Como a atenção primária à saúde pode fortalecer a alimentação adequada enquanto direito na América Latina?

Can primary health care strengthen the right to adequate food as a human right in Latin America?

¿Cómo la atención primaria de salud puede fortalecer la alimentación adecuada como derecho en América Latina?

Fernanda Cangussu Botelho Ivan França JuniorSobre os autores

RESUMO

Há 40 anos, a Declaração de Alma-Ata reforçou a saúde como direito humano, apresentou a atenção primária à saúde (APS) como caminho para atingir um grau de saúde aceitável para todos e incorporou a questão alimentar e nutricional como parte integrante dos cuidados primários em saúde. O direito humano à alimentação adequada (DHAA) está intimamente relacionado com o direito à saúde, pois é requisito para a existência de condições de vida digna para promover a saúde. As particularidades históricas e a posição político- econômica da América Latina representam barreiras para a realização plena dos direitos humanos, e especialmente dos direitos sociais. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é explorar os modos pelos quais os serviços de APS podem alavancar o DHAA na América Latina. Adicionalmente, são apresentadas medidas que exemplificam como os países podem fortalecer o DHAA a partir da APS. Finalmente, o texto se propõe a resgatar o potencial emancipatório da APS na América Latina vislumbrando sua atuação na realização de direitos humanos para além do direito à saúde. O panorama apresentado demonstra a capacidade de resposta da APS no sentido de efetivar direitos humanos interdependentes da saúde no contexto latino-americano.

Palavras-chave
Atenção primária à saúde; segurança alimentar e nutricional; direitos humanos

ABSTRACT

Forty years ago, the Declaration of Alma-Ata emphasized health as a human right, introduced primary health care (PHC) as a strategy to attain an acceptable level of health for all, and included the issue of food and nutrition as an integral part of PHC. The right to adequate food (RAF) is closely related to the right to health, since it is essential to ensure dignified living conditions that promote health. The historical peculiarities and the political and economic position of Latin America constitute barriers for the full realization of human rights, and especially social rights. In this sense, the present article aims to explore the modes by which PHC services can leverage the RAF in Latin America. In addition, the article describes measures that exemplify how countries can strengthen RAF through PHC. Finally, the text seeks to recover the emancipatory potential of PHC through a vision of human rights enforcement beyond the right to health. The overview shows that PHC has the capacity to fulfill human rights that are interdependent on health in the Latin American context.

Keywords
Primary health care; food and nutrition security; human rights

RESUMEN

Hace 40 años, la Declaración de Alma-Ata reforzó la salud como derecho humano, presentó la atención primaria de salud (APS) como camino para alcanzar un grado de salud aceptable para todos e incorporó la alimentación y nutrición como parte de los cuidados primarios en salud. El derecho humano a la alimentación adecuada (DHAA) está íntimamente relacionado con el derecho a la salud, pues es un requisito indispensabel para la existencia de condiciones dignas para promover la salud. Las particularidades históricas y la posición político-económica de América Latina representan barreras para la promoción plena de los derechos humanos, y especialmente de los derechos sociales. En este sentido, el objetivo de este artículo es explorar la manera como los servicios de APS pueden impulsar el DHAA en América Latina. Adicionalmente, se presentan medidas que ejemplifican cómo los países pueden fortalecer el DHAA a partir de la APS. Finalmente, el texto se propone rescatar el potencial emancipatorio de la APS en América Latina vislumbrando su actuación en la promoción de derechos humanos más allá del derecho a la salud. El panorama presentado demuestra la capacidad de respuesta de la APS para hacer efectivos los derechos humanos interdependientes de la salud en el contexto latinoamericano.

Palabras clave
Atención primaria de salud; seguridad alimentaria y nutricional; derechos humanos

Nos países latino-americanos, as reformas nos sistemas de saúde, a partir da década de 1990, foram fortemente influenciadas pela Declaração de Alma-Ata (11. Atun R, Andrade LOM, Almeida G, Cotlear D, Dmytraczenko T, Frenz P, et al. Health-system reform and universal health coverage in Latin America. Lancet. 2015;385:1230–47.). Esse documento reforçou a saúde como um direito humano fundamental e apontou a atenção primária à saúde (APS) como caminho para atingir um grau de saúde aceitável para todos, com base na justiça social (22. Organização Mundial da Saúde (OMS). Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde. Alma-Ata; 1987. Disponível em: www.who.int/publications/almaata_declaration_en.pdf?ua=1&ua=1 Acessado em agosto de 2018.
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). Seguiu-se, na América Latina, o desafio de implementar modelos de APS sustentados por direitos humanos, participação social, empoderamento comunitário e articulação intersetorial (11. Atun R, Andrade LOM, Almeida G, Cotlear D, Dmytraczenko T, Frenz P, et al. Health-system reform and universal health coverage in Latin America. Lancet. 2015;385:1230–47.).

