Transferência de conhecimento na cooperação internacional: o caso Farmanguinhos – SMM

Samuel Araujo Gomes da Silva Roberto Gonzalez Duarte José Márcio de Castro Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Analisar a influência de quatro mecanismos de transferência de conhecimento (treinamentos, visitas técnicas, expatriação e procedimentos operacionais padrão) sobre as diferentes dimensões (potencial e realizada) da capacidade absortiva na cooperação técnica internacional.

MÉTODOS

Examina-se o caso da implementação da Sociedade Moçambicana de Medicamentos. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas (aplicadas a 21 profissionais da Sociedade Moçambicana de Medicamentos, Farmanguinhos, Fiocruz e Itamaraty) e de documentos oficiais. Os dados das entrevistas foram submetidos à análise de conteúdo, com uso do software NVivo.

RESULTADOS

Os treinamentos e as visitas técnicas influenciaram diretamente a aquisição e, parcialmente, a assimilação do conhecimento. A expatriação contribuiu para a transformação desse conhecimento, por meio do desenvolvimento e refinamento das rotinas operacionais. Por fim, a definição dos procedimentos operacionais padrão permitiu que os técnicos moçambicanos fossem os atores da transformação do conhecimento adquirido e assimilado previamente e, ao mesmo tempo, criou as bases para uma futura exploração do conhecimento.

CONCLUSÕES

Os treinamentos e as visitas técnicas influenciam, principalmente, a capacidade absortiva potencial, enquanto a expatriação e os procedimentos operacionais padrão impactam mais diretamente a capacidade absortiva realizada.

Gestão do Conhecimento; Transferência de Tecnologia; Intercâmbio Educacional Internacional; Cooperação Internacional; Capacitação de Recursos Humanos em Saúde

INTRODUÇÃO

O êxito do processo de transferência de conhecimento, que é o processo de compartilhamento de conhecimentos tácitos e explícitos entre dois agentes1212. Kumar JA, Ganesh LS. Research on knowledge transfer in organizations: a morphology. J Knowl Manag. 2009;13(4):161-74. https://doi.org/10.1108/13673270910971905
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, está associado à capacidade de recriação do conhecimento transferido em um novo contexto1717. Szulanski G. The process of knowledge transfer: a diachronic analysis of stickiness. Organ Behav Hum Decis Process. 2000;82(1):9-27. https://doi.org/10.1006/obhd.2000.2884
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. Se o conhecimento é ressignificado de forma a ser compreendido pelos indivíduos da organização receptora e, principalmente, internalizado1717. Szulanski G. The process of knowledge transfer: a diachronic analysis of stickiness. Organ Behav Hum Decis Process. 2000;82(1):9-27. https://doi.org/10.1006/obhd.2000.2884
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por eles, tem-se um processo de transferência de conhecimento efetivo e completo1111. Kostova T, Roth K. Adoption of an organizational practice by subsidiaries of multinational corporations: institutional and relational effects. Acad Manag J. 2002;45(1):215-33. https://doi.org/10.2307/3069293
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. Essas três ações – ressignificação, compreensão e internalização do conhecimento transferido – dependem em grande parte da capacidade absortiva da organização receptora66. Cohen WM, Levinthal DA. Absorptive capacity: a new perspective on learning and innovation. Adm Sci Q. 1990;35(1):128-52. https://doi.org/10.2307/2393553
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.

