INVESTIGACIÓN ORIGINAL / ORIGINAL RESEARCH
Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil
Adequacy of prenatal care according to maternal characteristics in Brazil
Rosa Maria Soares Madeira DominguesI; Elaine Fernandes ViellasII; Marcos Augusto Bastos DiasIII; Jacqueline Alves TorresIV; Mariza Miranda Theme-FilhaII; Silvana Granado Nogueira da GamaII; Maria do Carmo LealII
IFundação Oswaldo Cruz, Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, Laboratório de Pesquisa Clínica em DST/Aids, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Correspondência: rosa.domingues@ini.fiocruz.br
IIFundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
IIIFundação Oswaldo Cruz, Instituto Nacional da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Fiqueiras, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
IVAgência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
RESUMO
OBJETIVO: Verificar o grau de adequação da assistência pré-natal no Brasil e sua associação com características sociodemográficas das mulheres.
MÉTODOS: Este estudo nacional de base hospitalar foi realizado com 23 894 mulheres em 2011 e 2012. Os dados foram obtidos a partir de entrevistas com a puérpera e dos cartões de pré-natal. Considerou-se assistência pré-natal adequada aquela iniciada até a 12 semana gestacional, com realização de no mínimo seis consultas (número de consultas corrigido para a idade gestacional no momento do parto), registro no cartão de pré-natal de pelo menos um resultado de cada um dos exames preconizados na rotina de pré-natal e recebimento de orientação para maternidade de referência. Realizou-se regressão logística multivariada para verificar a associação entre características maternas e o grau de adequação da assistência pré-natal.
RESULTADOS: Início precoce da atenção pré-natal foi observado em 53,9% das gestantes, número adequado de consultas em 73,2%, registro de pelo menos um exame preconizado em 62,9%, orientação para maternidade de referência em 58,7% e assistência pré-natal global adequada em 21,6%. Menor adequação do pré-natal foi observada em mulheres mais jovens, de pele preta, multíparas, sem companheiro, sem trabalho remunerado, com menos anos de estudo, de classes econômicas mais baixas e residentes nas regiões Norte e Nordeste do país. Após ajuste para características maternas, não foram observadas diferenças entre serviços públicos e privados quanto ao grau de adequação do cuidado pré-natal.
CONCLUSÕES: A assistência pré-natal no Brasil alcançou cobertura praticamente universal, mas persistem desigualdades regionais e sociais no acesso a um cuidado adequado. Estratégias para facilitar o ingresso precoce no pré-natal são essenciais.
Palavras-chave: Cuidado pré-natal; avaliação de programas e projetos de saúde; saúde materno-infantil; serviços de saúde materno-infantil; Brasil.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To verify the degree of adequacy of prenatal care in Brazil and to determine whether it is associated with sociodemographic characteristics of women.
METHODS: This nationwide hospital-based study was performed with 23 894 women in 2011 and 2012. Data were obtained from interviews with puerperal women and from the prenatal card recording prenatal care appointments. Adequate prenatal care was defined as that started no later than the 12th gestational week, with performance of at least six consultations (with number of consultations adjusted for gestational age at delivery), record in the prenatal card of at least one result for each of the recommended routine prenatal tests, and guidance regarding the maternity hospital for delivery. Multivariate logistic regression was performed to verify the association between maternal characteristics and the adequacy of prenatal care.
RESULTS: Early onset of prenatal care was observed in 53.9% of participants, adequate number of consultations in 73.2%, record of at least one of each recommended test in 62.9%, guidance regarding maternity hospital in 58.7%, and overall adequate prenatal care in 21.6%. Less adequate prenatal care was observed in women who were younger, black, multiparous, who did not have a partner, without paid employment, having fewer years of formal schooling, belonging to lower socioeconomic classes, and living in the North and Northeast of Brazil. After adjustment of maternal characteristics, no differences were observed between public or private health care services regarding adequacy of prenatal care.
CONCLUSIONS: Even though the coverage of prenatal care is virtually universal in Brazil, regional and social differences in the access and adequacy of care still persist. The implementation of strategies to facilitate early access to prenatal care is essential.
Key words: Prenatal care; program evaluation; maternal and child health; maternal-child health services; Brazil.
