Desigualdades sociodemográficas e na assistência à maternidade entre puérperas no Sudeste do Brasil segundo cor da pele: dados do inquérito nacional Nascer no Brasil (2011-2012)11Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Técnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pela bolsa de pesquisa de C.S. G. Diniz processo 2011/18534.

Sociodemographic inequalities and maternity care of puerperae in Southeastern Brazil, according to skin color: data from the Birth in Brazil national survey (2011-2012)

Resumo

Historicamente, no Brasil, os indicadores de saúde de mães e bebês segundo cor da pele mostram quadro desfavorável às negras (pretas e pardas). Na última década, a redução das disparidades de renda e escolaridade, assim como a universalização da assistência à saúde, podem ter alterado esse quadro, em alguma medida. O objetivo deste artigo foi analisar as mudanças nas desigualdades sociodemográficas e na assistência à maternidade no Sudeste do Brasil, segundo raça/cor, na última década. Utilizamos dados do inquérito nacional Nascer no Brasil (2011-2012). Análise estatística descritiva foi realizada para a caracterização sociodemográfica, do acesso à assistência pré-natal, antecedentes clínicos e obstétricos, e características da assistência ao parto. Encontramos diferenças desfavoráveis às pretas e pardas quanto à escolaridade, renda e ao trabalho remunerado; as brancas tinham mais planos de saúde privados e maior idade. As pretas e pardas tiveram menor número de consultas, menos ultrassonografias, mais cuidado pré-natal considerado inadequado, maior paridade e mais síndromes hipertensivas. No parto, tiveram menos acompanhantes, mais partos vaginais, embora a cesárea tenha dobrado entre as negras, que com mais frequência entraram em trabalho de parto e tiveram filhos nascidos de termo pleno. Não houve diferença estatisticamente significativa quanto à situação conjugal, intercorrências da gestação, diabetes mellitus, anemias, sífilis, HIV, peregrinação para o parto, near miss materno ou neonatal e na maioria das intervenções no parto vaginal. Ainda que importantes disparidades persistam, houve alguma redução das diferenças sociodemográficas e um aumento do acesso, tanto a intervenções adequadas quanto às desnecessárias e potencialmente danosas.

Palavras-chave:
Saúde Reprodutiva; Racismo; Raça/Cor; Equidade em Saúde; Saúde da Mulher; Saúde Materna

Abstract

Historically, in Brazil, the health indicators of mothers and babies by skin color show an unfavorable picture to black and brown-skinned women. In the last decade, the reduction of disparities in income and education, as well as the universalization of health care, may have altered this situation to some extent. The objective of this study was to analyze the changes in socio-demographic inequalities and maternity care in Southeastern Brazil, by race/color, in the last decade. We used data from the national survey Born in Brazil (2011-2012). Descriptive statistical analysis was performed in order to define socio-demographic characteristics, access to antenatal care, clinical and obstetric history, and characteristics of birth assistance. We found differences unfavorable to black and brown-skinned women in education, income, and paid work; white women had more private health insurance plans, and increased age. Black and brown women had fewer medical appointments, fewer ultrasounds, more antenatal care considered inadequate, higher parity, and more hypertensive disorders. In childbirth, they had fewer companions and more vaginal deliveries, although the cesarean rate has grown twice as high among black women. More often they went into labor and had children born full term. There was no statistically significant difference in marital status, pregnancy complications, diabetes mellitus, anemia, syphilis, HIV, pilgrimage to delivery, neonatal or maternal near miss, and most of the interventions in vaginal delivery. Although major disparities persist, there was some reduction in sociodemographic differences as well as increased access to both appropriate and unnecessary and potentially harmful interventions.

Keywords:
Reproductive Health; Racism; Race/Ethnicity; Health Equity; Women's Health; Maternal Health

Introdução

Entre 2001 e 2011, a pobreza no Brasil foi reduzida em mais de 55%, permitindo que o país atingisse a primeira Meta de Desenvolvimento do Milênio - de redução à metade do número de pessoas vivendo em pobreza extrema -, realizando-a antes do prazo, previsto para 2015.

