Tendência das iniquidades sociais nas notificações de violência sexual no Brasil entre 2010 e 2014

Janmille Valdivino da Silva Angelo Guiseppe Roncalli Sobre os autores

RESUMO:

Introdução:

A violência sexual tem despontado no cenário da saúde com as mudanças nos perfis epidemiológicos das populações.

Metodologia:

Estudo ecológico com 5.565 municípios brasileiros entre 2010 e 2014. Realizou-se análise descritiva das variáveis (taxa populacional de notificação de violência sexual, renda domiciliar per capita e índice de desenvolvimento humano - IDH) e suas estratificações por quintil. Para explorar os fatores associados às mudanças nas desigualdades sociais na taxa de notificação de violência sexual, foram adotados o coeficiente angular de desigualdade e o índice relativo de desigualdade. Construiu-se equiplot para o desfecho em cada variável independente.

Resultados:

A taxa média de notificações de violência sexual no Brasil foi de 4,38 notificações/100 mil habitantes para o período. Houve incremento na taxa de violência e melhoria nas condições socioeconômicas. Observou-se maior taxa de notificações no quintil com melhores condições de vida, bem como aumento na desigualdade da taxa de notificações de violência sexual em função da renda domiciliar e do IDH. Diversos fatores parecem influenciar o aumento das notificações de violência sexual no país. Entre eles, destacam-se a melhoria nas condições de vida da população e a maior sensibilidade moral à violência, contudo ainda há disparidade de notificações entre os municípios de acordo com sua condição socioeconômica.

Conclusão:

A falta de políticas públicas de equidade social em saúde tem interferido nas notificações de violência sexual no país e ampliado as iniquidades em saúde.

Palavras-chave:
Violência Sexual; Iniquidades Sociais; Notificação de Abuso; Brasil

INTRODUÇÃO

Com as recentes mudanças nos perfis epidemiológicos das populações mundiais, uma nova questão tem despontado no cenário da saúde: a violência. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), já na década de 1990, haviam declarado a violência sexual como problema social e de saúde, buscando juntamente com os governantes criar uma agenda política que incluísse ações de combate e prevenção11. World Health Organization. World report on violence and health. Genebra: WHO; 2002.>,22. Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.>.

Nesse contexto, o Brasil, desde 1996, com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, reconhece a violência sexual como uma violação dos direitos humanos33. Brasil. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.>. Assim, tem buscado ferramentas para o enfrentamento da violência sexual. Nessa perspectiva, foi implantado em 2006 o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), com a finalidade de viabilizar a obtenção de dados e divulgação de informações sobre violências e acidentes, o que possibilitaria conhecer a magnitude desses problemas44. Brasil. VIVA Vigilância de Violências e Acidentes 2006-2009. Brasília: Ministério da Saúde ; 2013.>. Paralelamente a isso, o governo brasileiro promulgou uma série de legislações para combate à violência sexual55. Brasil. Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet] 2003 [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.778.htm
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>,66. Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet] 2006 [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
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>.

Contudo, essas medidas parecem ainda ser insuficientes para a solução do problema, a notar pelos elevados números de casos de violência sexual no país77. Brasil. Atenção humanizada às pessoas em situação de violência sexual com registro de informações e coleta de vestígios. Brasília: Ministério da Saúde e Ministério da Justiça; 2015.>. Minayo88. Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz ; 2006.> revela que para o combate da violência é necessário perceber como ela se estrutura, incluindo a compreensão do seu contexto determinante. Logo, a condição social deve ser uma questão a ser considerada quando se busca entender essa temática, pois, apesar de ser um fenômeno mundial, a violência sexual atinge populações de distintos graus de desenvolvimento socioeconômico de maneira diferente33. Brasil. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.>. Estudo multipaíses da OMS99. World Health Organization. WHO Multi-Country study on women’s health and domestic violence against women. Genebra: World Health Organization; 2005.> providencia uma visão abrangente dos padrões de violência sexual em contextos de baixa e média renda e aponta menores índices de violência sexual em países de média renda do que naqueles de baixa renda. Complementarmente, outro estudo1010. US Department of Justice. Extent, nature, and consequences of rape victimization: findings from the National Violence Against Women Survey [Internet]. Washington, D.C.: US Department of Justice; 2006 [acessado em 10 dez. 2018]. Disponível em: Disponível em: https://www.ncjrs.gov/pdffiles1/nij/210346.pdf
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>, nos Estados Unidos, país de alta renda, revela taxas ainda menores.

