ORIGINAL RESEARCH INVESTIGACIÓN ORIGINAL

 

Determinantes da detecção de atipias celulares no programa de rastreamento do câncer do colo do útero no Rio de Janeiro, Brasil

 

Determinants of cellular atypia detection in the cervical screening program in Rio de Janeiro, Brazil

 

 

Mariá Gonçalves Pereira da SilvaI; Rosimary Terezinha de AlmeidaI; Ediane Assis BastosI; Flávio Fonseca NobreI

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (COPPE), Programa de Engenharia Biomédica, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Correspondência: Mariá Gonçalves Pereira da Silva, silvamgp@gmail.com

 


RESUMO

OBJETIVO: Identificar os principais determinantes da detecção de atipias celulares no programa de rastreamento do câncer do colo do útero no Estado do Rio de Janeiro, utilizando os dados do Sistema de Informação do Câncer do Colo do Útero (SISCOLO).
MÉTODOS: Uma amostra aleatória de 65 535 exames citopatológicos realizados em 2007 foi obtida do SISCOLO. Essa amostra foi utilizada para construir um modelo de regressão logística que identificasse variáveis com impacto no processo de detecção de atipias celulares. Foi aplicada uma curva ROC para definir o ponto de corte mais adequado para classificar a presença ou a ausência de atipias. Uma análise de sensibilidade foi realizada para avaliar o impacto dos fatores relacionados à organização do serviço no modelo.
RESULTADOS: As variáveis preditoras do modelo foram: "laboratório de referência", que reflete a escala de produção do laboratório; "presença de elementos celulares representativos da zona de transformação", que reflete a qualidade da coleta de amostras; "metaplasia escamosa imatura", "presença de outras alterações celulares benignas" e "ausência de microrganismos da microbiota vaginal". A cada acréscimo de 1 ano na idade da mulher, houve redução de 1,7% na chance de detecção de atipias. A curva ROC definiu o ponto de corte de 4,5%, que permitiu a maximização da sensibilidade (73,0%) e especificidade (66,8%) do modelo. A análise de sensibilidade indicou aumento da frequência de atipias de 46,4% quando simulou-se aumento na participação do laboratório de referência (42,9%) e na presença de elementos celulares representativos da zona de transformação (43,0%).
CONCLUSÕES: O modelo revelou que a detecção de atipias celulares é fortemente influenciado por fatores organizacionais, como adequabilidade da lâmina e porte do laboratório de análise. Considerando que esses fatores são passíveis de alteração pelos gestores, o modelo pode ser uma importante ferramenta na melhoria dos programas de rastreamento.

Palavras-chave: Neoplasias do colo do útero; displasia do colo do útero; programas de rastreamento; análise de regressão; Brasil.


ABSTRACT 

OBJECTIVE: To identify the main determinants of cellular atypia detection in the cervical screening program in the state of Rio de Janeiro, Brazil, using data from the Cervical Cancer Information System SISCOLO.
METHODS: A random sample of 65 535 Pap smears performed in 2007 was obtained from SISCOLO. This sample was used to produce a logistic regression model to identify variables that impact the process of detecting cellular atypia. A ROC curve was used to define the most suitable cutoff point to classify the presence or absence of atypia. A sensitivity analysis was performed to assess the impact on the model of factors related to the organization of the service model.
RESULTS: The variables of impact were "reference laboratory," which reflects laboratory production scale; "presence of cellular elements representative of the transformation zone," which reflects the quality of the sampling; "immature squamous metaplasia," "presence of other benign cellular changes," and "absence of typical vaginal microorganisms." Each increase of 1 year in age was associated with a 1.7% reduction in the chance of detecting atypia. The ROC curve defined a cutoff of 4.5%, which allowed the maximization of the model's sensitivity (73.0%) and specificity (66.8%). Sensitivity analysis indicated an increase of 46.4% in the frequency of atypia following a simulated increase in the number of samples analyzed in the excellence (42.9%) and in the presence of cellular elements representative of the transformation zone (43.0%).
CONCLUSIONS: The model revealed that the detection of atypical cells is strongly influenced by organizational factors such as adequate sample collection and laboratory size. Because these factors can be changed by adequate management practices, the proposed model may be an important tool to improve cervical screening programs.

Key words: Uterine cervical neoplasms; uterine cervical dysplasia; mass screening; regression analysis; Brazil.


