ARTÍCULO DE REVISIÓN / REVIEW ARTICLE

 

Programa Bolsa Família e segurança alimentar e nutricional no Brasil: revisão crítica da literatura

 

The Bolsa Família cash transfer program and food and nutrition security in Brazil: a critical review of the literature

 

 

Rosângela Minardi Mitre Cotta; Juliana Costa Machado

Universidade Federal de Viçosa, Viçosa (MG), Brasil. Correspondência: Rosângela Minardi Mitre Cotta, rmmitre@ufv.br

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Revisar criticamente os estudos que avaliaram os impactos do Programa Bolsa Família (PBF) na promoção da segurança alimentar e nutricional no Brasil.
MÉTODOS: Foram consultadas as bases de dados Biblioteca Cochrane, LILACS, Medline e SciELO, bem como os portais de organizações públicas. Foram selecionados os estudos que utilizaram dados primários e excluídos estudos baseados em dados secundários, artigos de revisão, estudos que não permitiram estabelecer uma associação entre PBF e segurança alimentar e nutricional, bem como os estudos que avaliaram a segurança do alimento no que se refere apenas à qualidade sanitária.
RESULTADOS Foram selecionados 10 estudos, dos quais cinco concluíram que o PBF teve um impacto positivo na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiárias. Entretanto, três estudos constataram um aumento do consumo de alimentos de maior densidade calórica e baixo valor nutritivo. Essa mudança no hábito alimentar é um fator de risco para o desenvolvimento do sobrepeso, obesidade e das doenças crônicas não transmissíveis.
CONCLUSÕES: A garantia de segurança alimentar e nutricional exige programas que contemplem tanto o combate à desnutrição quanto ao sobrepeso e à obesidade. Programas de distribuição de renda, como o PBF, podem contribuir mais efetivamente para o bem-estar nutricional dos beneficiários quando combinados com outros tipos de intervenções, como ações de promoção de alimentação saudável.

Palavras-chave: Segurança alimentar e nutricional; programas de nutrição; programas e políticas de nutrição e alimentação; Brasil.


ABSTRACT

OBJECTIVE: To critically review studies evaluating the impact of Bolsa Família (PBF), a federal cash transfer program, for food and nutrition security in Brazil.
METHODS: The Cochrane Library, LILACS, Medline and SciELO databases were searched, as well as public organization websites. All studies based on primary data were selected. The following were excluded: studies using secondary data, review articles, studies that did now allow the establishment of associations between PBF and food and nutrition security, as well as studies evaluating food security strictly in sanitary terms.
RESULTS: Ten studies were included. Of these, five concluded that PBF had a positive impact on the food and nutrition security of participating families. Three studies observed an increase in the consumption of foods with higher calorie content and less nutritional value. This change in dietary habits is a risk factor for the development of overweight, obesity, and noncommunicable chronic diseases.
CONCLUSIONS: The guarantee of food and nutrition security requires programs that focus on both malnutrition and overweight and obesity. Cash transfer programs such as the PBF can contribute more effectively to the nutritional well-being of participants if they are combined with other types of interventions, such as actions to promote healthy eating.

Key words: Food security; Nutrition Programs; nutrition programs and policies; Brazil.


 

 

O direito humano à alimentação adequada (DHAA) foi afirmado, em âmbito internacional, pelo Pacto Internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (1) e reafirmado, no Brasil, através de lei orgânica e de emenda constitucional (2). A lei 11 346/2006, em seu artigo 3, explicita o conceito de segurança alimentar e nutricional como a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade uficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente ­sustentáveis (2).

No Brasil, a dificuldade de acesso regular e permanente aos alimentos por um contingente significativo da população, associada à renda insuficiente, determina um quadro de insegurança alimentar (3–6). Quanto menor o rendimento mensal domiciliar per capita, maior a proporção de domicílios em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, fato que revela a restrição qualitativa e quantitativa de alimentos ou o fenômeno da fome nesses domicílios (7–9).

Os programas de transferência condicionada de renda têm-se destacado como políticas de proteção social e combate à pobreza em diversos países, inclusive no Brasil. Tais programas transferem às famílias um valor mensal em dinheiro desde que sejam cumpridas certas condições, como manter as crianças em idade escolar na escola e fazer o acompanhamento mensal de saúde e nutrição dessas crianças. Destinam-se às famílias em situação social adversa, com dificuldade de acesso a alimentação adequada (10, 11).