No Brasil, observa-se uma cobertura crescente da assistência pré-natal desde os anos 1990 (1), alcançando valores superiores a 90% em todas as regiões do país e em mulheres com diferentes características demográficas, sociais e reprodutivas (2). Entretanto, o menor acesso à assistência pré-natal por mulheres indígenas e pretas, por aquelas com menor escolaridade, com maior número de gestações e pelas residentes nas regiões Norte e Nordeste evidencia a persistência de desigualdades sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil (2).
Problemas na adequação da assistência pré-natal têm sido relatados por diversos estudos de âmbito local. Esses problemas podem estar reduzindo a efetividade do cuidado pré-natal para a prevenção de desfechos maternos e perinatais negativos (3-13). Embora a razão de mortalidade materna tenha apresentado decréscimo anual de 3,72% no período de 1990 a 2011 no Brasil, seus valores são ainda elevados e discrepantes em relação aos avanços ocorridos no país quanto ao desempenho do sistema de saúde, à melhoria do nível socioeconômico e à queda da fecundidade (14). Taxas elevadas de transmissão vertical da infecção por sífilis e HIV (15) e a ocorrência de óbitos perinatais evitáveis (16) também apontam para problemas na qualidade da assistência prestada.
O objetivo deste estudo foi estimar o grau de adequação da assistência pré-natal no Brasil segundo parâmetros do Ministério da Saúde e verificar a existência de associação entre esse grau de adequação e características demográficas, sociais e econômicas das mulheres brasileiras.
MATERIAIS E MÉTODOS
Este estudo nacional de base hospitalar, composto por puérperas e seus recém-nascidos, foi realizado no período de fevereiro de 2011 a outubro de 2012. Foram consideradas elegíveis todas as puérperas com parto hospitalar, tendo como desfecho um nascido vivo, independente de peso ou idade gestacional, ou um nascido morto, com peso maior que 500 g ou idade gestacional maior que 22 semanas.
A amostra foi selecionada em três etapas. Na primeira etapa, hospitais com mais de 500 partos por ano foram estratificados de acordo com as cinco macrorregiões do país, localização (capital ou interior) e tipo de serviço (público, misto ou privado), sendo selecionados 266 hospitais com uma probabilidade de seleção proporcional ao número de partos em cada um dos estratos em 2007. Na segunda etapa, o número de dias necessários para entrevistar 90 puérperas em cada hospital (mínimo de 7 dias) foi definido utilizando um método de amostragem inversa. Na terceira fase, as mulheres elegíveis em cada dia do trabalho de campo foram selecionadas. Foram planejadas 90 entrevistas por hospital, tendo sido entrevistadas 23 894 mulheres. Informações detalhadas sobre o desenho amostral estão disponíveis em outra publicação (17).
Para esta análise, foram utilizadas informações obtidas por meio de entrevista realizada com a puérpera durante a internação hospitalar, num intervalo mínimo de 6 horas após o parto, utilizando um questionário eletrônico elaborado especificamente para este estudo. Dados do cartão de pré-natal, quando disponíveis, foram fotografados em meio digital, com posterior extração e digitação dos dados numa plataforma online. As informações detalhadas sobre a coleta de dados também estão disponíveis em outra publicação (18).
Para cálculo da adequação da assistência pré-natal (PN), considerou-se: o trimestre gestacional na época de início do PN; o número total de consultas recebidas corrigido segundo a idade gestacional no momento do parto; os exames de rotina realizados; e a orientação fornecida sobre a maternidade de referência para a assistência ao parto. Foi considerado adequado o início do acompanhamento pré-natal quando realizado até a 12ª semana gestacional, conforme recomendação da Rede Cegonha (19).
Para cálculo da adequação do número de consultas, foi utilizado o calendário mínimo de consultas recomendado pelo Ministério da Saúde brasileiro, que preconiza a realização de pelo menos uma consulta no primeiro trimestre gestacional, duas no segundo e três no último trimestre (20). A idade gestacional no parto foi calculada por um algoritmo desenvolvido especificamente para este estudo (21). O número de consultas foi considerado adequado quando a gestante realizou 100% das consultas mínimas previstas para a idade gestacional no momento do parto. Para a avaliação da adequação dos exames, considerou-se o registro dos resultados dos exames preconizados na rotina de pré-natal no cartão de pré-natal: glicemia de jejum, urina (elementos anormais e sedimentos, EAS), sorologia para sífilis (venereal disease research laboratory test, VDRL), sorologia para HIV e ultrassonografia. Para avaliação da orientação sobre a maternidade de referência, considerou-se o relato materno sobre a orientação recebida.
