Alimentos ultraprocessados e perfil nutricional da dieta no Brasil

Maria Laura da Costa Louzada Ana Paula Bortoletto Martins Daniela Silva Canella Larissa Galastri Baraldi Renata Bertazzi Levy Rafael Moreira Claro Jean-Claude Moubarac Geoffrey Cannon Carlos Augusto Monteiro Sobre os autores

Resumo

OBJETIVO

Avaliar o impacto do consumo de alimentos ultraprocessados sobre o perfil nutricional da dieta.

MÉTODOS

Estudo transversal com dados obtidos do módulo sobre consumo alimentar de indivíduos da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. A amostra, representativa da população brasileira de 10 ou mais anos de idade, envolveu 32.898 indivíduos. O consumo alimentar foi avaliado por meio de dois registros alimentares de 24h. Os alimentos consumidos foram classificados em três grupos: in natura ou minimamente processados, incluindo preparações culinárias à base desses alimentos; processados; e ultraprocessados.

RESULTADOS

O consumo médio diário de energia per capita foi de 1.866 kcal, sendo 69,5% proveniente de alimentos: in natura ou minimamente processados, 9,0% de alimentos processados e 21,5% de alimentos ultraprocessados. O perfil nutricional da fração do consumo relativo a alimentos ultraprocessados mostrou maior densidade energética, maior teor de gorduras em geral, de gordura saturada, de gordura trans e de açúcar livre e menor teor de fibras, de proteínas, de sódio e de potássio, quando comparado à fração do consumo relativa a alimentosin natura ou minimamente processados. Alimentos ultraprocessados apresentaram, no geral, características desfavoráveis quando comparados aos alimentos processados. Maior participação de alimentos ultraprocessados na dieta determinou generalizada deterioração no perfil nutricional da alimentação. Os indicadores do perfil nutricional da dieta dos brasileiros que menos consumiram alimentos ultraprocessados, com exceção do sódio, aproximam este estrato da população das recomendações internacionais para uma alimentação saudável.

CONCLUSÕES

Os resultados indicam prejuízos à saúde decorrentes da tendência observada no Brasil de substituir refeições tradicionais baseadas em alimentosin natura ou minimamente processados por alimentos ultraprocessados e apoiam a recomendação para ser evitado o consumo desses alimentos.

Consumo de Alimentos; Alimentos Industrializados; Valor Nutritivo; Qualidade dos Alimentos; Epidemiologia Nutricional


INTRODUÇÃO

Alimentos ultraprocessados são formulações industriais prontas para consumo e feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, proteínas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e outros aditivos usados para alterar propriedades sensoriais).11,12,15,16,18

Análises de pesquisas de orçamentos familiares em três países2,9,19 e de séries temporais de estatísticas de vendas de alimentos em 79 países14 indicam tendência generalizada de aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, com maior intensidade em países de renda média, como o Brasil.

Estudos sobre aquisição domiciliar de alimentos utilizando dados de pesquisas de orçamentos familiares, realizadas no Brasil, Canadá e Chile, mostram que, em média, alimentos ultraprocessados possuem maior densidade energética, maior teor de açúcar livre e menor teor de fibra que alimentos in naturaou minimamente processados, mesmo quando se considera a combinação desses alimentos com ingredientes culinários como sal, açúcar e gorduras.3,13,17 Não há registro de estudos que tenham relacionado alimentos ultraprocessados à qualidade nutricional da dieta efetivamente consumida por indivíduos.

O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto que o consumo de alimentos ultraprocessados exerce sobre o perfil nutricional da dieta no Brasil.

