INVESTIGACIÓN ORIGINAL

 

Discriminação autorrelatada por adolescentes de uma coorte de nascimentos brasileira: prevalência e associações

 

Self-reported discrimination by adolescents in a Brazilian birth cohort: prevalence and associations

 

 

Helen GonçalvesI; Samuel C. DumithI; David Alejandro GonzálezII; Ana M. B. MenezesI; Cora L. P. AraújoI; Pedro C. HallalI; João Luiz BastosIII

IUniversidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-graduação em Epidemiologia, Pelotas (RS), Brasil. Enviar correspodência a: Helen Gonçalves, hdgs.epi@gmail.com
IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-graduação em Nutrição, Florianópolis (SC), Brasil
IIIUniversidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Florianópolis (SC), Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a prevalência e os fatores associados à discriminação autorrelatada por adolescentes.
MÉTODOS: Análise transversal dos adolescentes pertencentes à coorte de nascidos vivos em 1993 na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Dos 5 249 membros da coorte, foram coletadas informações em 2004 e 2005 sobre discriminação autorrelatada, variáveis sociodemográficas, atributos físicos e estado nutricional em 4 452 adolescentes. Regressão de Poisson foi utilizada nas análises bruta e ajustada para estimar as razões de prevalência (RP).
RESULTADOS: A prevalência global de discriminação autorrelatada foi de 16,4%. Na análise ajustada, a discriminação foi mais relatada por meninas (RP = 1,27, IC95%: 1,10 a 1,48); heteroclassificados pretos (RP = 1,28, IC95%: 1,04 a 1,57); pelos mais pobres (RP = 1,58, IC95%: 1,23 a 2,02); os que se perceberam como muito magros ou muito gordos (RP = 1,81 e 1,54, respectivamente), com dificuldades financeiras familiares (RP = 1,76, IC95%: 1,49 a 2,08); que usavam óculos (RP = 1,74, IC95%: 1,45 a 2,10), com autopercepção negativa da aparência dental (RP = 1,58, IC95%: 1,21 a 2,07), com reprovação escolar (RP = 1,23, IC95%: 1,01 a 1,51) ou que participaram em brigas no último ano (RP = 1,62, IC95%: 1,36 a 1,94). A associação entre discriminação e estado nutricional foi diferente conforme o sexo (P de interação = 0,009). Meninos magros relataram maior discriminação, enquanto aqueles com sobrepeso e obesidade apresentaram menor prevalência. Em meninas, a prevalência de discriminação foi maior entre as obesas, sendo esse efeito mais forte entre as ricas do que nas pobres.
CONCLUSÕES: A discriminação autorrelatada foi prevalente e desigualmente distribuída na população. Intervenções para reduzir experiências discriminatórias devem ser implementadas em fases iniciais da vida.

Palavras-chave: Adolescente; preconceito; relações interpessoais; epidemiologia; Brasil.


ABSTRACT

OBJECTIVE: To evaluate the prevalence of and factors associated with discrimination self-reported by adolescents.
METHODS: Cross-sectional analysis of adolescents belonging to a cohort of live births in 1993 in the city of Pelotas, Brazil. From the 5 249 members of the cohort, information was collected from 4 452 adolescents in 2004 and 2005 regarding self-reported discrimination, sociodemographic variables, physical attributes, and nutritional status. A Poisson regression was utilized in the raw and adjusted analyses to estimate prevalence rates (RP).
RESULTS: The global prevalence of self-reported discrimination was 16.4%. In the adjusted analysis, discrimination was reported more by the following groups: girls (RP = 1.27, 95%CI: 1.10-1.48), people identified by others as black (RP = 1.28, 95%CI: 1.04-1.57), poorer adolescents (RP = 1.58, 95%CI: 1.23-2.02), those who perceived themselves to be very thin or very fat (RP = 1.81 and 1.54 respectively), those whose families had financial trouble (RP = 1.76, 95%CI: 1.49-2.08), those who wore glasses (RP = 1.74, 95%CI: 1.45-2.10), those who thought their teeth looked bad (RP = 1.58, 95%CI: 1.21-2.07), those who had been reprimanded in school (RP = 1.23, 95%CI: 1.01- 1.51), and those who had been involved in fights in the past year (RP = 1.62, 95%CI: 1.36-1.94). The association between discrimination and nutritional status varied by sex (interaction P = 0.009). Thin children reported greater discrimination than those who were overweight or obese. Discrimination on the basis of obesity was higher among girls, with this effect more strongly felt among rich girls than among poor ones.
CONCLUSIONS: Self-reported discrimination was prevalent and unequally distributed among the population. Actions to reduce experiences of discrimination must be implemented during the initial stages of life.