A capacidade absortiva subdivide-se em duas dimensões: capacidade absortiva potencial e capacidade absortiva realizada. A primeira compreende as habilidades de aquisição (identificar e adquirir conhecimento externo crítico para a operação da organização) e assimilação (organizar rotinas e processos que permitam à organização analisar, processar, interpretar e entender o conhecimento obtido de fontes externas, ou seja, processo pelo qual o conhecimento adquirido externamente é distribuído ao longo da organização receptora). A segunda engloba as capacidades de transformação (desenvolver e refinar as rotinas que facilitem a combinação dos conhecimentos já existentes e daqueles adquiridos e assimilados anteriormente) e exploração (refinar, ampliar e alavancar competências ou criar novas, mediante a incorporação do conhecimento adquirido e transformado em suas operações)1919. Zahra SA, George G. Absorptive capacity: a review, reconceptualization, and rextension. Acad Manag Rev. 2002;27(2):185-203. https://doi.org/10.5465/AMR.2002.6587995
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Embora as duas dimensões se inter-relacionem e sejam interdependentes, o conhecimento externo pode ser adquirido e assimilado, sem, contudo, ser transformado e explorado; tem-se, nesse caso, uma transferência de conhecimento incompleta e não efetiva. Da mesma forma, se a capacidade absortiva potencial é baixa, o conhecimento pode ser adquirido ou assimilado, mas apenas parcialmente, o que impacta a capacidade absortiva realizada. Tem-se, também nesse caso, um processo de transferência de conhecimento incompleto e não efetivo. A capacidade absortiva potencial é, assim, uma condição sine qua non, embora não suficiente, para um processo completo de transferência. Apesar de a literatura discutir amplamente a transferência de conhecimento intra e interorganizacional77. Easterby-Smith M, Lyles MA, Tsang EWK. Inter- organizational knowledge transfer: current themes and future prospects. J Manag Stud. 2008;45(4):677-90. https://doi.org/10.1111/j.1467-6486.2008.00773.x
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e, em particular, os mecanismos para a sua operacionalização1212. Kumar JA, Ganesh LS. Research on knowledge transfer in organizations: a morphology. J Knowl Manag. 2009;13(4):161-74. https://doi.org/10.1108/13673270910971905
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e o papel da capacidade absortiva nesse processo66. Cohen WM, Levinthal DA. Absorptive capacity: a new perspective on learning and innovation. Adm Sci Q. 1990;35(1):128-52. https://doi.org/10.2307/2393553
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, pouco sabemos ainda sobre esse fenômeno no contexto da cooperação técnica internacional.

Nos últimos anos, o Brasil tem participado ativamente de ações de cooperação com outros países em desenvolvimento, sobretudo na América Latina e ÁfricaaaMinistério das Relações Exteriores (BR), Agência Brasileira de Cooperação. Cooperação técnica. Brasília (DF); c2012 [citado 26 mai 2012]. Disponível em: http://www.abc.gov.br . Em alguns países africanos, por exemplo, foram identificados alguns obstáculos comuns em seus sistemas de saúde pública: déficits consideráveis de pessoal qualificado; dependência excessiva de médicos estrangeiros combinada com a emigração dos profissionais mais qualificados; baixa capacidade para a formação de recursos humanos de saúde; remuneração insuficiente dos profissionais da área da saúde; ausência de um sistema de informação sobre os recursos humanos na área da saúde; fraca capacidade de gestão; e baixo potencial financeiro para uma rápida ampliação dos recursos humanos na saúde. Tendo em vista esses problemas estruturais, o país adotou um modelo de cooperação estruturante, cujo objetivo é a construção de capacidades (formação de recursos humanos, fortalecimento organizacional e desenvolvimento institucional)11. Almeida C, Campos RP, Buss PM, Ferreira JR, Fonseca LE. A concepção brasileira de cooperação Sul-Sul estruturante em saúde. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude. 2010 [cited 2017 Jun 5];4(1):25-35. Available from: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/pdf/a-concepcao-brasileira-de-cooperacao-sul-sul-estruturante-em-saude.pdf
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,44. Buss P, Ferreira JR. Ensaio crítico sobre a cooperação internacional em saúde. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude. 2010 [cited 2017 Jun 5];4(1):93-105. Available from: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/710/1355
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,99. Fronteira I, Dussault G. Recursos humanos da saúde nos países africanos de língua oficial portuguesa: problemas idênticos, soluções transversais? Rev Eletron Comun Inf Inov Saude. 2010;4(1):78-85. Available from: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/701/1346
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,1414. Mendonça Júnior W. Política externa e cooperação técnica: as relações do Brasil com a África durante os anos FHC e Lula da Silva. Belo Horizonte: D’Plácido Editora; 2013. e em que a transferência de conhecimento é o principal meio de operacionalizaçãobbFundação Oswaldo Cruz. Cooperação técnica entre países em desenvolvimento – Brasil/Moçambique: sumário executivo: estudo de viabilidade técnico-econômico para instalação da fábrica de medicamentos em Moçambique para produção de anti-retrovirais e outros. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.,ccFundação Oswaldo Cruz. Cooperação Técnica Internacional Brasil-Moçambique: projeto de instalação da fábrica de anti-retrovirais e outros medicamentos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012..