O direito humano à alimentação adequada (DHAA) e o direito à saúde estão intimamente relacionados, já que constituem condições básicas para o bem-estar e a dignidade humana (33. Chilton M, Rose D. A rights-based approach to food insecurity in the United States. Am J Public Health. 2009;99(7):1203–11.). Além disso, a violação do primeiro pode acarretar consequências ao bem-estar social e mental e o comprometimento do estado nutricional (44. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Cienc Saude Colet. 2011;16(1):187–99.). Sendo assim, a Declaração de Alma-Ata incorporou a alimentação e a nutrição como elementos integrantes dos cuidados primários em saúde (22. Organização Mundial da Saúde (OMS). Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde. Alma-Ata; 1987. Disponível em: www.who.int/publications/almaata_declaration_en.pdf?ua=1&ua=1 Acessado em agosto de 2018.
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). Abordar a alimentação e a saúde como direitos é uma estratégia que tem se mostrado bem-sucedida na promoção da saúde, envolvendo a responsabilidade dos governos pelo monitoramento e efetivação desses direitos, participação social, priorização dos vulneráveis e não discriminação (33. Chilton M, Rose D. A rights-based approach to food insecurity in the United States. Am J Public Health. 2009;99(7):1203–11.).

Pensar sobre o potencial da APS na garantia dos direitos a alimentação e saúde na América Latina implica sublinhar algumas especificidades. Diversos países latino-americanos passaram por ditaduras no período de 1960 a 1980, o que produziu entraves ao desenvolvimento dos sistemas de saúde na região (11. Atun R, Andrade LOM, Almeida G, Cotlear D, Dmytraczenko T, Frenz P, et al. Health-system reform and universal health coverage in Latin America. Lancet. 2015;385:1230–47.). Nesses países, a implementação da APS coincidiu com os movimentos de redemocratização, que abriram espaço para o fortalecimento dos direitos e da participação social na saúde pública (11. Atun R, Andrade LOM, Almeida G, Cotlear D, Dmytraczenko T, Frenz P, et al. Health-system reform and universal health coverage in Latin America. Lancet. 2015;385:1230–47.).

Além das semelhanças históricas e das desigualdades sociais que marcam a região, outro denominador comum na América Latina é a posição histórica de dependência e subordinação aos centros econômicos. Mesmo com governos democráticos, essa mediação política que prioriza as orientações macroeconômicas dos países hegemônicos compromete a garantia dos direitos humanos na América Latina, inclusive do DHAA e do direito à saúde (55. Netto JP. Democracia e direitos humanos na América Latina: aportes necessários ao debate. Em: Freire SM. Direitos humanos e questão social na América Latina. Rio de Janeiro: Gramma; 2009. Pp. 3–12.).

Partindo da relação entre esses dois direitos humanos, o objetivo da presente reflexão é explorar as possibilidades de atuação da APS para concretizar o DHAA. Pretendeu-se, ainda, propor um panorama do que pode ser feito, mas não necessariamente do que deveria estar sendo feito, já que este artigo pretende ser instigador e não prescritivo.

RESGATE DO PERCURSO EM DIREÇÃO AO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA

A alimentação foi reconhecida como direito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (66. United Nations. Universal Declaration of Human Rights. Paris: United Nations General Assembly; 1948. Disponível em: http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/ Acessado em agosto de 2018.
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). Nesse documento, a alimentação é apresentada como um dos elementos para atingir a saúde e o bem-estar. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) também reconhece o direito de estar livre da fome (77. Brasil. Decreto 591/1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm Acessado em agosto de 2018.
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). A maioria dos países latino-americanos ratificou o PIDESC – sendo que a ratificação significa compromisso legal de efetivar esses direitos. Vale notar que Cuba apenas assinou, sem ratificar, esse documento.

Ao ratificar o PIDESC, os Estados-parte devem enviar relatórios periódicos ao Conselho Econômico e Social (CES), um dos seis órgãos principais da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre as medidas tomadas para sua efetivação. O CES, através do seu Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (composto por 18 auditores independentes), publica uma “lista de questões”, que é respondida pelos Estados-parte. Para finalizar o ciclo, o CES publica suas conclusões sobre as questões.