Key words: Adolescent; prejudice; interpersonal relations; epidemiology; Brazil.


 

 

Discriminação é a exclusão de uma pessoa com base em suas características identitárias ou de pertença a grupos sociais como, por exemplo, cor/raça, altura, cabelo, peso, idade, classe social e sexo (1). Na ocorrência dos tratamentos discriminatórios operam, concomitantemente, questões objetivas (ter, ser, portar), subjetivas (psicológicas, vivências), culturais (modismos, hábitos de classe) e histórico-contextuais (significados do comportamento), que podem, ainda, comportar diferenciações conforme o ponto de vista do observador e o do discriminado (2).

Grande parte dos estudos nacionais e internacionais sobre a experiência de discriminação, publicados nos últimos 10 anos, estão focados em questões raciais e étnicas, de gênero e orientação sexual (3-5). Resumidamente, esses trabalhos mostram como a discriminação é historicamente construída, explicada e frequente nos contextos estudados, sendo mais relatada por negros, homossexuais, mulheres, indivíduos com baixa autoestima ou com depressão, de menor posição socioeconômica e obesos. Além das repercussões individuais e sociais da discriminação, na área de saúde, a discriminação é considerada um evento estressor de múltiplas origens e com distintos papéis na cadeia causal de danos físicos e emocionais (3).

No Brasil, é a partir das décadas de 1980-90 que o campo da "saúde da população negra" se configura e ganha mais destaque nas discussões e agendas políticas e acadêmicas, ao serem expostas as diferenças de acesso dos negros, em relação aos brancos, aos serviços de saúde, bem como as desigualdades em saúde, de forma mais geral (6). A transcendência das desigualdades sociais e o que se compreende por "racismo à brasileira" são aspectos centrais dos debates nesse período que estimularam novos trabalhos e resultados (6-9).

Apesar dos avanços, há ainda importantes lacunas no conhecimento acumulado sobre discriminação. No Brasil, dois estudos de base populacional, localizados, foram realizados pelo Instituto DataFolha (em 1995 e 2008), nos quais foram entrevistados indivíduos maiores de 16 anos, exclusivamente sobre o tema do preconceito de cor.1

São escassos os estudos de base populacional, avaliando crianças e adolescentes ou envolvendo outros tipos de discriminação que não a cor (10). Pesquisas nessas faixas etárias são necessárias, considerando que a aprendizagem sobre as diferenças interindividuais e a forma de lidar com elas começam nos primeiros anos de vida e podem ser reforçadas na adolescência. Acreditamos que quanto mais precocemente detectadas as percepções de discriminação, maiores serão as chances de se delinear políticas e programas para um melhor bem-estar biopsicossocial.

O presente estudo objetivou avaliar a prevalência e os fatores associados à discriminação percebida por diferentes motivos entre adolescentes de 11 anos da cidade de Pelotas, no Sul do Brasil.

 

MÉTODOS

Os participantes deste trabalho faziam parte de um estudo de coorte prospectivo, no qual todos os nascimentos hospitalares ocorridos na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, em 1993, foram monitorados. Subamostras da população investigada foram visitadas por nosso grupo com 1, 3 e 6 meses, 1, 4, 6 e 9 anos de idade. De 2004 a 2005, todos os participantes foram procurados para novo acompanhamento, cujos detalhes metodológicos estão descritos em outra publicação (11). Os resultados apresentados neste estudo referem-se às análises seccionais dessa última visita, quando os adolescentes tinham, em média, 11,3 anos de idade (desvio-padrão = 0,6).