Dado o crescimento da cooperação técnica sul-sul, isto é, entre países em desenvolvimento, na área de saúde, este estudo teve como objetivo descrever e analisar as inter-relações entre os mecanismos de transferência de conhecimento, a capacidade absortiva da unidade receptora e os resultados do processo – construção de capacidadesddFundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento Brasil/Moçambique: sumário executivo: estudo de viabilidade técnico-econômico para instalação da fábrica de medicamentos em Moçambique para produção de anti-retrovirais e outros. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. Observe-se que essa construção depende da escolha dos mecanismos de transferência e de como eles são utilizados para alavancar tanto a capacidade absortiva potencial quanto a realizada. A escolha e a combinação adequadas dos mecanismos podem assegurar a efetividade da transferência entre a fonte e a receptora. Essa questão é crítica na cooperação técnica horizontal sul-sul, pois, normalmente, a organização receptora encontra-se em um contexto caracterizado por baixa capacidade absortiva, o que pode influenciar negativamente o processo e o resultado da transferência. A fim de discutir essas inter-relações nesse contexto, examina-se o caso da implementação da Sociedade Moçambicana de Medicamentos (SMM), primeira indústria pública no setor farmacêutico em um país da África subsaariana55. Canal Saúde. Destaques. Rio de Janeiro: Fiocruz; s.d [cited 2012 Oct 26]. Available from: http://www.canal.fiocruz.br/destaque/index.php?id=621
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, com o apoio técnico da Farmanguinhos, fábrica de medicamentos da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz).

MÉTODOS

Para realizar esta pesquisa, optou-se pelo método do estudo de caso1818. Yin RK. Case study research: design and methods. London: Sage Publications; 2005. de natureza qualitativa88. Eisenhardt KM. Building theories from case study research. Acad Manag Rev. 1989;14(4):532-50. https://doi.org/10.5465/amr.1989.4308385
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, com vistas ao exame intensivo – tanto em amplitude como em profundidade – de uma unidade de estudo1010. Greenwood E. Metodologia de la investigación social. Buenos Aires: Paidós; 1973. Metodos principales de investigación social empírica; p.313-45.. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas1616. Ruquoy D. Situação de entrevista e estratégia do entrevistador. In: Albarello L. Práticas e métodos de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva; 2005. p.84-116. e de análise de documentos, como o estudo de viabilidade técnico-econômico realizado pela Farmanguinhos.

O roteiro de entrevista estruturou-se em torno de duas variáveis principais: mecanismos de transferência de conhecimento e dimensões da capacidade absortiva. No que concerne à primeira, quatro mecanismos foram investigados: (i) treinamento; (ii) expatriação; (iii) visitas técnicas; e (iv) procedimentos operacionais padrão (POP)1515. Rocha TV, Borini FM. Mecanismos de transferência de conhecimento: uma comparação entre multinacionais tradicionais e emergentes. Rev Adm Inov. 2011;8(2):240-65. https://doi.org/10.5773/rai.v8i2.563
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. Em relação à segunda, analisaram-se as capacidades de aquisição; de assimilação; de transformação; e de exploração.

Realizaram-se 29 entrevistas com oito brasileiros, 11 moçambicanos, um português e um zimbabuano, todos diretamente envolvidos no processo de implementação da SMM (alguns profissionais foram entrevistados mais de uma vez). As entrevistas foram realizadas em Farmanguinhos, no Rio de Janeiro, em duas ocasiões (março-abril e outubro de 2013), e na SMM, em Maputo, também em duas oportunidades (maio e outubro–novembro de 2013). Das 29 entrevistas, 28 foram gravadas, pois um entrevistado fez objeção quanto ao armazenamento do áudio, mas autorizou que fossem feitas anotações durante a entrevista que possibilitaram a análise dos dados. Os entrevistados são identificados da seguinte maneira: número do entrevistado e, quando entrevistados mais de uma vez, o número da entrevista (e.g., entrevistado 3:2 refere-se às informações obtidas na segunda entrevista do entrevistado 3). Os áudios das entrevistas, que duraram entre 25 e 112 minutos, foram transcritos de forma literal. As transcrições resultaram em aproximadamente 300 páginas de texto. Esse primeiro tratamento dos dados favoreceu o manuseio do material33. Bauer M, Gaskell G, editors. Qualitative researching with text, image, and sound. London: Sage Publications; 2008. e a leitura flutuante, com o intuito de compreender os dados em sua plenitude.

