Promoção comercial ilegal de produtos que competem com o aleitamento materno

Karine Borges da Silva Maria Inês Couto de Oliveira Cristiano Siqueira Boccolini Enilce de Oliveira Fonseca Sally Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Avaliar se a comercialização de fórmulas infantis, mamadeiras, bicos, chupetas e protetores de mamilo é realizada em cumprimento com a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância e de Produtos de Puericultura Correlatos (NBCAL). A promoção comercial desses produtos é proibida pela Lei 11.265.

MÉTODOS

Estudo transversal conduzido em 2017 por meio de um censo de todas as farmácias, supermercados e lojas de departamento que comercializavam produtos abrangidos pela NBCAL na Zona Sul do Rio de Janeiro. Profissionais de saúde capacitados na NBCAL utilizaram formulário eletrônico estruturado para observação direta dos estabelecimentos e para entrevista com seus responsáveis. Foram criados seis indicadores de avaliação das práticas comerciais e realizadas análises descritivas.

RESULTADOS

Foram avaliados 352 estabelecimentos comerciais: 240 farmácias, 88 supermercados e 24 lojas de departamento, dos quais 88% comercializavam produtos cuja promoção é proibida pela NBCAL. Foram encontradas promoções comerciais ilegais em 20,3% daqueles que comercializavam os produtos investigados: 52 farmácias (21,9%), quatro supermercados (7,5%) e sete lojas de departamento (33,3%). As estratégias de promoção comercial mais frequentes foram os descontos (13,2%) e as exposições especiais (9,3%). Os produtos com maior prevalência de infrações à NBCAL foram as fórmulas infantis (16,0%). Foram entrevistados 309 responsáveis por estabelecimentos comerciais, 50,8% relatando não conhecer a lei. Mais de três quartos dos responsáveis relataram receber visitas nos estabelecimentos de representantes comerciais de empresas fabricantes de fórmulas infantis.

CONCLUSÃO

Mais de um quinto dos estabelecimentos comerciais faziam promoção comercial de fórmulas infantis para lactentes, mamadeiras e bicos, apesar de essa prática ser proibida no Brasil há trinta anos. É necessária a capacitação dos seus responsáveis. Os órgãos governamentais devem realizar fiscalização dos estabelecimentos comerciais para coibir estratégias de persuasão e indução à vendas desses produtos, garantindo às mães autonomia na decisão sobre a alimentação de seus filhos.

Substitutos do Leite Humano; Fórmulas Infantis; Chupetas; Comercialização de Produtos; Publicidade Direta ao Consumidor, legislação & jurisprudência

INTRODUÇÃO

O aleitamento materno é a modalidade ideal de alimentação para o crescimento e desenvolvimento infantil11. Victora CG, Bahl R, Barros AJ, França GV, Horton S, Krasevec J, et al. Breastfeeding in the 21st century: epidemiology, mechanisms, and lifelong effects. Lancet. 2016;387(10017):475-90. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01024-7
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01...
, sendo recomendado na forma exclusiva nos primeiros seis meses de vida e complementado por alimentos saudáveis até os dois anos de vida ou maisaaWorld Health Organization. Indicators for assessing infant and young child feeding practices. Geneva: WHO; 2010. . Contudo, a ameaça de uma indústria multibilionária que compete diretamente com o aleitamento materno22. Rollins NC, Bhandari N, Hajeebhoy N, Horton S, Lutter CK, Martines JC, et al; Lancet Breastfeeding Series Group. Why invest, and what it will take to improve breastfeeding practices? Lancet. 2016;387(10017):491-504. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01044-2
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01...
e o avanço do marketing abusivo de fórmulas infantis e produtos correlatos levou à morte milhares de bebês por desnutrição e ingestão de fórmulas infantis preparadas com água contaminada33. Baker P, Smith J, Salmon L, Friel S, Kent G, Iellamo A, et al. Global trends and patterns of commercial milk-based formula sales: is an unprecedented infant and young child feeding transition underway? Public Health Nutr. 2016;19(14):2540-50. https://doi.org/10.1017/S1368980016001117
https://doi.org/10.1017/S136898001600111...
e põe em risco a capacidade das mães de escolher a melhor forma de alimentar seus filhos33. Baker P, Smith J, Salmon L, Friel S, Kent G, Iellamo A, et al. Global trends and patterns of commercial milk-based formula sales: is an unprecedented infant and young child feeding transition underway? Public Health Nutr. 2016;19(14):2540-50. https://doi.org/10.1017/S1368980016001117
https://doi.org/10.1017/S136898001600111...
.

Em resposta a essa ameaça, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em 1981 o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, visando restringir o marketing desses produtosbbWorld Health Organization. International code of marketing of breast-milk substitutes. Geneva: WHO; 1981. . Com base nele e em consonância com o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno44. Rea MF. Reflexões sobre a amamentação no Brasil: de como passamos a 10 meses de duração. Cad Saude Publica. 2003;19 Supl 1:S37-45. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000700005
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200300...
, o Conselho Nacional de Saúde brasileiro adotou em 1988 uma norma que proíbe a propaganda e a promoção comercial de fórmulas infantis, mamadeiras e bicosccMinistério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 5 de 20 de dezembro de 1988. Norma brasileira para comercialização de alimentos para lactentes. Diario Oficial Uniao. 23 dez 1988; Seção 1. .