Nesse sentido, lembramo-nos do modelo de determinação social da saúde de Dahlgren e Whitehead1111. Dahlgren G, Whitehead M. Polices and strategies to promote social equity in health. Estocolmo: Institute for Future Studies; 1991.>, que tem suscitado internacionalmente discussões a respeito dos macrodeterminantes sociais da saúde e sua relação com as iniquidades em saúde. A OMS11. World Health Organization. World report on violence and health. Genebra: WHO; 2002.> aponta uma multiplicidade de fatores de risco relacionados à violência sexual que possuem efeito aditivo. Tais fatores apresentam-se em diversos níveis, que vão desde o individual, como idade, escolaridade e uso de álcool e drogas, até o social, como legislações de combate à violência e nível de pobreza local1212. World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Genebra: World Health Organization ; 2010.>.

A Constituição Federal Brasileira1313. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal; 1998.>, ainda em 1988, declarou a importância da saúde como direito fundamental e reconhece sua determinação social, porém esse entendimento não vem sendo refletido nas políticas que tratam da violência sexual no país.

No cenário de um país em desenvolvimento, com um sistema de informação nacional de violência sexual implantado há mais de 10 anos, é fundamental compreender como as notificações desse agravo têm evoluído ao longo dos anos com o desenvolvimento social do país e a sua relação com as desigualdades sociais. Portanto, este trabalho teve como objetivo avaliar a tendência das notificações da violência sexual no Brasil de 2010 a 2014 e sua relação com as iniquidades sociais vivenciadas pelos municípios brasileiros.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo ecológico que analisa as desigualdades nas notificações de violência sexual no Brasil cuja unidade de análise foram 5.565 municípios brasileiros nos anos de 2010 a 2014.

O desfecho analisado foi a taxa populacional de notificação de violência sexual nos municípios brasileiros, a qual foi calculada por meio da razão entre o número de notificações de violência sexual do município e o número de habitantes do município multiplicado por 100 mil. Os dados foram extraídos de bancos de dados nacionais. As notificações de violência sexual foram obtidas do VIVA, enquanto a contagem populacional foi obtida do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As variáveis independentes incluídas são representativas das condições econômicas (renda domiciliar per capita) e de desenvolvimento social (índice de desenvolvimento humano - IDH) dos municípios brasileiros. Esses dados foram coletados do Atlas de Desenvolvimento Humano (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA/Fundação João Pinheiro - FJP).

Como os censos populacionais brasileiros ocorrem só a cada 10 anos, assim como a divulgação de dados do PNUD, para cálculo das variáveis independentes se fez a extrapolação linear dos dados de 2010 para obtenção de estimativas de 2011 a 2014. Em seguida, foi realizada uma análise exploratória para verificar a consistência dos dados. A avaliação de outliers, mediante a padronização de valores e da medida D22. Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.> de Mahalanobis, não detectou casos atípicos. Não se detectaram dados perdidos para os municípios, e apenas os dados dos cinco municípios criados em 2013 não foram incluídos na análise.

Realizou-se análise descritiva das variáveis por ano. Em seguida, as variáveis socioeconômicas foram estratificadas por quintil, o primeiro quintil representando as piores condições de renda e IDH e, consequentemente, o último quintil as maiores rendas domiciliares e IDH. Nova análise descritiva do desfecho foi feita fundamentada na média e no desvio padrão por quintil das variáveis independentes nos municípios. Construiu-se, com base em sintaxe do programa Stata, um equiplot para o desfecho em cada variável independente. Os gráficos do tipo equiplot foram concebidos pelo International Center for Equity in Health1414. International Center for Equity in Health. Equiplot [Internet]. [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.equidade.org/equiplot
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>, com o objetivo de analisar as desigualdades sociais ao longo dos anos.

