A perspectiva do risco na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) em Portugal: uma reflexão de peritos e decisores em saúde

The risk perspective in Portugal's National Network for Integrated Continuous Care (RNCCI): an evaluation by health experts and decision-makers

Jorge Lopes da Costa Vitória Mourão Sobre os autores

Resumos

A avaliação da política de cuidados continuados integrados em Portugal por peritos e decisores em saúde enquadra-se no modelo sistêmico do processo político. Este obtém-se a partir de inputs organizados seguindo uma lógica de representação de interesses públicos, de negociação, na qual as partes tendem a convergir para uma solução consensual. Não se discute a substância da política, mas desenvolve-se uma apreciação normativa da mesma procurando responder à questão da sustentabilidade e da sua adequação às necessidades tendo como pano de fundo a perspectiva do risco como que agitando a eficácia e a eficiência nos resultados esperados. Este estudo permite, através de uma abordagem qualitativa apreciar o panorama do risco da rede nacional de cuidados continuados portuguesa, bem como interpretar esse fenómeno, a partir da teorização da informação recolhida. Neste sentido realizaram-se onze entrevistas aprofundadas a interlocutores de relevo na área da saúde, com experiência a nível nacional e internacional. Dados mostram que a manutenção dos cuidados de longa duração têm sido um dos principais tópicos discutidos na agenda política e que podem até assumir diversas opçoes de de financiamento. O discurso dominante expressa o desafio e custo da mudança, num momento em que esse nível de cuidados atinge um patamar proeminente no setor da saúde.

Política de Saúde; Avaliação de Programas Nacionais de Saúde; Determinação de Necessidades de Cuidados de Saúde; Assunção de Riscos


The evaluation of the continuing care policy in Portugal by health experts and decision-makers fits into the systemic model of the political process. This model is obtained from inputs that are organized following a logic of representation of public interests, of negotiation, where stakeholders tend to converge towards a consensual solution. The policy's substance is not discussed, but its normative assessment focuses on the question of sustainability and of its adequacy to the needs, in view of the risk perspective, which affects the efficacy and efficiency of the expected results. Using a qualitative approach, this study allows to appraise the risk panorama of Portugal's National Network for Integrated Continuous Care. In addition, it enables to interpret this phenomenon according to the theorization of the collected information. To achieve this, eleven in-depth interviews were conducted with key informants in the area of health, with national and international experience. Data shows that the sustainability of long-term care has been a prime topic on the political agenda and may be subject to diversity of funding. The dominant discourse expresses the challenge and the cost of change, at a time when this level of care assumes a prominent place in the health sector.

Health Policy; National Health Programs Evaluation; Healthcare Needs Assessment; Risk-Taking


Introdução

O que se pretende especificamente com esta abordagem é dar a conhecer as reflexões da análise de conteúdo de entrevistas com interlocutores privilegiados relativamente à avaliação do risco e da incerteza da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). Esta é crucial a um processo de implementação e de execução que se prevê desenvolvido até ao ano de 2016 e que resulta, por um lado, da colaboração de decisores políticos na área da saúde, em representação dos seus partidos, e, por outro, da participação de um conjunto de especialistas e peritos em saúde de elevada notoriedade em nível nacional e internacional.

Uma perspectiva da teoria do risco no quadro da política de saúde

No domínio da saúde coube ao Estado a responsabilidade de estruturar respostas que permitissem gerir riscos imprevisíveis, projetando a sua atuação em consonância com as mudanças da realidade social. É por esse motivo que essa gestão (risco) não se limitou somente à prevenção, mas também à atuação localizada dos seus efeitos. Numa nova era que apelidamos de "sociedade de risco", (Beck, Giddens e Lash 2000GIDDENS, A. O Mundo na Era da Globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2000.) acrescenta ainda que as políticas de saúde aglomeram fenômenos que decorrem da hegemonização socioeconômica. Nos dias de hoje, os riscos para a saúde surgem da manutenção das patologias crônicas e da mutação/reconfiguração de certas enfermidades, tais como: a pandemia da gripe A, a tuberculose multirresistente e a SIDA. Noutro prisma, as alterações dos principais indicadores demográficos, nomeadamente a baixa fecundidade e o aumento da esperança média de vida, têm contribuído para uma governação nas políticas de saúde que se coaduna cada vez mais com o envelhecimento da população portuguesa.

Para um melhor entendimento do risco no quadro da saúde, deve aludir-se ao conceito à luz do que se pretende focalizar, sendo que neste caso será a política de cuidados continuados integrados. A discussão conceptual é imperativa na medida em que o risco está patente nas múltiplas atividades do mundo social e ocupa um lugar privilegiado no plano teórico das sociedades contemporâneas. Porém, antes de abordar o risco no contexto da teoria social e a sua interpenetração com as políticas de saúde, cabe salientar um elemento comum na discussão do conceito de (Renn et al. 1992RENN, O. et al. The social amplification of risk: theoretical foundations and empirical applications. Journal of Social Issues, Ann Arbor, v. 48, n. 4, p. 137-160, 1992.): a distinção entre a possibilidade e a realidade. Esta não mais quer dizer que algo que é possível acontecer pode concretizar-se efetivamente, ou não - integrando desde logo a problemática da incerteza como uma das dimensões do risco.

