoce dos casos, no entanto, estimativas apontavam para 15.590 novos casos da doença em 201433. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015..

Os papilomavírus humanos (HPV) são comuns em todo o mundo e são responsáveis pela maioria dos canceres de colo de útero. Com prevalência de 15 a 40% na população geral, a infecção cervical por HPV representa a doença sexualmente transmissível (DST) isolada mais frequente em todo o mundo44. International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Cervical carcinoma and sexual behavior: collaborative reanalysis of individual data on 15,461 women with cervical carcinoma and 29,164 women without cervical carcinoma from 21 epidemiological studies. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev 2009; 18(4): 1060-9.. Embora a maioria das infecções por HPV não causem sintomas, em alguns casos podem ocorrer alterações celulares que evoluem para câncer cervical44. International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Cervical carcinoma and sexual behavior: collaborative reanalysis of individual data on 15,461 women with cervical carcinoma and 29,164 women without cervical carcinoma from 21 epidemiological studies. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev 2009; 18(4): 1060-9..

As alterações das células são encontradas facilmente por meio do exame citopatológico do colo do útero (Papanicolaou), e são curáveis na quase totalidade dos casos, desde que identificadas as fases precursoras da doença, daí a importância da realização periódica desse exame. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), com uma cobertura da população-alvo de no mínimo 80%, garantindo-se o diagnóstico e tratamento adequados dos casos alterados, é possível reduzir, em média, de 60 a 90% a incidência do câncer cervical invasivo55. World Health Organization. Global action plan for the prevention and control of NCD 2013-2020. Geneva: WHO; 2013.. Note-se que as lesões precursoras da doença são de tratamento especializado de média complexidade e custo moderado e acessível à maioria das redes de saúde.

Além das condições relacionadas à infecção pelo HPV, a idade, imunidade, genética, situação conjugal, baixa condição socioeconômica, início precoce da atividade sexual, multiplicidade de parceiros sexuais, uso de contraceptivos orais, multiparidade e o tabagismo têm sido apontados como fatores de risco significativos para o desenvolvimento dessa neoplasia55. World Health Organization. Global action plan for the prevention and control of NCD 2013-2020. Geneva: WHO; 2013..

As prisões constituem-se em um local privilegiado de contato com milhares de pessoas que estão, frequentemente, fora do alcance dos sistemas de saúde convencionais. A população carcerária feminina está crescendo nos cinco continentes. No Brasil, em 2012, 6,4% da população carcerária era constituida por mulheres66. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Mulheres encarceradas: consolidação dos dados fornecidos pelas Unidades da Federação. Brasília: Ministério da Justiça; 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf (Acessado em 10 de outubro de 2015).
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O objetivo do estudo foi verificar a cobertura do exame de Papanicolaou, segundo características sociodemográficas e problemas de saúde referidos entre mulheres encarceradas.

Foi realizada uma pesquisa em penitenciária feminina (PF) no interior do estado de São Paulo, entre os meses de agosto de 2012 a julho de 2013, intitulada "Atenção integral à saúde da mulher no cárcere e dos servidores em uma Penitenciária Feminina no interior do Estado de São Paulo".

No presente estudo foram considerados os registros de 702 reeducandas com idade entre 25 e 64 anos de idade e tempo de reclusão igual ou superior a 12 meses. Foi calculada a prevalência de realização do exame preventivo e a associação entre a realização de Papanicolaou e as variáveis consideradas foi verificada pelo teste do χ2 de Pearson com nível de significância de 5%. As análises foram realizadas no Stata 12.

A média de idade das mulheres entrevistadas foi de 34,7 anos. A realização de citologia oncótica cervical foi referida por 26,3% das reeducandas. Não foram encontradas diferenças nas prevalências segundo faixas etárias, situação conjugal, cor da pele/raça, religião, escolaridade, renda, trabalho na PF e ter ou não filhos (p > 0,05). Também não houve associação estatística entre a realização do exame e problemas de saúde referidos, tais como queixas ginecológicas (corrimento, coceira, ardor, ferida, verruga vaginal, dor na relação sexual, dor embaixo do ventre) (p = 0,080), sangramento vaginal (p = 0,727) e infecção urinária (p = 0,263). De modo geral, os achados revelaram o baixo acesso ao exame preventivo recomendado para a detecção precoce de câncer de colo de útero em todos os subgrupos considerados.

A OMS estima um aumento de 320 mil mortes por câncer de colo de útero em 2015 para 435 mil até 2030, sendo que 70% dessas mortes serão atribuidas às infecções crônicas pelo HPV 16 e 18 que, em geral, são adquiridas quando se iniciam as atividades sexuais11. World Health Organization. International Agency for Research on Cancer. Globocan 2012: estimated cancer incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. Disponível em Disponível em http://globocan.iarc.fr/ (Acessado em 19 de maio de 2015).
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,22. ICO Information Centre on HPV and Cancer (HPV Information Centre). Human papillomavirus and related cancers report. Disponível em Disponível em http://www.hpvcentre.net/statistics/reports/XWX.pdf (Acessado em 04 de maio de 2015).
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Recentemente, medida a nível primário de prevenção e proteção específica foi implantada no Brasil - a vacina contra o HPV. Outra maneira de prevenção dessa neoplasia é melhorar o acesso universal a programas abrangentes de rastreamento de prevenção do colo do útero e de controle do câncer, que têm potencial para chegar às mulheres com HPV. Compreende um conjunto organizado de ações destinadas a prevenir e reduzir a morbidade e mortalidade por câncer cervical, parte das ações prioritárias do plano de ação global para a prevenção e controle de doenças crônicas não transmissíveis 2013 - 202055. World Health Organization. Global action plan for the prevention and control of NCD 2013-2020. Geneva: WHO; 2013..