 

 

O câncer do colo do útero é o terceiro câncer mais prevalente entre as mulheres em todo o mundo, sendo a quarta causa de morte feminina (1). Estimativas para 2015 apontam para a possibilidade de um aumento entre 14 e 16% na incidência e mortalidade por esse câncer, respectivamente (2). No Brasil, é o segundo tumor mais incidente entre as mulheres, com estimativa de 17 540 novos casos para o ano de 2012 (3).

A progressão do câncer do colo do útero é lenta. A partir de uma infecção pelo papilomavírus humano (HPV), são necessários de 10 a 20 anos para que esse câncer se desenvolva (4). A partir de uma lesão precursora, aquela que antecede o aparecimento da doença, são necessários de 5 a 15 anos (1). Por isso, o câncer do colo do útero é altamente passível de prevenção por meio de programas de rastreamento, que facilitam a detecção e o tratamento de lesões precursoras com o objetivo de reduzir as taxas de incidência e de mortalidade da doença (5).

Nesse sentido, o Ministério da Saúde instituiu no Brasil o Programa Nacional de Combate ao Câncer de Colo do Útero (6) e, posteriormente, o Sistema de Informação do Câncer do Colo do Útero (SISCOLO), para monitoramento e gerenciamento das ações realizadas pelo programa (7). O programa utiliza como teste de rastreamento o exame citopatológico, ou Papanicolaou, realizado a partir da coleta de material citológico, sendo desejável que a amostra contenha os epitélios da zona de transformação, já que é nessa região que se iniciam aproximadamente 90% dos casos de câncer (8). O programa tem como diretriz a realização do exame citopatológico anualmente em mulheres na faixa etária entre 25 e 60 anos e, na  presença de dois resultados sem alterações, a cada 3 anos. A partir de resultados alterados, as mulheres devem ser orientadas a seguir a rotina de rastreamento citológico pertinente (9).

Um estudo da Comissão Europeia (1) relata que alguns países alcançaram significativa redução nas taxas de mortalidade por câncer do colo do útero a partir da implementação de programas de rastreamento. Merecem destaque Finlândia, Dinamarca e Suécia, com reduções de 80, 66 e 52%. No Brasil, após mais de uma década da implantação do programa de rastreamento, o declínio da taxa de mortalidade ajustada pela idade foi de 17,4% até o ano de 2009 (3). Dentre os fatores envolvidos no contexto do programa de rastreamento brasileiro, vale ressaltar a extensão territorial e a diversidade socioeconômica, política e cultural do Brasil, o que sugere a necessidade de identificar as falhas do programa (10) e os fatores que as determinam.

No Estado do Rio de Janeiro, problemas inerentes à organização das ações de rastreamento vêm sendo apontados como fatores com impacto importante no programa. Esses problemas incluem baixa qualidade do material citológico coletado, heterogeneidade na capacidade de detecção de atipias por parte dos laboratórios de análise das lâminas, falhas de preenchimento e inconsistência dos registros no SISCOLO (11). O conhecimento do impacto individual desses fatores na detecção de atipias celulares e a associação com outros fatores é importante para o desenvolvimento de ações que busquem otimizar o desempenho do programa de rastreamento.

O objetivo do presente estudo foi identificar os principais determinantes do processo de detecção de atipias celulares no programa de rastreamento do câncer do colo do útero no Estado do Rio de Janeiro, utilizando os dados do SISCOLO.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Foram utilizados dados do SISCOLO, disponibilizados pelo gestor estadual do Programa Viva Mulher da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Os dados são referentes ao resultado dos exames citopatológicos realizados entre janeiro e dezembro de 2007, classificados de acordo com a Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas (9).

Do total de 690 125 exames, foram excluídos os exames de meninas menores de 12 anos (No. = 1 464) e os exames cujos resultados indicavam adenocarcinoma invasor, carcinoma epidermoide invasor e outras alterações (No. = 163) e lesões classificadas como câncer pela Nomenclatura Brasileira de Laudos Citopatológicos (9). Após essas exclusões, foi selecionada uma amostra aleatória
de 65 535 exames, correspondente a 9,5% dos dados.