Além disso, de forma mais elucidativa, a ONU produziu um comentário que detalha as obrigações dos Estados-parte em relação ao DHAA (88. United Nations, Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR/UN). General Comment no 12: the right to adequate food. Genebra: United Nations; 1999. Disponível em: http://www.refworld.org/pdfid/4538838c11.pdf Acessado em agosto de 2018.
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). A primeira obrigação é a de respeitar esse direito, ou seja: o próprio Estado-parte não deverá violar o DHAA. A obrigação de proteger envolve a garantia, pelo Estado-parte, de que terceiros, como empresas privadas ou indivíduos, não violem o DHAA. Já a obrigação de efetivar se divide em facilitar e prover: o Estado-parte facilita o DHAA quando fortalece o acesso e a utilização dos recursos e dos meios para garantir o modo de vida das pessoas; quando não houver outra possibilidade, o Estado precisa prover o DHAA diretamente.

CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

O direito à saúde também está presente tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (66. United Nations. Universal Declaration of Human Rights. Paris: United Nations General Assembly; 1948. Disponível em: http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/ Acessado em agosto de 2018.
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) quanto no PIDESC, que reconhece o “direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental” (7, Art. 12).

No Comentário Geral nº 14, elaborado pela ONU, esse direito é descrito como contemplando aspectos biológicos individuais, condições socioeconômicas e recursos disponíveis em cada Estado-parte (99. United Nations, Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR/UN). General Comment no 14: The Right to the Highest Attainable Standard of Health. Genebra; United Nations; 2000. Disponível em: http://www.refworld.org/pdfid/4538838d0.pdf Acessado em agosto de 2018.
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). O direito à saúde é abordado como direito de usufruir das instituições, bens, serviços e condições necessários para sua realização. São apresentados quatro elementos essenciais e inter-relacionados para sua concretização: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade.

A disponibilidade se concretiza quando os serviços de saúde pública e de cuidado em saúde, programas e bens de saúde, existem em quantidade suficiente dentro do Estado-parte. O item acessibilidade, por sua vez, apresenta quatro dimensões. A primeira se refere à não discriminação de qualquer natureza no acesso aos recursos existentes. A segunda é a acessibilidade física, especialmente para vulneráveis e marginalizados. A terceira é a acessibilidade econômica, ou seja, quando exigido, o pagamento pelos serviços de saúde deve ser viável para todos. A quarta dimensão trata do direito ao acesso a informações de saúde. O elemento de aceitabilidade se concretiza quando os serviços de saúde são ética e culturalmente apropriados. Isso inclui respeito e atenção especial a grupos minoritários, necessidades dos cidadãos nos diferentes ciclos de vida e sensibilidade às questões de gênero. Finalmente, a qualidade também implica serviços de saúde culturalmente apropriados e embasados cientificamente, além da disponibilidade de profissionais de saúde qualificados e dos equipamentos necessários ao cuidado (99. United Nations, Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR/UN). General Comment no 14: The Right to the Highest Attainable Standard of Health. Genebra; United Nations; 2000. Disponível em: http://www.refworld.org/pdfid/4538838d0.pdf Acessado em agosto de 2018.
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).

POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Conforme a Declaração de Alma-Ata, a APS constitui o primeiro nível de contato do indivíduo, da família e da comunidade com o sistema de saúde. Deve viabilizar cuidados baseados em métodos e tecnologias práticas, respaldados cientificamente e socialmente aceitáveis para garantir a promoção da saúde e a prevenção e controle de doenças (22. Organização Mundial da Saúde (OMS). Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde. Alma-Ata; 1987. Disponível em: www.who.int/publications/almaata_declaration_en.pdf?ua=1&ua=1 Acessado em agosto de 2018.
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).

No entanto, a implementação da APS não é uníssona, estando permeada por particularidades locais. Na América do Sul, por exemplo, predominam dois modelos de organização da APS: um caracterizado pela fragmentação e orientação do mercado e outro com domínio de intervenções públicas e territorialização (1010. Ramírez NA, Giovanella L, Romero RV, Silvad HT, Almeida PT, Ríos G, et al. Mapping primary health care renewal in South America. J Fam Pract. 2016;33(3):261–7.). Levando em conta a posição da APS nos sistemas de saúde e os princípios propostos na Declaração de Alma-Ata, segue-se uma reflexão sobre como a APS pode respeitar, proteger e efetivar o DHAA. Algumas medidas práticas que exemplificam modos de concretizar o DHAA foram sumarizadas na figura 1.