Nas décadas seguintes, o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)ddMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resoluçao RDC Nº 221, de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico sobre chupetas, bicos, mamadeiras e protetores de mamilo. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002; Seção 1:557-8. , eeMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC nº 222 de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico para promoção comercial dos alimentos para lactentes e crianças de primeira infância. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002. Seção 1:558-60. ampliaram consecutivamente o escopo dessa norma, que passou a denominar-se Norma brasileira de comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância, bicos, chupetas e mamadeiras (NBCAL), cabendo à Anvisa e às vigilâncias estaduais e municipais a fiscalização do seu cumprimento pelas empresas e estabelecimentos comerciais e a adoção das ações aplicáveis aos infratores55. Araújo MFM, Rea MF, Pinheiro KA, Schmitz BAS. Avanços na norma brasileira de comercialização de alimentos para idade infantil. Rev Saude Publica. 2006;40(3):513-20. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000300021
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200600...
.

Em 2006, a NBCAL foi fortalecida enquanto Lei nº 11.265ffBrasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. , regulamentada em 2015 pelo Decreto nº 8.552, passando a ser denominada Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes, Crianças de Primeira Infância e de Produtos de Puericultura CorrelatosggBrasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5. . O conjunto dessa legislação proíbe qualquer forma de promoção comercial de fórmulas infantis para lactentes, bicos, chupetas, mamadeiras e protetores de mamiloggBrasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5. .

Contudo, apesar da abrangência nacional da NBCAL e da sua importância para a saúde pública, os esforços sistemáticos de monitoramento dessa norma pelas autoridades públicas são escassos. O único registro encontrado foi de 2006, quando a Anvisa promoveu um monitoramento nacional envolvendo instituições de ensino superior e vigilâncias sanitárias estaduais, encontrando inúmeras infrações à NBCAL66. Monteiro R. Norma brasileira de comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância: histórico, limitações e perspectivas. Rev Panam Salud Publica. 2006;19(5):354-62. https://doi.org/10.1590/S1020-49892006000500014
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200600...
. Organizações não governamentais como a rede IBFAN ( Internacional Baby-Food Action Network ) têm assumido voluntariamente o papel de fiscalização da norma, com uma metodologia que busca detectar novas formas de violaçãohhSalve JM, De Divitis RMPF, Toma TS. Violando as Normas 2008: relatório nacional das violações à Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras e Lei 11.265/2006: edição comemorativa dos 20 anos da NBCAL. Jundiaí, SP: IBFAN Brasil, 2008 [citado 11 out 2019]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/monitoramento/pdf/doc-360.pdf , mas que não reflete a extensão delas.

Em um cenário de ausência de dados oficiais e de desconhecimento da prevalência das infrações, o presente estudo teve como objetivo avaliar de forma pioneira e sistematizada o cumprimento da NBCAL na comercialização de fórmulas infantis, bicos, chupetas, mamadeiras e protetores de mamilo, para os quais a promoção comercial é proibida, utilizando um censo dos estabelecimentos comerciais de uma região geográfica da cidade do Rio de Janeiro (RJ).

MÉTODO

Estudo transversal componente da pesquisa “Avaliação do cumprimento da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes em estabelecimentos comerciais e serviços de saúde”. Foi realizado censo de todas as farmácias, supermercados e lojas de departamento que comercializavam produtos abrangidos pela NBCAL na Zona Sul do Rio de Janeiro, por meio de observação direta e de entrevista com os responsáveis pelos estabelecimentos. Foram excluídos os açougues, as padarias, as farmácias exclusivamente de manipulação e as farmácias homeopáticas.

A cidade do Rio de Janeiro fica na Região Sudeste, é a segunda maior metrópole brasileira e possui dez Áreas de Planejamento em Saúde. Foi selecionada a AP 2.1, correspondente à Zona Sul, onde a rede comercial é extensa e diversificada para atender a uma população que se distribui por 18 bairros de renda média e alta e comunidades faveladas. Uma lista contendo a relação nominal das farmácias, supermercados e lojas de departamento por bairro, bem como seus endereços, foi obtida pela TeleListasiiDisponível em http://www.telelistas.net/rj/rio+de+janeiro . e complementada pela consulta aos sites das principais redes correspondentes.

A coleta de dados foi realizada por sete profissionais de saúde previamente capacitados em curso da NBCAL44. Rea MF. Reflexões sobre a amamentação no Brasil: de como passamos a 10 meses de duração. Cad Saude Publica. 2003;19 Supl 1:S37-45. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000700005
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200300...
. Foi realizado estudo-piloto, em fevereiro de 2017, em bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro e da cidade de Niterói, para treinamento dos entrevistadores, aperfeiçoamento dos instrumentos de coleta de dados e definição da estratégia de campo.