O desfecho foi definido como se perceber discriminado ou prejudicado por algum motivo, no ano anterior ao da entrevista, por meio das seguintes questões que possuíam o mesmo enunciado: No último ano, te sentiste discriminado ou prejudicado por tua . . . ?: a) cor ou raça?; b) religião ou culto?; c) pobreza ou riqueza?; d) doença ou deficiência física? Todas as possibilidades de resposta eram oferecidas de forma dicotômica (sim ou não). Além dessas opções, o jovem poderia citar outra forma de discriminação ou prejuízo em uma categoria de resposta aberta, a qual foi rotulada como "outras" nas análises. As entrevistas ocorreram face a face, utilizando-se um questionário previamente avaliado na população local e padronizado entre os entrevistadores.

Como variáveis independentes, foram consideradas: sexo, cor/raça (classificada pelo entrevistador e baseada nas categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sendo esta branca, parda, preta, amarela ou indígena) (12), índice de bens (construído a partir de uma análise de componentes principais, envolvendo a posse de uma série de bens domésticos e características do domicílio e posteriormente dividido em quintis), estado nutricional, autopercepção do peso (muito magro, magro, normal, gordo, muito gordo), ocorrência de problemas financeiros na família no último ano, uso de óculos, avaliação da aparência dos dentes (muito bem, bem e mal), reprovação escolar (nenhuma, uma, duas ou mais) e participação em brigas (ter participado, no último ano, de briga em que se produziu alguma lesão física). Utilizou-se a cor/raça classificada pelo entrevistador por refletir o modo como observadores externos percebem os entrevistados.

Para a avaliação do estado nutricional, utilizou-se o índice de massa corporal (IMC), sendo os valores resultantes transformados em escores Z, de acordo com as novas curvas da Organização Mundial da Saúde (13). Os adolescentes foram pesados e medidos com balanças portáteis (precisão de 100 g) e antropômetros de alumínio (precisão de 1 mm), seguindo as normas e os critérios técnicos recomendados em todas as etapas da avaliação antropométrica (14). Posteriormente, os adolescentes foram classificados como magros, eutróficos, com sobrepeso ou obesos, usando os pontos de corte de -2,0; +1,0 e +2,0.

Descreveram-se as prevalências e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) dos relatos de discriminação ou prejuízos percebidos, de acordo com as categorias das variáveis independentes. Para a análise bruta e ajustada, utilizou-se a regressão de Poisson, com ajuste robusto da variância, sendo apresentadas as razões de prevalência (RP) e seus respectivos IC95% (15). A seleção das variáveis na análise ajustada foi realizada de acordo com o procedimento de 'eliminação para trás'. Assim, todas as variáveis independentes supracitadas foram incluídas no modelo multivariável por terem sido consideradas importantes preditores da percepção de discriminação ou prejuízo. Em seguida, as variáveis irrelevantes foram removidas, uma de cada vez, até que todas as que permanecessem no modelo final estivessem estatisticamente associadas com o desfecho, apresentando valor de P inferior a 0,1. Em cada passo, a variável com o maior valor de P foi removida, de modo que todas as que permaneceram no modelo final estiveram associadas com a percepção de discriminação ou prejuízo, de acordo com o critério mencionado.

Também foram testadas interações entre sexo, cor/raça e índice de bens com as demais variáveis independentes, sendo consideradas como estatisticamente significativas aquelas com valor de P inferior a 0,1. As análises foram efetuadas no pacote estatístico Stata (StataCorp, College Station, USA), e o nível de significância empregado foi de 5,0% para testes bicaudais. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas. Os pais ou responsáveis autorizaram a participação dos jovens no estudo.