Atenda-se também à perspectiva que defende que o risco pode ser definido como um continuum (Dean, 1999DEAN, M. Risk, calculable and incalculable. In: LUPTON, D. Risk and sociocultural theory: new directions and perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 131-159.), que nunca deixa de existir totalmente. Pode, de fato, ser minimizado, localizado e evitado porque advém ou da natureza ou da ação humana. Essa assunção altera o conceito tradicional de integração social em geral e, especificamente, na área da saúde, tendo sido utilizado para manter a estabilidade e fomentar a coesão social. Este modus operandi, fruto do compromisso com as políticas sociais reguladoras e exclusiva dos serviços públicos, determinou a passagem de uma sociedade moderna cujas políticas incidiam nos perigos calculados, subjacentes à herança do industrialismo, para uma sociedade de "risco exterior" (Giddens, 2000GIDDENS, A. O Mundo na Era da Globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2000., p. 35), isto é, "[...] do que chega de fora, das imposições da tradição ou da natureza."

O inovador conceito de "sociedade de risco" de (Beck, Giddens e Lash 2000GIDDENS, A. O Mundo na Era da Globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2000.), que reconhece os efeitos colaterais das sociedades atuais, primordialmente no que se refere aos riscos dos avanços tecnológicos e ao impacto ambiental, oferece uma compreensão para o entendimento de alguns riscos como um fenômeno global e não local - sugerindo a sua extensão a um maior número de pessoas, independentemente da sua classe ou estatuto social. A caracterização do risco como um tema polêmico e político, consequência da incapacidade de previsão, de controlo e de organização de riscos emergentes, é uma das faces que se coloca à política de saúde atualmente. (Beck, Giddens e Lash 2000GIDDENS, A. O Mundo na Era da Globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2000.) analisam essa problemática e (Giddens 2000GIDDENS, A. O Mundo na Era da Globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2000.) a confirma, incorporando as noções de risco e de perigo em sociedades tradicionais e modernas.

Em matéria de saúde, em especial das políticas, um dos grandes contributos na gestão de situações de risco relaciona-se com a organização institucional, pela sua capacidade de planeamento para agir perante situações de incerteza. A partir desse processo evolutivo que advém do conhecimento das instituições, agentes e grupos sobre um potencial risco permite-se, de acordo com (Luhmann 1993LUHMANN, N. Risk, a sociological theory. New York: Aldine de Geuyter, 1993.), projetar ou prever possibilidades no imediato sobre o futuro - ainda que num domínio probabilístico e não da eliminação do risco

No sistema de governação neoliberal, considerando os fundamentos de (Lupton 1999LUPTON, D. Risk and sociocultural theory: new directions and perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.), o risco é considerado como uma estratégia governamental heterogênea e bem definida de poder disciplinar. Atenda-se, a título de exemplo, aos quarenta programas do Plano Nacional de Saúde (PNS) de 2004-2010. Pode dizer-se que foram geridos e monitorizados tendo como pressuposto o bem comum e que reúnem uma estratégia que delimita as questões da saúde mais evidentes - relacionadas com o perigo ou com o risco. Essa estratégia contempla a definição de grupos populacionais, determinados pelo critério da alocação de factores de risco - definida "a distância" pela governação (Rose, 1996ROSE, N. The death of the social?: re-figuring the territory of government. Economy and Society, London, v. 25, n. 3, p. 327-356, 1996.) a certos grupos que se apresentam como ameaças potenciais, veja-se o exemplo dos eixos prioritários para a saúde:

  • Prevenção e controlo das doenças oncológicas (doentes oncológicos);

  • Programa Nacional de Prevenção da Infecção VIH/SIDA (doentes VIH-ou soropositivos); Programa Nacional para a Saúde das Pessoas Idosas (doentes com mais de 65 anos);

  • Programa Nacional de Prevenção e Controlo das Doenças Cardiovasculares (doentes cardíacos).

Assim, é na dedução de factores de risco num vasto campo de probabilidades que se implementam mecanismos de prevenção sistêmicos, ainda que socorridos das novas tecnologias de observação. Essas tecnologias têm por base uma visão generalista, que conjuga factores de risco, distinguindo-se da visão individualista, que pressupõe a abordagem caso a caso para determinar a evidência de risco. O legado de Foucault está patente nas recentes configurações da gestão do risco mediante o seu duplo sentido de governação, que argumenta sobre a experiência do "eu" (passagem da perigosidade ao risco) e do governo como problemática da norma. A passagem da perigosidade ao risco implica a redefinição das distinções entre os "incluídos e os marginalizados" (Rose, 1996ROSE, N. The death of the social?: re-figuring the territory of government. Economy and Society, London, v. 25, n. 3, p. 327-356, 1996., p. 340) por meio de políticas vocacionadas para alteração de comportamentos desviantes, bem como a responsabilidade individual perante os estilos de vida, legitimando a premissa foucaultiana sobre a experiência do "eu". A confirmação da segunda premissa do autor supramencionado passa por aquilo que se defende como "[...] sonho da realidade tecnocrática do controlo do acidental [...]" (Castel, 1991CASTEL, R. From dangerousness to risk. In: BURCHELL, G. et al. The Foucault Effect: studies in governmentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. p. 281-298., p. 289) levada a cabo por uma autoridade que é exercida sobre as pessoas, relativamente às suas práticas e crenças (Rose, 1996ROSE, N. The death of the social?: re-figuring the territory of government. Economy and Society, London, v. 25, n. 3, p. 327-356, 1996.). Essa tendência rompe com a cultura de responsabilidade governamental baseada no contrato social para se focalizar numa outra, de racionalidade coletiva pela focalização em riscos de grupos específicos. Nesta recorre-se cada vez mais a um novo conceito de solidariedade, que é corroborada pela introdução de tecnologias e diagnosticada por fatos empíricos. É possível, então, adicionar um conjunto de técnicas específicas de parametrização do risco. Desse modo, na perspectiva da governamentalização defendida por (Dean 1999DEAN, M. Risk, calculable and incalculable. In: LUPTON, D. Risk and sociocultural theory: new directions and perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 131-159.) há um lugar para racionalizar o risco tornando-o, de certa maneira, mais calculável.