O instrumento de coleta de dados foi adaptado de formulário desenvolvido pela rede IBFANhhSalve JM, De Divitis RMPF, Toma TS. Violando as Normas 2008: relatório nacional das violações à Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras e Lei 11.265/2006: edição comemorativa dos 20 anos da NBCAL. Jundiaí, SP: IBFAN Brasil, 2008 [citado 11 out 2019]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/monitoramento/pdf/doc-360.pdf , complementado com questões relativas à comercialização de produtos e ao perfil dos responsáveis entrevistados. A adaptação desse formulário visou possibilitar a coleta de dados por meio eletrônico, pelo aplicativo Magpi, uma plataforma de coleta e visualização de dados projetada para aplicativos móveis77. Abbot A. Paper, paper, everywhere... Nature. 2005;437(7057):310. . O formulário eletrônico contemplava a identificação do tipo de estabelecimento comercial, dos produtos comercializados de abrangência da NBCAL, e da presença e qualificação da infração, quando presente. Pelo mesmo instrumento, os responsáveis pelos estabelecimentos foram entrevistados quanto ao conhecimento da NBCAL e dos produtos abrangidos por essa lei e sobre as visitas de representantes das empresas fabricantes desses produtos.

O trabalho de campo, realizado nos meses de março e abril de 2017 sob supervisão dos pesquisadores responsáveis pelo projeto, constou da observação dos estabelecimentos, dos produtos comercializados e das infrações à NBCAL, além de entrevista com os responsáveis. Para identificar os produtos comercializados com infração, foram anotados o nome comercial do produto e o nome do fabricante, obtidos do rótulo.

Os entrevistadores foram designados previamente para coletar dados em bairros distintos uns dos outros, evitando a superposição da coleta. Todos os estabelecimentos que comercializavam produtos abrangidos pela NBCAL inicialmente listados foram avaliados pelos entrevistadores. Essa lista foi sendo atualizada à medida que os entrevistadores percorriam as ruas dos bairros durante o trabalho de campo. Estabelecimentos inexistentes no período da pesquisa foram excluídos e estabelecimentos que não constavam da lista foram acrescentados.

A pesquisa analisou o cumprimento da NBCAL quanto à comercialização de todos os produtos de sua abrangência: fórmulas infantis para lactentes, fórmulas infantis de seguimento para lactentes, mamadeiras, bicos, chupetas e protetores de mamilo, para os quais a promoção comercial é proibida44. Rea MF. Reflexões sobre a amamentação no Brasil: de como passamos a 10 meses de duração. Cad Saude Publica. 2003;19 Supl 1:S37-45. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000700005
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200300...
.

Segundo a NBCAL, é vedado o desconto de preços ou ofertas, exposição especial em pontas de gôndola ou em displays destacados e a distribuição de brindes ou amostras grátis desses itensddMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resoluçao RDC Nº 221, de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico sobre chupetas, bicos, mamadeiras e protetores de mamilo. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002; Seção 1:557-8. , eeMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC nº 222 de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico para promoção comercial dos alimentos para lactentes e crianças de primeira infância. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002. Seção 1:558-60. , ffBrasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. , ggBrasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5. .

Os dados foram exportados e analisados pelo programa estatístico SPSS versão 21 ( Statistical Package for the Social Sciences ). Foram criados indicadores para avaliação das práticas comerciais, sendo eles: 1. frequência de comercialização de grupos de produtos por tipo de estabelecimento comercial; 2. prevalência de infração por grupo de produtos e por tipo de estabelecimento comercial; 3. prevalência de cada estratégia de promoção comercial por tipo de estabelecimento; 4. prevalência de infrações de fórmulas infantis e produtos de puericultura correlatos por fabricante; 5. proporção de responsáveis por estabelecimentos comerciais que conheciam a NBCAL; 6. frequência de visitas de representantes comerciais de empresas fabricantes desses produtos aos estabelecimentos. Foram conduzidas análises descritivas, e os resultados foram apresentados em forma de tabelas.

O presente estudo seguiu as resoluções CNS nº 466/12 e nº 510/16jjMinistério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016. Princípios éticos das pesquisas em ciências humanas e sociais. Brasília, DF; 2016 [citado 3 jan 2018]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html , kkMinistério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução nº466, de 12 de dezembro de 2012. Aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília, DF; 2012 [citado 3 jan 2018]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html . O monitoramento da NBCAL é uma prática livre e pública, acessível a qualquer cidadão, e não requer autorização prévia dos estabelecimentos comerciais. Foi solicitado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal Fluminense (UFF) a dispensa da anuência dos estabelecimentos comerciais, pois o requerimento de tal autorização poderia levar os responsáveis a alterar o ambiente da pesquisa, com retirada de produtos e de promoções ilegais para adequação à lei. Foi também solicitada a dispensa da assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido pelos responsáveis pelos estabelecimentos, pois esse procedimento poderia expô-los a sanções por parte das empresas. Foi esclarecido aos entrevistados que a pesquisa não apresentaria caráter punitivo e foi garantido o sigilo, anonimato, autonomia e liberdade para recusa em participar, sendo obtido consentimento verbal livre. A pesquisa foi aprovada pelo CEP da UFF (parecer no1.878.013/2016) e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