Foi elaborado um indicador de adequação mínima da assistência pré-natal que considerou como assistência pré-natal adequada: início do PN até a 12ª semana gestacional; número adequado de consultas para a idade gestacional no parto, considerando o calendário de seis consultas; o registro de pelo menos um resultado de cada um dos exames preconizados na rotina de pré-natal: glicemia, urina, sorologia para sífilis, sorologia para HIV e ultrassonografia; e o recebimento da orientação sobre a maternidade de referência para a assistência ao parto.
Como todas as informações, à exceção da orientação sobre a maternidade de referência, foram obtidas do cartão de pré-natal, foram comparadas as mulheres que apresentaram ou não o cartão de pré-natal na admissão para o parto, sendo utilizado o teste do qui-quadrado (Χ2) para detectar diferenças entre proporções com nível de significância de 5%.
Foi feita uma análise descritiva dos diversos componentes da assistência pré- natal segundo a idade gestacional no momento do parto. Para verificar se a adequação dos componentes "início precoce", "número de consultas", "realização de exames" e "orientação sobre maternidade de referência" estava associada às características maternas, foi utilizado o teste do Χ2 para verificar diferenças entre as proporções, considerando-se um intervalo de confiança de 95% (IC95%). Foram analisadas as variáveis: região de residência (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste ou Centro-Oeste), idade (< 20 anos, 20 a 34 anos, 35 e mais), cor da pele autorreferida (branca, preta, parda), anos de estudo (até 8, 9 a 11, 12 ou mais), classe econômica (classes A/B, C, D/E) (22), trabalho remunerado (sim ou não), tipo de serviço de pré-natal (público ou privado), situação conjugal (vive ou não com o companheiro) e número de partos anteriores (primípara ou multípara, sendo considerada multípara toda mulher com pelo menos um parto anterior).
Para verificar se a adequação global mínima da assistência pré-natal estava associada a essas características maternas, realizamos regressão logística uni e multivariada. Na análise multivariada foram incluídas todas as variáveis significativas (P < 10%) na análise univariada.
Em toda a análise estatística, levamos em consideração o desenho complexo de amostragem. A ponderação dos dados foi calculada pelo inverso da probabilidade de inclusão de cada puérpera na amostra. Para assegurar que a distribuição das puérperas entrevistadas fosse semelhante à observada nos nascimentos da população amostrada em 2011, um procedimento de calibração foi utilizado em cada estrato de seleção (17). Todas as análises foram realizadas por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 17. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (parecer 92/2010). Todos os cuidados foram adotados visando a garantir o sigilo e a confidencialidade das informações. Antes da realização de cada entrevista, foi obtido consentimento digital após leitura do termo de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOS
Das 23 894 mulheres entrevistadas, foram excluídas aquelas sem pré-natal (1,3%), as que não apresentaram cartão de pré-natal na admissão para o parto (27,3%), e as que se autodeclararam amarelas e indígenas, por representarem uma proporção muito pequena da amostra (1,1% e 0,4%, respectivamente). Assim, foram analisadas 17 060 puérperas, correspondendo a 71,4% da amostra total.
A tabela 1 apresenta as características das mulheres incluídas no estudo. De acordo com os resultados, as mulheres que não apresentaram o cartão de pré- natal na admissão para o parto apresentavam, em maior proporção, idade igual ou superior a 35 anos, mais de 12 anos de estudo, eram de classe econômica mais elevada, referiam trabalho remunerado com maior frequência e foram mais atendidas em serviços privados, não sendo verificadas diferenças significativas em relação a cor da pele, situação conjugal e paridade.