O Brasil tem reduzido as taxas de pobreza desde 1994, possibilitado um processo de mobilidade social ascendente, com o crescimento das parcelas classificadas como "classe média", o que se acelerou na primeira década do século XXI. O estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chamado "A Década Inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda" (Ipea, 2012IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. A Década Inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Brasília, DF: Ipea, 2012.), mostra que, nessa década, os 10% mais pobres do país tiveram um crescimento de renda acumulado de 91,2%, 5,5 vezes maior que o aumento para a parcela mais rica da população nesse mesmo período, que foi de 16,6% da renda acumulada.

Esse crescimento diferenciado da renda na década contribuiu tanto para a redução da pobreza quanto para a diminuição da desigualdade (Victora et al., 2011VICTORA, C. G. et al. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet, v. 377, n. 9780, p. 1863-1876, 2011. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21561656>. Acesso em: 21 mar. 2014.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21561...
)Brazil has undergone rapid changes in major social determinants of health and in the organisation of health services. In this report, we examine how these changes have affected indicators of maternal health, child health, and child nutrition. We use data from vital statistics, population censuses, demographic and health surveys, and published reports. In the past three decades, infant mortality rates have reduced substantially, decreasing by 5\u00b75% a year in the 1980s and 1990s, and by 4\u00b74% a year since 2000 to reach 20 deaths per 1000 livebirths in 2008. Neonatal deaths account for 68% of infant deaths. Stunting prevalence among children younger than 5 years decreased from 37% in 1974-75 to 7% in 2006-07. Regional differences in stunting and child mortality also decreased. Access to most maternal-health and child-health interventions increased sharply to almost universal coverage, and regional and socioeconomic inequalities in access to such interventions were notably reduced. The median duration of breastfeeding increased from 2\u00b75 months in the 1970s to 14 months by 2006-07. Official statistics show stable maternal mortality ratios during the past 10 years, but modelled data indicate a yearly decrease of 4%, a trend which might not have been noticeable in official reports because of improvements in death registration and the increased number of investigations into deaths of women of reproductive age. The reasons behind Brazil's progress include: socioeconomic and demographic changes (economic growth, reduction in income disparities between the poorest and wealthiest populations, urbanisation, improved education of women, and decreased fertility rates. Uma vez que os resultados das políticas sociais foram mais intensos para os mais pobres, também foram mais percebidos na população negra, ainda que não dispusessem, necessariamente, de recorte racial. A redução na desigualdade se dá junto de outra mudança demográfica: a população branca diminuiu de 54,0%, em 1980, para 48,0%, em 2010, e deixou de ser majoritária. No mesmo período, as pessoas que se declaram pardas (mestiças) passaram de 39,0% para 43,0% do total, e as pessoas que se identificam como pretas elevaram-se de 6,0% para 7,6% (Marcondes et al., 2013MARCONDES, M. M. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília, DF: Ipea, 2013.).

No Retrato das desigualdades de gênero e raça (Ipea, 2011IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília, DF: Ipea, 2011.), a análise da última década também evidencia a redução dos índices de pobreza e desigualdade no país, inclusive aqueles relativos à desigualdade racial na distribuição da renda. O decréscimo da desigualdade racial ocorreu, sobretudo, a partir de 2001 (Soares, 2008SOARES, S. A trajetória da desigualdade: a evolução da renda relativa dos negros no Brasil. In: THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008. p. 119-129. Disponível em: <http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1107_1899_Livrodesigualdadesraciais.pdf>. Acesso em: 7 set. 2016.
http://www.clam.org.br/bibliotecadigital...
). A participação da população extremamente pobre se reduziu em 50% na década, com diminuição também do percentual de pobres na população (Theodoro, 2008THEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília, DF: Ipea, 2008.).

