Perspectivas de los héroes de la salud pública de la OPS /
Perspectives from PAHO public health heroes
A experiência de fazer acontecer a saúde entre os excluídos da sociedade
Zilda Arns Neumann1
Em primeiro lugar, devo expressar minha profunda emoção por ter sido escolhida como uma das Heroínas das Américas desse último século, na área da saúde pública. Gostaria de dedicar este mais honroso prêmio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) a todos os que trabalham com amor à causa e, mais especialmente, aos meus cinco filhos, Rubens, Nelson, Heloisa, Rogério e Silvia.
Lembro-me de minha infância, na comunidade rural de Forquilhinha, no Estado de Santa Catarina, quando me sentava ao lado de minha mãe que fazia curativos e dava conselhos, aplicando e ensinando medicina caseira às mães e encaminhando os casos mais complicados ao hospital mais próximo, a 3 horas de distância a cavalo. Lembro-me também do pavor que assolou a comunidade quando uma epidemia de varíola matou crianças e adultos: meu pai visitava as famílias, dando-lhes instruções sobre os cuidados com os doentes e a prevenção do contágio; quando chegou a vacinação, a cobertura foi total. Foi esse o meu primeiro contato com a saúde pública: a comunidade organizada, com lideranças motivadas, onde a igreja e a escola foram essenciais ao se aliarem à equipe de saúde para a erradicação da varíola.
Como a educação era a prioridade na minha família, aos 11 anos fui a Curitiba, no Estado do Paraná, para prosseguir meus estudos. Eu estava motivada a cursar Medicina, ser missionária, navegar pelo maior rio do mundo, o Amazonas, e curar da malária aquelas famílias pobres que viviam em palafitas à beira dos rios. Mas meu pai me dizia que eu deveria ser professora, pois a educação era o que mais faltava ao mundo; minha mãe apoiava meus sonhos e dizia que valiam a pena. Enquanto cursava Medicina, meu pai reclamava que deveria aprender muito mais sobre a prevenção das doenças, sobre a alimentação, as vacinas e a participação comunitária.
Desde o 1o ano de Medicina, trabalhava como voluntária, num hospital filantrópico. Sentia que os doentes me olhavam com ternura quando lhes tocava as mãos. Optei depois por prestar serviços voluntários no Hospital de Crianças César Pernetta, que atendia somente crianças de famílias pobres e sem emprego. Via todos os dias crianças desidratadas, algumas vomitando fezes, sendo medicadas com soro endovenoso; sofriam muito longe da família, naqueles leitos de dor e de abandono. Havia, na enfermaria de queimados, crianças gemendo. Em uma dessas crianças, a queimadura que se espalhava pelo rosto, peito e pernas era conseqüência do derramamento do café quente de um bule. Na emergência, uma criança vinda de área rural com tétano se torcia nas crises e o pai, desesperado, perguntava: meu filho vai morrer? Pensava comigo: quais dessas crianças precisariam estar no hospital, se as famílias tivessem mais conhecimentos sobre a prevenção, e se a saúde pública estivesse mais próxima do coração desse povo carente?
Quando me formei em Medicina, fui nomeada para atender crianças menores de 1 ano no ambulatório daquele mesmo hospital; foi meu primeiro emprego. Eu passava a maior parte do tempo ensinando e animando as mães nos cuidados com seus filhos e a clientela se tornava grande demais. Eu dizia às mães que consultassem com os outros médicos, pois sabiam muito mais do que eu, mas elas queriam consultar comigo e diziam que eu explicava bem.
Começava, nessa época, a descentralização dos serviços primários de saúde, talvez por influência da declaração de Alma-Ata, de 1978, que me empolgava e fortalecia. Nessa descentralização do sistema de saúde, fui designada a atender dois postos de saúde, em dias alternados. Não havia vacinas disponíveis; eram freqüentes os casos de doenças infecto-contagiosas, como coqueluche, difteria e sarampo, além das diarréias e doenças respiratórias, que eram diárias. Apesar de orientar as mães para vacinar as crianças no centro de saúde da cidade, muitas não o faziam. Descobri que a atendente aconselhava que não fossem, porque havia o risco de "pegar" paralisia. Aprendi, com isso, que, em primeiro lugar, deveria instruir minha auxiliar.