RESULTADOS

Foram avaliados 352 estabelecimentos da Zona Sul do Rio de Janeiro: 240 farmácias, 88 supermercados e 24 lojas de departamento. Quase 90% comercializavam produtos cuja promoção comercial é vedada pela NBCAL, mais de 80% comercializavam fórmulas infantis para lactentes e mais de 70% comercializavam produtos de puericultura correlatos. Diversas marcas de fórmulas infantis para lactentes foram observadas, rotuladas com denominações como premium , supreme , comfor , profutura , proexpert , gentlease e advance , produzidas por quatro empresas: Nestlé, Danone, Mead Johnson e Abbot. As farmácias, na sua quase totalidade, comercializavam variadas fórmulas infantis, bicos, chupetas, mamadeiras e protetores de mamilo. Mais da metade dos supermercados comercializava fórmulas infantis e menos de 10% comercializavam produtos de puericultura correlatos. As lojas de departamento não comercializavam fórmulas infantis, apenas mamadeiras, bicos e chupetas ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Proporção de farmácias, supermercados e lojas de departamento que comercializavam produtos cuja promoção comercial é vedada pela NBCAL, segundo o tipo de produto. Zona Sul, Rio de Janeiro, 2017.

Promoções comerciais de fórmulas infantis para lactentes, fórmulas infantis de seguimento para lactentes, bicos, chupetas, mamadeiras e protetores de mamilo, proibidas pela NBCAL, foram verificadas em 63 estabelecimentos, o que corresponde a 20,3% do total que comercializava esses produtos: 21,9% das farmácias, 7,5% dos supermercados e 33,3% das lojas de departamento. Os produtos de promoção comercial ilegal com a maior prevalência de infrações à NBCAL foram as fórmulas infantis, encontradas em 16,0% dos estabelecimentos. Promoções comerciais ilegais de mamadeiras, chupetas, bicos e protetores de mamilo foram encontradas em 9,4% dos estabelecimentos. As estratégias de promoção comercial mais frequentes foram os descontos e as exposições especiais, e um dos estabelecimentos oferecia brinde ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Proporção de farmácias, supermercados e lojas de departamento com promoção comercial ilegal de fórmulas infantis, mamadeiras, bicos, chupetas e protetores de mamilo e estratégias de promoção comercial, segundo o tipo de estabelecimento. Zona Sul, Rio de Janeiro, 2017.

Dois terços dos 45 estabelecimentos que comercializavam fórmulas infantis de maneira irregular tinham produtos da empresa Nestlé nessa condição. Essa foi a empresa com a maior frequência de fórmulas infantis comercializadas de forma ilegal e de infrações em um mesmo estabelecimento, chegando a dez produtos com infração em um único estabelecimento. A empresa Danone também apresentou índices elevados, tendo até seis produtos com infrações em um único estabelecimento. Quase a metade dos 24 estabelecimentos em que foram observadas infrações de bicos, chupetas, mamadeiras e/ou protetores de mamilo tinham produtos da empresa Lillo nessa condição. Essa foi a empresa que teve mais produtos de puericultura correlatos comercializados com infrações e a maior frequência de produtos com infrações em um mesmo estabelecimento ( Tabela 3 ).

Tabela 3
Empresas fabricantes de fórmulas infantis e de produtos de puericultura correlatos com produtos comercializados ilegalmente entre os estabelecimentos com promoção comercial indevida. Zona Sul, Rio de Janeiro, 2017.

Foram entrevistados 309 responsáveis por estabelecimentos comerciais, entre gerentes e farmacêuticos, ocorrendo 12,2% de recusas (n = 43), principalmente entre responsáveis por lojas de departamento (n = 12), que alegaram não dispor de autorização da matriz para conceder entrevista. Mais da metade dos responsáveis entrevistados relataram não conhecer a NBCAL, 55,7% em farmácias, 35,5% em supermercados e 58,7% em lojas, enquanto cerca de um quarto já tinha ouvido falar dela. Quando perguntados sobre os produtos de abrangência da NBCAL, 46,1% citaram as fórmulas infantis e menos de 10% as mamadeiras, chupetas e bicos ( Tabela 4 ).

Tabela 4
Conhecimento do responsável comercial sobre a NBCAL, segundo o tipo de estabelecimento. Zona Sul, Rio de Janeiro, 2017.

Três quartos dos responsáveis entrevistados relataram que representantes comerciais da empresa Nestlé visitavam o respectivo estabelecimento, com visitas diárias, semanais, quinzenais ou mensais, enquanto a empresa Danone foi citada por menos da metade dos responsáveis. Dez por cento dos entrevistados relataram que a Mam, empresa fabricante de produtos de puericultura correlatos enviava representantes comerciais para visitar o estabelecimento semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente ( Tabela 5 ).