A variável resposta do modelo (presença de atipias celulares) englobou as classificações de atipias celulares em células escamosas (lesões intraepiteliais de baixo grau e de alto grau, além de lesão intraepitelial de alto grau, não podendo excluir micro-invasão) e em células glandulares (quando classificadas como adenocarcinoma in situ), além de células atípicas de significado indeterminado (células escamosas, glandulares e de origem indefinida), tendo por base a Nomenclatura Brasileira de Laudos Citopatológicos (9).

O conjunto inicial de dados contemplava 85 variáveis referentes a cinco grupos: 1) identificação da unidade de saúde e do laboratório, 2) adequabilidade da amostra, 3) aspectos sociodemográficos, 4) condição da mulher (anamnese) e 5) condição da mulher detectada no exame citopatológico (resultado do exame). Foram pré-selecionadas as variáveis que, segundo a literatura (12–14), apresentavam significância clínica de potencial interesse para a caracterização do problema.

Após uma análise descritiva dos dados, foram excluídas variáveis preditoras que não apresentavam pelo menos 55% de preenchimento (ou seja, não estavam informadas em 55% dos registros) e variáveis que somente apresentavam informação para uma das categorias da variável resposta. Foram selecionadas: grupo 1) laboratório de análise; grupo 2) presença de epitélio escamoso, glandular e metaplásico; grupo 3) idade em anos e realização de exame anterior; e grupo 5) presença de Lactobacillus sp e outros bacilos, cocos, microrganismos sugestivos de Chlamydia sp, Actinomyces sp, outros microrganismos, bacilos supracito­plasmáticos, Candida sp, Trichomonas vaginalis, efeito compatível com herpes, inflamação, metaplasia escamosa imatura, reparação, atrofia com inflamação e outras alterações celulares benignas.

Visando caracterizar a influência da escala de produção do laboratório que realizava as análises, foi criada uma variável binária denominada "laboratório de referência", que assumiu valor [1] quando a variável "laboratório de análise" apresenta o código que indicava o laboratório de maior produção do Estado. Dez das variáveis do grupo 5, relacionadas a presença ou ausência de microrganismos na lâmina (microbiologia), foram organizadas em três novas variáveis, denominadas "presença de microrganismos relacionados a doenças sexualmente transmissíveis", "presença de outros microrganismos" e "ausência de microrganismos da microbiota vaginal". Tal organização foi realizada sob recomendação de patologista clínico, com experiência em análise citológica e gerenciamento de laboratório de análises clínicas, tendo por base a história natural das infecções com cada um dos 10 microrganismos e sua relação com as lesões precursoras do câncer do colo do útero.

A adequabilidade da amostra para a análise citopatológica foi definida por uma variável binária denominada "presença de elementos celulares representativos da zona de transformação". A variável assumiu valor [1] quando a amostra apresentava pelo menos um de dois tipos de epitélio (glandular ou metaplásico) e valor [0] quanto apresentava apenas células escamosas (11).

A variável "idade" foi utilizada no seu formato original, descrita em anos, sendo a única variável contínua no modelo.

Para a seleção das variáveis componentes do modelo explicativo da variável resposta, aplicou-se o método de seleção por eliminação retroativa, que consiste em eliminar as variáveis preditoras, uma a uma, a cada iteração, a partir do modelo completo, até que se obtenha um conjunto de variáveis que gere o modelo com melhor ajuste. Para definir o ajuste do modelo foi utilizado o critério de informação de Akaike (AIC), uma medida da qualidade do ajuste do modelo baseada no número de parâmetros e na máxima verossimilhança entre os valores reais e os valores previstos da variável resposta (15, 16).

Dada a natureza da variável resposta, foi utilizado o modelo de regressão logística, também conhecido como análise logit (17). Após a estimação dos coeficientes do modelo, calculou-se a razão de chances (odds ratio, OR), que quantifica a associação entre cada categoria da variável resposta e as variáveis preditoras (18).

Para avaliar o poder preditivo do modelo, foram calculadas a sensibilidade e a especificidade. A determinação dos valores de sensibilidade e especificidade depende, no entanto, do critério de diagnóstico ou de um valor de corte, que representa a probabilidade acima da qual a observação é classificada como pertencente ao grupo de interesse. O ponto de corte usualmente aplicado em modelos de regressão logística é de 50,0%. Tal ponto, contudo, pode ser ajustado de acordo com a distribuição da variável resposta, visando a maximizar simultaneamente a sensibilidade e a especificidade do modelo (19).