Para explorar os fatores associados às mudanças nas desigualdades sociais na taxa de notificação de violência sexual, foram adotados o coeficiente angular de desigualdade (CAD), o qual calcula o declínio ou a diferença do índice (estimado em -β1), e o índice relativo de desigualdade (IRD), que pode ser interpretado como a razão de taxa global entre os grupos inferior e superior na hierarquia socioeconômica. O CAD representa uma regressão linear ponderada para expressar a diferença absoluta na taxa de notificação de violência sexual entre os municípios com valores mais baixos e mais altos do indicador socioeconômico. Para tal tratamento estatístico, as variáveis independentes foram categorizadas em quintis e transformadas em escore Ridit, o qual se baseia na proporção da amostra em cada categoria. Nessa análise, a significância estatística da tendência foi comprovada pela variável de interação ao ajustar o ano às variáveis independentes. O software utilizado foi Stata versão 14 (Stata Corporation, College Station, TX, Estados Unidos).

RESULTADOS

Apenas os dados de cinco municípios brasileiros foram excluídos deste estudo, pois esses municípios só foram criados em 2013. Assim, a taxa de violência sexual de 5.565 municípios, nos anos de 2010 a 2014, foi analisada, perfazendo o total de 27.825 observações. Para o período, a taxa média de notificações de violência sexual no Brasil foi de 4,38 notificações/100 mil habitantes. Entre os anos de 2010 a 2014, houve incremento na taxa de notificações de violência sexual seguida por melhoria nas condições socioeconômicas (Tabela 1>).

Tabela 1.
Análise descritiva da taxa populacional de violência sexual, renda per capita e índice de desenvolvimento humano (IDH) nos anos de 2010 a 2014.

Mediante a análise da taxa de notificação de violência sexual por quintil socioeconômico, observou-se que há maior taxa de notificações no último quintil. Como descrito anteriormente, o quinto quintil é formado pelos municípios que apresentam as melhores condições: maior renda domiciliar per capita e maior IDH. Observou-se também evolução temporal em todos os quintis dos indicadores socioeconômicos, demonstrada pelo aumento da taxa de notificação da violência sexual ao longo dos anos (Tabela 2>).

Tabela 2.
Taxa populacional de violência sexual dos municípios brasileiros por quintil de renda per capita e índice de desenvolvmento humano (IDH) nos anos de 2010 a 2014.

Na Figura 1> podemos observar um alargamento da distância entre os quintis das variáveis socioeconômicas relacionados à taxa de notificação da violência sexual. Tal comportamento entre os quintis socioeconômicos ao longo dos anos aponta aumento na desigualdade da taxa de notificações de violência sexual em função da renda domiciliar e do IDH.

Figura 1.
Equiplots da taxa populacional de violência sexual por quintil de índice de desenvolvimento humano (IDH) e renda per capita nos anos de 2010 a 2014.

A Tabela 3> mostra os valores das desigualdades absolutas (CAD) e relativas (IRD) anuais. O coeficiente angular mede a diferença absoluta na taxa de notificação de violência sexual entre a pior e a melhor condição de renda e IDH, e quanto maior este valor, maior a desigualdade. Viu-se que em 2010 houve uma diferença absoluta de 3,26 entre a taxa de notificação dos municípios de pior e melhor renda e que essa diferença se ampliou ao longo dos anos. Assim, em 2014 a diferença absoluta foi de 8,46. O mesmo padrão de incremento ocorreu para a variável IDH, cuja diferença absoluta em 2010 foi de 3,32, passando a 8,36 no ano de 2014. Assim, verificamos que há desigualdade nas taxas de notificação de violência sexual entre os municípios de piores e melhores renda e IDH.

Tabela 3.
Coeficiente angular de desigualdade (CAD) e índice relativo de desigualdade (IRD) para a taxa populacional de violência sexual dos municípios brasileiros*.