Em 2004, o governo brasileiro instituiu o Programa Bolsa Família (PBF) para transferência direta e condicionada de renda. O objetivo do PBF é o combate à pobreza e à fome e a promoção da segurança alimentar e nutricional. Dentre os efeitos previstos estão a melhoria da renda e dos padrões de alimentação, juntamente com ações de saúde e nutrição que integram o conjunto de condições a serem cumpridas pelas famílias (1, 10). Em 2009, o número de famílias beneficiadas chegou a 12,4 milhões (12).

Estudos indicam que as famílias atendidas por programas de transferência condicionada de renda tendem a gastar uma parcela importante do benefício recebido com a compra de alimentos, principalmente para as crianças. Entretanto, o aumento na aquisição de alimentos não necessariamente indica diminuição da insegurança alimentar ou bem-estar nutricional das famílias. Além de razões econômicas, existem outros fatores que interferem na escolha dos alimentos, como a disseminação de propagandas de produtos de baixo valor nutricional e caloricamente densos, os quais têm preços relativamente acessíveis.

Tendo em vista a importância de avaliar e monitorar os impactos de programas sociais para o aperfeiçoamento das políticas públicas (10, 13–15), o objetivo do presente trabalho foi realizar uma revisão crítica dos estudos que avaliaram os impactos do PBF na promoção da segurança alimentar e nutricional.

 

MÉTODOS

Para a revisão bibliográfica, considerou-se o período desde 2004, ano de promulgação da lei que criou o PBF, até 2011. O PBF é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, destinado às famílias com renda familiar de no máximo R$ 140,00 por pessoa. As famílias que possuem renda mensal entre R$ 70,00 e R$ 140,00 por pessoa podem ingressar no programa se possuírem crianças ou adolescentes de até 17 anos. O valor do benefício recebido pode variar entre R$ 22,00 e R$ 200,00, dependendo do número e da idade dos filhos. Já as famílias com renda mensal de até R$ 70,00 por pessoa podem participar independentemente da idade dos membros da família. As principais condicionalidades são: vacinação conforme o calendário vacinal e acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 7 anos; e acompanhamento da saúde das mulheres na faixa de 14 a 44 anos e de gestantes e nutrizes. Na educação, todas as crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos devem apresentar a frequência escolar mensal mínima exigida (16).

Foi desenvolvido um protocolo para conduzir de forma sistematizada a revisão. De acordo com esse protocolo, foram selecionados todos os estudos cujos títulos ou resumos mencionassem a apresentação de dados originais sobre o PBF e segurança alimentar e nutricional, constituindo o Subconjunto 1. Para a seleção dos estudos, foram consultadas as seguintes bases de dados em saúde: Biblioteca Cochrane, Literatura Latino Americana e do Caribe (Lilacs), Medline e Scientific Electronic Library Online (SciELO).

Os descritores utilizados para a busca foram: "Programa Bolsa Família", "segurança alimentar e nutricional", "segurança alimentar" e seus correspondentes no idioma inglês. Nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) existe o termo "segurança alimentar e nutricional", o qual, por sua vez, não consta no Medical Subject Headings (MeSH). Dessa forma, a busca na base de dados Medline utilizou os termos "food supply program", "food insecurity" e "food security". De forma complementar, foram pesquisados documentos e publicações em portais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome e Ministério da Saúde do Brasil, World Health Organization (WHO) e Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Todos os estudos foram analisados na íntegra e tiveram suas listas de referências bibliográficas revisadas, visando à identificação de outros trabalhos relacionados ao tema e que, eventualmente, não houvessem sido identificados pela busca eletrônica. No Subconjunto 1 foi feito um refinamento, através da leitura dos resumos dos estudos, no intuito de verificar a ocorrência de "avaliação do impacto do PBF na segurança alimentar e nutricional dos beneficiários", tema que, por sua vez, foi o critério de inclusão adotado para a composição do Subconjunto 2.