Dada a distribuição atípica da variável resposta, pela qual a categoria de interesse era representada por aproximadamente 4,0% das observações, foi necessário definir um novo de ponto de corte para avaliar o poder preditivo do modelo. Uma curva de Receiver Oper­ating Characteristic (ROC) foi aplicada de forma a selecionar o ponto de corte para o qual o modelo apresentava maior sensibilidade e menor taxa de falsos positivos (1 –  especificidade) (19).

Uma análise de sensibilidade para os fatores "laboratório de referência" e "presença de elementos celulares representativos da zona de transformação" foi realizada, tendo por objetivo quantificar o impacto dos fatores relacionados à organização do serviço, que são passíveis de pactuação pelo gestor do programa de rastreamento, no processo de detecção de atipias celulares. Dessa forma, foi simulado um cenário que previu o aumento de 20 pontos percentuais na produção do laboratório de referência e no número de exames com presença de elementos celulares representativos da zona de transformação.

O nível de significância utilizado neste trabalho foi de 5,0% para todos os fatores. Para a análise exploratória e modelagem dos dados, foi utilizado o software R, versão 2.11.1, de domínio público. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery — Hospital Escola São Francisco de Assis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (protocolo 079/2011).

 

Resultados

Foram selecionadas para o estudo 12 variáveis preditoras. A média de idade das mulheres na amostra foi de 39,0 anos (intervalo de confiança de 95% [IC95%]: 38,9 a 39,1), contra 38,7 anos (IC95%: 38,7 a 39,0) no conjunto original de dados. Para os demais fatores observou-se uma variação inferior a 0,3% entre a amostra selecionada e o conjunto original de dados. A tabela 1 apresenta a frequência percentual de cada fator no conjunto original de dados e na amostra do estudo.

Os resultados do modelo estão descritos na tabela 2, que apresenta os valores de OR e o respectivo IC95% para cada variável. As variáveis "laboratório de referência", "presença de elementos celulares representativos da zona de transformação", "metaplasia escamosa imatura", "presença de outras alterações celulares benignas" e "ausência de microrganismos da microbiota vaginal" apresentaram OR superior a 1, sendo significativas no processo de detecção de atipias celulares. A OR da variável "presença de microrganismos relativos a doenças sexualmente transmissíveis" foi significativa e inferior a 1. A OR da variável "idade" indica que a cada acréscimo de 1 ano na idade da mulher houve uma redução de 1,7% na chance de detecção de atipias.

A figura 1 apresenta a curva ROC obtida para definir a sensibilidade e a especificidade do modelo. Utilizando-se o ponto de corte tradicional (50,0%), a sensibilidade e a especificidade do modelo foram de 1,7% e 99,9%, respectivamente. Os valores obtidos com o ponto de corte sugerido (4,5%) foram de 73,0% para sensibilidade e 66,8% para especificidade do modelo.

Para a análise de sensibilidade, ­considerou-se um aumento de 42,9% na frequência da variável "laboratório de referência" e de 43,0% na frequência da variável "presença de elementos celulares", com consequente aumento de 46,4% na frequência de atipias celulares (figura 2).

 

 

 

DISCUSSÃO

O presente estudo utilizou um modelo de regressão logística para identificar os determinantes do processo de detecção de atipias celulares com base nos dados do SISCOLO. A modelagem dos dados em uma abordagem multivariada possibilitou a identificação do impacto de cada fator sobre o processo de detecção de atipias no programa de rastreamento realizado no Estado do Rio de Janeiro no ano de 2007. O modelo mostra de forma clara como os fatores organizacionais (laboratório de referência e presença de elementos celulares representativos da zona de transformação na lâmina) influenciam a detecção das atipias, revelando novos indicadores para o processo de controle e avaliação do programa de rastreamento. Cabe ainda destacar a utilização da curva ROC para definir o ponto de corte para a análise do poder preditivo do modelo. Essa abordagem permitiu a realização da análise apesar da baixa representatividade do desfecho de interesse na amostra.