Em seguida, utilizando-se o software NVivo, procedeu-se à análise de conteúdo22. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009. das entrevistas para a codificação, categorização e classificação das unidades de texto. Para tanto, realizou-se: (i) classificação dos dados nas categorias definidas (mecanismos de transferência e dimensões da capacidade absortiva); (ii) análise de cluster para agrupar os entrevistados e as categorias, segundo a similaridade de palavras e sua frequência de aparecimento; e (ii) nuvem de palavras para visualizar os termos mais utilizados e sua respectiva frequência. Essas análises auxiliaram na averiguação de semelhanças nas informações, no alinhamento entre as declarações das diversas fontes e na identificação dos termos e das palavras mais utilizados nos relatos.

Com relação à análise dos documentos, a principal fonte foi o estudo de viabilidade técnica e financeira, realizado pela Fiocruz, para subsidiar a implementação da SM M. O estudo contém desde o diagnóstico da situação da epidemia de HIV em Moçambique até a identificação do perfil e da quantidade de pessoal necessário para operação da fábrica. A análise do relatório ajudou a compreender as condições socioeconômicas do país antes da instalação da fábrica e como essas condições poderiam afetar a transferência de conhecimento entre a Farmanguinhos e a SMM.

RESULTADOS

A Agência Brasileira de Cooperação, em parceria com outras agências e ministérios, tem atualmente projetos em cerca de 50 países em várias áreas, como saúde coletiva, agricultura e energia renováveleeMinistério das Relações Exteriores (Brasil), Agência Brasileira de Cooperação. Cooperação técnica. Brasília (DF); c2012 [citado 26 mai 2012]. Disponível em: http://www.abc.gov.br . A cooperação técnica internacional brasileira, sobretudo em países de língua oficial portuguesa, ainda se concentra na área da saúde, principalmente no combate ao HIV/AIDS1313. Lima TGS, Campos RP. O perfil dos projetos de cooperação técnica brasileira em AIDS no mundo: explorando potenciais hipóteses de estudo. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude. 2010 [cited 2017 Jun 5];4(1):119-33. Available from: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/718
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O projeto que resultou na implementação da SMM foi mencionado pela primeira vez em 2003, pelo então presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, em viagem oficial a Moçambique. Entre 2005 e 2007, foram desenvolvidos os estudos de viabilidade técnica e financeira. Uma vez atestada a viabilidade, iniciou-se a fase de execução do projeto, que foi financiado pelos governos brasileiro e moçambicano. Nesse primeiro momento, foram assinados acordos diplomáticos relativos à cooperação entre os dois países e contratados os profissionais que trabalhariam no projeto e na implementação da fábrica (entrevistas 1; 3).

Tendo em vista o propósito da ação de cooperação (construção de capacidades), a complexidade da operação fabril farmacêutica e o reduzido número de profissionais na área de produção farmacêutica em Moçambique, uma das prioridades ainda na primeira fase da execução do projeto era transferir conhecimento. A partir da avaliação da qualificação e experiência prévia dos profissionais recém-contratados e da comparação entre estas e as competências exigidas para a implementação e o funcionamento da fábrica, elaborou-se um plano de formação e qualificação, definiram as necessidades de capacitação e os mecanismos de transferência mais apropriados para supri-las: treinamento, visitas técnicas, expatriação e POP (entrevistas 1; 3).