A melhora na renda per capita das famílias, segundo as pesquisas, além de ter beneficiado mais fortemente a população negra, favoreceu especialmente as mulheres. Em 1995, as mulheres negras ganhavam cerca de 40% do que recebiam as brancas e, em 2009, chegaram a 51%. O mesmo se verifica para a população masculina, com os homens negros recebendo 44% do rendimento dos homens brancos, em 1995, e 52%, em 2009. Destaque-se, contudo, que, apesar da redução das desigualdades raciais de renda, a estrutura dessa desigualdade permanece praticamente inalterada. As famílias chefiadas por mulheres negras mantiveram-se sempre na posição de piores rendimentos, seguidas por aquelas de chefia de homens negros, mulheres brancas e, por último, homens brancos (Marcondes et al., 2013MARCONDES, M. M. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília, DF: Ipea, 2013.).

Um dos indicadores mais utilizados para mensurar desigualdade é o índice de Gini, que varia de 0 a 1, de acordo com o nível de concentração de renda. No período analisado, houve redução de cerca de 10% no índice, depois de longo período de estabilidade. Fatores como o aumento do emprego, a política de valorização do salário mínimo e a ampliação das políticas de transferência de renda são indicados como os principais promotores da mudança (Castro; Vaz, 2011CASTRO, J.; VAZ, F. (Org.). Situação social brasileira: monitoramento das condições de vida. Brasília, DF: Ipea, 2011.).

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2009IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: Síntese de Indicadores 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.) mostra que aumentou de 27% para 51% a frequência de estudantes entre 18 e 24 anos no ensino superior. Essa expansão educacional, contudo, apresenta disparidades, principalmente se levado em conta o critério racial. De acordo com o IBGE, o percentual de negros no ensino superior passou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011, o que mostra uma expansão ainda maior nesse segmento.

A PNAD de 2009 confirma a redução acentuada da fecundidade nas últimas décadas, e relaciona isso com o nível de instrução das mães, que vem aumentando consistentemente. A pesquisa mostra que as mulheres com até sete anos de escolaridade têm filhos mais cedo - a maioria, entre 20 e 24 anos (37% do total). Entre aquelas com mais de oito anos de escolaridade, as taxas de fertilidade são de 25% para a faixa etária de 20 a 24 anos e de 24,8% para a faixa de 25 a 29 anos. Dessa maneira, as mulheres com mais escolaridade são mães, em média, com 27,8 anos, enquanto aquelas que não terminaram o ensino fundamental têm filhos com 25,2 anos (IBGE, 2009IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: Síntese de Indicadores 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.).

A cor também é determinante em relação ao número de filhos. As mulheres negras (pretas e pardas, segundo critério do IBGE) têm famílias maiores. Não há muitas diferenças regionais, mas a pesquisa destaca que no Sudeste as brancas têm a menor taxa de fecundidade do país (1,55 filho), e, no Norte, as negras têm mais filhos (2,67 por mulher).

Historicamente, no Brasil os indicadores de saúde de mães e bebês segundo raça/cor mostram um quadro desfavorável às pretas e pardas. Pesquisa realizada por (Leal, Gama e Cunha, 2005LEAL, M. do C.; GAMA, S. G. N. da; CUNHA, C. B. da. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 100-107, 2005., p. 106), por exemplo, constatou que "nos serviços de saúde as mulheres também se diferenciam segundo grau de instrução e cor da pele. No momento do parto, as mulheres negras foram mais penalizadas por não serem aceitas na primeira maternidade que procuraram e durante o parto, receberam menos anestesia".

(Leal, Gama e Cunha, 2005LEAL, M. do C.; GAMA, S. G. N. da; CUNHA, C. B. da. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 100-107, 2005.), assim como (Olinto e Olinto, 2000OLINTO, M. T. A.; OLINTO, B. A. Raça e desigualdade entre as mulheres: um exemplo no Sul do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, p. 1137-1142, 2000.), constataram, sobre os dados de 1999 a 2001, que "pioraram os indicadores socioeconômicos dessa população à medida que se verifica o escurecimento da cor da pele" (Leal; Gama; Cunha, 2005LEAL, M. do C.; GAMA, S. G. N. da; CUNHA, C. B. da. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 100-107, 2005., p. 104). Refletindo essa piora, as mulheres pretas e pardas iniciavam a vida reprodutiva mais precocemente, tinham mais filhos, mais frequentemente não planejados, e mais frequentemente viviam sem parceiro. Além disso, naquela ocasião, mais frequentemente avaliavam a assistência que receberam no pré-natal, no parto e ao recém-nascido como regular ou ruim, o que era acentuado pelas disparidades educacionais, ou seja, quanto menor a escolaridade, pior sua avaliação da assistência recebida.