 

RESULTADOS

A amostra estudada foi composta por 50,7% de adolescentes do sexo feminino, 66,8% heteroclassificados brancos, aproximadamente um terço com excesso de peso (sobrepeso ou obesidade) e um terço que se percebeu como gordo ou muito gordo. Do total de jovens entrevistados, 9,6% usavam óculos e 16,2% avaliaram mal a aparência de seus dentes. Os adolescentes que relataram problemas financeiros na família no último ano representaram 12,3% da amostra, 36,2% haviam reprovado na escola alguma vez na vida e 11,5% envolveram-se em alguma briga no último ano (Tabela 1).

 

 

Também na Tabela 1 está apresentada a distribuição do desfecho, conforme as categorias das variáveis independentes. As prevalências de discriminação por motivos específicos foram: raça ou cor 4,1% (IC95%: 3,5 a 4,7), religião ou culto, 3,6% (IC95%: 3,0 a 4,1), posição socioeconômica, 4,7% (IC95%: 4,1 a 5,3), doença ou deficiência física, 2,4% (IC95%: 1,9 a 2,8) e outros motivos, 6,5% (IC95%: 5,7 a 7,2). A prevalência global de discriminação percebida foi de 16,4% (IC95%: 15,2 a 17,4). A prevalência de discriminação foi maior nas meninas (17,9%) do que nos meninos (14,8%). Maiores prevalências de discriminação (acima de 20,0%) foram também observadas entre pretos ou indígenas, de menor posição socioeconômica, nos extremos de estado nutricional (medido ou autopercebido), com problemas financeiros na família, que usavam óculos, insatisfeitos com a aparência dos dentes, que reprovaram duas vezes ou mais na escola e com envolvimento em brigas.

A Figura 1 apresenta o percentual de discriminação de acordo com o motivo para os adolescentes que se perceberam discriminados ou prejudicados (n = 726). O percentual ultrapassa 100,0%, pois o adolescente poderia relatar mais de um motivo simultaneamente (2,6% relataram dois motivos e 1,0% três ou mais).

 

 

As associações brutas e ajustadas entre relatos de discriminação percebida e os fatores estudados estão demonstradas na Tabela 2. Indivíduos do sexo feminino tiveram prevalência de discriminação 27,0% maior do que os do sexo masculino na análise ajustada. Cor/raça, que esteve associada com a discriminação na análise bruta - maior entre pretos e indígenas em comparação com os brancos - perdeu significância estatística na análise ajustada, embora entre adolescentes pretos a prevalência tenha sido 28,0% maior do que entre os brancos. A posição socioeconômica apresentou associação inversa com a prevalência de discriminação, mesmo após ajuste. Quanto ao estado nutricional, adolescentes magros e obesos relataram prevalências de discriminação 30,0% maiores do que os eutróficos na análise bruta. Na análise ajustada, essa associação perdeu significância estatística. No entanto, o efeito do estado nutricional foi diferente conforme o sexo.

 

 

A Figura 2 mostra que meninos magros apresentaram prevalência de discriminação 1,9 vezes maior do que os eutróficos (IC95%: 1,1 a 3,6), enquanto que o sobrepeso e a obesidade apresentaram efeitos protetores (35,0% e 33,0%, respectivamente). Entre as meninas, a prevalência de discriminação foi maior entre as obesas (RP = 1,5, IC95%: 1,1 a 2,1; P < 0,01) do que nas eutróficas. Ainda entre as meninas, o efeito da obesidade sobre a prevalência de discriminação foi maior entre aquelas não-pobres (quintis 4 e 5 do índice de bens, RP = 2,1, IC95%: 1,2 a 3,7; P = 0,05) do que nas meninas pobres (quintis 1 e 2, RP = 1,5, IC95%: 0,9 a 2,3; P = 0,01), observando-se um valor de P para a interação de 0,08. Em meninos, não houve diferença no efeito do estado nutricional sobre a prevalência de discriminação, conforme o índice de bens (P de interação 0,31).