Ressaltamos que os coeficientes angulares apresentaram valores negativos decorrentes do tipo de correlação entre a taxa de notificação da violência sexual e as variáveis socioeconômicas. Como as maiores taxas foram observadas nos melhores contextos sociais, a reta da equação de regressão possui inclinação contrária, por isso os valores negativos. Resumindo, em função da operação matemática, diferença de um número menor por outro maior, o valor foi negativo. Quanto aos valores do IRD, este expressa a razão da taxa de notificação de violência sexual entre os municípios de piores e melhores condições de renda e IDH. Verifica-se que em 2010 a taxa de notificação de violência sexual nos municípios com piores renda e IDH foi 0,07 vezes maior que a dos municípios de melhores IDH. Isso significa que as taxas nos municípios de piores condições sociais sempre foram menores quando comparadas às de melhores condições de vida. Também constatamos que ao longo dos anos a razão aumentou, ou seja, as desigualdades entre municípios de melhores e piores condições alargou-se.

A tendência temporal foi de aumento significativo das taxas de notificações de violência sexual em relação às variáveis socioeconômicas, observado pelo aumento dos valores dos coeficientes através dos anos. Isso significa que no período em estudo houve aumento na taxa de notificação da violência sexual, a qual foi acompanhada por crescimento simultâneo da desigualdade de notificações, pois o quintil de melhor renda e IDH apresentou aumento de notificações proporcionalmente superior ao quintil de pior condição social.

DISCUSSÃO

Os dados mundiais de violência sexual, em sua maioria, são originados de registros policiais, serviços de saúde, organizações não governamentais e pesquisas, contudo tais estatísticas de violência sexual são apenas a ponta do iceberg. A magnitude mundial do problema é bem maior do que apontam as informações oficiais, especialmente naqueles casos resultantes da vulnerabilidade socioeconômica11. World Health Organization. World report on violence and health. Genebra: WHO; 2002.>. Nos últimos anos, vários países têm avançado na melhoria da qualidade dessas informações. No caso brasileiro, desde 2006, o governo tem obtido sistematicamente dados de violência dos serviços de atenção à saúde, servindo como ferramenta basilar para o enfrentamento da violência no país44. Brasil. VIVA Vigilância de Violências e Acidentes 2006-2009. Brasília: Ministério da Saúde ; 2013.>.

De acordo com as informações oficiais sobre a violência oriundas de serviços de saúde nacionais, houve crescimento progressivo das taxas de notificação de violência sexual no país ao longo dos anos acompanhado pelo desenvolvimento das condições socioeconômicas. Outros estudos brasileiros têm apontado também para o fenômeno do aumento gradativo de notificações de violência sexual no país ao longo dos anos1515. Moreira GAR, Soares OS, Faria FNR, Vieira LJES. Notificações de violência sexual contra a mulher no Brasil. Rev Bras Promoção Saúde 2015; 28(3): 327-36. http://dx.doi.org/10.5020/18061230.2015.p327
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>,1616. Justino LCL, Nunes CB, Gerk MAS, Fonseca SSO, Ribeiro AA, Paranhos Filho AC. Violência sexual contra adolescentes em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Rev Gaúcha Enferm 2015; 36(N. Esp.): 239-46. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2015.esp.56820
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>,1717. Oliveira JR, Costa MCO, Amaral MTR, Santos CA, Assis SG, Nascimento OC. Violência sexual e coocorrências em crianças e adolescentes: estudo das incidências ao logo de uma década. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19(3): 759-71. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.18332013
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>. Nessa perspectiva, se questiona se de fato houve aumento da prevalência da violência sexual no país ou se outros fatores estão influenciando o crescimento das notificações.

Segundo Misse1818. Misse M. Violência e teoria social. Dilemas 2016; 9(1): 45-63.>, houve recentemente aumento na sensibilidade moral à violência, o que poderia levar a um crescimento constante do número de notificações de violência sexual no Brasil. Além disso, o avanço nas condições gerais de vida nesse período pode ter refletido na melhoria do acesso da população aos serviços de saúde e a informações em saúde1919. Travassos C, Oliveira EXV, Viacava F. Geographic and social inequalities in the access to health services in Brazil: 1998 and 2003. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11(4): 975-86. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232006000400019
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>,2020. Nobre ALCSD, Dias OV, Leite MTS, Freitas DM, Costa SM. Justiça distributiva no serviço de saúde especializado e no acesso a medicamentos. Rev Bioética 2015; 23(1): 373-86. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015232076
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
>. A ampliação do acesso aos serviços de saúde associada à maior consciência quanto à importância das notificações de casos de abusos sexuais, tanto por parte da população como por parte dos profissionais de saúde, também pode ter impulsionado as estatísticas oficiais de violência sexual. Coadjuvantemente, o desenvolvimento de um aparato legal no país nos últimos anos talvez tenha contribuído para o aumento progressivo das notificações de violência sexual no país nos últimos anos.