A redução das disparidades de renda e escolaridade ocorrida na última década e a universalização da assistência à saúde podem ter alterado, em alguma medida, o quadro de desvantagens que as mulheres negras enfrentam. O objetivo deste artigo foi analisar as desigualdades sociodemográficas e na assistência à maternidade no Sudeste do Brasil, segundo cor da pele, ao final da chamada "década inclusiva".

Metodologia

O inquérito nacional Nascer no Brasil é um estudo de base hospitalar realizado com puérperas e seus recém-nascidos, conduzido entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012.

A amostra do estudo foi calculada em três etapas. A primeira foi composta por hospitais com 500 ou mais partos/ano e estratificada pelas cinco regiões do país, localização (capital ou interior) e tipo de hospital (público, misto ou privado); a segunda foi composta pelos dias (mínimo de sete dias em cada hospital); e a terceira composta pelas puérperas. Em cada um dos 266 hospitais da amostra foram entrevistadas 90 puérperas, totalizando 23.940 participantes. Mais informações sobre o delineamento da amostra estão detalhadas em (Vasconcellos et al., 2014VASCONCELLOS, M. et al. Sampling design for the Birth in Brazil: National Survey into Labour and Birth. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 30, p. S1-S10, 2014. Suplemento 1.).

Na primeira fase do estudo foram realizadas entrevistas com as puérperas durante o período de internação hospitalar e extraídos dados dos prontuários médicos da mãe e do recém-nascido; os cartões de pré-natal foram fotografados.

Foram realizadas entrevistas por telefone entre 45 dias e seis meses depois do nascimento para obter informações sobre os resultados maternos e neonatais. Informações detalhadas sobre a coleta de dados são relatadas em (Leal et al., 2012LEAL, M. do C. et al. Birth in Brazil: national survey into labour and birth. Reproductive Health, London, v. 9, n. 15, p. 439-445, 2012.).

Para efeito desta análise, a variável de interesse, raça/cor da pele autorrelatada pela mulher (branca, preta, parda, amarela/oriental e indígena), foi posteriormente restrita a três categorias, branca, parda e preta, devido ao pequeno número de mulheres nas categorias excluídas (amarela e indígena), totalizando apenas 1,5% do total.

Foram utilizados dados da entrevista com a puérpera, do prontuário materno e do recém-nascido, assim como dados do questionário de estrutura. A lista de variáveis incluiu: tipo de prestador, idade materna, escolaridade, situação conjugal, trabalho remunerado, escore econômico (segundo a Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa de Mercado) e ter plano de saúde. As variáveis de acesso ao pré-natal incluíram o número de consultas, o exame de ultrassonografia e a adequação do pré-natal, com base do índice de Kotelchuck (Leal et al., 2004LEAL, M. et al. Uso do índice de Kotelchuck modificado na avaliação da assistência pré-natal e sua relação com as características maternas e o peso do recém-nascido no município do Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S63-S72, 2004. Suplemento 1.), adaptado para consultas esperadas segundo as recomendações do Ministério da Saúde. As variáveis de antecedentes clínicos e obstétricos incluíram paridade, síndromes hipertensivas, diabetes mellitus, anemias, sífilis, HIV e um índice composto de antecedentes e intercorrências na gestação. As variáveis de acesso ao parto incluíram peregrinação para a internação durante o parto; como chegou à maternidade; near miss materno; near miss neonatal; tipo de parto; se entrou em trabalho de parto; se foi feita aminiotomia, anestesia, manobra de Kristeller e episiotomia; e posição da mulher no período expulsivo.