Tabela 5
Proporção de farmácias, supermercados e lojas de departamento visitados por empresas de fórmulas infantis e de produtos de puericultura correlatos, segundo os responsáveis pelos estabelecimentos. Zona Sul, Rio de Janeiro, 2017.

DISCUSSÃO

Mais de um quinto dos estabelecimentos comerciais da Zona Sul do Rio de Janeiro fazia promoção de fórmulas infantis para lactentes, além de mamadeiras e bicos, o que é considerado ilegal pela legislação brasileira há 30 anosccMinistério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 5 de 20 de dezembro de 1988. Norma brasileira para comercialização de alimentos para lactentes. Diario Oficial Uniao. 23 dez 1988; Seção 1. . São consideradas promoções as estratégias para induzir vendas no varejo, tais como exposições especiais, cupons de descontos, ofertas ou preços reduzidos, prêmios, brindes, vendas vinculadas ou apresentações especiaisddMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resoluçao RDC Nº 221, de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico sobre chupetas, bicos, mamadeiras e protetores de mamilo. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002; Seção 1:557-8. , eeMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC nº 222 de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico para promoção comercial dos alimentos para lactentes e crianças de primeira infância. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002. Seção 1:558-60. , ffBrasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. , ggBrasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5. .

Farmácias comercializavam todos os tipos de produtos cuja promoção comercial é proibida; a maioria dos supermercados comercializava fórmulas infantis e alguns vendiam mamadeiras, bicos e chupetas; já as lojas de departamento comercializavam apenas mamadeiras, bicos e chupetas. As lojas de departamento e as farmácias foram os estabelecimentos comerciais com o maior percentual de infrações, seguidas dos supermercados, e a estratégia promocional mais comum foi o desconto de preço, seguido da exposição especial.

Um estudo realizado em Piracicaba (SP) em 2012 também observou que nas farmácias havia mais descontos e exposições especiais de mamadeiras, bicos e chupetas do que nos supermercados88. Lopes AG, Pereira AC, Fonseca EP, Mialhe FL. Irregularidades sanitárias na promoção comercial em rótulos de produtos para lactentes e os riscos para a saúde. Saude Debate. 2017;41(113):539-52. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711315
https://doi.org/10.1590/0103-11042017113...
. Outro estudo, realizado na principal rede de supermercados de Teresina (PI) no ano de 2009, observou que metade dos estabelecimentos apresentava infrações na comercialização de fórmulas infantis para lactentes, mamadeiras, bicos e chupetas, em especial por meio de exposições especiais99. Paula LO, Chagas LR, Ramos CV. Monitoramento da norma brasileira de comercialização de alimentos infantis. Nutrire Rev Soc Bras Alim Nutr. 2010;35(3):43-55. . Em estudo mais recente, conduzido em 25 supermercados na cidade de Mossoró (RN), em 2016, foi observada promoção comercial desses produtos em 12% dos supermercados1010. Gurgel TEP. Monitoramento da promoção comercial de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura em estabelecimentos comerciais de Mossoró, Rio Granade do Norte. Rev Nutrivisa. 2016;3(1):21-5. https://doi.org/10.17648/nutrivisa-vol-3-num-1-e
https://doi.org/10.17648/nutrivisa-vol-3...
, percentual mais próximo ao verificado no presente estudo. A variação na proporção de infrações encontradas nos estudos pode ser decorrente da pressão comercial das indústrias e das práticas comerciais para atrair consumidores presentes em contextos econômicos diferenciados, ou ainda da composição dos estabelecimentos incluídos nos estudos, por amostras de conveniência.

Considerando os produtos avaliados, as fórmulas infantis apresentaram a maior frequência de promoção comercial ilegal. A grande variedade de marcas de fórmulas infantis encontrada, que remetem a novidades e alegam benefícios adicionais à nutrição e saúde do bebê1111. Belamarich P, Bochner RE, Racine AD. A critical review of the marketing claims of infant formula products in the United States. Clin Pediatr (Phila). 2016:55(5):437-42. https://doi.org/10.1177/0009922815589913
https://doi.org/10.1177/0009922815589913...
, são uma estratégia para a expansão do mercado de produtos substitutos do leite materno1212. Abrams SA. Is it time to put a moratorium on new infant formulas that are not adequately investigated? J Pediatr. 2015;166(3):756-60. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2014.11.003
https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2014.11....
. Em países de baixa e média renda, como o Brasil, o crescimento das vendas desses produtos ultrapassa 10% ao ano1313. Piwoz EG, Huffman SL. The impact of marketing of breast-milk substitutes on WHO-recommended breastfeeding practices. Food Nutr Bull. 2015;36(4):373-86. https://doi.org/10.1177/0379572115602174
https://doi.org/10.1177/0379572115602174...
, corroborando para a morbimortalidade infantil por diarreia, pneumonia e outras infecções11. Victora CG, Bahl R, Barros AJ, França GV, Horton S, Krasevec J, et al. Breastfeeding in the 21st century: epidemiology, mechanisms, and lifelong effects. Lancet. 2016;387(10017):475-90. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01024-7
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01...
.