MÉTODOS

Os dados analisados neste estudo procedem da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística entre maio de 2008 e maio de 2009.5,6

A amostra de domicílios da POF foi extraída adotando-se plano de amostragem por conglomerados com sorteio dos setores censitários, em primeiro estágio, e de domicílios, em segundo. Os setores censitários foram agrupados previamente ao sorteio em estratos com suficiente homogeneidade geográfica e socioeconômica. O sorteio de setores dentro de cada estrato foi feito com probabilidade proporcional ao número de domicílios em cada setor. No segundo estágio, dentro de cada setor, domicílios foram selecionados por amostragem aleatória simples, sem reposição. A amostra foi de 55.970 domicílios.5

O módulo da pesquisa relativo ao consumo alimentar individual foi aplicado em uma subamostra aleatória de 13.569 domicílios (24,3% do total de domicílios estudados). Todos os moradores com 10 anos ou mais de idade que residiam nesses domicílios foram selecionados. A subamostra estudada envolveu 34.003 indivíduos.

O consumo alimentar foi avaliado utilizando-se dois registros alimentares de 24h, em dias não consecutivos, nos quais os indivíduos registraram as quantidades, em medidas caseiras, e a forma de preparação de cada alimento consumido. Eventualmente, os registros eram preenchidos com auxílio de outro morador do domicílio ou complementados mediante entrevistas em que o agente de pesquisa revisava o preenchimento realizado pelo informante. O agente realizava a transcrição das informações para o sistema eletrônico de entrada de dados.

Os dados como data de nascimento do entrevistado, sexo e renda familiarper capita foram obtidos utilizando-se questionários padronizados. Os dados incluem ainda a situação urbana ou rural do domicílio e sua inserção em uma das cinco macrorregiões do País (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul).

A quantidade de cada alimento foi transformada em gramas ou mililitros com base na tabela de medidas referidas para os alimentos consumidos no Brasil,7 construída a partir da compilação de tabelas de medidas caseiras e de outras fontes de informação. Quantidades consideradas improváveis ou não informadas foram imputadas com base em matriz de similaridades formadas por variáveis correlacionadas com a variável quantidade consumida (sexo do informante, faixa etária, unidade da federação, macrorregião e unidade de medida informada) utilizando-se a técnica hot deck.7

Essas quantidades de alimentos foram convertidas em quilocalorias de energia e em gramas ou miligramas de nutrientes com base na tabela de composição nutricional dos alimentos consumidos no Brasil.8 Esta tabela foi construída a partir dos dados da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos e da tabela do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, além de referências de receitas regionais e de rótulos de alimentos.8

Conforme orientação do IBGE,8 foi padronizado o conteúdo de açúcar adicionado em sucos de fruta, café e chá em quantidade equivalente a: 10,0% do volume consumido, no caso do indivíduo informar que costumava adicionar apenas açúcar às bebidas; e em 5,0% do volume adicionava açúcar e adoçantes artificiais. Foi considerada bebida sem açúcar adicionado quando o indivíduo relatou que não costumava adicionar açúcar às bebidas.

Os 1.120 itens de consumo relatados foram classificados em três grupos: alimentosin natura ou minimamente processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados.11,15,18

O primeiro grupo inclui alimentos obtidos diretamente de plantas ou de animais (como folhas, frutos, ovos e leite) e adquiridos para consumo sem que tenham sofrido qualquer alteração após deixarem a natureza (alimentos in natura) e alimentos in natura que, antes de sua aquisição, foram submetidos à limpeza, remoção de partes não comestíveis ou não desejadas, secagem, embalagem, pasteurização, congelamento, refinamento, fermentação e outros processos que não incluíssem a adição de substâncias ao alimento original (alimentos minimamente processados). Preparações culinárias baseadas em um ou mais alimentos in natura ou minimamente processados foram incluídas neste primeiro grupo. Essas preparações incluem o alimento usado como item principal da receita e todos os demais ingredientes, incluindo eventuais outros alimentos e substâncias alimentícias de uso culinário como sal, açúcar, vinagre e óleos.11,15,18

No segundo grupo, constam produtos industrializados feitos essencialmente com a adição de sal ou açúcar (e eventualmente óleo ou vinagre) a um alimentoin natura ou minimamente processado, incluindo conservas de legumes, frutas em calda, queijos e pães feitos com farinha de trigo, água e sal (e leveduras usadas para fermentar a farinha).11,15,18

Já o terceiro grupo é composto por formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, proteínas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e outros aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes).11,15,18Alimentos ultraprocessados incluem biscoitos doces e salgados, salgadinhos tipochips, barras de cereal, guloseimas em geral, lanches do tipo fast food, macarrão instantâneo, vários tipos de pratos prontos ou semiprontos e refrigerantes. As principais características de cada grupo de alimentos e uma lista detalhada de exemplos estão apresentadas no Anexo.