A tabela 2 apresenta dados relativos à realização dos componentes da assistência pré-natal segundo idade gestacional no momento do parto. Apenas 53,9% das gestantes tiveram início da assistência pré-natal até a 12ª semana gestacional e 73,2% receberam o número adequado de consultas para a idade gestacional no momento do parto, com redução da proporção de adequação do número de consultas com o aumento da idade gestacional. De forma inversa, verifica-se aumento da proporção de mulheres que apresentavam registro de pelo menos um resultado de cada um dos exames de rotina com o aumento da idade gestacional, sendo o maior valor observado para a sorologia para sífilis (VDRL). O registro do resultado da segunda rotina foi alcançado em menos da metade das mulheres, mesmo entre aquelas com 37 ou mais semanas gestacionais, sendo o maior valor observado para a segunda sorologia para sífilis. Aproximadamente 60% das mulheres receberam orientação sobre a maternidade de referência, sendo verificada uma proporção 10% maior entre as mulheres com 37 ou mais semanas gestacionais em relação àquelas com parto antes da 28ª semana gestacional. Considerando o critério global adotado para avaliação da adequação do pré- natal, apenas 21,6% das mulheres tiveram uma assistência pré-natal adequada.
A tabela 3 apresenta o estudo da associação entre adequação de cada um dos componentes da assistência pré-natal - início precoce, número de consultas, resultado de exames de rotina e orientação para a maternidade de referência - com as características maternas. Maior adequação de todos os componentes foi observada em mulheres residentes nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, com idade superior a 20 anos, de cor da pele branca, com mais anos de estudo, de classe econômica mais elevada, com trabalho remunerado, atendidas em serviços privados, que residiam com companheiro e eram primíparas. Os únicos componentes que não mostraram associação significativa foram a realização de exames segundo a situação conjugal e o recebimento de orientações segundo número de partos anteriores e situação conjugal.
Os resultados da regressão logística para o desfecho adequação global da assistência pré-natal são apresentados na tabela 4. Na análise univariada, todas as variáveis maternas analisadas mostraram associação com a adequação da assistência pré-natal, sendo as maiores chances de adequação observadas em mulheres residentes nas regiões Sul (OR=3,0) e Sudeste (OR=2,44). Verifica-se gradiente crescente de adequação com o aumento dos anos de estudo e da classe econômica, sendo a chance de um pré-natal adequado mais do que 2 vezes superior em mulheres pertencentes às classes econômicas A ou B (OR=2,87) e naquelas com 12 ou mais anos de escolaridade (OR=2,43). Menor adequação foi observada em mulheres mais jovens (<20 anos), de cor da pele preta ou parda, bem como nas multíparas, naquelas sem companheiro, sem trabalho remunerado e naquelas atendidas em serviços públicos. Na análise multivariada, todas as variáveis mantiveram associação com a adequação da assistência pré-natal, exceto o tipo de serviço pré-natal, que não mostrou diferenças entre os serviços públicos e privados. A menor adequação do PN em mulheres de cor da pele parda deixou de ser significativa, sendo mantida a menor adequação em mulheres de cor preta. Embora os gradientes de adequação segundo escolaridade e classe econômica tenham sido mantidos, verificou-se atenuação da força de associação, com redução dos valores de OR.
DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo mostram que, apesar do aumento da cobertura da assistência pré-natal no país, apenas um quinto das mulheres recebe cuidado adequado conforme os procedimentos mínimos preconizados pelo Ministério da Saúde. Resultados semelhantes foram encontrados em estudos anteriores que levaram em consideração outros componentes da assistência pré-natal além da época de início do cuidado pré-natal e do número de consultas (6, 9-12).
O início precoce da assistência pré-natal, no primeiro trimestre gestacional (8a 12 semanas), é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde (19), pois, para muitas intervenções essenciais, tais como a prevenção da transmissão vertical da sífilis e do HIV, diagnóstico de gravidez tubária, controle da anemia e manejo da hipertensão arterial e do diabetes, é fundamental a identificação precoce desses agravos. O início precoce foi o componente da assistência pré-natal que apresentou menor adequação, apenas 53,9%. Um estudo anterior demonstrou que os principais fatores associados ao início tardio da assistência pré-natal no país são a dificuldade de diagnóstico da gravidez, questões pessoais e barreiras de acesso (2).