Nestlé e Danone foram as fabricantes de fórmulas infantis com maior quantidade de produtos vendidos por meio de promoção ilegal, sendo também citadas pelos responsáveis pelos estabelecimentos comerciais como as que mais frequentemente enviavam seus representantes comerciais para realizar promoção comercial de seus produtos. A consistência encontrada entre a quantidade de produtos comercializados de forma ilegal e as empresas que visitam os estabelecimentos mais citadas pelos gerentes não ocorreu entre os produtos de puericultura correlatos, pois a empresa com maior quantidade de produtos comercializados ilegalmente foi a Lillo, enquanto a Mam foi a mais citada por enviar representantes comerciais aos estabelecimentos.

O grande número de infrações encontradas nos estabelecimentos pode ser explicado parcialmente pela falta de conhecimento da legislação por parte dos seus responsáveis. Em estudo de dados secundários realizado no ano de 2000, 89,9% dos funcionários de farmácias e 79,2% dos funcionários de supermercados alegaram desconhecer a NBCAL1414. Cyrillo DC, Sarti FM, Farina EMQ, Mazzon JA. Duas décadas da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes: há motivos para comemorar? Rev Panam Salud Publica. 2009;25(2):134-40. https://doi.org/10.1590/S1020-49892009000200006
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200900...
, enquanto no presente estudo, realizado mais de quinze anos depois, mais da metade dos responsáveis por farmácias e por lojas de departamento e mais de um terço dos responsáveis por supermercados afirmaram o mesmo, indicando que o conhecimento da legislação ainda é insuficiente.

É extremamente complexo identificar a responsabilidade pelo descumprimento da lei, pois as empresas parecem agir por meio dos estabelecimentos comerciais: os representantes das indústrias visitam os estabelecimentos e buscam induzir a promoção ilegal por diversas estratégias. Apesar de as empresas fabricantes de fórmulas infantis, mamadeiras, bicos, chupetas e protetores de mamilo terem tomado conhecimento da NBCAL para adequação da rotulagem dos seus produtos à medida que a legislação vinha sendo aperfeiçoada1515. Toma TS, Rea MF. Rótulos de alimentos infantis: alguns aspectos das práticas de marketing no Brasil. Rev Nutr PUCCAMP. 1997;10(2):127-35. https://doi.org/10.1590/S1415-52731997000200006
https://doi.org/10.1590/S1415-5273199700...
, o mesmo não parece acontecer com os gerentes dos estabelecimentos comerciais.

A NBCAL é um importante instrumento de proteção legal do aleitamento materno55. Araújo MFM, Rea MF, Pinheiro KA, Schmitz BAS. Avanços na norma brasileira de comercialização de alimentos para idade infantil. Rev Saude Publica. 2006;40(3):513-20. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000300021
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200600...
, 66. Monteiro R. Norma brasileira de comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância: histórico, limitações e perspectivas. Rev Panam Salud Publica. 2006;19(5):354-62. https://doi.org/10.1590/S1020-49892006000500014
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200600...
por regulamentar a comercialização de alimentos e produtos infantis que interferem na prática da amamentaçãoggBrasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5. . O cumprimento e fiscalização dessa legislação é atribuição oficial das agências de vigilância sanitária (Visa) municipais e estaduaisddMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resoluçao RDC Nº 221, de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico sobre chupetas, bicos, mamadeiras e protetores de mamilo. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002; Seção 1:557-8. , eeMinistério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC nº 222 de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico para promoção comercial dos alimentos para lactentes e crianças de primeira infância. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002. Seção 1:558-60. , ffBrasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. . Contudo, tem-se apenas um registro de ação sistematizada de fiscalização da NBCAL, promovida pela Anvisa, que coordenou um monitoramento nacional66. Monteiro R. Norma brasileira de comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância: histórico, limitações e perspectivas. Rev Panam Salud Publica. 2006;19(5):354-62. https://doi.org/10.1590/S1020-49892006000500014
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200600...
em 2006. As ações de fiscalização das Visa locais têm sido esporádicas e pouco efetivas em inibir o descumprimento da NBCAL pelos estabelecimentos comerciais, fato constatado tanto pelo elevado número de infrações observado nessa pesquisa quanto pela falta de registros públicos desse controlellInstituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Pesquisa Amamentação Desvalorizada. Rev IDEC. 2015;(195):22-4. Disponível em: https://www.idec.org.br/uploads/revistas_materias/pdfs/195-amamentacao1.pdf .