FIGURA 1
Síntese de medidas para fortalecer o direito humano à alimentação adequada na atenção primária à saúde

Obrigação de respeitar

A obrigação do Estado-parte de respeitar o DHAA permeia todas as suas esferas, inclusive a APS. Pensando em disponibilidade, se não existem serviços de saúde para atender as demandas relacionadas à alimentação – por exemplo, orientações sobre qualidade dos alimentos, efeitos dos alimentos na saúde e as melhores formas de prepará-los – em quantidade compatível com as necessidades da população, há desrespeito ao DHAA. Os países latino-americanos avançaram de forma distinta na questão da suficiência de serviços. Para a ONU, ainda restam problemas importantes nesse quesito, por exemplo, no México, Colômbia, Peru, Equador e Guatemala, sendo sugerida a alocação de recursos com prioridade para populações vulneráveis. Esta informação consta nas conclusões dos relatórios periódicos mais recentes emitidos pelo CES para cada um desse países: México (2018); Colômbia (2017); Peru (2012); Equador (2012); e Guatemala (2014) (1111. United Nations. Office of the High Commissioner for Human Rights. Concluding observations. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/treatybodyexternal/TBSearch.aspx?Lang=en&TreatyID=9&DocTypeID=5 Acessado em agosto de 2018.
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).

A mera existência de serviços de saúde não garante a presença de acessibilidade em todas as dimensões. Destaca-se o componente econômico, uma vez que, na visão dos usuários, o pagamento de taxas na APS resulta em menor uso dos serviços e no comprometimento da segurança alimentar, da estabilidade financeira e da atuação feminina na tomada de decisões em saúde (1212. Johnson A, Goss A, Beckerman J, Castro A. Hidden costs: The direct and indirect impact of user fees on access to malaria treatment and primary care in Mali. Soc Sci Med. 2012;75:1786–92.), ou seja, uma miríade de violações de direitos humanos.

Os países sul-americanos que adotaram métodos de cobertura em saúde que não dependem de pagamento estão mais próximos da abordagem abrangente proposta pela Declaração de Alma-Ata, considerando elementos como a concepção de APS, o modo de organização dos serviços, a articulação intersetorial e a participação social (1010. Ramírez NA, Giovanella L, Romero RV, Silvad HT, Almeida PT, Ríos G, et al. Mapping primary health care renewal in South America. J Fam Pract. 2016;33(3):261–7.). O Chile, por exemplo, desde a década de 1990, ampliou o investimento público na APS, visando a eliminar taxas para os beneficiários do Fundo Nacional de Saúde (11. Atun R, Andrade LOM, Almeida G, Cotlear D, Dmytraczenko T, Frenz P, et al. Health-system reform and universal health coverage in Latin America. Lancet. 2015;385:1230–47.). Adicionalmente, o reconhecimento legal do direito à saúde tem se mostrado uma etapa importante para avançar na cobertura de saúde na América Latina (11. Atun R, Andrade LOM, Almeida G, Cotlear D, Dmytraczenko T, Frenz P, et al. Health-system reform and universal health coverage in Latin America. Lancet. 2015;385:1230–47.).

Quanto à aceitabilidade, os serviços de APS respeitam o DHAA quando não infringem práticas, normas e valores culturais, religiosos e éticos ligados à alimentação. Isso pode parecer óbvio e deve estar dentro dos códigos de conduta dos profissionais de saúde. No entanto, no manejo da desnutrição infantil em Buenos Aires, por exemplo, há relatos de imposição da visão biomédica por profissionais de saúde, desconsiderando as concepções culturais das mães sobre a doença e forçando condutas (1313. Herkovitz D. Las fronteras de la medicalización: tensiones en torno a la identificación y valoración de la desnutrición infantil en un centro de atención primaria de la ciudad de Buenos Aires. Cienc Saude Colet. 2012;17(9):2543–51.). Assim, permanece o desafio de banir práticas que desrespeitam os direitos humanos, e ainda mais de fortalecer o potencial emancipatório e empoderador da APS.