Os dados sobre o nível de renda/classe social foram mensurados usando a classificação da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep, 2008ABEP - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério de Classificação Econômica Brasil. São Paulo: Abep, 2008.), que divide a população com base no nível de consumo da família e é apresentado em cinco classes (de A, o maior, para E, o menor). As covariáveis: idade (12-19 anos, 20-34 anos e 35 anos ou mais), educação (ensino fundamental incompleto ou completo, ensino médio e superior), classificação socioeconômica (classes A/B, C e D/E), tipo de parto (vaginal/cesariana), região (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul, Centro-Oeste) e tipo de financiamento (público/privado).

Foram incluídas na categoria "financiamento privado" tanto as mulheres que relataram nascimento pago pelo seguro de saúde quanto aquelas que pagaram pela assistência com seus próprios recursos.

Foi feita análise descritiva, e as associações foram investigadas em modelos bivariados. Em todas as análises, adotou-se um nível de significância de 5% (α=0,05), considerando as características do plano complexo de amostragem: estratos, conglomerado e ponderação. O programa estatístico utilizado foi o SPSS, versão 19.0 (SPSS Inc., Chicago, EUA).

Esta pesquisa foi realizada segundo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que orienta as normas de pesquisa com seres humanos, sob o protocolo de pesquisa CEP/ENSP nº 92/10. Os responsáveis de cada instituição e todas as puérperas assinaram um termo de consentimento informado.

Resultados

Na Tabela 1, constata-se maior proporção de mulheres na faixa etária de 12 a 19 anos entre as de cor parda (18,6%) e cor preta (18,4%), enquanto entre as brancas eram 13,7% (p=0,006). Na faixa etária de 35 anos ou mais, 12,9% são brancas, ao passo que 10,1% são pardas e 9,5%, pretas. Quanto à escolaridade, 30,1% das de cor preta e 22,9% das de cor parda tinham ensino fundamental incompleto, ao passo que entre as brancas esse percentual é de 13,7%. 15,9% das brancas possuem ensino superior completo, proporção que passa a 4,3% e a 3,0% entre as de cor parda e preta, respectivamente (p<0,001).

Quanto ao trabalho remunerado, 49,4% das mulheres brancas estavam empregadas; entre as pretas, o percentual foi de 38% (p<0,001). Estavam sem companheiro 24,6% das mulheres pretas, 22,9% das pardas e 19% das mulheres brancas.

As de cor preta e parda têm menor poder aquisitivo do que as brancas, visto que 23,9% e 17,2% das de cor preta e parda, respectivamente, estão nas classes D/E, o que se verifica para 9,4% das brancas. Nas classes A/B estão 41,7% das brancas, percentual que se reduz a 14,2% e 20,9% entre as pretas e pardas, respectivamente (p<0,001).

As mulheres negras (pretas e pardas) são preferencialmente usuárias dos serviços públicos de saúde, o que foi verdadeiro para 80,3% das pretas e 74% das pardas. Quando indagadas sobre a utilização de planos de saúde, 41,6% das brancas responderam utilizá-lo, ao passo que 19,7% e 26% das pretas e pardas responderam afirmativamente (p<0,001).

Na Tabela 2 observa-se que o acesso ao pré-natal se mostrou estatisticamente diferente para as mulheres segundo a cor autorreferida; as mulheres de cor preta exibiram os piores resultados, seguidas pelas de cor parda.

A proporção de mulheres que tiveram seis ou mais consultas, como preconizado pelo Ministério da Saúde, foi maior para mulheres brancas (82,3%), enquanto foi de 77,3% e 73,2% para as de cor parda e preta, respectivamente (p<0,001).

A ultrassonografia foi amplamente realizada pelas gestantes do Sudeste (99,5%), mas entre as de cor preta foi maior a proporção das que não a realizaram (1,1%).

O índice de Kotelchuck modificado avalia a adequação quantitativa do pré-natal, considerando o trimestre de início e o número de consultas. Entre as pretas e pardas foi maior a proporção de mulheres na categoria "inadequado", com 16,9% e 13,1%, respectivamente, do que entre as brancas (9,6%) (p<0,001).