Todas as análises foram realizadas com os indivíduos que preencheram os registros relativos a dois dias de consumo alimentar, o que ocorreu para 96,8% do total de indivíduos que participaram do módulo da pesquisa relativo ao consumo alimentar individual.

O padrão da alimentação da população foi descrito distribuindo-se o total de calorias consumidas pelos indivíduos segundo os três grupos de alimentos considerados neste estudo e, internamente a esses grupos, segundo subgrupos selecionados.

Os indivíduos foram classificados em cinco estratos conforme a contribuição de alimentos ultraprocessados para o valor calórico total da sua dieta. Esses estratos corresponderam a quintis da distribuição da contribuição calórica dos alimentos ultraprocessados no conjunto da população brasileira. O padrão de alimentação de cada um desses estratos foi descrito de forma semelhante à efetuada para o conjunto da população.

O impacto do consumo de alimentos ultraprocessados sobre a qualidade da dieta levou em conta indicadores para os quais a Organização Mundial da Saúde estabeleceu recomendações para consumo, válidas para o conjunto da população e independentes de sexo, idade e estado fisiológico: proteína, carboidratos, açúcar livre, fibra, gorduras totais, gordura saturada, gorduratrans, fibra, sódio e potássio.30,34 Os indicadores relativos à ingestão de fibra, sódio e potássio foram expressos por 1.000 kcal, enquanto os demais nutrientes foram expressos em percentual do total de calorias ingeridas. Adicionalmente, incluiu-se o indicador densidade energética da fração sólida da dieta, calculado com a divisão da soma das calorias provenientes da ingestão de alimentos sólidos pela quantidade em gramas desses alimentos. As recomendações utilizadas para este indicador foram as propostas pelo World Research Cancer Fund.29

Os indicadores nutricionais foram utilizados para avaliar a qualidade da dieta média brasileira. As médias dos indicadores nutricionais da fração da dieta composta exclusivamente pelos alimentos ultraprocessados foram comparadas à fração da dieta composta somente de itens de consumo do grupo de alimentosin natura ou minimamente processados e com a fração da dieta restrita ao grupo de alimentos processados. Para essas comparações, utilizou-se o teste t de Student.

Os indicadores foram usados para avaliar a qualidade da dieta de estratos da população brasileira correspondentes a quintis da contribuição dos alimentos ultraprocessados para o total de calorias. Análises de regressão linear foram empregadas para identificação da direção e do significado estatístico da associação entre quintis da distribuição de contribuição calórica de alimentos ultraprocessados e indicadores nutricionais, sem e com ajuste para variáveis de confusão (renda familiar, residência urbana ou rural, macrorregião, idade e sexo).

Todas as análises foram realizadas no software Stata 13.0, considerando-se o delineamento complexo da amostra.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Protocolo 128.958, de 19/10/2012).

RESULTADOS

O consumo médio diário de energia dos brasileiros com dez ou mais anos de idade foi de 1.866 kcal, sendo 69,5% proveniente de alimentos in natura ou minimamente processados, 9,0% de alimentos processados e 21,5% de alimentos ultraprocessados (Tabela 1).

Tabela 1
Médias do consumo absoluto e relativo de alimentos in natura ou minimamente processados, de alimentos processados e de alimentos ultraprocessados na população brasileira com 10 ou mais anos de idade (2008-2009).