No domínio da saúde, sobretudo em Portugal, o panorama segue as mesmas diretrizes. A título de exemplo, as doenças infecciosas, o alcoolismo, as doenças cancerígenas e a toxicodependência são variáveis calculáveis que concernem à política de saúde, cabendo-lhes medidas de prevenção e de tratamento específicas. Porém, são situações de risco tradicionais que podem ocasionar o perigo quando há interferências de comportamento individuais ou grupais que o potenciem, ou seja, quando os contornos existentes para um risco calculado são maiores e podem criar perigo. Essas são cada vez mais alvo da preocupação e da intervenção governamentais através de uma ação espartilhada e seletiva sobre determinadas conjeturas, sobre as quais é necessário agir.

A questão fundamental está na forma como se definem os riscos, pois estes são cada vez mais submetidos a apreciações que confirmam ou não o grau de perigosidade e/ou o enquadramento num "perfil" de risco com o intuito de se atuar sobre ele, seja ao nível da remoção do perigo ou da minimização do risco. Essa estratégia esteve outrora no quadro da sociedade industrial, integrada num contexto dominado pelo Estado em que o risco era combatido por uma política de adequação dirigida por regras próprias, contudo deixou de o ser. A gestão do risco desvincula-se da discussão partidária para ser partilhada por movimentos sociais, organizações e agentes governamentais que, em conjunto, evitam a ambivalência entre o princípio da sobrevivência e o princípio da responsabilidade em matéria de bem-estar social, especialmente na saúde.

A avaliação do risco e da incerteza na RNCCI: a visão dos peritos

A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, como medida que conjuga dois eixos de governação do Estado - saúde e apoio social - tem uma necessidade crescente de revitalizar o seu corpo de conhecimentos e a sua forma de atuar através da sucessiva pesquisa e da produção de saber.

Procedimentos metodológicos

Este estudo introduz uma abordagem qualitativa que pretende analisar o panorama de risco e da incerteza na RNCCI, permitindo a interpretação, através dos factos narrados, e admitindo a produção de categorias muito úteis ao entendimento dos fenômenos. Foram realizadas onze entrevistas aprofundadas com um conjunto de interlocutores privilegiados, designadamente, com especialistas e decisores políticos da área da saúde, com experiência nacional e internacional. A investigação empírica surge de uma estrutura conceptual delimitada e tenta responder a objetivos de investigação concretos. A escolha dos entrevistados e a definição do número de entrevistas partiu dos princípios-base de diversificação e saturação definidos por (Guerra 2006GUERRA, I. Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo: sentidos e formas de uso. Estoril: Principia, 2006.) para esse tipo de abordagem. Assim, a diversificação externa identifica a heterogeneidade dos peritos e dos decisores em saúde e garante as variáveis necessárias para obtenção de um retrato global das questões e a construção de um perfil social dos entrevistados. Por outro lado, a diversificação interna traz à problemática a diversidade ideológica representativa da população portuguesa, com entrevistados de todos os quadrantes políticos da governação.

Quanto ao plano de recolha de declarações, foi introduzida a técnica da entrevista orientada para a informação e resposta de (Albarello et al. 1997ALBARELLO, L. et al. Práticas e métodos de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva, 1997.), tendo como finalidade congregar conhecimentos importantes e linhas orientadoras sobre o objeto de investigação - sense making. Para as entrevistas elaborou-se um guião/roteiro, constituído por um conjunto de questões, inscritas numa grelha analítica que, no decorrer da sua aplicação, foi sujeita a pertinentes alterações - tendo por objectivo principal evitar o desperdício de tempo aos inquiridos e a redundância na abordagem dos temas.

Relativamente à análise de conteúdo das respostas declaradas nas entrevistas, utilizou-se a técnica de tratamento de informação que colocou os dados numa perspectiva diferente da sistematizada na fonte. Serviram para essa abordagem as opiniões de (Demazière e Dubar 1997DEMAZIÈRE, D.; DUBAR, C. Analyser les entretiens biographiques: l`exemple de récits d`insertion. Paris: Nathan, 1997.) que se referem à postura analítica e da reconstrução do sentido e que permitem ao investigador a interpretação dos fatos narrados, admitindo a produção de categorias e proposições. Elegeu-se a proposta de (Poirier, Valladon e Raubaut 1999POIRIER, J.; VALLADON, S.; RAUBAUT, P. Histórias de vida: teoria e prática. Oeiras: Celta, 1999.) sobre entrevistas aprofundadas, tendo em conta os pressupostos elementares da abordagem de análise de conteúdo, visando uma sequência de operações que controlam a técnica utilizada. Assim, numa primeira fase, as entrevistas foram gravadas e, em seguida, transcritas integralmente. Finalmente, foram redigidas em discurso coerente e abreviado, mantendo a fidelidade das declarações. Numa segunda fase as entrevistas foram impressas, para poderem ser anotadas por indução analítica, num formato com margens livres à esquerda e à direita. Procedeu-se à leitura concentrada das mesmas e sublinharam-se a cores algumas frases do texto - cor verde para fatos e cor azul para frases ilustrativas. Desse exercício surgiram outros temas e novas problemáticas, que foram integradas na construção do documento - complementando e identificando, por meio do discurso, um quadro mais rico de problematização.