Nesse ínterim, destacam-se a Lei nº 10.778/200355. Brasil. Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet] 2003 [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.778.htm
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>, que torna obrigatória a notificação da violência sexual, o Decreto nº 4.388/20022121. Brasil. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet] 2002 [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm
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>, que enquadra a violência sexual como crime contra a humanidade, as leis nº 11.304/200666. Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet] 2006 [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
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> e nº 12.015/20092222. Brasil. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet] 2009 [acessado em 10 jan. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2009/lei-12015-7-agosto-2009-590268-exposicaodemotivos-149280-pl.html
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>, que criminalizam a violência sexual, entre outros. Por fim, o próprio Ministério da Saúde brasileiro cita que a progressiva estruturação do registro de informações sobre violência sexual e coleta de vestígios na rede pública de saúde tem melhorado as informações sobre a violência sexual77. Brasil. Atenção humanizada às pessoas em situação de violência sexual com registro de informações e coleta de vestígios. Brasília: Ministério da Saúde e Ministério da Justiça; 2015.>.

As análises por categorias de condição econômica e social demonstraram que as maiores taxas de notificação de violência sexual ocorreram nos locais com melhores indicadores sociais e econômicos. A constatação parece ir na contramão da literatura corrente, que tem revelado maior prevalência de violência sexual em contextos socioeconomicamente menos favorecidos11. World Health Organization. World report on violence and health. Genebra: WHO; 2002.>,2323. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Rio de Janeiro: IBGE; 2014.>. Ressaltamos mais uma vez que a estatística utilizada para este trabalho não é a prevalência populacional de violência sexual, mas o número de casos de pessoas que foram atendidas em serviços de saúde. Nessa perspectiva, Pelisoli et al.2424. Pelisoli C, Pires JPM, Almeida ME, Dell’Aglio DD. Violência sexual contra crianças e adolescentes: dados de um serviço de referência. Temas Psicol 2010; 18(1): 85-97.> destacaram a predominância de notificações de violência sexual em áreas mais desenvolvidas que em áreas periféricas do país. Na contramão, Moreira et al.1515. Moreira GAR, Soares OS, Faria FNR, Vieira LJES. Notificações de violência sexual contra a mulher no Brasil. Rev Bras Promoção Saúde 2015; 28(3): 327-36. http://dx.doi.org/10.5020/18061230.2015.p327
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.502...
> observaram maior taxa de violência sexual na Região Norte do país, enquanto Justino et al.1616. Justino LCL, Nunes CB, Gerk MAS, Fonseca SSO, Ribeiro AA, Paranhos Filho AC. Violência sexual contra adolescentes em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Rev Gaúcha Enferm 2015; 36(N. Esp.): 239-46. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2015.esp.56820
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
> e Santos et al.2525. Santos CA, Macedo MRA, Maia BSC, Silva RWD, Nascimento YKO. Análise Exploratória de Dados Espaciais para Vítimas de Atentado Violento ao Pudor Contra Crianças e Adolescentes no Município de Belém no ano de 2009. Curitiba: Anais XV Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto; 2011. p. 3867.> apontaram maior prevalência de casos de violência sexual em áreas socioeconomicamente desprivilegiadas.