No tocante à qualidade, destaca-se a dimensão de respaldo científico. Em 2005, o Brasil iniciou um programa de suplementação de ferro para gestantes via APS com base em evidências científicas e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, a sua implementação enfrentou impasses em nível local por baixa cobertura e distribuição desigual de suplementos entre as mulheres (1414. Linhares AO, Linhares RdaS, Cesar JA. Iniquidade na suplementação de sulfato ferroso entre gestantes no sul do Brasil. Rev Bras Epidemiol. 2017;20:650–60.). Quando o serviço de saúde não promove um cuidado pautado em evidências científicas para todos, há desrespeito do DHAA por baixa qualidade. O mesmo acontece quando o serviço realiza práticas já reportadas cientificamente como inapropriadas, por exemplo, ao orientar introdução de alimentação complementar em crianças menores que 6 meses através de chás e sucos.

Obrigação de proteger

A APS tem grande potencial para proteger o DHAA, principalmente na identificação de violações desse direito por terceiros. A matéria-prima da APS nesse caso está na geração de informações dentro do território.

Considerando a acessibilidade e a disponibilidade, a APS protege o DHAA quando dispõe de mecanismos para detectar situações de insegurança alimentar e os utiliza sem discriminação. Da mesma forma que a APS pode monitorar, via vigilância em saúde, doenças infecciosas ou a violência contra crianças e adolescentes, por exemplo, pode monitorar o estado de efetivação do DHAA, via vigilância alimentar e nutricional. Desde 1977, Cuba, por exemplo, possui um sistema de vigilância nutricional para gerar informações sobre o estado nutricional e o acesso à alimentação adequada pela população (1515. Rodríguez SO; García AMN. Estado de la nutrición materno-infantil en la provincia de Camagüey. Rev Cubana Aliment Nutr. 2013;23(2): 284–96.).

A APS também pode atuar na identificação de situações de negligência alimentar em ambientes institucionais (por exemplo, creches, escolas e instituições de longa permanência) e na família. Ressalta-se também que as ferramentas de identificação de insegurança alimentar revelam diferentes faces de violações do DHAA. Portanto, instrumentos como escalas psicométricas de avaliação da insegurança alimentar, como a US Household Food Security Survey Measure e suas derivadas, são mais interessantes do que somente o diagnóstico de desfechos biológicos, como a desnutrição (44. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Cienc Saude Colet. 2011;16(1):187–99.).

A fome apresenta um caráter vexatório para aqueles que a vivenciam. Nesse sentido, o elemento de aceitabilidade inclui a confidencialidade ao reportar informações sobre violações do DHAA no território às autoridades competentes. A atuação diante desses casos demanda articulação intersetorial, notadamente com a assistência social, para recorrer a programas existentes, como os de transferência de renda. Persistindo as violações, é possível acionar instituições de defesa dos direitos dos cidadãos, como o Ministério Público, especialmente nos países com arcabouço legal para o DHAA. Nos países com legislações menos avançadas, as parcerias com organizações de defesa do DHAA (por exemplo, Food Information and Action Network, ou FIAN International, https://www.fian.org/) são um caminho.

Para que a proteção do DHAA seja factível, destaca-se a importância de recursos humanos qualificados e condições estruturais na APS, que são componentes da qualidade dos serviços. Na perspectiva dos médicos da APS, é necessário treinamento para abordar a segurança alimentar, tanto em aspectos técnicos, quanto para não gerar constrangimentos aos usuários (1616. Palakshappa D, Vasan A, Khan S, Seifu L, Feudtner C, Fiks AG. Clinicians' perceptions of screening for food insecurity in suburban pediatric practice. Pediatrics. 2017; 140(1):1–9.). A destinação de tempo de trabalho para a execução dessas tarefas é imprescindível para que não se tornem mais uma atribuição impraticável na rotina de trabalho.

Obrigação de efetivar

Dentro das duas ações que compõem a efetivação do DHAA, a APS é mais um espaço para facilitação do que para o provimento, embora historicamente tenha sediado experiências de distribuição de alimentos na América Latina. A efetivação de um direito depende de muitas esferas, incluindo os respaldos legislativo, administrativo e financeiro. Cabe à APS a promoção desse direito, fortalecendo as condições para que ele se realize, principalmente através do conhecimento sobre o tema.

Ações educativas na APS são centrais para a facilitação do DHAA. Em especial, a educação alimentar e nutricional pode sensibilizar os usuários quanto à alimentação como direito e quanto à problematização da pobreza, da fome, do consumo de alimentos de baixa qualidade e das desigualdades sociais e econômicas geradoras dessas condições. Contudo, essa educação deve contemplar o diálogo entre profissionais e usuários e visar à autonomia do sujeito (1717. Santos LAS. O fazer educação alimentar e nutricional: algumas contribuições para reflexão. Cienc Saude Colet. 2012;17(2):453–62.).