Assente no material recolhido foram construídas sinopses das entrevistas, em grelha vertical, cuja primeira coluna apresenta as principais problemáticas, a priori (do guião das entrevistas) e a posteriori (introduzidas pela leitura das mesmas). Essas sinopses contêm as declarações essenciais segundo as categorias problematizadas e são fiéis aos discursos dos entrevistados, tanto no fundo como na forma. Houve assim lugar para a arrumação de declarações, de acordo com a adequação dos conteúdos às problemáticas correspondentes. Foi possível aferir uma comparação conjunta das declarações, por meio da leitura horizontal, o que possibilitou um maior rigor na operação seguinte: a análise descritiva. Seguidamente foi possível categorizar os elementos obtidos pelos discursos dos intervenientes, permitindo a ancoragem para a explicação dos factos essenciais.

Apresentação dos entrevistados

Considerou-se requisito essencial para a seleção dos entrevistados a sua experiência como peritos na área da saúde, tanto ao nível dos investigadores como dos decisores políticos, ou mesmo de outros administradores/gestores (Quadro 1). O principal objectivo da seleção da amostra foi a constituição de um conjunto de referência de interlocutores privilegiados na área da saúde, visando à auscultação das suas representações, em particular sobre a RNCCI, tendo em vista a boa governança em saúde, num contexto marcado pela crise econômica e social.

Quadro 1
Caracterização dos interlocutores-chave (especialistas e decisores políticos), 2011, Lisboa

Os Riscos da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados

Ao serem interpelados, em relação aos riscos e incertezas associados à RNCCI, os entrevistados evidenciaram claramente o perturbador impacto do fenômeno do envelhecimento populacional. Este tem sido um desafio constante e fonte de preocupação para a gestão da rede e para a concepção e execução de políticas de saúde. Acrescente-se que o envelhecimento populacional encerra em si uma série de outros problemas, como o agravamento da doença/s crônica/s, o surgimento de múltiplas comorbilidades e a questão da sobrecarga familiar.

O envelhecimento da população é desafio para tudo. É desafio para o financiamento, é um desafio para o acesso a cuidados de saúde, é desafio para a literacia. (Entrevistado A)

Estamos a falar de pessoas idosas, muito frágeis, com doenças crônicas, co-morbilidade, com muito grau de isolamento [...]. Quarto país mais envelhecido de 2050. [...] Somos o quinto país com maior dependência, na Europa dos 25. (Entrevistado B)

Dos relatos dos entrevistados sobre os níveis de risco para a RNCCI são referidos como factores de agravamento, de sobrecarga ou dependência os seguintes: a diminuta taxa de natalidade, a tendência crescente da esperança média de vida, especialmente no género feminino, e a ausência de uma política de emigração adequada.

Eu costumo apresentar uma pirâmide etária que projeta a evolução demográfica para 2050 e até digo [...] que vamos ser um país envelhecido de mulheres pobres e viúvas e, nós não estamos a ter nenhuma dinâmica contra isto, até porque a emigração está a ir-se toda embora outra vez e a nossa natalidade contínua pelas ruas da amargura [...] nós vamos ter uma dependência deste tipo de cuidados que vai fazer com que este setor seja o provavelmente o predominante. (Entrevistado G)

Sobressai como uma necessidade premente para a RNCCI a atualização e o investimento na especialização, designadamente na área das doenças crônicas e na saúde mental. A população idosa exige também a atualização das respostas sociais da rede, a preparação de novos equipamentos e a formação de recursos humanos, o que eleva os custos e pode colocar em causa uma sustentabilidade a prazo.

No meio disso tudo tem de haver outras respostas que se articulam para dar continuidade de cuidados; e essas respostas podem ser de tão largo espectro que podem integrar aqui desde CSP, como noções e conceitos tão latos, como long term care, nos quais se incluem as RNCCI, as respostas sociais mais ligadas aos aspectos da necessidade de "medicalizar". (Entrevistado B)

E isso leva-me a uma questão muito importante, que é a questão da saúde mental, aliás, da saúde mental e das demências, que também têm a ver com isto. Os CCI não estão preparados para as demências, para o Alzheimer. Não é psicologicamente preparado, o nosso país não está preparado para as demências, não há equipamentos não há ajuda, o que é que é a chapa um da resposta (Entrevistado K).

Um outro risco associado identifica a sobrecarga das famílias que têm sob sua responsabilidade idosos dependentes, visto que não existem estruturas de apoio suficientes e eficazes na RNCCI e noutros cuidados de longa duração. Destaca-se, sobretudo, a escassez de equipamentos sociais com cuidados diferenciados que privilegiam a institucionalização, de acordo como as necessidades dos utentes.

Mas existe uma enorme institucionalização também, e cada vez vai ter que existir mais. Tem é que se humanizar esta institucionalização, porque não se consegue ter pessoas de 90 e 100 anos em casa. (Entrevistado B).