Aos 20 dias da licença de gestação de meu segundo filho, que hoje é médico epidemiologista, vieram me chamar para assumir a direção da rede de postos de saúde, que se expandia a 21 comunidades na periferia de Curitiba. Junto aos postos de saúde, implementei 27 clubes de mães, dando a elas mais esta oportunidade de educação. Em diálogo com os médicos, foi feito um levantamento das doenças mais freqüentes e de quais remédios poderiam ser fabricados pelo laboratório da Secretaria da Saúde. Verificamos que, em muitos casos, a embalagem era mais cara do que o conteúdo e, assim, a norma era as mães devolverem as embalagens ao posto de saúde. Solicitei também à Pontifícia Universidade Católica do Paraná que fizesse o diagnóstico socioeconômico da clientela e a classificasse conforme a renda familiar de cada um. Com esse instrumento, era possível cobrar uma taxa dos que podiam pagar, sem nunca ultrapassar 10% do valor de uma consulta particular. Isso era possível porque a entidade era filantrópica e, como tal, tinha o título de utilidade pública reconhecido pelo governo; a Secretaria Estadual de Saúde Pública do Estado do Paraná provia apoio técnico e financeiro, através de convênios. Assim foi implantada a política de medicamentos, a educação contínua dos recursos humanos e, mais especialmente, das mães mais pobres. Constatei, nesses 13 anos contínuos de direção, que uma equipe capacitada e motivada para a missão, bem como a presença periódica e amiga do diretor, anima e estimula a qualidade e a humanização dos serviços.
Em 1972, fui selecionada, pelo Ministério da Saúde e pela OPAS, para fazer o curso de pediatria social da Universidade de Antioquia em Medellin, Colômbia. Lá fui, no início da gestação de minha filha caçula. Pude perceber a absoluta necessidade de planejar estratégias intersetoriais para superar problemas de saúde pública como as drogas e a gravidez na adolescência. Quando resolvi fazer o curso de saúde pública da Universidade de São Paulo (USP), em 1977, queria aprender mais e ter igualdade de condições nos debates com as lideranças da Secretaria de Saúde Pública. Quando voltei a Curitiba, meu esposo morreu em acidente e minha família me aconselhou a pedir demissão da direção da rede de postos de saúde, para ter mais tempo para dedicar aos cinco filhos, ainda menores de idade.
Retornei à Secretaria de Saúde, para trabalhar no planejamento. Foi então que esta secretaria me indicou para coordenar o Ano Internacional da Criança, promovido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Ministério da Saúde, em 1979. Solicitei liberdade para a criatividade, o que me foi concedido, desde que não precisasse de recursos financeiros. Chamei as principais lideranças de instituições com potencial de capilaridade: igrejas, prefeituras, secretarias de educação e agricultura e Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER). Escolhemos juntos quatro prioridades para o trabalho em conjunto, tendo como eixo a criança e sua família: aleitamento materno, vacinação, saneamento básico nas escolas e utilização da soja na merenda escolar e pelas famílias. Foram preparados textos básicos e cada estrutura procurava capacitar e mobilizar as suas lideranças, todas trabalhando unidas.
Acalmados os trabalhos do Ano Internacional da Criança, voltei à rotina do planejamento. Foi quando rompeu, em União de Vitória, uma epidemia de poliomielite. Fui chamada pelo secretário estadual de saúde pública, Dr. Oscar Alves, que queria me ouvir, juntamente com outros velhos e experimentados sanitaristas. Voltei da reunião com a incumbência de fazer o planejamento da campanha até o dia seguinte. Criei a metodologia dos principais lideranças se envolverem como atores no alcance das metas, trabalhando juntas. Não foi difícil abrir os caminhos para organizar o acesso, a qualidade e a humanização nessa campanha de vacinação Sabin, tendo como parceiros os meios de comunicação de massa.