Como na fase inicial da implementação da SMM eram frequentes as missões brasileiras visando à discussão de detalhes operacionais do projeto, aproveitou-se a presença dos profissionais de Farmanguinhos para o oferecimento de cursos de curta duração – entre 10 e 12 horas (entrevistas 3; 9:1; 12) – aos técnicos da antiga Final Farmacêutica (fábrica de soros privada que foi comprada pelo governo moçambicano para instalar a SMM) e do Ministério da Saúde designados para trabalharem na operação. As primeiras formações tinham como objetivo apresentar noções básicas sobre a indústria farmacêutica – da estrutura às práticas de fabricação de medicamentos. Como o processo produtivo farmacêutico é altamente padronizado e os POP são um requisito para a acreditação de uma fábrica pelas agências de controle, tais como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Food and Drug Administration, os treinamentos sobre as rotinas de fabricação eram basilares para a formação dos técnicos que trabalhariam na fábrica. Ainda nessa fase, os fabricantes dos equipamentos também ofereceram treinamentos de curta duração. À medida em que as máquinas eram instaladas, davam-se formações sobre o seu funcionamento e em seguida aplicavam-se testes práticos para observar se os técnicos haviam efetivamente compreendido o funcionamento dos equipamentos (entrevistados 10:2; 13; 15; 17; 20). Segundo um entrevistado, “enquanto se montava essa fábrica, também íamos acompanhando as etapas de instalação das máquinas. Era uma forma de aula [...] que combinava a teoria com a prática” (entrevista 14). Outra modalidade de treinamento era a pós-graduação, justificada pela necessidade de um processo de aprendizagem contínuo, visto que a indústria farmacêutica é dinâmica e intensa em inovações. Entretanto, até o fim da coleta de dados, a única pessoa que havia ingressado na pós-graduação depois da contratação foi a diretora executiva, que estava finalizando o mestrado em gestão de empresas em Portugal (entrevistados 3; 4:2; 4:3; 12). O principal objetivo dos treinamentos era aumentar a capacidade absortiva potencial, principalmente a aquisição de conhecimento.

Embora os treinamentos fossem necessários à transferência do conhecimento, sozinhos seriam insuficientes para alavancar as outras dimensões das capacidades absortivas potencial e realizada, sobretudo a assimilação e a transformação. Visitas técnicas e expatriação tinham como foco essas duas dimensões. Um total de 19 moçambicanos tanto da área de gestão quanto da produção foram enviados para a Farmanguinhos, onde passavam entre 20 e 30 dias. Os propósitos eram permitir, aos técnicos, o acompanhamento do cotidiano das atividades produtivas, a aproximação a profissionais brasileiros com experiência na execução de tarefas nas áreas para os quais estavam sendo preparados para trabalhar e o repasse do conhecimento adquirido em Farmanguinhos aos seus colegas da SMM (entrevistados 1; 3; 4:1; 4:2; 9:1 10:1; 12).

Para avaliar o conhecimento adquirido durante as visitas técnicas, elaboraram-se testes curtos que serviram de base para a construção do plano de implementação desse conhecimento no contexto da fábrica. Esse plano detalhava como o conhecimento recém-aprendido deveria ser aplicado e, se fosse o caso, como seria adequado à realidade da SMM (entrevistas 5:3; 7:2; 12; 13; 21). Quando os técnicos moçambicanos retornavam efetivamente a Maputo com o seu plano de implementação em mãos, um técnico brasileiro os acompanhava a fim de auxiliá-los a colocar o plano em prática, dando continuidade ao processo de assimilação do conhecimento adquirido. Os brasileiros permaneciam cerca de 15 dias em Maputo, intercalados por períodos de dois meses no Brasil. Se, na ausência desses profissionais, surgissem problemas, outros brasileiros, que trabalhavam em tempo integral na fábrica, eram acionados para solucioná-los (entrevistas 8; 12).

Os treinamentos e as visitas técnicas contribuíram para a aquisição de determinados conhecimentos, mas sua assimilação demandou um acompanhamento mais exaustivo e intensivo por parte de profissionais brasileiros. Três expatriados, com ampla experiência na indústria farmacêutica, acompanharam o processo de implementação da fábrica – da instalação de equipamentos até o seu efetivo funcionamento, passando pela definição dos processos e rotinas produtivas. Dois atuavam na produção e na qualidade, áreas mais sensíveis da fábrica. A área de qualidade abrangia tanto o setor de controle quanto o de garantia de qualidade do produto. Eles auxiliavam os técnicos da SMM na assimilação, ou seja, na contextualização do conhecimento adquirido e na sua aplicação visando à criação de rotinas de fabricação de fármacos para a SMM (entrevistas 3; 10:1; 12). O outro expatriado apoiava os moçambicanos na gestão da fábrica, atuando como um consultor, ou seja, quando havia problemas, ajudava a desenhar as soluções mais adequadas para resolvê-los. Além de trabalharem de maneira direta para a transferência de conhecimento técnico e gerencial, esses expatriados eram ainda um elo entre a SMM e a Farmanguinhos, contribuindo para o fluxo de conhecimento entre as duas partes.