É a família ficar sobrecarregada, a ter que, muitas vezes, que despedir-se do seu trabalho para ficar a acompanhar o familiar; das duas uma, ou é o marido ou a mulher também já idosos, eles próprios a precisarem de ajuda porque têm de estar a apoiar 24 horas a acompanhar uma pessoa cada vez mais dependente, não é? Ou então são os filhos e familiares próprios, que são sobrecarregados porque não há, não há estruturas de apoio (Entrevistado K).

O apoio domiciliário é apontado como uma importante estratégia que beneficia a população idosa, sendo referido como uma das áreas de cuidados continuados menos desenvolvidas. A necessidade recorrente de apoio domiciliário aponta para medidas políticas que promovam valência, já que, segundo um dos entrevistados (Entrevistado B), cerca de 95% das pessoas que entram na rede têm algum grau de dependência.

O apoio domiciliário [...] é complexo porque não é um apoio apenas, nem social nem assistencial; tem a ver também com as condições de vida (Entrevistado H).

Pois, eu acho que isso é uma área em que estamos bastante atrasados [...] acho que isso é um problema de outra natureza, não tem propriamente a ver com os serviços de saúde, é mais uma questão social. Hoje vive-se mais, somos velhos durante muito tempo [...] significa, em muitos casos, que estamos muito sós, há muito idoso em Portugal que vive sozinho, sem apoios, e há, julgo eu que há, uma responsabilidade do Estado [...] (Entrevistado H).

Um dos riscos apontados por quase todos os interlocutores entrevistados está relacionado com a sustentabilidade a prazo. Esta é inflacionada pelos fatores demográficos supracitados, pela atual crise econômico-financeira e pela inalterada primazia do investimento estatal nos cuidados hospitalares.

E isso vai ter consequências gravíssimas a nível de orçamento de Estado. Não há dinheiro que chegue para pagar, nós vamos à falência completamente, esqueça o SNS se continuarmos a investir nos hospitais, esqueça o SNS se continuar a insistir no episódio agudo e não na reabilitação e na valorização do cuidado (Entrevistado B).

Aliás, julgo que os atuais custos para o Estado não cobrem sequer grande parte das despesas destas instituições. Portanto, há aí um problema de financiamento; não sei se estas instituições têm capacidade de financiamento para elas próprias terem uma rede (Entrevistado H).

A insustentabilidade da RNCCI poderá estar associada ao subfinanciamento já que depende financeiramente de verbas provenientes dos jogos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e estas podem vir a ser alteradas. Por outro lado, a moderada intervenção do Estado não assume uma responsabilidade cabal efetiva, de reengenharia financeira no orçamento para a saúde, e delega ao setor privado e no terceiro setor dimensões (criação de equipamentos e manutenção de unidades) que criam insegurança.

Não é possível continuar a rede em termos financeiros se houver uma quebra grande na receita dos jogos sociais. Só é possível manter a rede a desenvolver-se e a crescer retirando recursos e orçamento ao setor hospitalar. Não há outra forma. Os subsistemas e, eventualmente, os programas de financiamento apoiado podem ser introduzidos e direcionados para este tipo de respostas, mas implicam uma mossa nas políticas de saúde, em geral, e de segurança social (Entrevistado G).

A incerteza na procura e na oferta de cuidados continuados integrados

Perante o cenário de envelhecimento e de crise econômica e financeira que o país atravessa, abre-se um espaço para a incerteza na procura e na oferta de cuidados continuados integrados. Assim sendo, as opções da oferta para a RNCCI tidas em matéria de financiamento público, privado, com ou sem fins lucrativos, e setor social podem determinar o nível do grau de cobertura de cuidados continuados integrados. Os entrevistados apontam para um momento de incerteza de médio/longo prazo sobre a natureza das necessidades dos cidadãos, pelo que a gestão desta tendência e trajetória deverá ser monitorizada. Referem ainda a existência de uma disfunção entre as necessidades reais da população e a forma como a rede cresceu e se desenvolveu.

Depois de decidir que esse financiamento é feito pelo setor público, pelo privado, pelos dois, o setor social. Isso são decisões críticas que têm que ser feitas e essas decisões vão determinar qual é esse grau de cobertura (Entrevistado A).

Relativamente à procura, persiste a insuficiente passagem de informação entre profissionais de saúde e população sobre os propósitos e a existência das unidades de cuidados continuados integrados, levando as famílias a idealizarem estas unidades como cuidados de longa duração (lares, casas de repouso) e não como uma resposta intermédia/de transição entre níveis de cuidados. Há uma dúvida em saber se, futuramente, as unidades da RNCCI poderão tornar-se depositárias de cuidados em que não haja diferenciação de cuidados. Essa questão torna evidente o investimento na promoção da educação da saúde.

Mais educação das pessoas para a saúde, mais informação e termos uma resposta no SNS, uma resposta que não seja apenas a resposta curativa, a resposta aguda, mas que permita de fato outro tipo de respostas que vão conformando e mudando o nosso paradigma, para que as pessoas no fim da vida, digamos, não se sintam por um lado ou abandonadas ou internadas num hospital (Entrevistado H).

Avança-se (Entrevistado H) na ideia de que a evolução da saúde/tecnologia deve ser encarada como uma conquista e não como um problema, dado que esta contribuiu para um maior aumento da esperança média de vida da população. No entanto, face a esse quadro demográfico, a procura dos cuidados continuados integrados permanece elevadíssima e a oferta da RNCCI não permite cobrir todas as necessidades da população. Confirma-se também que a imprevisibilidade da procura desse tipo de cuidados implica a realização de estudos, estimativas e projeções que a par e passo coadjuvam (por avaliações) quem dirige unidades de cuidados continuados integrados, o que permitirá redirecionar melhor as respostas existentes ou a criar novas respostas (Entrevistado J).