Foram mapeados centenas de postos de vacinação em locais acessíveis. Centros de referência microrregionais acompanhavam a qualidade dos trabalhos. O próprio Albert Sabin e os técnicos do Ministério da Saúde vieram observar a campanha e ficaram satisfeitos. O grande sucesso desse trabalho, no Paraná, fez com que eu fosse chamada ao Ministério da Saúde para apresentar a metodologia e os resultados aos secretários e responsáveis pela vigilância sanitária dos estados, pois a epidemia já começava a se alastrar.
No retorno, fui convidada para dirigir o Departamento de Saúde Materno-Infantil do Estado do Paraná; faltavam apenas 2 anos de mandato e havia realmente muito que fazer. Desenhei uma estratégia para capacitar e motivar as enfermeiras, em primeiro lugar, para darem sustentação à qualidade dos treinamentos da frente de trabalho; em segundo lugar, os diretores; e, depois, os médicos. Foram debatidas a missão e a humanização no atendimento, além de ações básicas como a prevenção de câncer na mulher e a realização de exame pré-natal e parto de qualidade, a reidratação oral e a vacinação de rotina. Eu mesma discorria sobre a importância do aleitamento materno, e sobre a importância de incentivá-lo, como tarefa a ser cumprida por toda a equipe de saúde. O resultado foi acima das expectativas.
Nas eleições, a oposição assumiu o poder e, como de costume, nos países em desenvolvimento, pareceu-me que a preocupação maior dos novos dirigentes era apagar a imagem do governo anterior; fui das primeiras a serem demitidas do cargo, apesar de nunca ter sido filiada a partido nenhum. Os programas de saúde materno-infantil foram paralisados, mais especialmente o planejamento familiar, a prevenção do câncer ginecológico e a saúde escolar. Cheguei a perder a voz, ao me apontarem um caminhão com materiais educativos a serem incinerados. Um ano depois, fui procurada para assessorar a retomada do trabalho, pois havia muitas reclamações por parte da população, mas eu já estava comprometida com a nova missão de envolver a igreja na educação das famílias pobres para os cuidados com as crianças menores de 6 anos e gestantes. Essa ação social, promovida pela Igreja Católica com o apoio do UNICEF, foi denominada Pastoral da Criança.
Apesar de sempre ter me sentido feliz em todos os trabalhos que realizei, essa foi a minha mais eficiente contribuição à saúde pública no Brasil. Hoje, a Pastoral da Criança está consolidada em 32 743 comunidades de 3 555 municípios pelo trabalho voluntário de 133 134 líderes comunitários, 90% deles mulheres pobres, apoiados por 6 648 equipes de coordenação, capacitação e acompanhamento, também treinadas para essa função, o que significa em torno de 155 000 pessoas voluntárias. A meta é a redução da mortalidade infantil, da desnutrição e da violência dentro das famílias; e a construção da paz, pela promoção da cidadania dos excluídos, de seu acesso à saúde e à educação.
O Brasil, oitava economia mundial, com 8 511 864 km2 de extensão e a maior reserva de oxigênio do mundo, tem, segundo o censo de 2001, 170 milhões de habitantes, dos quais 32% vivem abaixo da linha de pobreza. É conhecido pela sua população de índole solidária, alegre, criativa, tolerante, de seu futebol e carnaval, além de ser um lugar onde cristãos, judeus, muçulmanos e ateus convivem pacificamente. Suas raízes culturais provêm especialmente de uma mistura de sangue indígena, africano e europeu. A violência urbana está essencialmente ligada ao tráfico de drogas e é proporcional à concentração de renda em cada município.
Nesse contexto social, iniciei, em setembro de 1983, com o Arcebispo de Londrina, Dom Geraldo Majella Agnelo, agora Cardeal Primaz do Brasil, o desafio de educar as famílias, através da igreja, para os cuidados com seus filhos, independentemente de sua religião, cor ou partido político. O trabalho inspirou-se na mística de transformar a fé na prática da fraternidade. A metodologia foi baseada no Evangelho de São João (Jo 6, 1-15), que versa sobre o milagre da multiplicação de cinco pães e dois peixes que saciaram 5 mil pessoas, após terem sido abençoados e repartidos, sobrando ainda 12 cestos de restos. É assim que, na Pastoral da Criança, se organizam as pequenas comunidades, identificando líderes que queiram assumir de forma voluntária esse trabalho e que recebem ajuda para viver uma mística de fraternidade, tendo como missão multiplicar os conhecimentos e a solidariedade entre as famílias vizinhas. A média nacional é de 12 famílias para cada líder.