Juntos, arroz e feijão são responsáveis por mais de um quinto (22,9%) da energia consumida ao longo do dia. Outros alimentos in natura ou minimamente processados, relevantes na alimentação brasileira, são carnes vermelhas, frutas, outros cereais que não o arroz e leite, cada um deles contribuindo com pelo menos 5,0% do total diário de energia. Com menor contribuição energética, aparecem carnes de ave, raízes e tubérculos, café e chá, peixes, verduras e legumes e ovos.

Dentre os alimentos processados, o de maior contribuição para o aporte total de energia foi o pão francês (6,9% das calorias diárias), seguido de queijos, carnes processadas e conservas de frutas e hortaliças.

Dentre os alimentos ultraprocessados, destacam-se bolos, tortas e biscoitos doces (3,0% das calorias diárias), lanches do tipo fast food (2,9%), refrigerantes e refrescos (2,6%), pães de forma, de hambúrguer e de hot dog (2,4%) e guloseimas (2,2%). Segundo contribuição energética, aparecem bolachas salgadas e salgadinhos tipo chips, embutidos, pratos prontos ou semiprontos e bebidas lácteas adoçadas.

A contribuição média dos alimentos ultraprocessados para o total de energia consumida variou de menos de 2,0% no primeiro quintil para quase 50,0% no último quintil. A contribuição de todas as categorias de alimentos ultraprocessados aumenta significativamente do primeiro para o ultimo quintil. Tendência inversa é observada para todos os alimentos in natura ou minimamente processados, exceto frutas e verduras e legumes, os quais não variaram significativamente. Alimentos processados apresentaram variações significativas, mas não uniformes: queijos e conservas de frutas e hortaliças contribuem com aumento do consumo de ultraprocessados, enquanto o oposto é observado para o pão francês e para as carnes processadas. Evidencia-se, assim, a natureza mista do grupo de alimentos processados acompanhando, parte o padrão de variação dos alimentos in natura ou minimamente processados, e parte o padrão de variação dos alimentos ultraprocessados (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição (%) da ingestão total de energia segundo grupos de alimentos e itens de consumo em estratos da população brasileira com 10 ou mais anos de idade correspondentes a quintis do consumo de alimentos ultraprocessados (2008-2009).

A Tabela 3 apresenta a avaliação da dieta brasileira (conjunto dos alimentos ingeridos) e das frações do consumo alimentar relativas, respectivamente, a alimentos in natura ou minimamente processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

Tabela 3
Médias de indicadores nutricionais do consumo alimentar da população brasileira com 10 ou mais anos de idade e da fração deste consumo referente aos grupos de alimentos in naturaou minimamente processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados (2008-2009).

A dieta da população brasileira excede as recomendações de consumo para densidade energética, proteína, açúcar livre, gordura trans e sódio e apresenta teores insuficientes de fibras e potássio.

Comparada à fração da dieta relativa a alimentos in natura ou minimamente processados, a fração relativa a alimentos ultraprocessados tem 2,5 vezes mais energia por grama, duas vezes mais açúcar livre, 1,5 vezes mais gorduras em geral e gorduras saturadas e oito vezes mais gordurastrans, além de apresentar teores inferiores de fibras (três vezes menos), de proteínas (duas vezes menos) e de potássio (2,5 vezes menos). Em comparação a alimentos processados, os ultraprocessados possuem também maior densidade energética, maior teor de açúcar livre, de gorduras em geral, de gorduras saturadas e de gorduras trans e menor teor de proteínas e de fibras. O teor de potássio é semelhante em alimentos processados e ultraprocessados. O teor de sódio é particularmente elevado em alimentos processados: 2,5 g por 1.000 kcal contra 1,4 nos ultraprocessados e 1,7 nos alimentos minimamente processados e suas preparações culinárias.

A Tabela 4 apresenta indicadores do perfil nutricional da dieta para os cinco estratos da população correspondentes a quintis crescentes da contribuição energética dos alimentos ultraprocessados.

Tabela 4
Médias de indicadores nutricionais do consumo alimentar de estratos da população brasileira, com 10 ou mais anos de idade, correspondentes a quintis do consumo de alimentos ultraprocessados (2008-2009).