O rastreamento do câncer cervical é oferecido às mulheres na faixa etária de 25 a 64 anos e que já tiveram atividade sexual. A rotina recomendada no Brasil é a repetição do exame Papanicolaou a cada três anos, após dois exames normais consecutivos realizados com um intervalo de um ano33. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015.. Melhorar a cobertura da população alvo é uma das principais ações no nível primário para diminuir a incidência e mortalidade por esse tipo câncer. Países com cobertura superior a 50% do exame citopatológico realizado a cada 3 a 5 anos apresentam taxas inferiores a 3 mortes por 100 mil mulheres por ano e, para aqueles com cobertura superior a 70%, essa taxa é igual ou menor do que 2 mortes por 100 mil mulheres por ano11. World Health Organization. International Agency for Research on Cancer. Globocan 2012: estimated cancer incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. Disponível em Disponível em http://globocan.iarc.fr/ (Acessado em 19 de maio de 2015).
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,22. ICO Information Centre on HPV and Cancer (HPV Information Centre). Human papillomavirus and related cancers report. Disponível em Disponível em http://www.hpvcentre.net/statistics/reports/XWX.pdf (Acessado em 04 de maio de 2015).
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,33. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015.,44. International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Cervical carcinoma and sexual behavior: collaborative reanalysis of individual data on 15,461 women with cervical carcinoma and 29,164 women without cervical carcinoma from 21 epidemiological studies. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev 2009; 18(4): 1060-9.,55. World Health Organization. Global action plan for the prevention and control of NCD 2013-2020. Geneva: WHO; 2013..

No presente estudo, observou-se reduzida cobertura do exame de Papanicolaou entre as mulheres. A condição de confinamento possibilita, pelo lado da instituição prisional, identificar as mulheres sob maior risco de câncer de colo uterino e oferecer o exame de Papanicolaou, e pelo lado das reeducandas, o acesso fácil à realização do exame preventivo quando desejarem. Os resultados observados são preocupantes e divergem de forma importante daqueles apresentados em diagnóstico nacional sobre a saúde das mulheres encarceradas, cujas informações são de que 92,2% realizam regularmente exame preventivo para o câncer de colo do útero66. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Mulheres encarceradas: consolidação dos dados fornecidos pelas Unidades da Federação. Brasília: Ministério da Justiça; 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf (Acessado em 10 de outubro de 2015).
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Essa condição precisa ser modificada nas instituições prisionais quando estiver ocorrendo, por ser uma obrigação do estado zelar pela saúde dessa população. Onde não houver pessoal disponível para a tarefa, essa situação poderia ser modificada rapidamente por meio de parecerias entre o ensino e o serviço, de modo que graduandos de enfermagem pudessem estagiar nessas unidades do sistema prisional e realizar consulta de enfermagem supervisionada com coleta do Papanicolau.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization. International Agency for Research on Cancer. Globocan 2012: estimated cancer incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. Disponível em Disponível em http://globocan.iarc.fr/ (Acessado em 19 de maio de 2015).
    » http://globocan.iarc.fr/
  • 2
    ICO Information Centre on HPV and Cancer (HPV Information Centre). Human papillomavirus and related cancers report. Disponível em Disponível em http://www.hpvcentre.net/statistics/reports/XWX.pdf (Acessado em 04 de maio de 2015).
    » http://www.hpvcentre.net/statistics/reports/XWX.pdf
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2015.
  • 4
    International Collaboration of Epidemiological Studies of Cervical Cancer. Cervical carcinoma and sexual behavior: collaborative reanalysis of individual data on 15,461 women with cervical carcinoma and 29,164 women without cervical carcinoma from 21 epidemiological studies. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev 2009; 18(4): 1060-9.
  • 5
    World Health Organization. Global action plan for the prevention and control of NCD 2013-2020. Geneva: WHO; 2013.
  • 6
    Brasil. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Mulheres encarceradas: consolidação dos dados fornecidos pelas Unidades da Federação. Brasília: Ministério da Justiça; 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf (Acessado em 10 de outubro de 2015).
    » http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf

  • Fonte de financiamento: Convênio Ministério da Saúde e Organização Pan-americana de Saúde, Universidade Estadual de Campinas/Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (UNICAMP/FUNCAMP), projeto no 4681; bolsa de pós-doutoramento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2012/14163-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2015
  • Aceito
    16 Dez 2015
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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