A literatura (20) aponta a escala de produção dos laboratórios como uma característica relevante para a qualidade da leitura das lâminas, segundo a experiência de países com programas de rastreamento organizados. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) preconiza que um laboratório de excelência, para manutenção de padrões de qualidade, necessita ter uma produção mínima de 15 000 exames/ano. O modelo foi capaz de identificar esse fator por meio da variável "laboratório de referência". Uma vez que o laboratório de referência do modelo era de grande porte, estruturado e com condutas estabelecidas, foi observado seu impacto sobre o processo de detecção.

A detecção de atipias, de lesões precursoras e do câncer cervical por meio do exame citopatológico é realizada com base no critério subjetivo de inspeção visual, o que requer atenção e qualificação técnica adequada do citopatologista (21). Assim, é possível inferir a importância da padronização dos critérios diagnósticos nos laboratórios de análise das lâminas (22). A atenção à qualidade dos laboratórios e a padronização das ações nesse âmbito são previstas pelo Plano de Ação para Redução da Incidência e Mortalidade por Câncer do Colo do Útero do Ministério da Saúde (20).

Maeda et al. (23) apontaram a necessidade de controle da qualidade dos laboratórios para a redução dos índices de resultados falso-negativos e falso-positivos e apontam fatores essenciais ao alcance desse objetivo. Segundo esses autores, os laboratórios devem dispor de programa de controle de qualidade interno, programa de avaliação de controle de qualidade externo, permanente programa de treinamento/reciclagem, monitoramento de procedimentos de coleta, fixação e transporte de material citológico e laboratório revisor indicado por órgão competente ou laboratório de referência da região.

Segundo Denny (22), dentre as características importantes para a garantia de sucesso dos programas de rastreamento, estão os fatores inerentes à organização do programa, tais como capacitação dos profissionais, monitoramento do serviço, padronização dos registros e gestão do funcionamento dos sistemas de informação, além de adequado diagnóstico e acompanhamento das mulheres com alterações detectadas. Essa infraestrutura dificilmente é encontrada nos países em desenvolvimento; porém, neste estudo, foi constatado o impacto positivo do laboratório de referência sobre a detecção de atipias. Esse resultado sugere que o programa pode ser mais eficaz quando os demais laboratórios de análise da rede prestadora apresentarem padrões semelhantes aos do laboratório de referência.

A adoção de tais padrões em toda a rede poderá influenciar, inclusive, o comportamento das unidades de saúde em relação à coleta do material para o exame. Em uma análise por municípios do Estado do Rio de Janeiro (11), foi estimada a razão entre a presença de elementos celulares representativos da zona de transformação e a detecção de atipias. A análise considerou se os municípios eram ou não atendidos pelo laboratório de maior produção da região. Verificou-se maior homogeneidade entre os municípios que eram atendidos por esse laboratório.

A presença de elementos celulares representativos da zona de transformação na lâmina, tais como células dos epitélios glandular e metaplásico, pode ser usada como parâmetro de qualidade da coleta. Tal fato é confirmado por estudos (23–25) que identificaram associação significativa desses mesmos elementos com a detecção de anormalidades citológicas. Por outro lado, a ausência de células representativas da zona de transformação está associada à limitação da visualização da amostra, que prejudica o resultado do exame citopatológico, gerando altos índices de resultados falso-
negativos (22, 23).

O impacto desses fatores organizacionais foi ratificado na análise de sensibilidade. Essa análise mostrou que, num processo de simulação, a frequência de detecção aumentaria significativamente (46,4%) se os fatores relacionados à organização do serviço, tais como laboratório e qualidade da coleta, fossem melhorados. Sugere-se, portanto, que tais fatores possam ser indicados como determinantes da efetividade do processo de detecção de atipias celulares do câncer do colo do útero (11, 24, 25), que podem refletir a capacidade operacional da rede de serviços e o desempenho do programa de rastreamento (13, 26).

No que tange à história natural do câncer do colo do útero, a detecção de atipias celulares e lesões precursoras está intimamente relacionada às características da mulher (12, 27). Algumas dessas características são investigadas durante o exame citopatológico no programa de rastreamento brasileiro. Neste estudo foi observado o impacto da presença de metaplasia escamosa imatura e outras alterações celulares benignas sobre o processo de detecção. A metaplasia escamosa é um processo natural da puberdade, quando o epitélio glandular é progressivamente substituído pelo epitélio escamoso (28). Em mulheres mais jovens, pode ocorrer metaplasia escamosa imatura da zona de transformação, tornando essas mulheres mais vulneráveis ao desenvolvimento de lesões intraepiteliais cervicais (29).