Três são os instrumentos principais usados para a multiplicação do conhecimento e da solidariedade: a) visita mensal a mais de 1 milhão de famílias; b) o Dia do Peso, chamado de Dia da Celebração da Vida; c) reunião mensal de líderes em mais de 32 000 comunidades para análise dos esforços e resultados, usando o método pedagógico do ver, julgar, agir, avaliar e celebrar.
Além das ações básicas de saúde, são realizadas ações complementares, como a educação para a paz, através da promoção da auto-estima e das relações humanas. Em função do grande número de analfabetos entre os líderes comunitários e mães, a Pastoral da Criança iniciou, há 12 anos, o programa de alfabetização de jovens e adultos que, em 2002, conta com mais de 40 mil alunos.
A recuperação de milhares de crianças e gestantes desnutridas é resultado do conjunto de ações básicas, regado pela solidariedade e melhoria da auto-estima. A comunidade também se mobiliza em torno da questão nutricional, através de um intenso programa de enriquecimento da alimentação a partir do uso de alimentos regionais de baixo custo e alto valor nutritivo. É um trabalho educativo que resgata a cultura alimentar local e combate o desperdício, aproveitando de forma mais integral os alimentos.
A Pastoral da Criança, pelas suas ações simples, de baixo custo e replicáveis em larga escala, reduziu a mortalidade infantil em mais de 60%. Em 2001, a entidade registrou a média de 13 mortes por 1 000 nascidos vivos nas comunidades que acompanha, contra a média geral do país, de 34,6 por 1 000, segundo o UNICEF. A boa notícia está correndo o mundo: 14 países já estão desenvolvendo a Pastoral da Criança, tendo como referência o Brasil: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, na África; Timor Leste e Filipinas, na Ásia; Paraguai, Peru, Venezuela, Bolívia, Equador, Colômbia, Argentina, Chile e, mais recentemente, também o México, nas Américas. As informações disponíveis apontam para resultados muito bons, apesar de as experiências ainda não estarem tão consolidadas, talvez porque as secretarias de saúde desses países ainda não tenham incluído as Pastorais como parceiras fundamentais no alcance de objetivos comuns.
Os pontos-chave do sucesso são, principalmente: a) fidelidade aos objetivos; b) materiais educativos disponíveis gratuitamente a todos os agentes; c) sistema de capacitação descentralizado, com controle nacional; d) sistema de informações simples e ágil, com retorno de estímulos informatizados às bases, o que permite acompanhar e medir o impacto através de indicadores como nutrição da gestante, número de crianças com baixo peso ao nascer, aleitamento materno exclusivo aos 4 meses, incidência da diarréia e utilização do soro caseiro, vacinação completa para a idade, crianças pesadas no mês e desnutridas, além de outros relacionados ao desenvolvimento infantil; e) articulação com o sistema de saúde e outros parceiros - no Brasil, o Ministério da Saúde é responsável por 73% dos recursos da Pastoral da Criança, e a Rede Globo de Televisão, em conjunto com o UNICEF, por 5,5%; f) baixo custo: menos de meio dólar por criança/mês; g) a comunidade, através de seus líderes, é protagonista da transformação social - sendo esta a principal causa do sucesso.
A Pastoral da Criança também atua no controle social, através dos Conselhos de Saúde, nos diversos níveis, para a correta aplicação dos recursos públicos.
Na experiência da Pastoral da Criança, a multiplicação do saber e da solidariedade entre a população pobre e miserável alavanca os serviços de saúde, fazendo com que os excluídos da comunidade se incluam como protagonistas na construção de um mundo mais justo e fraterno, gerando, para todos, a paz.
1 Médica pediatra e sanitarista, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança. Também representa a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no Conselho Nacional de Saúde.