A mudança desses profissionais para Maputo e, assim, a convivência mais próxima com os moçambicanos, permitiu-lhes compreender melhor não apenas as especificidades da SMM, mas também a realidade – social, econômica e política – do país. Essa compreensão mais ampla do contexto ajudou-os consequentemente a entender as formas mais apropriadas para transferir e aplicar os conhecimentos relativos à fabricação de medicamentos e à gestão da SMM. Note-se que os expatriados atuavam conjuntamente com os técnicos moçambicanos na construção de soluções para os problemas específicos da fábrica (entrevistas 6:1; 19; 21). Diferentemente dos treinamentos e das visitas técnicas que influenciaram diretamente a aquisição e parcialmente a assimilação do conhecimento, a expatriação afetou a capacidade absortiva realizada, isto é, contribuiu para a transformação desse conhecimento, por meio do desenvolvimento e refinamento das rotinas operacionais.

Por fim, em vez de simplesmente transferir os POP, as boas práticas de fabricação e as fichas técnicas de Farmanguinhos – essas orientações sobre como executar uma determinada rotina são regras nacionais ou internacionais ou instruções legais de operação, validação e qualificação do processo de produção de medicamentos –, os documentos alavancaram a transformação, ao mesmo tempo que criaram as bases para uma futura exploração do conhecimento. Privilegiou-se, então, a participação direta dos técnicos moçambicanos no processo de adaptação e recriação dos POP à realidade local. Os técnicos das áreas descreviam os procedimentos, que posteriormente eram enviados ao setor de qualidade para que fosse averiguado se o texto estava claro, acessível e de acordo com as normas internacionais. Em caso positivo, o documento era aprovado e, em seguida, os técnicos executavam o procedimento que eles próprios haviam descrito. Por fim, eram feitas avaliações da execução do processo segundo descrito no POP e, se necessário, sugeridos os devidos ajustes (entrevistas 5:3; 18). A definição dos procedimentos com base na realidade da SMM (entrevista 7:2) permitiu que os técnicos moçambicanos fossem os atores da transformação do conhecimento adquirido e assimilado previamente. Mais do que a adaptação dos POP, priorizou-se a sua elaboração pelos próprios profissionais da SMM, assegurando-se o alcance de um dos principais objetivos do projeto de implementação da fábrica: a construção de capacidades e, consequentemente, a sustentabilidade da iniciativa.

O quadro sintetiza os mecanismos de transferência de conhecimento utilizados, o público-alvo e os objetivos do processo (Quadro 1).

Quadro 1
Mecanismos de transferência de conhecimento utilizados na implementação da SMM.

DISCUSSÃO

A implementação da SMM mostrou a estreita inter-relação entre os mecanismos de transferência de conhecimento e as diferentes dimensões da capacidade absortiva e a complementaridade entre esses mecanismos para a efetividade do processo de transferência.

Todos os mecanismos afetam, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, tanto a capacidade absortiva potencial quanto a realizada, mas cada um dos mecanismos analisados tende a ser mais relevante para uma dimensão específica. Os treinamentos iniciais proveram uma base de conhecimento aos profissionais da SMM, que não tinham experiência ou envolvimento com a produção de medicamentos (i.e., conhecimento anterior sobre o processo produtivo). Em seguida, vários desses profissionais foram enviados ao Brasil para vivenciarem a rotina de uma fábrica em pleno funcionamento. As visitas técnicas representaram uma oportunidade para adquirirem conhecimento. Ao retornarem a Maputo, o trabalho dos técnicos era acompanhado por expatriados brasileiros que supervisionavam a aplicação dos conhecimentos adquiridos nas fases anteriores, concretizando assim a assimilação. Por fim, os técnicos moçambicanos, com o apoio dos expatriados, elaboraram os procedimentos operacionais, tais como POP, boas práticas de fabricação e fichas técnicas. Essa elaboração permitiu a aplicação e, principalmente, a transformação do conhecimento.