Outro achado importante deste estudo foi o crescente gradiente socioeconômico das notificações de violência sexual ao longo dos anos. Em todos os anos estudados houve progressão das taxas de violência sexual entre os quintis de renda e IDH, com concentração de notificações nos quintis mais ricos. Se por um lado os achados da literatura11. World Health Organization. World report on violence and health. Genebra: WHO; 2002.>,1212. World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Genebra: World Health Organization ; 2010.>,2626. Aguilar A, Salcedo M. Caracterización de la violencia sexual en adolescentes de 10 a 19 años, 2001-2003, Cali. Colombia Médica 2008; 39(4): 356-63.> identificam mais casos de violência sexual em contextos mais pobres, por outro lado, nosso estudo viu maior notificação de violência em contextos mais favorecidos.

Seguindo essa concepção, Assis et al.2727. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17(9): 2305-17. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000900012
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
> afirmam que as unidades federativas brasileiras mais desenvolvidas economicamente possuem maior número de serviços de saúde notificantes de violência sexual. Complementarmente, Sousa et al.2828. Sousa MH, Bento SF, Osis MJD, Ribeiro MP, Faúndes A. Preenchimento da notificação compulsória em serviços de saúde que atendem mulheres que sofrem violência sexual. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(1): 94-107. http://dx.doi.org/10.1590/1980-5497201500010008
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> relatam que ainda há dificuldade para preenchimento das fichas de notificação de violência sexual, sobretudo em municípios com menores condições econômicas, onde os serviços são menos estruturados. Assim, esse conjunto de estudos, associados aos nossos achados, apontam para a existência de uma inversão nas notificações de violência sexual estruturada pela iniquidade social no Brasil, que faz com que o grupo socialmente privilegiado apareça mais nas estatísticas oficiais de violência sexual.

A abordagem do gradiente socioeconômico de saúde tem sido uma premissa da política internacional de saúde. Segundo a OMS2929. World Health Organization. World Health Declaration, Health-for-all policy for the twenty-first century. Copenhagen: World Health Organization; 1998.>, é direito humano fundamental de qualquer pessoa gozar o mais alto padrão atingível de saúde independentemente da condição econômica ou social. Logo, os padrões de saúde e, por consequência, de acesso a serviços de notificação desfrutados pelos mais ricos devem ser atingidos por todos. Assim, a mensuração das desigualdades em saúde é uma condição indispensável para se avançar na melhoria da situação de saúde dos agregados sociais, em que a análise de valores médios deixou de ser suficiente. Esse tipo de análise é uma ferramenta essencial para ações que buscam maior equidade em saúde3030. Schneider MC, Castillo-Salgado C, Bacallao J, Loyola E, Mujica OJ, Vidaurre M, et al. Métodos de mensuração das desigualdades em saúde. Rev Panam Salud Publica 2002; 12(6): 1-17.>.

Com base na análise de desigualdade entre os quintis de renda e IDH, notou-se também que ao longo dos anos esse gradiente se tornou ainda maior com a ampliação da diferença e da razão entre as taxas de notificação de violência sexual entre os municípios de estratos hierárquicos extremos. Atualmente, com a melhoria das condições gerais de saúde da população, há tendência de polarização dos agravos em saúde em grupos desprivilegiados socialmente, caracterizando ampliação progressiva das iniquidades sociais em saúde3131. Graham H, Kelly M. Health Inequalities: Concepts, Frameworks and Policy. Inglaterra: NHS; 2004.>,3232. Roncalli AG, Sheiham A, Tsakos G, Watt RG. Socially unequal improvements in dental caries levels in Brazilian adolescents between 2003 and 2010. Community Dent Oral Epidemiol 2015; 43(4): 317-24. https://doi.org/10.1111/cdoe.12156
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
>. Isso ocorre porque nas últimas décadas houve incremento nas condições de vida das populações, melhorando os determinantes sociais da saúde, o que teve reflexo direto nas condições gerais de saúde, contudo a velocidade de melhoria das condições de saúde nas camadas mais pobres é bem mais lenta que nas camadas mais ricas. A saúde dos grupos socialmente privilegiados é bem mais sensível a melhorias nos determinantes sociais de saúde que os grupos inferiores. Por isso, essa disparidade entre a saúde de ricos e pobres tem se alargado.