No Subconjunto 2 também foi realizado um refinamento no intuito de identificar estudos que seriam substantivamente analisados para a avaliação de possíveis impactos do PBF na segurança alimentar e nutricional dos beneficiários. Dessa forma, foram excluídos os estudos baseados em dados secundários, os artigos de revisão, os estudos que não permitiram estabelecer uma associação do PBF com a segurança alimentar e nutricional, bem como os estudos que avaliaram a segurança do alimento no que se refere apenas à qualidade sanitária. Os refinamentos e análises de conteúdo dos estudos foram realizados pelas autoras.

Os estudos finalmente selecionados foram analisados considerando os seguintes instrumentos ou indicadores de avaliação da segurança alimentar e nutricional: Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), avaliação do consumo alimentar, avaliação do gasto financeiro com alimentação, avaliação antropométrica e bioquímica (17). A figura 1 mostra o protocolo utilizado para a realização da pesquisa bibliográfica, bem como os critérios de seleção dos estudos para análise final.

 

 

Para os estudos selecionados foi elaborada uma matriz, tendo como referência o protocolo de Burns et al. (18), elaborado para revisar sistematicamente os efeitos de intervenções voltadas à melhoria da segurança alimentar e nutricional em populações de países desenvolvidos. Foi realizada uma adaptação desse protocolo com o objetivo de categorizar os principais achados de cada estudo, possibilitando inferências sobre seus respectivos resultados. A categoria "tipo de intervenção" foi excluída, pois, no presente trabalho, apenas um tipo de intervenção, o PBF, foi considerado. Dessa forma, os componentes da matriz foram: autor, ano de realização, desenho e local de realização do estudo, amostra, instrumento ou indicadores de avaliação da segurança alimentar e nutricional e principais resultados e considerações sobre o tema.

 

RESULTADOS

A busca eletrônica em base de dados resultou na identificação inicial de 3 400 estudos. Após o primeiro refinamento, foram selecionados 63 estudos cujos títulos ou resumos mencionavam o impacto do PBF na segurança alimentar e nutricional. Após o segundo refinamento, foram selecionadas 10 publicações (8 artigos e 2 dissertações de mestrado). Foram excluídos 53 estudos que não apresentaram dados originais para a avaliação de possíveis impactos do PBF na segurança alimentar e nutricional dos beneficiários. Dentre as 10 publicações selecionadas, 4 compunham o estudo do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e foram, portanto, analisadas em conjunto e agrupadas na matriz como um único estudo. Por fim, realizou-se a análise do delineamento de cada estudo e sua categorização (tabela 1).

Nove estudos utilizaram o desenho transversal e apenas um foi de caso-controle. Os estudos resultaram de pesquisas realizadas entre 2005 e 2011. Em relação à abrangência geográfica, o estudo do IBASE foi realizado em 229 municípios de todas as regiões do território nacional. Os demais ocorreram nas regiões Nordeste e Sudeste. Quanto à amostra, os estudos foram heterogêneos, com famílias da zona rural (n = 3) e urbana (n = 4) e crianças de diferentes faixas etárias. Os estudos adotaram os seguintes critérios de avaliação da segurança alimentar e nutricional: gasto financeiro com alimentação, consumo alimentar, EBIA e avaliação antropométrica. Quatro estudos identificaram impactos positivos do PBF sobre a segurança alimentar e nutricional, um estudo identificou impacto negativo e um constatou a ocorrência de impacto positivo e negativo.

Duarte et al. avaliaram, com dados coletados em 2005, o impacto do PBF sobre os gastos com alimentação de famílias rurais, contemplando 838 famílias em 32 municípios (19). Os autores compararam indivíduos que participavam e que não participavam do PBF, utilizando o método Propensity Score Matching, que corrige os vieses da seleção amostral. Considerando o valor anual do dólar no Brasil em 2005 (US$ 1,00 = R$ 2,43) (20), o valor médio dos gastos anuais das famílias beneficiárias superou em US$ 101,23 a média dos gastos anuais das famílias não beneficiárias. Visto que a renda média anual recebida por essas famílias era de US$ 114,40 e que, provavelmente, 88% desse valor eram utilizados para consumo de alimentos, o estudo concluiu que o PBF tem um impacto positivo sobre o consumo alimentar das famílias (19).