A Tabela 3 apresenta alguns antecedentes clínicos e obstétricos segundo cor. Entre as brancas, pretas e pardas, a proporção de primíparas foi de 49,8%, 45,1% e 45,7%, respectivamente, e a diferença não foi estatisticamente significante (p=0,070). Se forem consideradas as mulheres que tiveram anteriormente três ou mais partos, verifica-se que foram 18,4% das brancas, 27,7% das pretas e 23,6% das pardas (p=0,003).

Entre as mulheres negras, a síndrome hipertensiva na gestação foi mais frequente, 25,8% e 17,5% entre as de cor preta e parda, enquanto entre as brancas a proporção foi de 15,9%.

Não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes para anemia e diabetes gestacional, o mesmo valendo para outras intercorrências no período gestacional e resultados de exames realizados.

Tabela 1
Perfil socioeconômico e demográfico segundo cor da pele autorreferida em puérperas da região Sudeste, 2011-2012

Tabela 2
Acesso ao pré-natal segundo cor da pele autorreferida em puérperas da região Sudeste, 2011-2012

Tabela 3
Antecedenttes clínicos e obstétricos na gestação segundo cor da pele autorreferida em puérperas da região Sudeste

Com relação ao acesso ao parto e características da assistência (Tabela 4), os resultados refletem mais a diferença no modelo de assistência que das condições de vida e saúde (p<0,001). A exceção cabe à variável "como chegou à maternidade", segundo a qual as mulheres pretas e pardas mais frequentemente utilizaram transporte público (ônibus, vans, a pé), e mais raramente transporte próprio.

Há diferenças estatisticamente significativas na presença de acompanhantes no parto: as mulheres pretas (30,9%) e pardas (24,8%) mais frequentemente ficaram sem quaisquer acompanhantes, comparadas com as mulheres brancas (17,4%, p<0,001), e mais raramente usufruíram de acompanhamento contínuo.

Com relação ao tipo de parto, as mulheres brancas mais frequentemente tiveram cesárea (60,6%), principalmente sem trabalho de parto (43,9% entre as brancas, 30,2% entre as pretas, e 31,1% entre as pardas, p<0,001), e a prática da rotura da bolsa das águas (amniotomia) foi maior entre as negras (pretas e pardas). Entre as mulheres brancas, os nascimentos de termo pleno (>39 semanas) foram menos verificados (50,1%) que entre as pretas (59,8%) e pardas (59,7%), o que foi estatisticamente significativo (p<0,001) (dado não mostrado nas tabelas).

Não encontramos diferenças estatisticamente significativas quanto às seguintes variáveis: peregrinação em busca de uma vaga para o parto, near miss do recém-nascido; near miss materno, chance de partos sem intervenções (parto natural), anestesia, manobra de Kristeller, posição da mulher durante o parto e episiotomia.

Tabela 4
Acesso ao parto segundo cor da pele autorreferida em puérperas da região Sudeste, 2011-2012

Discussão

Os resultados deste estudo permitem confirmar que mesmo depois da década inclusiva ainda persistem diferenças importantes nas características sociodemográficas, no acesso e na qualidade da assistência prestada às mulheres no período gravídico puerperal, em termos de desigualdades raciais.

A adversidade das condições de vida das mulheres negras revelada pela amostra confirma o que já havia sido encontrado em estudos de abrangência nacional. Cabe destacar que as condições socioeconômicas estão diretamente relacionadas aos indicadores de saúde, às condições de vida e ao acesso e à qualidade da atenção dos serviços de saúde. E que na amostra, as mulheres negras, vivendo em situação econômica mais precária, estão subrepresentadas nos grupos que possuem planos de saúde e sobrerrepresentadas entre as usuárias do sistema público de saúde, segundo (Werneck, 2014WERNECK, J. Intersecções de raça/etnia, gênero e classe: faces cotidianas e teóricas. In: ASSIS, G. O.; MINELLA, L. S.; FUNCK, S. B. (Org.). Entrelugares e mobilidades: desafios feministas, v. 3. Tubarão: Copiart, 2014. p. 319-328.).