A densidade energética da dieta e o teor relativo de açúcar livre, de gorduras em geral, de gorduras saturadas e de gorduras trans aumentam significativamente com o aumento da contribuição de alimentos ultraprocessados, enquanto o oposto ocorre para o teor de proteínas, de fibras, de potássio e de sódio. O controle das variáveis renda familiar, residência urbana ou rural, região do País, idade e sexo não modifica esses resultados.

Contrastando com a dieta média da população brasileira, a dieta do quintil dos indivíduos com menor consumo relativo de alimentos ultraprocessados mostrou-se adequada às recomendações para fibras e gordura trans e próxima da adequação para densidade energética, açúcar livre e potássio (Tabela 3). A dieta do quintil dos indivíduos com menor consumo relativo de alimentos ultraprocessados mostrou-se adequada também para o consumo de gorduras totais e gorduras saturadas, nutrientes consumidos excessivamente pelo quintil com maior consumo relativo de alimentos ultraprocessados. O teor de sódio na dieta excedeu a recomendação de consumo (< 1 g/1.000 kcal) em todos os estratos da população.

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo confirmam o perfil nutricional desfavorável dos alimentos ultraprocessados e documentam o seu impacto largamente negativo na qualidade da alimentação da população brasileira, em particular aumentando a densidade energética da dieta e os teores de açúcar, de gordura saturada e de gordura trans e, ainda, diminuindo os teores de fibras e de potássio.

Dietas com alta densidade energética comprometem a capacidade de o organismo humano regular o balanço energético, aumentando o risco de ganho excessivo de peso.24 A participação excessiva de açúcar livre na dieta também aumenta o risco de ganho excessivo de peso e da obesidade,28 além de aumentar a incidência de cárie dental.20 Conteúdos excessivos de gorduras saturadas e de gorduras trans aumentam a morbimortalidade por doenças cardiovasculares.21,32 Por outro lado, a ingestão insuficiente de fibras aumenta o risco de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer, como de cólon e reto e de mama,10,22,30 enquanto a ingestão insuficiente de potássio aumenta o risco de hipertensão arterial.33

Estudos populacionais que tenham avaliado a associação entre consumo de alimentos ultraprocessados e morbimortalidade ainda são poucos devido à recente definição dessa categoria de alimentos.11,12,15,16,18 Entretanto, estudos já realizados no Brasil indicam associações significativas do consumo de alimentos ultraprocessados com a síndrome metabólica em adolescentes,27 com dislipidemias em crianças23 e com a obesidade em todas as idades.1

Estudos com base na aquisição domiciliar de alimentos realizados no Brasil13 e em outros países3,17 constataram a inferioridade da qualidade nutricional do conjunto dos alimentos ultraprocessados quando comparados ao conjunto dos demais alimentos.

A estratificação da população brasileira, segundo a participação dos alimentos ultraprocessados na dieta, indica que a alimentação dos 20,0% dos brasileiros que menos consomem alimentos ultraprocessados atende ou se aproxima das recomendações internacionais com relação a todos os indicadores nutricionais da dieta considerados neste estudo, com exceção do sódio. Por outro lado, a alimentação dos 20,0% dos brasileiros que mais consomem alimentos ultraprocessados tem conteúdo excessivo em gorduras totais, gordura saturada, gordura trans, açúcar livre e sódio, e conteúdo insuficiente em fibras e potássio. Este achado indica que a redução no consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil é um caminho natural para a promoção da alimentação saudável. O elevado teor de sódio encontrado nas três frações da dieta, consideradas neste estudo, indica que a solução para o consumo excessivo de sódio no Brasil requer tanto a redução no teor de sódio adicionado pela indústria a alimentos processados ou ultraprocessados quanto a redução na adição de sal a preparações culinárias.