Já o aumento da oferta de cuidados continuados integrados vai depender dos cuidados hospitalares e da articulação com a rede, de um maior investimento na reabilitação e em unidades da rede pública, bem como na educação das pessoas e na revalorização dos cuidados (Entrevistado B; Entrevistado H e Entrevistado J).

Tem de se fazer através de estudos, de estimativas, daquilo que é a evolução. Há depois também profissionais que, tendo em conta aquilo que é a situação do país, que permitem analisar e projetar para a frente, tendo sempre em conta que é uma projeção e uma estimativa (Entrevistado J).

No dia em que deixar de ter regras os hospitais tomam conta da rede e transformam-na em hospitais de retaguarda. E fazem transferências diretas de todos os doentes que tiverem, em qualquer condição, para lá, e vai entupir" [...] O PIB vai subir com as despesas da saúde, se não tivermos em conta que temos de criar outras alternativas em LTC. Ou seja, a grande sustentabilidade do sistema de saúde em todos os países desenvolvidos afetados pela da demografia e epidemiologia é criar um largo espectro de respostas em LTC (Entrevistado B).

A principal razão para desequilíbrio existente entre oferta e procura de cuidados continuados integrados (Entrevistado G) é que a oferta não conseguiu desenvolver-se como estava conceptualmente planeada, apesar de ter os instrumentos legais para avançar. A tentativa de uma maior eficiência econômica através de incentivos e atenta às características /necessidades de cada localidade, bem como a aposta numa literacia em saúde para os cidadãos como a resposta a uma mudança gradual de paradigma sobre o setor hospitalar, poderá inverter o desequilíbrio entre a oferta e a procura de cuidados continuados (Entrevistado I).

Eu tenho uma população de 1900 pessoas e entre o ano de 2010 o que é que eu precisei da RNCCI [...] que me ajudasse a colocar uma senhora num lar e o meu trabalho era convencê-la que não poderia ficar em casa, arranjar uma alternativa para o marido e fazer uma intervenção de fisioterapia [...] As USF têm como sabem alguns incentivos, não é por poupar dinheiro, mas é por atingir os objectivos e cumprindo os objectivos de eficiência, economicamente funciona, e não deixam de receitar coisas que as pessoas precisam, mas pensam duas vezes (Entrevistado I).

As pessoas com mais condições são os mais ins­truídos muitas vezes, são os que usam mais racionalmente as coisas, que menos desperdícios fazem [...] que a gente, de todos os impostos que se colectam, ou de todo o PIB, neste caso é de todo o PIB, nós achamos aceitável gastar 10% globalmente com a saúde, agora como é que o gastamos, claro não é para toda a gente, agora vamos hierarquizar as necessidades, dos CC, pronto, mas claro, não é para manter estruturas que vamos pagar só para existir, muitas vezes também acontece isso (Entrevistado I).

Os resultados da avaliação do risco e da incerteza da RNCCI

Analisando as entrevistas e a forma como foram descritos os fenômenos evidenciados, propõe-se uma análise interpretativa que segue o mesmo princípio orientador. Desse modo, inicia-se uma fase de análise de conteúdo que vem confirmar os depoimentos dos vários intervenientes sobre os riscos e a incerteza da política de cuidados continuados integrados, em particular sobre que áreas será útil intervir para alavancar um melhor desempenho.

Entre a doença crônica e a sobrecarga familiar

No que respeita ao domínio do envelhecimento da população portuguesa, em que o conceito não agrega as opiniões de todos entrevistados todos parecem concordar que ele está intimamente ligado ao aumento do grau de dependência e ao agravamento da doença crônica e das co-morbilidades. Assim sendo, reconhecem-se aproximações com essas declarações pela definição de (Cabrero et al. 2000CABRERO, G. R. El problema de la dependencia: conceptualización y debates. In: CABRERO, G. R (Coord.). La Protección Social de la Dependencia. 2. ed. Madrid: IMSERSO: MTAS, 2000. p. 25-44., p. 26), que descreve o binômio envelhecimento e dependência como "[...] um estado em que se encontram as pessoas que, por razões ligadas à falta e perda de autonomia física, psíquica, intelectual, têm necessidade de assistência e de outros recursos para realizar as actividades correntes da vida diária." Por outro lado, para clarificar a prestação de apoio familiar, corrobora-se a ideia, defendida por vários autores, incluindo (Quaresma 1996QUARESMA, M. L. Cuidados familiares às pessoas muito idosas. Lisboa: Núcleo de Documentação Técnica e Divulgação da Direção Geral da Acção Social, 1996.), de que a maioria dos cuidados prestados às pessoas idosas é assegurada por cuidadores familiares, e Portugal não é exceção. Apura-se que, embora utilizem uma linguagem característica, de acordo com o background profissional, conseguem delimitar a essência do conceito, quando aplicado aos cuidados continuados.