A influência e a relevância de cada mecanismo foram confirmadas por meio da análise de cluster, que agrupa as palavras por similaridade, usando o coeficiente de correlação de Pearson como métrica. No resultado fornecido pelo NVivo, as primeiras categorias agrupadas foram: (i) visitas técnicas e assimilação; (ii) expatriação e transformação; e (iii) POP e exploração. Como evidenciado pelos resultados do NVivo, o internato em Farmanguinhos contribuiu para a aquisição, mas deu início ao processo de assimilação, isto é, análise, processamento, interpretação e entendimento de informações compartilhadas nesta fase e também na fase anterior. A expatriação, por sua vez, foi importante para a consolidação da assimilação, mas, sobretudo, determinante para iniciar a transformação (i.e., contextualização) do conhecimento adquirido. Da mesma forma, a elaboração de normas e rotinas fundamentais em um setor que se baseia em práticas produtivas precisas e detalhadas foi uma maneira de os técnicos transformarem seu conhecimento prévio. Além disso, a elaboração dos POP, com o apoio dos expatriados, criou as bases necessárias para uma possível exploração do conhecimento no futuro. Assim, as normas de produção de fármacos constituem o eixo central em torno do qual o processo de transferência de conhecimento se organiza. Além disso, se individualmente os mecanismos têm papéis distintos nas diferentes etapas do processo de transferência de conhecimento, eles são conjunta e integradamente responsáveis pela efetividade do processo.

O Quadro 2 ilustra a influência de cada mecanismo para as diferentes dimensões da capacidade absortiva.

Quadro 2
Influência dos mecanismos de transferência de conhecimento para as dimensões da capacidade absortiva.

A absorção do conhecimento e sua exploração são ações naturalmente complexas, que dependem da existência de circunstâncias e de mecanismos que a favoreçam. Como as ações de cooperação técnica sul-sul são desenvolvidas em países com baixa capacidade absortiva, a transformação e a exploração do conhecimento técnico, às vezes de elevada complexidade, pode ser difícil. No caso da SMM, ainda não há elementos que evidenciem essa exploração plena e efetiva do conhecimento, pois a análise restringiu-se ao período de implementação da fábrica.

A pesquisa tem implicações para os gestores envolvidos em ações de cooperação técnica horizontal. A transferência de conhecimento entre países em desenvolvimento (em particular com baixa capacidade absortiva disponível) requer, em um primeiro momento, mecanismos que favoreçam a aquisição e a assimilação de conhecimento. Entretanto, como a construção de capacidades requer igualmente o desenvolvimento das capacidades de transformação e exploração, a escolha de mecanismos que alavanquem a capacidade absortiva realizada constitui uma preocupação para esses gestores, pois essas capacidades são determinantes para a sustentabilidade da ação. E, conforme discutido anteriormente, mais do que a escolha, é a adequada integração entre os mecanismos que potencializa a capacidade absortiva realizada.

Um estudo de caso tem sabidamente suas limitações, sendo a principal delas a impossibilidade de generalizações. Esta pesquisa concentrou-se na análise da transferência de conhecimento na cooperação técnica entre países em desenvolvimento na área da saúde. Possivelmente, os mecanismos de transferência e as dimensões da capacidade absortiva se inter-relacionam de forma distinta na cooperação técnica em outras áreas. Outra limitação refere-se ao contexto específico analisado nesta pesquisa: escassez de mão de obra qualificada na área farmacêutica. Outros contextos com bases de conhecimento mais estruturadas provavelmente demandam outros arranjos para a transferência de conhecimento. Tendo em vista essas limitações, sugere-se que futuras pesquisas analisem a o processo em outras áreas de cooperação, como educação, agricultura e gestão pública, de modo a se analisar o papel da base de conhecimento do país receptor para a escolha dos mecanismos utilizados no processo de transferência de conhecimento.

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  • Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG – APQ 02556-09).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2017
  • Data do Fascículo
    2017

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2015
  • Aceito
    19 Out 2016
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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