Não existe um consenso sobre o número ideal de consultas de pré-natal a ser garantido a todas as gestantes. Ensaios clínicos randomizados conduzidos pela OMS (23) demonstraram que um pré-natal focalizado, com número mínimo de quatro consultas, atrelado à realização de intervenções específicas, fundamentadas em evidências científicas, apresentava resultados similares aos de um pré-natal com maior número de consultas. Entretanto, um estudo publicado em 2013, com revisão dos dados desses ensaios clínicos (24), evidenciou aumento da mortalidade perinatal no cuidado pré-natal com número reduzido de consultas, indicando a importância da vigilância no final da gravidez (32 a 36 semanas) para identificar situações de risco e garantir intervenções específicas. O calendário de consultas preconizado pelo Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) (20), utilizado nesta análise, recomenda a realização de no mínimo seis consultas de pré-natal para uma gestante de risco habitual, sendo três delas realizadas no último trimestre gestacional. O ajuste do número adequado de consultas à idade gestacional no parto visou a corrigir a menor adequação que poderia ser verificada em partos prematuros, caso esse ajuste não fosse realizado. Ressalta-se que a iniciativa Rede Cegonha, lançada pelo Ministério da Saúde em 2011 (19), tem como indicador de qualidade a realização de mais de sete consultas de pré- natal. Considerando-se esse critério, a proporção de puérperas com número adequado de consultas cairia de 73,2% para 55%.
Quanto aos exames de rotina, os protocolos nacionais recomendam a realização de duas sorologias para sífilis e HIV, bem como a repetição dos exames de glicemia e de urina. Para o controle da sífilis e do HIV, a OMS (25) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (26) preconizam a realização de uma sorologia para sífilis e HIV para mais de 90% das gestantes. Consideramos, portanto, como adequada a realização de pelo menos um de cada um desses exames durante a gestação. Ressalta-se que a realização do segundo exame durante o pré-natal foi muito baixa, não alcançando 50% das gestantes a termo. Caso a realização de mais de sete consultas de pré-natal e a repetição dos exames de rotina fossem consideradas como critério de adequação, apenas 6,6% das mulheres teriam recebido uma assistência pré- natal adequada, indicando os desafios que persistem para o alcance dessas metas.
A realização de pelo menos uma ultrassonografia durante a gravidez foi incluída como um indicador de qualidade do cuidado pré-natal pela iniciativa Rede Cegonha (19). Os dados deste estudo mostram que a ultrassonografia já está incorporada à rotina de pré-natal, tendo sido solicitada a praticamente 100% das gestantes, com apresentação do resultado do exame por 86,8% das gestantes na admissão para o parto. A ultrassonografia realizada no início da gestação, preferencialmente entre a 9ª e a 13ª semana gestacional (27), é considerada padrão de referência para a estimação da idade gestacional, fundamental para a avaliação do crescimento fetal e para decisões relacionadas à interrupção da gestação. Estudo recente demonstrou que a ultrassonografia, mesmo quando não realizada precocemente, apresentou melhor desempenho do que a data da última menstruação para cálculo da idade gestacional no parto de mulheres brasileiras (21).
Quanto às orientações, é certo que uma gama de temas deveria ser abordada durante o pré-natal, tais como promoção de comportamentos saudáveis, preparação e estímulo do parto normal e do aleitamento materno e informações sobre sinais de alerta. Optou-se por destacar a orientação sobre a maternidade de referência para assistência ao parto, já que no Brasil a vinculação da gestante a uma maternidade de referência é garantida por lei desde 2007 (28), sendo também recomendada pela Rede Cegonha (19). Um dos objetivos da vinculação da gestante a uma maternidade de referência é a redução da peregrinação das mulheres no momento da admissão para o parto. Em estudo recente, a peregrinação foi referida por 16,2% das mulheres, sendo mais frequente em mulheres residentes na região Nordeste, não brancas, adolescentes e naquelas com menor escolaridade (2), estando associada à maior ocorrência de near miss materno (29) e óbitos neonatais (16).
Além da baixa adequação, importantes desigualdades foram identificadas, com maior proporção de assistência pré- natal inadequada em mulheres adolescentes, pretas, com menor escolaridade, pertencentes a classes econômicas mais baixas, multíparas, sem companheiro, sem trabalho remunerado e residentes nas regiões Norte e Nordeste do país. Menor adequação do pré-natal em adolescentes (3, 4, 30), em mulheres de cor preta (3, 13), de baixa escolaridade (3, 7, 13) e renda (3, 6) e sem trabalho (7) já havia sido demonstrada anteriormente em estudos locais, bem como a maior adequação em primíparas (3, 4, 8) e em mulheres com companheiro (7, 8). A maior chance de inadequação da assistência pré-natal para as mulheres pretas quando comparadas às brancas, mesmo após ajuste para as variáveis socioeconômicas, corrobora a questão já apontada por outros autores, de que a dimensão socioeconômica não contempla o conjunto de desigualdades a que estão expostas as mulheres pretas (31), reforçando a necessidade de políticas públicas voltadas para redução das desigualdades étnico-raciais na assistência à saúde. O grau menor de adequação do pré-natal nas regiões Norte e Nordeste, as menos desenvolvidas economicamente, é compatível com a maior ocorrência de desfechos perinatais negativos nessas regiões, tais como valores mais elevados de razão de mortalidade materna (14), mortalidade neonatal (16) e transmissão vertical do HIV (32, 33).