Graham e Kelly3131. Graham H, Kelly M. Health Inequalities: Concepts, Frameworks and Policy. Inglaterra: NHS; 2004.> apontam que existe uma diferença conceitual entre determinantes da saúde e determinantes de iniquidades em saúde. Este último trata das estruturas fundamentais da hierarquia social e da distribuição social das condições de vida. Políticas comprometidas com melhoria dos padrões de saúde e redução das iniquidades em saúde devem pensar nesses conceitos e concentrar-se tanto no progresso dos determinantes sociais da saúde quanto nos determinantes de iniquidades em saúde. Políticas focadas apenas na melhoria das determinantes sociais da saúde, sem fixar-se também na sua distribuição entre os estratos sociais, podem levar a uma polarização do agravo, ampliando as iniquidades em saúde. Roncalli et al.3232. Roncalli AG, Sheiham A, Tsakos G, Watt RG. Socially unequal improvements in dental caries levels in Brazilian adolescents between 2003 and 2010. Community Dent Oral Epidemiol 2015; 43(4): 317-24. https://doi.org/10.1111/cdoe.12156
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
> lembram que para reduzir iniquidades em saúde é necessário tornar a taxa de melhoria de saúde dos mais pobres maior que aquela dos grupos mais ricos e assim progressivamente entre os estratos sociais.

Com base em tudo o que foi apresentado, nota-se uma polarização das notificações de violência sexual em categorias sociais superiores que talvez não corresponda à realidade da prevalência populacional brasileira de violência sexual. Nessa perspectiva, para o enfrentamento da violência sexual no Brasil são prementes e imprescindíveis mais políticas públicas sociais focadas na melhoria das condições sociais de vida das populações, mas também de políticas concentradas em melhorar as notificações de violência sexual em grupos socialmente menos favorecidos para a redução da iniquidade das notificações e consequente melhoria na caracterização do problema no país. Enquanto possuirmos baixos patamares de notificações nos contextos menos favorecidos socialmente, não poderemos desenvolver políticas efetivas de combate e prevenção à violência sexual. Portanto, este é o grande desafio para os formuladores de políticas de combate e prevenção à violência sexual no Brasil: reduzir as iniquidades nas notificações para podermos ter estatísticas mais realísticas.

A violência sexual é um agravo complexo caracterizado por uma multicausalidade11. World Health Organization. World report on violence and health. Genebra: WHO; 2002.>,88. Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz ; 2006.>,3333. World Health Organization. Violence prevention: the evidence. Genebra: World Health Organization ; 2012.>. Assim, não pretendemos com este estudo esgotar as discussões acerca da violência sexual no Brasil. Buscamos apenas compreender as iniquidades sociais nas notificações da violência sexual fundamentados em apenas duas variáveis clássicas para estudos de determinação social da saúde: a renda e o IDH, contudo uma gama de outros elementos sociais, econômicos, políticos e culturais podem levar a diferenciações sociais das populações com interferência nas estatísticas de violência sexual as quais não foram levadas em conta aqui.

Além disso, diferentemente dos estudos tradicionais acerca da temática que utilizam dados oriundos de levantamentos epidemiológicos, nosso estudo foi baseado em estatísticas advindas de serviços de saúde, o que talvez possa ter levado a uma inversão na interpretação dos dados. De qualquer forma, avaliamos que os achados deste trabalho, se considerados pelos formuladores de políticas, podem ajudar no combate à violência sexual no Brasil.

CONCLUSÃO

No Brasil, as notificações de violência sexual vêm aumentando progressivamente ao longo dos anos. Nesse período, os municípios com diferentes realidades sociais e econômicas têm demonstrado estatísticas diferenciadas quanto à notificação de violência sexual com concentração de registros nos grupos mais privilegiados socioeconomicamente. Notou-se que a disparidade de notificações entre os grupos sociais tem se ampliado, apontando para iniquidade em saúde e indicando a insuficiência das políticas públicas de equidade social no contexto da violência sexual. Nessa perspectiva, ainda são necessários estudos para ampliar a compreensão dessa disparidade social de notificações e políticas focadas em melhorar as notificações de violência sexual nos grupos mais pobres, reduzindo o gradiente socioeconômico de notificações.

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  • Fonte de financiamento: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2019
  • Aceito
    02 Abr 2019
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