Alterações consequentes do desequilíbrio da microflora da região vaginal vêm sendo relacionadas ao aumento da suscetibilidade a infecções sexualmente transmitidas. Neste estudo, a ausência de microrganismos da microbiota vaginal normal (Lactobacillus sp, cocos e outros bacilos) foi associada à maior chance de detecção de atipias celulares. O aumento do pH na região, como consequência da ausência de microrganismos protetores, como Lactobacillus sp, também apresentou associação positiva ao risco de desenvolvimento de alterações cervicais segundo os achados de Clarke et al. (30).

Por outro lado, a presença de processos infecciosos oriundos da ação de agentes endógenos (Gardenerella e Candida) ou sexualmente transmitidos (Trichomonas vaginalis) pode mascarar o diagnóstico de alterações dos epitélios cervicais. Sintomas como corrimento vaginal oriundo das vulvovaginites (31, 32) e alteração do pH são os principais fatores obscurecedores das atipias celulares. Dessa forma, a redução da chance de detecção diante da presença de microrganismos relacionados a doenças sexualmente transmissíveis (DST) pode ter origem no processo infeccioso instalado.

Além das condições da mulher detectadas no exame citopatológico, a base de dados do SISCOLO também contempla informações relatadas durante a anamnese. Porém, a amostra utilizada para a modelagem dos dados, bem como o conjunto de dados disponibilizado, apresentou como limitação o baixo preenchimento de determinadas variáveis. A falta de dados consistentes restringe a verificação da validade preditiva das variáveis e inviabiliza a utilização da informação de forma mais abrangente. Assim, o uso das informações coletadas durante a anamnese da mulher foi limitado nessa análise.

Os sistemas de informação precisam ser padronizados e ter seus dados preenchidos de forma suficiente para que possam fornecer informações robustas a respeito das bases populacionais (27, 33, 34). Uma base de dados consistente é uma importante ferramenta para avaliação de programas de rastreamento (33, 35).

Apesar das limitações encontradas, foi possível definir um modelo que refletisse os principais fatores relacionados ao processo de detecção. A modelagem de dados, bem como a adequação do método logístico à distribuição atípica da variável de interesse do estudo (4,5% de presença de atipias celulares) resultou na identificação de determinantes e na quantificação do seu impacto, que pode estar associado à efetividade do programa de rastreamento do câncer do colo do útero. A utilização da curva ROC para adequação do ponto de corte (50,0 para 4,5%) na análise de regressão logística permitiu a maximização da sensibilidade e da especificidade do modelo. Dessa forma, pôde-se obter um modelo adequado às características dos dados disponíveis, considerando todas as suas limitações, e capaz de discriminar a presença e a ausência de atipias celulares. Assim, o modelo permitiu ratificar a confiabilidade do conjunto de variáveis identificadas como determinantes do processo de detecção.

As falhas de registro nas bases de dados e a falta de infraestrutura dos programas de rastreamento de países em desenvolvimento podem contribuir para a limitação da efetividade do programa avaliado. Entretanto, análises como a que foi realizada no presente estudo são factíveis a partir de dados já disponíveis. Dessa forma, são viáveis sem qualquer custo adicional e podem contribuir para o aprimoramento das ações de rastreamento.

Nas últimas décadas, as ações governamentais enfatizaram o aumento da cobertura populacional do exame de Papanicolaou. No entanto, os achados deste estudo sugerem a necessidade de melhorar a qualidade do serviço prestado, tornando as ações de rastreamento mais efetivas, antes de se ampliar a cobertura.

O estudo revela o potencial da base de dados do SISCOLO para o monitoramento das ações de rastreamento, desde que se disponha de método adequado para a geração de indicadores que subsidiem as ações de controle e avaliação.

Agradecimentos. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de mestrado do primeiro autor. À Coordenação Estadual do Programa Viva Mulher da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro pela disponibilização da base de dados estadual do Sistema de Informações do Câncer do Colo do Útero e às doutoras Tereza Maria Piccinini Feitosa e Lucilia Zardo pelos comentários e contribuições durante a elaboração deste estudo.

Conflitos de interesse. Nada declarado pelos autores.

 

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Manuscrito recebido em 13 de julho de 2012.
Aceito em versão revisada em 16 de julho de 2013.

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