Ressalta-se que diferenças segundo o tipo de serviço de saúde, público ou privado, não foram observadas após ajuste das características maternas, diferindo de estudos anteriores que encontraram menor adequação nos serviços públicos (3, 5, 9). Essa divergência entre os resultados encontrados pode ser decorrente dos critérios de adequação utilizados, mais abrangentes nos estudos anteriores (5, 9), mas também pode indicar melhoria da qualidade da assistência prestada nos serviços públicos (3, 6).
A ausência de diferença entre os tipos de serviço demonstra que, ao adotar um critério de adequação global mínima, serviços públicos e privados apresentariam o mesmo grau de adequação se atendessem uma clientela com as mesmas características sociais e econômicas. Entretanto, as mulheres que usam os serviços públicos apresentam um perfil diferente, com maior proporção de gestantes adolescentes, de classe econômica mais baixa, multíparas e sem companheiro, fatores associados a um início mais tardio da assistência pré- natal, levando a um grau menor de adequação do número de consultas, exames e orientações, conforme já demonstrado em estudos anteriores (9, 11). Cabe aos serviços de saúde, principalmente os públicos, que atendem a população com mais desvantagens sociais, reduzir as barreiras de acesso e facilitar o início da assistência pré-natal, permitindo que as mulheres que mais se beneficiariam dessa assistência (34) tenham acesso precoce a esse cuidado. Estudo realizado no estado do Maranhão revelou uma assistência pré-natal mais adequada prestada por equipes de saúde da família (3), indicando o potencial desse modelo de atenção em saúde para a redução das iniquidades em saúde no país.
Este estudo apresenta algumas limitações. Foram incluídas na análise apenas as mulheres que apresentaram cartão de pré-natal na admissão para o parto, o que resultou em perdas seletivas. Estudos anteriores já demonstraram que o fornecimento do cartão de pré-natal é uma prática bem estabelecida no país (2, 35), sendo a menor apresentação do cartão por mulheres de maior classe econômica resultante do modelo adotado no setor privado, onde o mesmo profissional presta assistência ao pré-natal e ao parto, havendo menor necessidade do cartão de pré-natal como elemento de ligação entre esses dois momentos da assistência. É, portanto, pouco provável que essas mulheres que não levaram o cartão de pré-natal para a maternidade apresentassem assistência menos adequada, sendo possível que as diferenças encontradas estejam subestimadas pela perda seletiva de mulheres que teriam pré-natal mais adequado.
Dados sobre a realização de exame de hemograma e da vacinação antitetânica (VAT) não foram coletados neste estudo e por isso não foram incluídos no critério de adequação. Estudos anteriores demonstraram elevada realização de hemograma na rotina de pré-natal (5) bem como de VAT (10, 12), sendo pouco provável que a ausência desses dados tenha acarretado superestimação da adequação.
Por fim, o critério utilizado não considerou todas as atuais recomendações do Ministério da Saúde contidas na estratégia Rede Cegonha (19). A inclusão das mesmas resultaria numa adequação inferior a 10%.
Em conclusão, a assistência pré-natal no Brasil alcançou cobertura praticamente universal, mas persistem desigualdades no acesso a um cuidado adequado, que teria potencial de reverter os indicadores perinatais desfavoráveis ainda observados no país. Estratégias voltadas para as populações menos favorecidas socialmente são essenciais, visando a facilitar o ingresso precoce no pré-natal e o contato com os serviços de saúde para garantir a realização de cuidados efetivos em saúde.
Agradecimentos. O presente estudo teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde; Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Projeto INOVA) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Conflitos de interesse. Nada declarado pelos autores.
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Manuscrito recebido em 14 de agosto de 2014
Aceito em versão revisada em 13 de março de 2015