No que se refere a disponibilidade e acessibilidade, a APS facilita o DHAA quando realiza ações de promoção da alimentação adequada na perspectiva dos direitos humanos, dentro da unidade de saúde e em equipamentos do território acessíveis, sem qualquer tipo de discriminação. As hortas nos serviços de APS, por exemplo, reforçam a ação comunitária, promovem habilidades e resgatam práticas e hábitos tradicionais (1818. Costa CGA, Garcia MT, Ribeiro SM, Salandini MFS, Bógus CM. Hortas comunitárias como atividade promotora de saúde: uma experiência em Unidades Básicas de Saúde. Cienc Saude Coletiva. 2015;20(10):3099–110.), ou seja, desfechos que coadunam com o DHAA.

Para a aceitabilidade, as ações devem valorizar a cultura e as preferências alimentares dos usuários e pautar-se por princípios éticos. De forma geral, diferenças culturais e religiosas relacionadas à alimentação podem ser barreiras para o enfrentamento de questões alimentares. O quadro teórico proposto por Santos (1919. Santos BS. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Rev Crit Cienc Sociais. 1997:48:11–32.) pode auxiliar ações de facilitação do DHAA na APS. O autor propõe uma concepção multicultural de direitos humanos, partindo do reconhecimento da incompletude de todas as culturas para, assim, manter um diálogo intercultural, evitando a imposição de uma cultura sobre a outra (1919. Santos BS. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Rev Crit Cienc Sociais. 1997:48:11–32.). O caso dos imigrantes bolivianos no município de São Paulo é um exemplo. Cursos de espanhol e sobre cultura boliviana para os profissionais de saúde brasileiros e contratação de agentes comunitários de saúde (ACS) bolivianos foram propostas que procuraram aproximar os imigrantes dos serviços de APS (2020. Martes ACB, Faleiros SM. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saude Soc. 2013;22:351–64.).

Promover a alimentação adequada na perspectiva dos direitos humanos pode ser uma tarefa difícil. A inserção de profissionais de saúde qualificados, a educação permanente, as condições dignas de trabalho e o provimento adequado de materiais promovem a qualidade das ações de facilitação do DHAA. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) no Brasil são um exemplo de estratégia para ampliar o escopo e a resolutividade da APS, inserindo profissionais, inclusive nutricionistas, além da equipe mínima. O nutricionista era o terceiro profissional mais presente nas equipes de NASF 3 anos após a proposição do programa (2121. Patrocínio SSDSM, Machado CV, Fausto MCR. Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro. Saude Debate. 2015;39:105-19.), aumentando as oportunidades de facilitação do DHAA na APS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta apresentação oferece uma reflexão sobre como ampliar a capacidade de resposta da APS frente aos problemas alimentares vivenciados pela população latino-americana. A APS não é apenas um cenário de identificação de violações do DHAA, é também um espaço de atuação em prol da efetivação de direitos humanos para além do direito à saúde, visando à superação das desigualdades. As medidas apresentadas na figura 1 não esgotam todas as possibilidades para essa atuação, mas subsidiam reflexões a serem feitas em cada país considerando a conformação da APS localmente. Ainda que se direcionem mais aos formuladores de políticas, podem ser usadas como instrumento para o ativismo pelo tema, já que direitos são conquistados a partir de participação e engajamento social.

A presente reflexão, 40 anos após a Declaração de Alma-Ata, chama a APS para repensar as práticas de saúde na perspectiva dos direitos humanos, resgatando o potencial emancipatório da APS na América Latina. A APS não pode, sozinha, solucionar os problemas da região, mas sua atuação pode ser ampliada para promover condições de vida digna e, consequentemente, saúde plena para a população.

  • Como citar Botelho FC, França Junior I. Como a atenção primária à saúde pode fortalecer a alimentação adequada enquanto direito na América Latina? Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e159. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.159
  • Declaração. As opiniões expressas no manuscrito são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente a opinião ou política da RPSP/ PAJPH ou da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Agradecimentos.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por concessão de bolsa de mestrado à primeira autora e bolsa de produtividade em pesquisa ao segundo autor.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2018
  • Aceito
    07 Ago 2018
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