Saldiva et al. (21) avaliaram as condições de saúde e nutrição de 189 crianças menores de 5 anos, associando a qualidade do consumo alimentar ao PBF. Esse estudo transversal empregou inquéritos domiciliares em dois períodos (dezembro de 2005 e fevereiro de 2006), com seleção por amostragem sistemática, incluindo o total de crianças menores de 5 anos neles residentes. Para o diagnóstico nutricional das crianças foram utilizados os indicadores peso para idade, altura para idade e peso para altura, tomando como referências os pontos de corte da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para avaliação do consumo alimentar, o estudo utilizou um questionário de frequência alimentar. Os autores relataram uma prevalência de 4,3% de déficit de peso, 9,9% de déficit estatural e 14% de excesso de peso nas crianças avaliadas (21). Esses números são elevados quando comparados aos estudos nacionais (22). As análises não mostraram diferenças estatisticamente significativas entre o estado nutricional das crianças beneficiárias e não beneficiárias, sendo que, em ambos os grupos, o consumo de frutas, verduras e legumes foi baixo e semelhante. Entretanto, as crianças beneficiárias do PBF apresentaram um risco três vezes maior de consumir guloseimas.

Cotta et al. (23) realizaram um estudo cujo objetivo foi determinar a prevalência e os fatores associados a anemia em crianças cadastradas no PBF. Esse estudo transversal comparou uma amostra aleatória de famílias beneficiárias do PBF e um grupo de famílias cadastradas no Programa que ainda não recebiam o benefício, denominadas de não beneficiárias. Da população, 57% residiam na zona rural. Considerando que as famílias não beneficiárias estavam cadastradas no Programa, o estudo pressupôs que as condições socioeconômicas dos grupos eram semelhantes. Foram avaliadas 446 crianças com idade entre 6 e 84 meses. A prevalência de anemia encontrada foi de 22,6%, sendo 69% de anemia leve, 30% moderada e 1% grave. O risco de anemia foi maior em crianças com idade menor que 24 meses, porém com maior razão de prevalência no grupo de crianças não beneficiárias. A hipótese sugerida é de que o cumprimento das condicionalidades exigidas pelo PBF tenha resultado em maior assistência à saúde para as crianças beneficiárias (23).

Oliveira et al. (24) estudaram o estado nutricional de crianças com idade entre 6 e 84 meses cadastradas no PBF, comparando o grupo de beneficiários (n = 262) com não beneficiários (n = 184). Os resultados mostraram que 76% das famílias informaram gastar o benefício recebido com a compra de alimentos. Em relação ao estado nutricional, o estudo mostrou que o consumo de água sem tratamento é um fator de risco para o déficit estatural, com maiores chances no grupo de crianças não beneficiárias (24).

O IBASE realizou um estudo de base populacional com dados coletados em 2007 em 229 municípios brasileiros, tendo como um dos objetivos averiguar as repercussões do PBF na segurança alimentar e nutricional (12). A pesquisa foi dividida em duas fases — uma quantitativa, em que foram entrevistados 5 mil beneficiários, e uma qualitativa, que ouviu 170 beneficiários em 15 grupos focais. Foram analisados gastos com alimentação, mudanças no consumo alimentar após o recebimento do benefício e a segurança alimentar e nutricional medida pela EBIA. Quanto ao gasto com alimentação, considerando o valor médio anual do dólar, no Brasil, em 2007 (US$ 1,00 = R$ 1,95) (19), verificou-se que as famílias beneficiárias gastavam em média US$ 105,26 com alimentação (salário mínimo em 2007 = US$ 194,87), o que corresponde a 56% da renda total das famílias. Além disso, 87% relataram gastar o benefício recebido com a compra de alimentos. Questionados sobre o que ocorreu com a alimentação da família após o recebimento do benefício, mais de 70% responderam que aumentou a quantidade e a variedade de alimentos consumidos e 63% responderam que passaram a comprar mais alimentos preferidos pelas crianças. Constatou-se uma prevalência de insegurança alimentar de 83%, sendo que mais de 50% sofriam de restrição na quantidade de alimentos disponíveis ou passavam fome. Um achado importante foi a constatação de que houve aumento na quantidade e na variedade dos alimentos consumidos e na compra de alimentos de que as crianças gostam. Isso ocorreu mais entre as famílias com insegurança alimentar moderada e grave. Em relação às mudanças no consumo alimentar após o recebimento do benefício, o estudo mostrou um impacto negativo, já que houve um aumento do consumo de alimentos de maior densidade energética e menor valor nutritivo (biscoitos, alimentos industrializados e açúcares). No entanto, o benefício possibilitou o aumento do consumo de importantes fontes proteicas, como leite e seus derivados e carnes. O estudo ainda mostrou que, quanto mais pobre a família, maior a proporção da renda gasta com alimentação (12).