O peso dos factores demográficos

Na ligação entre política de saúde e de proteção social, os cuidados continuados integrados surgem como um instrumento atenuador que responde ao fenômeno do envelhecimento. Contudo, os efeitos da transição demográfica e o aumento da dependência potenciam os custos dos cuidados de longa duração, designadamente pelos fatores colhidos através dos interlocutores. Confirmam-se teoricamente as declarações do (Eurostat 2000EUROSTAT. Key data on health 2000: 1985-1995. Luxembourg: European Comission, 2000., 2007EUROSTAT. Living conditions in Europe: statistical pocketbook: data 2002-2005. Bruxelles: European Commission, 2007.) com a evidência de que Portugal será o 4º dos 25 paíse da União Europeia com maior percentagem de idosos (31,9%), só ultrapassado por Espanha, Itália e Grécia. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (Portugal, 2001), esse envelhecimento incidirá sobretudo na população feminina e terá uma taxa de natalidade, no longo prazo, cada vez mais baixa. Mais se acrescenta que os indicadores da (Eurostat 2007EUROSTAT. Living conditions in Europe: statistical pocketbook: data 2002-2005. Bruxelles: European Commission, 2007.) também divulgam uma percentagem de idosos com 80 e mais anos entre 2005 e 2050 a aumentar cerca de 9,8%, ou seja, de 3,8% para 13,6%.

Face às evidências acima descritas é com grande probabilidade que as situações de dependência se agudizem e haja maior necessidade de cuidados, principalmente quando associados à população muito idosa. Resta acrescentar que o decréscimo dos óbitos e dos nados vivos simultaneamente considerados pelo INE (Portugal, 2005PORTUGAL. Instituto Nacional de Estatística. Estimativas da População Residente: NUTS II, NUTS III e Municípios 2004. Lisboa, 2005.) produzem efeitos no índice de dependência dos idosos, dando origem a resultados semelhantes aos apresentados em 2004, quando, segundo (Campos 2008CAMPOS, A. C. Reformas da Saúde. Coimbra: Almedina, 2008., p. 10): "[...] existiam 16.300 pessoas idosas com pluripatologia e dependência, entre 160.000 e 250.000 com demência e mais de 16.000 doentes terminais". Esses dados confirmam uma necessidade de investimento na diferenciação dos cuidados, em geral, na gestão das doenças crônicas, particularmente na saúde mental.

O equilíbrio entre estruturas e recursos humanos

Há algumas evidências entre os interlocutores de que há necessidade de se criar novos equipamentos sociais para respostas que carecem de especificidade, por exemplo na área de saúde mental e dos cuidados paliativos. Outros defendem que a diferenciação de cuidados só é possível se a rede contemplar um maior número de profissionais das diversas áreas (medicina, enfermagem, fisioterapia, terapia da fala, serviço social, psicologia e nutrição, entre outras). Defende-se, em teoria, o aumento de profissionais, bem como da sua formação para garantir os padrões de qualidade definidos pela (Comissão Europeia 2009EUROPEAN COMMISSION. Sustainability report 2009. Luxembourg, 2009. (European Economy 9/2009). Disponível em: <http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/publication15998_en.pdf.>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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).

No que diz respeito ao aumento de unidades de cuidados continuados, deve-se levar em consideração a opinião dos portugueses em situação de dependência, obtida num estudo da Comissão Europeia (2009). Este estudo aponta para uma distribuição de doentes dependentes por tipo de cuidadores esclarecendo tacitamente: uma preferência do doente sob a responsabilidade da família (50%), na responsabilidade de um serviço prestador de cuidados (21%), em casa com um cuidador (6%) e numa instituição (11%) - o que legitima uma escolha que supera os 80% via cuidados domiciliários. A (Comissão Europeia Comission 2009EUROPEAN COMMISSION. Sustainability report 2009. Luxembourg, 2009. (European Economy 9/2009). Disponível em: <http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/publication15998_en.pdf.>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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) também clarifica num relatório que a prestação de cuidados na comunidade ou residencial é preferível aos cuidados institucionais.

(In)sustentabilidade da RNCCI

Considerando as projeções da (OCDE 2005OCDE - ORGANIZAÇÂO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO. Paying for long-term care: current reforms and issues for the future in long-term care for older people: OECD Health Project. Paris, 2005. Disponível em: <http://www.euro.centre.org/data/1216815268_61772.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2013.
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) e as dos interlocutores-chave podemos afirmar que haverá lugar para um aumento da despesa com saúde e, em concreto, nos cuidados continuados integrados, situação muito semelhante a de outros países da Europa, como adverte o (Observatório Português dos Sistemas de Saúde 2011OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SAÚDE. Relatório da primavera de 2011: da depressão da crise para a governação prospectiva da saúde. Coimbra: Escola Nacional de Saúde Pública; Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra; Universidade de Évora, 2011.), que afirma um envelhecimento populacional que exigirá, nas próximas décadas, um aditamento de recursos que desafiará a sustentabilidade financeira da RNCCI, em particular, mas também do Sistema Nacional de Saúde (SNS) e do sistema de protecção social na sua globalidade.

No entanto, é importante esclarecer que Portugal, como se afere dos dados da (Comissão Europeia 2009EUROPEAN COMMISSION. Sustainability report 2009. Luxembourg, 2009. (European Economy 9/2009). Disponível em: <http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/publication15998_en.pdf.>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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), é o quinto país que despende mais em saúde, de acordo com a percentagem do PIB da Europa de 27 membros, e assimetricamente um dos que menos investe em cuidados continuados integrados. Caberá, no conjunto das funções do Estado, em matéria de saúde, privilegiar esse nível de cuidados em detrimento do investimento na área hospitalar. A diversidade do financiamento da RNCCI, como se conhece, é assegurada pelo orçamento estatal. Para tal servem as verbas provenientes dos jogos sociais que a Santa Casa Misericórdia de Lisboa explora, divididas pelos ministérios do Trabalho e da Solidariedade Social (34,8%) e da Saúde (16,6%), bem como da comparticipação dos utentes/agregados familiares consoante o nível de rendimentos.