O teor médio de proteína da dieta brasileira (17,2% das calorias) excede a faixa de recomendação para este nutriente (10,0%-15,0%)30 devido ao elevado teor de proteína observado em alimentos in natura ou minimamente processados (19,5%), causado pela grande participação de feijões e de carne na alimentação dos brasileiros. De qualquer forma, os efeitos negativos para a saúde decorrentes da ingestão elevada de proteína não são claros e aparentemente só ocorrem, como no caso de prejuízos à função renal, com valores de ingestão que excedam em mais de duas vezes o limite superior da recomendação.31 Por outro lado, estudos recentes indicam que o aumento no teor de proteína entre 10,0% e 20,0% aumenta o poder de saciedade da dieta e previne o consumo excessivo de calorias.4,25

Dentre os pontos fortes deste estudo, destacam-se: o caráter rigorosamente probabilístico da amostra estudada e a representatividade nacional, assegurada com o estudo de mais de 30 mil pessoas residentes nas areas urbanas e rurais das várias regiões do País; a realização de dois registros alimentares de 24h; e o emprego de um novo sistema de classificação de alimentos, que agrupa cada item de consumo segundo o processamento industrial envolvido em sua produção.

Este estudo apresenta limitações oriundas de vieses potenciais inerentes ao uso de registros alimentares: subestimação do consumo alimentar, modificação do consumo habitual nos dias do estudo, diferenças entre as receitas culinárias reais e as receitas padronizadas e diferenças entre a composição nutricional real dos alimentos consumidos e a composição indicada pela tabela de composição nutricional utilizada. Para minimizar parte desses vieses, o instrumento de coleta foi pré-testado e validado, procedimentos de controle de qualidade foram realizados durante a coleta de dados e registros inconsistentes foram excluídos e substituídos com valores imputados.6 Além disso, a tabela de composição nutricional de alimentos utilizada foi construída especificamente para este estudo, incluindo receitas mais próximas dos hábitos dos brasileiros. Como o instrumento para registro do consumo de alimentos não foi concebido para avaliar os alimentos de acordo com o processamento industrial a que foram submetidos, alguns itens de consumo podem ter sido classificados incorretamente. Erros de classificação são mais prováveis no caso de itens como pizzas, doces e sucos de frutas, que tanto podem ser preparações culinárias do primeiro grupo quanto produtos industrializados do terceiro grupo. No caso de ausência de informações nos registros que permitissem a distinção entre preparações culinárias e produtos industrializados, como detalhes sobre a receita ou a marca do produto, optou-se pela alternativa mais comum nos casos em que havia informação. Finalmente, o estudo não incluiu pessoas com menos de 10 anos, o que determina que seus resultados rigorosamente se apliquem apenas à população brasileira de adolescentes e de adultos.

A importância da comprovação dos efeitos negativos do consumo de alimentos ultraprocessados para a qualidade nutricional da dieta brasileira ganha importância quando se observa que, desde a década de 1990, as vendas de alimentos ultraprocessados vêm se expandindo intensamente no Brasil e, de modo geral, em todos os países de renda média.14,26 Além disso, pesquisas de aquisição de gêneros alimentícios, para consumo domiciliar, realizadas nas áreas metropolitanas brasileiras entre 1987-1988 e 2008-2009, indicam aumentos sistemáticos na participação de alimentos ultraprocessados e redução concomitante dos alimentos in natura ou minimamente processados e de ingredientes culinários como óleos e açúcar.9

Os resultados deste estudo deram suporte à recomendação central da nova edição do Guia Alimentar para a População Brasileira:11 “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”.

ANEXO


Classificação de alimentos com base no processamento industrial a que foram submetidos antes de sua aquisição.

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  • 31
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  • 32
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  • 33
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  • 34
    World Health Organization. WHO issues new guidance on dietary salt and potassium. Geneva; 2013.

  • Pesquisa subvencionada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo 2012/18027-0 – bolsa de doutorado).
  • Artigo baseado na tese de doutorado de Maria Laura da Costa Louzada, a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2015
  • Aceito
    24 Abr 2015
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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