É preciso recordar que a qualidade e cobertura dos seguros de saúde estão vinculadas diretamente à capacidade financeira dos usuários, que por sua vez vincula-se ao seu nível de renda. Já no sistema público, há correlação entre as regiões habitadas por populações de renda mais baixa e precariedade da oferta de recursos pelo Sistema Único de Saúde. Há uma forte correlação no Brasil entre raça, racismo, discriminação racial (incluindo suas interseccionalidades) e renda, cabendo aos grupos racialmente discriminados ocupar os patamares inferiores, estando sujeitos à oferta de ações precárias de saúde pública ou privada.

A quase totalidade das gestantes deste estudo procura o pré-natal, contudo, a proporção das que não o frequentaram, apesar de pequena, mostra pior acesso das mulheres de cor preta e parda. As proporções de mulheres que tiveram o número de consultas indicado pelo Ministério de Saúde (seis ou mais) foram maiores do que as observadas por (Leal, Gama e Cunha, 2005LEAL, M. do C.; GAMA, S. G. N. da; CUNHA, C. B. da. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 100-107, 2005.) para o Rio de Janeiro, no período de 1999 a 2001, mas continuam evidenciando piores indicadores para as mulheres negras.

Os resultados mostram que cerca de 25,3% das gestantes receberam atenção pré-natal inadequada ou parcialmente adequada, segundo o índice de Kotelchuck (adaptado). Para as mulheres de cor parda e preta, essa proporção é maior: 31,1% e 37,5%, respectivamente, diferença estatisticamente significativa.

No estudo Dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança - PNDS 2006 (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2009.), constatou-se que não há diferenças na assistência à gestação; mas evidenciou-se o desfavorecimento das mulheres negras nas consultas de puerpério e na indesejabilidade do último filho.

A anemia, a hipertensão arterial e o diabetes mellitus são patologias mais frequentes na gestação, e neste estudo apenas a presença da doença hipertensiva foi maior nas negras. Esse dado indica a necessidade de os serviços oferecerem orientações específicas para essas mulheres, inclusive esclarecendo sobre a possibilidade de desenvolver pré-eclampsia e eclampsia.

Com relação à assistência ao parto, vemos que mais mulheres pretas ou pardas entraram em trabalho de parto, e tiveram mais partos vaginais, o que pode ser interpretado como vantagem ou como desvantagem. Como vantagem porque as mulheres que entram em trabalho de parto espontâneo têm menos complicações do que aquelas que têm partos induzidos ou cesáreas, incluindo menos hemorragias e distocias funcionais, e seus bebês nascem com maior idade gestacional, fisiologicamente mais maduros para a transição fetal-neonatal, e por isso têm menos distúrbios respiratórios ou metabólicos e menos internações em cuidados intensivos (Enkin et al., 2005ENKIN, M. et al. Guia para atenção efetiva na gravidez e no parto. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.). Em contrapartida, entrar em trabalho de parto no Brasil é associado a enfrentar mais violência obstétrica, e também a ficar sem acompanhante (D'orsi et al., 2014D'ORSI, E. et al. Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil: estudo nacional de base hospitalar. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, p. S154-S168, 2014. Suplemento 1.).

Embora as mulheres mais ricas tendam a receber melhores cuidados de saúde, estudos indicam que em algumas circunstâncias as mulheres com menor renda e menos educação podem ter um cuidado materno mais seguro em alguns aspectos. Um estudo sobre equidade na assistência à maternidade em 2005 em São Paulo constatou que alguns indicadores de qualidade do atendimento, como testagem de HIV e sífilis, qualidade dos registros de pré-natal, taxa de parto vaginal e de alojamento conjunto com o recém-nascido, tendiam a ser melhores em pacientes de baixa renda e no setor público, embora as mulheres do grupo de renda mais alta tenham tido consultas médicas e tenham começado o pré-natal mais cedo (Almeida; Barros, 2005ALMEIDA, S. D. de M.; BARROS, M. B. de A. Equidade e atenção à saúde da gestante em Campinas (SP), Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 17, n. 1, p. 15-25, 2005. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1020-49892005000100003&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 23 abr. 2014.
http://www.scielosp.org/scielo.php?scrip...
).