A Tabela 2 também mostra que, para o peso percebido, tanto aqueles que se sentem muito magros ou magros, como aqueles que se sentem gordos ou muito gordos, apresentaram maior percentual de discriminação percebida em relação àqueles com peso considerado normal, mesmo após ajuste. O efeito dessa e de outras variáveis não foi modificado por sexo, cor/raça ou índice de bens.

Indivíduos com problemas financeiros na família no último ano e que usavam óculos apresentaram prevalência de discriminação na análise ajustada 70,0% maior do que seus pares. Por sua vez, aqueles que avaliaram mal a aparência dos dentes tiveram maior propensão a se perceberem discriminados ou prejudicados, quando comparados aos que a avaliam bem ou muito bem. Reprovação na escola perdeu associação com o desfecho na análise ajustada, sendo 23,0% mais frequente o relato de discriminação entre aqueles com duas reprovações ou mais do que entre os adolescentes que nunca reprovaram, com significância estatística limítrofe. O envolvimento em brigas esteve fortemente associado com percepção de discriminação, mesmo após o ajuste.

 

DISCUSSÃO

No grupo estudado, 16,4% dos jovens relataram alguma forma de discriminação utilizada contra si e baseada em atributos/características pessoais, que divergem de um padrão normativo e/ou contextual do grupo que o discrimina. Nesse sentido, os resultados mostram que a discriminação relatada foi mais sentida pelos extremos de uma escala que reproduz aspectos socialmente diferenciadores: sexo feminino, cor/raça preta, pobreza e dificuldades financeiras, magreza (nos meninos) ou obesidade (nas meninas), autopercepção de peso diferente do considerado como "normal", avaliação negativa dos dentes, uso de óculos, maior reprovação escolar e envolvimento em brigas.

Ao discutir os resultados deste estudo, cabe destacar algumas limitações e vantagens da medida de único item, utilizada para avaliar experiências de discriminação e/ou prejuízo percebidas. Embora medidas de múltiplos itens tenham maior capacidade de captar os diversos componentes do construto discriminação, além de reduzirem erros de mensuração, não foram encontrados na literatura instrumentos submetidos a algum processo de adaptação transcultural para uso no contexto brasileiro, tampouco na faixa etária em questão. Assim, atendendo ao caráter preliminar e pioneiro desta investigação, optou-se pela elaboração e aplicação de uma medida de único item para avaliar as experiências discriminatórias entre os adolescentes.

Essa medida privilegiou uma abordagem genérica do conceito de discriminação, evitando restringi-lo ao tipo racial, de gênero, de classe ou outro. Se, por um lado, perdeu-se especificidade na análise desses diferentes tipos de discriminação, por outro, assumiu-se que as diferentes formas de tratamento injusto são igualmente indesejáveis e, em algumas situações, podem ser experimentadas simultaneamente. A experiência de discriminação com múltiplas motivações foi, inclusive, relatada por alguns participantes. Contudo, a baixa frequência de sujeitos nessa situação impediu que estes fossem analisados em separado no presente estudo.

Ainda com relação à medida, deve se salientar que os termos prejuízo e discriminação foram incluídos simultaneamente no mesmo item. Não foram investigados os sentidos atribuídos pelos participantes da pesquisa a esses termos, de forma que a interpretação dos resultados produzidos neste estudo deve ser realizada com cautela. Caso prejuízo e discriminação tenham conotações muito diferentes para os adolescentes, uma resposta positiva ao item pode indicar que os mesmos se perceberam discriminados, prejudicados ou ambos, sendo que esses conceitos podem apresentar relações distintas com os demais fatores avaliados na pesquisa.

Ao comparar o sexo feminino ao masculino, em uma sociedade marcada por diferenças de gênero, as desvantagens para as mulheres em várias áreas são grandes como menor inserção no trabalho e renda, por exemplo (16). O fato de as meninas sentirem maior discriminação do que os meninos sugere que, mesmo muitos anos após as conquistas feministas e femininas, diferenças importantes entre os sexos ainda são reafirmadas no corpo, nos padrões estéticos e nos papéis sociais de gênero (17).