Burlandy et al.1616. Burlandy L, Alexandre VP, Gomes FS, Castro IRR, Dias PC, Henriques P, et al. Políticas de promoção da saúde e potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial. Cienc Saude Coletiva. 2016;21(6):1809-18. https://doi.org/10.1590/1413-81232015216.06772016
https://doi.org/10.1590/1413-81232015216...
relatam que as práticas mercadológicas do setor privado visam tanto o estímulo ao consumo dos seus produtos quanto o bloqueio a medidas governamentais que afetam seus interesses econômicos, como a regulamentação e implementação de legislações de proteção à saúde. Assim, temos por um lado o marketing das empresas fabricantes de fórmulas infantis, mamadeiras, bicos e chupetas, direcionado ao estímulo do consumo, e, por outro lado, uma tentativa de obstrução dos avanços na legislação que regula sua comercialização, que pode ser observada pela lacuna de mais de nove anos entre a promulgação da Lei 11.265ffBrasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. e a sua regulamentaçãoggBrasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5. . A ausência de fiscalização sistemática dos estabelecimentos comerciais e de ações educativas sobre a NBCAL pelos órgãos competentes pode ser explicada não só pela baixa cobertura de vigilância específica da NBCAL por esses órgãos, como também pelo lobby das indústrias. Assim, os conflitos de interesses na área de alimentação infantil impactam fortemente o atual cenário de descumprimento da NBCALllInstituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Pesquisa Amamentação Desvalorizada. Rev IDEC. 2015;(195):22-4. Disponível em: https://www.idec.org.br/uploads/revistas_materias/pdfs/195-amamentacao1.pdf .

Quanto às limitações do presente estudo, cabe referir que o percentual de recusas de entrevistas pelos responsáveis por estabelecimentos comerciais foi de 12,2% e se concentrou principalmente nas lojas de departamento pertencentes a grandes redes, o que pode comprometer a generalização dos achados relativos ao conhecimento dos gerentes sobre a NBCAL e às práticas de visitas comerciais das empresas para esse setor específico do comércio. Esse percentual de perdas na entrevista com os responsáveis pelos estabelecimentos pode desconfigurar a característica de censo no tocante às informações fornecidas por eles, enquanto a avaliação da promoção comercial realizada mediante observação das farmácias, supermercados e lojas de departamento nos bairros e nas favelas foi realizada na sua totalidade, sem nenhuma perda.

O presente estudo foi bastante oportuno por ter estabelecido uma linha de base do cumprimento da NBCAL em uma região geográfica, pouco tempo após a lei ter sido regulamentada pelo Decreto Nº. 8.552/15. Com isso, os resultados de futuros estudos terão a possibilidade de comparação no decorrer do tempo, podendo ser verificada a evolução do cumprimento da norma, legislação que protege mães e lactentes contra as estratégias da indústria direcionadas a esse público tão vulnerável.

Diante da alta prevalência de infrações à NBCAL observada, e com vistas a um maior cumprimento da Lei nº 11.265ffBrasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. pelos estabelecimentos comerciais, recomenda-se a intensificação das ações educacionais para ampliar o conhecimento dessa legislação tão duramente conquistada pela sociedade civil, bem como a fiscalização efetiva de seu cumprimento pelos órgãos responsáveis e a aplicação das punições cabíveis em lei aos estabelecimentos que a infringiremmmBrasil. Lei 6.437 de 20 de agosto de 1977. Configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece sanções às respectivas, e dá outras providências. Brasília, DF;1977 [citado 3 jan 2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6437.htm . Recomenda-se também uma maior investigação sobre a cadeia de causalidade do descumprimento da NBCAL, para que a etiologia desse fenômeno seja mais bem conhecida.