Em estudo transversal com 214 crianças menores de 18 meses em dois municípios de São Paulo, Marcolino (25) avaliou a associação entre o recebimento do benefício do PBF e a adequação da alimentação complementar. Foi utilizada análise de regressão logística bivariada com ajuste do modelo pela variável renda per capita. Não foi encontrada associação entre os tipos de alimentos consumidos — carnes e ovos, verduras, legumes e frutas, frituras e salgados, doces e refrigerantes — e o benefício do PBF (25).

Finalmente, o estudo desenvolvido em um centro de saúde no Rio de Janeiro (26) encontrou resultados semelhantes aos da pesquisa do IBASE. O estudo investigou 122 famílias beneficiárias e constatou que o maior gasto da renda era com alimentação, sendo que o recebimento do benefício possibilitou um maior poder de compra de produtos preferidos pelas crianças, aumentando ainda a quantidade e a variedade de alimentos nos domicílios (26).

 

DISCUSSÃO

Os achados do presente artigo revelam um paradoxo referente ao impacto do PBF na segurança alimentar e nutricional dos beneficiários: o PBF promove um aumento do acesso aos alimentos que não é necessariamente acompanhado por um aumento da qualidade nutricional da alimentação. Ainda assim, a maioria dos estudos mostrou que o PBF promoveu aumento no acesso aos alimentos em quantidade e variedade e uma melhora no estado nutricional das crianças. Em estudo realizado no México (27) com famílias beneficiárias de um programa semelhante, verificou-se a melhora nos índices de segurança alimentar e nutricional e um maior direcionamento dos gastos com alimentos. Segundo o IBASE (12), o gasto com alimentação ocupa proporção significativa da renda total; quanto mais pobre a família, maior a proporção da renda gasta com alimentos. Esses resultados podem estar relacionados à melhoria da renda e ao acompanhamento nutricional, que é uma das condicionalidades dos programas (8, 28).

O conceito de segurança alimentar e nutricional abrange as ideias de disponibilidade, acesso e suficiência alimentar. A disponibilidade e o acesso são os fatores que estão mais diretamente associados à renda familiar e às características do mercado de alimentos da região, que envolvem as possibilidades de produção e os sistemas de preço e de logística. Além disso, há também a possibilidade de as famílias contarem com produção própria ou doação de alimentos. Já a suficiência alimentar é uma medida mais complexa, que depende da articulação entre disponibilidade, acesso e distribuição do consumo intrafamiliar, ou seja, a suficiência é influenciada pelo tamanho e pela composição das famílias, assim como por escolaridade, cultura e renda (17, 29).

É consenso que os programas de transferência de renda sozinhos não são capazes de resolver o problema da pobreza e da insegurança alimentar. Implicações negativas relacionadas ao aumento do consumo alimentar foram encontradas em estudo com beneficiários do programa Oportunidades, no México, tais como: maiores níveis pressóricos e aumento de massa corporal e do consumo de alimentos não saudáveis em beneficiários do programa comparados com não beneficiários (30). Outro estudo brasileiro (31) mostrou relação entre o nível de dependência da renda proveniente do benefício do PBF e o aumento no consumo de açúcar. Os autores ressaltam que, a despeito do aumento do consumo (resultado positivo alcançado pelos programas de transferência de renda), os beneficiários priorizam a ingestão de alimentos industrializados ricos em energia, o que se traduz em hipertensão arterial, sobrepeso e obesidade. Nesse sentido, o estudo enfatiza a importância de associar o benefício com ações de educação e avaliação nutricional (11, 12, 31).