Se na adolescência o capital físico ganha destaque nas relações cotidianas, é nessa fase também que a perspectiva do seu peso ganha proporções consideráveis. Embora o corpo do muito magro seja também criticado, o do muito gordo fala, no senso comum, de uma falta de determinação, controle e/ou de uma impulsividade considerada popularmente como incontrolável ou doentia para comer (18). Dessa forma, a influência que o adolescente recebe da mídia e dos diversos ambientes sociais em que se desenvolve contribui para que crianças e jovens tenham uma perspectiva diferente do que seria o "corpo ideal", o que pode estar influenciando fortemente os sentimentos de discriminação que, conforme apresentado neste estudo, foram mais frequentes entre meninos e meninas que não atingiram padrões considerados 'normais' e belos no Brasil.

Entre a gama de discriminações, o aspecto racial talvez seja o que tem maior destaque na literatura nacional sobre o tema (9, 19). Isso não está relacionado somente à distribuição racial da população brasileira na qual 45,0% se classificam como preta ou parda, mas a uma série histórica de atos que os excluem, ao manter desigualdades e iniquidades sociais pela cor/raça e aparência fenotípica. Em Pelotas há a maior proporção de pretos e pardos (16,1%) do Estado e quase todos são pobres (20).

Um estudo realizado por Gomes (21), em Belo Horizonte, mostrou que as mulheres negras entre 20-60 anos evidenciavam a trajetória escolar como um importante momento no processo de construção da identidade negra. Nesse ambiente, referiam que muitos estereótipos dos negros eram salientados, e as representações desse padrão estético eram depreciadas. Consequentemente, o corpo, com todas suas nuances (formato do corpo, olhos, nariz, dentes), reafirmava-se como um forte ícone da identidade do negro, do menor e do não belo. Outro trabalho realizado no Rio de Janeiro também encontrou, além da discriminação por cor/raça e local de moradia, que a aparência pode ser um importante atributo discriminatório, incluindo o "modo de vestir", a "condição social" e a "deficiência física" (9).

Apesar da crescente valorização da identidade negra, ainda os atributos físicos mais distantes do branco maximizam os preconceitos ligados à ideia de raça negra ou cor preta. Não é surpreendente que a prevalência de discriminação entre os entrevistados tenha sido 18,0% maior para as meninas e para os pretos (20,0%). Também, o maior percentual de discriminação autorrelatada entre os adolescentes contempla a posição socioeconômica, sendo mais frequente entre os mais pobres. Esse achado difere daqueles encontrados nos estudos específicos sobre discriminação racial, no qual a frequência de discriminação relatada tendeu a ser maior em estratos populacionais de maior posição socioeconômica (22). Isso demonstra a importância e as diferenças resultantes da forma como se aborda o fenômeno, ou seja, avaliando-se a discriminação de forma genérica ou se restringindo aos seus diferentes tipos isoladamente. Estudos mais aprofundados sobre o auto- rrelato de discriminação, que considerem essas diferenças de abordagem do fenômeno seriam importantes para melhor compreender essas questões.

De modo semelhante, outras características das extremidades desprestigiadas da aparência física para ambos os sexos mostram relação com a percepção de discriminação, como ser muito magro ou muito gordo, usar óculos ou ter avaliação negativa da aparência dos dentes. Isso ganha maior destaque nessa idade, quando as perspectivas de se aproximar do modelo hegemônico (ser desejado ou admirado na sua quase totalidade) ocasionam um custo psicossocial alto. Por exemplo, alguns estudos mostram que a autoestima interfere na saúde bucal, ou seja, quanto menor ela for pior serão as condições de saúde bucal do jovem (23). E isso aumenta as possibilidades de se sentir diferenciado, fazendo com que aqueles com situação socioeconômica desprivilegiada e os outsiders (não belos) formem um grupo-alvo de toda gama criativa de apelidos, exclusões e comparações comuns às relações interpessoais.