Referências bibliográficas

  • 1
    Victora CG, Bahl R, Barros AJ, França GV, Horton S, Krasevec J, et al. Breastfeeding in the 21st century: epidemiology, mechanisms, and lifelong effects. Lancet. 2016;387(10017):475-90. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01024-7
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01024-7
  • 2
    Rollins NC, Bhandari N, Hajeebhoy N, Horton S, Lutter CK, Martines JC, et al; Lancet Breastfeeding Series Group. Why invest, and what it will take to improve breastfeeding practices? Lancet. 2016;387(10017):491-504. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01044-2
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01044-2
  • 3
    Baker P, Smith J, Salmon L, Friel S, Kent G, Iellamo A, et al. Global trends and patterns of commercial milk-based formula sales: is an unprecedented infant and young child feeding transition underway? Public Health Nutr. 2016;19(14):2540-50. https://doi.org/10.1017/S1368980016001117
    » https://doi.org/10.1017/S1368980016001117
  • 4
    Rea MF. Reflexões sobre a amamentação no Brasil: de como passamos a 10 meses de duração. Cad Saude Publica. 2003;19 Supl 1:S37-45. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000700005
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000700005
  • 5
    Araújo MFM, Rea MF, Pinheiro KA, Schmitz BAS. Avanços na norma brasileira de comercialização de alimentos para idade infantil. Rev Saude Publica. 2006;40(3):513-20. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000300021
    » https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000300021
  • 6
    Monteiro R. Norma brasileira de comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância: histórico, limitações e perspectivas. Rev Panam Salud Publica. 2006;19(5):354-62. https://doi.org/10.1590/S1020-49892006000500014
    » https://doi.org/10.1590/S1020-49892006000500014
  • 7
    Abbot A. Paper, paper, everywhere... Nature. 2005;437(7057):310.
  • 8
    Lopes AG, Pereira AC, Fonseca EP, Mialhe FL. Irregularidades sanitárias na promoção comercial em rótulos de produtos para lactentes e os riscos para a saúde. Saude Debate. 2017;41(113):539-52. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711315
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104201711315
  • 9
    Paula LO, Chagas LR, Ramos CV. Monitoramento da norma brasileira de comercialização de alimentos infantis. Nutrire Rev Soc Bras Alim Nutr. 2010;35(3):43-55.
  • 10
    Gurgel TEP. Monitoramento da promoção comercial de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura em estabelecimentos comerciais de Mossoró, Rio Granade do Norte. Rev Nutrivisa. 2016;3(1):21-5. https://doi.org/10.17648/nutrivisa-vol-3-num-1-e
    » https://doi.org/10.17648/nutrivisa-vol-3-num-1-e
  • 11
    Belamarich P, Bochner RE, Racine AD. A critical review of the marketing claims of infant formula products in the United States. Clin Pediatr (Phila). 2016:55(5):437-42. https://doi.org/10.1177/0009922815589913
    » https://doi.org/10.1177/0009922815589913
  • 12
    Abrams SA. Is it time to put a moratorium on new infant formulas that are not adequately investigated? J Pediatr. 2015;166(3):756-60. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2014.11.003
    » https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2014.11.003
  • 13
    Piwoz EG, Huffman SL. The impact of marketing of breast-milk substitutes on WHO-recommended breastfeeding practices. Food Nutr Bull. 2015;36(4):373-86. https://doi.org/10.1177/0379572115602174
    » https://doi.org/10.1177/0379572115602174
  • 14
    Cyrillo DC, Sarti FM, Farina EMQ, Mazzon JA. Duas décadas da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes: há motivos para comemorar? Rev Panam Salud Publica. 2009;25(2):134-40. https://doi.org/10.1590/S1020-49892009000200006
    » https://doi.org/10.1590/S1020-49892009000200006
  • 15
    Toma TS, Rea MF. Rótulos de alimentos infantis: alguns aspectos das práticas de marketing no Brasil. Rev Nutr PUCCAMP. 1997;10(2):127-35. https://doi.org/10.1590/S1415-52731997000200006
    » https://doi.org/10.1590/S1415-52731997000200006
  • 16
    Burlandy L, Alexandre VP, Gomes FS, Castro IRR, Dias PC, Henriques P, et al. Políticas de promoção da saúde e potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial. Cienc Saude Coletiva. 2016;21(6):1809-18. https://doi.org/10.1590/1413-81232015216.06772016
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232015216.06772016

  • a
    World Health Organization. Indicators for assessing infant and young child feeding practices. Geneva: WHO; 2010.
  • b
    World Health Organization. International code of marketing of breast-milk substitutes. Geneva: WHO; 1981.
  • c
    Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 5 de 20 de dezembro de 1988. Norma brasileira para comercialização de alimentos para lactentes. Diario Oficial Uniao. 23 dez 1988; Seção 1.
  • d
    Ministério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resoluçao RDC Nº 221, de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico sobre chupetas, bicos, mamadeiras e protetores de mamilo. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002; Seção 1:557-8.
  • e
    Ministério da Saúde (BR), Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC nº 222 de 5 de agosto de 2002. Regulamento técnico para promoção comercial dos alimentos para lactentes e crianças de primeira infância. Diario Oficial Uniao. 6 ago 2002. Seção 1:558-60.
  • f
    Brasil. Lei n 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 jan 2006; Seção 1:1-3.
  • g
    Brasil. Decreto Nº 8.552, de 3 de novembro de 2015. Regulamenta a Lei 11.265/2006, que dispõe sobre a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e de produtos de puericultura correlatos. Diario Oficial Uniao. 4 nov 2015; Seção 1;5.
  • h
    Salve JM, De Divitis RMPF, Toma TS. Violando as Normas 2008: relatório nacional das violações à Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras e Lei 11.265/2006: edição comemorativa dos 20 anos da NBCAL. Jundiaí, SP: IBFAN Brasil, 2008 [citado 11 out 2019]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/monitoramento/pdf/doc-360.pdf
  • i
  • j
    Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016. Princípios éticos das pesquisas em ciências humanas e sociais. Brasília, DF; 2016 [citado 3 jan 2018]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html
  • k
    Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução nº466, de 12 de dezembro de 2012. Aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília, DF; 2012 [citado 3 jan 2018]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
  • l
    Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Pesquisa Amamentação Desvalorizada. Rev IDEC. 2015;(195):22-4. Disponível em: https://www.idec.org.br/uploads/revistas_materias/pdfs/195-amamentacao1.pdf
  • m
    Brasil. Lei 6.437 de 20 de agosto de 1977. Configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece sanções às respectivas, e dá outras providências. Brasília, DF;1977 [citado 3 jan 2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6437.htm

  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Processo: 404948/2016-2. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. E-26/203.213/2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2018
  • Aceito
    26 Abr 2019
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@org.usp.br