Mensurar a insegurança alimentar representa um desafio devido à complexidade e ao vasto número de fatores associados ao fenômeno (32, 33). Em relação à prevalência de insegurança alimentar medida pela EBIA, o único estudo que fez esse levantamento, associando os níveis de insegurança alimentar ao recebimento do PBF, foi o do IBASE (12). A prevalência de insegurança alimentar encontrada pelo IBASE foi alta quando comparada aos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009, que mostrou prevalência de 29,4% na zona urbana e de 35,1% na zona rural (12, 34). Um estudo com dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 2006 (35) apontou que o PBF afeta significativamente apenas os domicílios em situação de insegurança alimentar leve, elevando em 11% as chances de esse grupo tornar-se seguro, mas sem resultados estatisticamente significativos no caso dos beneficiários em condições de insegurança alimentar moderada e grave.

Como a maioria dos estudos analisados é transversal, há limitações que impedem inferências mais abrangentes. Nesse sentido, os resultados não permitem o estabelecimento de relações causais. Outras limitações dizem respeito ao viés de memória que impregna as informações sobre o consumo alimentar, como nos estudos de Saldiva et al. (21), IBASE (12) e Marcolino (25), e ao tempo de recebimento do benefício monetário, já que os anos de coleta de dados apresentam variação de até 5 anos, o que influencia na avaliação dos possíveis impactos na segurança alimentar e nutricional. É possível supor que os achados desses estudos possam servir de subsídio para novas pesquisas.

Em outros países, os impactos dos programas de transferência de renda sobre o estado nutricional das crianças nem sempre são claros. No México, houve impactos na altura das crianças na faixa etária de 12 a 36 meses. Acredita-se que esse efeito se deva aos suplementos nutricionais distribuídos pelo programa e não à transferência monetária. Na Colômbia, o Programa Famílias en Acción apresentou efeitos positivos na altura e peso das crianças menores de 2 anos. Como não houve distribuição de suplemento nutricional, esse resultado foi atribuído ao acompanhamento nutricional recebido pelas famílias, como parte das condicionalidades exigidas (36–39).

Avaliando as especificidades metodológicas, o número de estudos analisados e as desigualdades entre as regiões onde os mesmos foram realizados, é necessário reconhecer que existem limitações quanto à possibilidade de inferências mais conclusivas neste trabalho, considerando, entre outros, que lidamos com a possibilidade de que dados negativos sobre o efeito do PBF possam ter sido sub-reportados nos estudos analisados.

É importante salientar que os programas de transferência condicionada de renda contribuem mais efetivamente para o bem-estar nutricional quando combinados com outros tipos de intervenções, como, por exemplo: ações de promoção de alimentação saudável, regulamentação da propaganda de alimentos, suplementação e fortificação de alimentos, alimentação escolar, programas de infraestrutura e ações que impactam o sistema produtivo, como geração de emprego, formalização do trabalho, estabilidade dos preços dos alimentos e apoio à agricultura familiar. Diversas intervenções desse tipo estão em processo de implementação no Brasil (10, 12).

Conclusões

Como mostrou este artigo, o PBF pode auxiliar na promoção da segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiárias, ao propiciar às populações em vulnerabilidade social maior capacidade de acesso aos alimentos. Por outro lado, constatou-se um aumento do consumo de alimentos de maior densidade calórica e baixo valor nutritivo. Essa mudança nos hábitos alimentares é um fator de risco para o desenvolvimento do sobrepeso, obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis.

O PBF tem um importante papel no consumo alimentar das famílias. Porém, suas potencialidades estão condicionadas à capacidade do poder público e da sociedade civil de regular o cumprimento dos seus propósitos, incluindo a promoção da segurança alimentar e nutricional, bem como da implementação das políticas sociais e econômicas de âmbito mais geral que integrem os diferentes setores.

É importante ressaltar que o presente estudo demonstrou que o impacto do PBF na segurança alimentar e nutricional dos beneficiários constitui-se em um paradoxo, demandando, portanto, um modelo de atenção à saúde que integre as duas faces da insegurança alimentar: a desnutrição e o sobrepeso/obesidade. Nesse contexto, ressalta-se, sobretudo, a necessidade de políticas de educação alimentar.

Agradecimentos. O presente trabalho recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (Processo 23038.009788/2010-78, AUX-PE-Pró-Ensino Saúde 2034/2010); e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq), Brasil (Processo 301146/2011-0, protocolo 8124482882411405).

Conflitos de interesse. Nada declarado pelos autores.

 

REFERÊNCIAS

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Manuscrito recebido em 1 de março de 2012.
Aceito em versão revisada em 9 de setembro de 2012.

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