Diferentemente da associação encontrada com o peso percebido, o estado nutricional avaliado pelo IMC apontou que, enquanto em meninos a magreza esteve associada com maior discriminação - sendo o sobrepeso e a obesidade um fator de proteção -, nas meninas houve maior ocorrência nas obesas, especialmente entre aquelas com melhor posição socioeconômica. Essas diferenças provavelmente estão relacionadas com a fase de vida e as pressões sociais, econômicas e culturais do grupo de convivência: entre os meninos, independentemente da posição socioeconômica, as medidas de controle adquiridas para ter um corpo ideal estão principalmente direcionadas ao ganho de massa corporal, seja esta gorda ou magra. Por sua vez, nas meninas existiria um maior desejo por adquirir uma imagem esbelta que, conforme as pressões e os recursos econômicos disponíveis para atingir esse padrão, ocasionariam preocupações e mudanças de hábitos com intensidade diferente entre meninas ricas e pobres (24). Essas características podem também ajudar a explicar a "inversão socioeconômica da adiposidade" observada em países de renda alta (em homens e mulheres) e de renda média (somente em mulheres), a maior prevalência de obesidade entre crianças ricas (nos primeiros anos de vida) passa a ser mais frequente durante a adolescência e na fase adulta entre os pobres (25, 26). Assim, embora seja sabido que o sobrepeso e a obesidade em crianças, adolescentes e adultos são problemas crescentes de saúde pública (27), os nossos achados demonstram que quando se estuda um fenômeno que depende fortemente das relações sociais, mais importante do que a medida em si (no caso, o peso) é o modo como o sujeito entende o "padrão ideal" a ser atingido e como se percebe frente a outros.

Outro resultado importante encontrado consiste na relação entre participação em brigas e discriminação. Os achados deste estudo indicam que aqueles que participaram de alguma briga, causando dano físico a alguém, tiveram uma percepção de discriminação maior. Nesse caso, não podemos inferir se a discriminação foi decorrente do envolvimento na briga ou o contrário. O envolvimento em brigas pode ser uma forma de comportamento defensivo e socialmente indicado, em especial para os meninos, cobrados socialmente a se defender na rua desde cedo. No entanto, mesmo que a participação em brigas nos meninos tenha sido maior que nas meninas (17,1% e 6,2%, respectivamente), a sua associação com a discriminação não foi diferente entre ambos os sexos. Estudos enfatizam que a participação em brigas pode ser um preditor de violência doméstica (28) e de relações familiares instáveis (29) ou um 'sintoma' das diferenças que instigam a discriminação (30), os quais afetariam homens e mulheres de forma similar.

O fato de o adolescente perceber-se discriminado ou prejudicado aos 11 anos salienta que, desde cedo, há um reconhecimento e assimilação dos valores sociais que marcam diferenças socioculturais entre os indivíduos, seja por motivos de gênero, cor/raça, posição socioeconômica e/ou estética. O ambiente escolar (frequentado por 99,4% dos adolescentes entrevistados), assim como a família e o bairro, e espaço fundamental de comparação e aprendizado da diferenciação por meio dos atributos físicos e culturais, nos quais os atos de classificação são aprendidos desde a infância com os colegas de classe, amigos do bairro e/ou com os próprios pais. Esses ambientes acabam por reproduzir as estruturas do espaço social e seus valores, nos quais as desigualdades sociais e a discriminação seriam reafirmadas. Pesquisas nessa área, assim como as políticas destinadas a minimizar a frequência de discriminação, devem considerar os vários padrões socioculturais e os diferentes ambientes em que o adolescente se desenvolve, dando destaque às ações apropriadas para um projeto efetivo de redução de danos ao logo da vida.

Agradecimentos. As análises foram apoiadas por Wellcome Trust, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Fases anteriores foram financiadas pela União Europeia, Programa Nacional de Núcleos de Excelência (PRONEX/CNPq) e Ministério da Saúde.

 

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Manuscrito recebido em 12 de fevereiro de 2011.
Aceito em versão revisada em 1 de agosto de 2011.

 

 

1 Ver DataFolha, 2008 - http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=779

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