Grande parte dos países europeus tem preocupações com a sustentabilidade dos cuidados continuados, sendo a diversidade do financiamento e a correta conjugação de serviços (formais e informais) a melhor receita para sustentabilidade futura deste nível de cuidados, tal como defende a (OCDE 2005OCDE - ORGANIZAÇÂO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO. Paying for long-term care: current reforms and issues for the future in long-term care for older people: OECD Health Project. Paris, 2005. Disponível em: <http://www.euro.centre.org/data/1216815268_61772.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2013.
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).

A procura e a oferta de cuidados continuados em Portugal: que caminho?

As declarações dos entrevistados indicam para uma direção clara da procura de cuidados continuados integrados paulatinamente refreada pela escassez da oferta, uma vez que a RNCCI ainda não foi capaz de desenvolver as suas capilaridades no território para poder responder com eficácia. Encontra-se, portanto, numa fase de reconhecimento, de implementação e de consolidação de práticas, o que valida as afirmações da (OCDE 2005OCDE - ORGANIZAÇÂO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO. Paying for long-term care: current reforms and issues for the future in long-term care for older people: OECD Health Project. Paris, 2005. Disponível em: <http://www.euro.centre.org/data/1216815268_61772.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2013.
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) quando se refere a este tipo de tendências. Também reconhecida pelos entrevistados está a incerteza da necessidade de cuidados continuados pelos cidadãos, ou seja, em saber se são efetivamente reais ou fruto da descentralização estatal que permite a instituições do terceiro setor e do setor privado desenvolver este tipo de respostas. Como se comprova, para tanto é indispensável que os países invistam em pesquisas que permitam comparações válidas ao longo do tempo, de forma a permitir o monitoramento da evolução da dependência na população, em especial a mais idosa, pois é certo que, tal como (Comas-Herrera, Wittenberg e Pickard 2003COMAS-HERRERA, A.; WITTENBERG, R.; PICKARD, L. European study of long term care expenditure. PSSRU Bulletin, London, n. 14, june, 2003. p. 28-29. Disponível em: <http://www.pssru.ac.uk/pdf/B14/B14.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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) afirmam, se reconhece um amplo grau de incerteza acerca do volume e do tipo de procura em serviços de long term care.

Portugal pode enquadrar-se numa tipologia europeia apelidada de family based countries (países de base familiar), tais como Espanha, Irlanda ou Grécia. Esta assenta-se em três pressupostos-chave que são classificados de acordo com (Lamura et al. 2007LAMURA, G. et al. Dimension of future social service provision in the ageing societies of Europe. Advances in Gerontology, Saint Petersburg, v. 20, n. 3, p. 13, 2007.) com a distribuição e a forma como se organizam os cuidados de saúde, designadamente, a procura dos mesmos e a sua relação com a provisão de cuidados formais e informais. Nesse sentido, do caso português ressalta efetivamente uma elevada procura de cuidados, uma provisão de cuidados informais de nível médio e uma escassa provisão de cuidados formais. Essa tipologia clarifica algumas das prioridades no panorama nacional, evidenciando lacunas na governação de cuidados continuados integrados, especialmente na resposta domiciliária de proximidade.

Conclusão

Este estudo teve como objectivo influenciar construtivamente o processo de consolidação da política de cuidados continuados integrados (RNCCI), introduzindo reflexões ou inputs numa lógica representativa e de defesa do interesse público. Assim, depois de perscrutadas as declarações dos peritos e dos decisores em saúde, assentes na evidência, puderam apreciar-se duas dimensões interdependentes que expressam o consenso da perspectiva do risco para o desenvolvimento da RNCCI em Portugal.

Uma das dimensões está diretamente relacionada com a sustentabilidade financeira. De fato, apesar de incorporar na sua definição opções de gestão inovadoras assentes na diversidade de financiadores, a RNCCI pode correr o risco de ser incomportável a médio-longo prazo, dada a natureza inconstante do seu financiamento, que resulta, em larga medida, da captação de verbas provenientes dos jogos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). A sustentabilidade dessa política integrada é ainda afetada pela crise econômico-financeira que obriga à contenção de despesa pública. No nível interno também contribui o conservadorismo do Estado, que continua a premiar os cuidados hospitalares com uma grande "fatia" do orçamento estatal em detrimento de uma estratégia que privilegie de forma equilibrada a doença crônica, os novos indicadores demográficos e o desenvolvimento de cuidados descentralizados e próximos dos cidadãos.

A outra dimensão que é crucial no desenvolvimento e na manutenção da RNCCI está relacionada com a forma como esta se harmoniza e se ajusta às necessidades de saúde dos portugueses. Verificaram-se assimetrias entre a procura de cuidados continuados e a disponibilidade de oferta, que, ao não serem calibradas em tempo útil, com uma reconfiguração da rede institucional e com a implementação de valências de proximidade, arriscam os ouputs, aqui tidos por resultados ou ganhos para a saúde.

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Anexo

Guião de entrevista

Para informadores privilegiados na área da saúde

Objetivo da entrevista: a auscultação de representações no contexto dos cuidados continuados integrados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2013
  • Revisado
    20 Maio 2014
  • Aceito
    16 Jun 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br