O acesso à assistência à saúde materna que seja efetiva e segura pode salvar vidas e promover a saúde, mas o acesso desregulado a intervenções desnecessárias e potencialmente danosas também pode levar a resultados adversos. Estudos indicam que a tendência histórica da desigualdade - de as mulheres mais ricas e mais escolarizadas terem melhores resultados neonatais - pode ser invertida. De 1995 a 2007, as taxas mais elevadas de baixo peso estavam nas regiões mais desenvolvidas em comparação com as menos desenvolvidas (Silveira et al., 2008SILVEIRA, M. F. et al. Aumento da prematuridade no Brasil: revisão de estudos de base populacional. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 5, p. 957-964, 2008.). De 2000 a 2010, aumentou a proporção de nascimentos pré-termos no país (de 6,7% para 7,1%), com maior aumento relativo nas regiões Sul e Sudeste - as mais ricas e também com maiores taxas de cesárea. Esses números, inicial e final, estão subestimados, de acordo com as características da ficha Sinasc usada naquele período.

Da mesma forma que a prematuridade, observou-se discreto aumento da proporção de nascimentos com menos de 2.500 g. Novamente, verificam-se diferenças regionais, com menores percentuais nas regiões Norte e Nordeste. Como essas regiões têm piores indicadores sociodemográficos, mais uma vez, pode-se sugerir a influência do parto espontâneo (comparado ao parto iniciado pelo professional, seja ele uma indução ou uma cesárea) na duração da gravidez e nos desfechos associados, como a prematuridade e o baixo peso (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.). Nesta pesquisa, constatamos que as chances de ter um bebê de termo pleno são maiores entre as mulheres pretas e pardas, o que se configura como paradoxo perinatal (Diniz, 2009DINIZ, S. G. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 313-326, 2009.).

Isso é uma "inversão da disparidade esperada", ou seja, esperamos que gestantes em condições socioeconômicas mais favoráveis tenham resultados melhores, não piores. Quando essa inversão ocorre, pode-se considerar que a assistência talvez esteja contribuindo para mudar o desfecho, tendo um peso negativo (iatrogênico) que pode até anular as vantagens socioeconômicas. Em outras palavras, não é que a assistência às mulheres negras seja melhor, mas sim que a assistência às mulheres brancas (acima de 60% de cesárea, 43,9% sem entrar em trabalho de parto) seja mais associada a eventos adversos, como parto pré-termo e recém-nascido de baixo peso (Diniz; D'Oliveira; Lansky, 2012DINIZ, S. G.; D'OLIVEIRA, A. F. P. L.; LANSKY, S. Equity and women's health services for contraception, abortion and childbirth in Brazil. Reproductive Health Matters, London, v. 20, n. 40, p. 94-101, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23245414 >. Acesso em: 10 jul. 2013.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23245...
).

O SUS e seus gestores precisam levar em conta as dimensões étnico-raciais, em um contexto de transformações rápidas e contraditórias. (Heringer, 2002HERINGER, R. Desigualdades raciais no Brasil: síntese de indicadores e desafios no campo das políticas públicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, p. S57-S65, 2002. Suplemento 1. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000700007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 23 abr. 2014.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) evidencia as dificuldades de ascensão social da população negra e identifica as desvantagens primordiais criadas pela natureza da abolição, pela subsequente ausência de políticas públicas de inserção na educação, no trabalho e na sociedade; pela miséria material, isolamento social e restrição da participação política dos negros no Brasil (Heringer, 2002HERINGER, R. Desigualdades raciais no Brasil: síntese de indicadores e desafios no campo das políticas públicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, p. S57-S65, 2002. Suplemento 1. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000700007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 23 abr. 2014.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). A Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã, consagrou em seu artigo 5º o princípio da igualdade, assegurando que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (Brasil, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.). Esse destaque à igualdade entre todos deriva da ancestral comum das constituições modernas, que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que igualmente proclama que "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos" (ONU, 1948ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: ONU, 1948.). Do mesmo modo, as convenções internacionais de direitos humanos destacam a igualdade como direito fundamental da pessoa humana. Entretanto, Hannah Arendt salienta que a igualdade é um artifício conferido pela cidadania política, uma vez que os seres humanos nascem precipuamente desiguais. A fundamentação dos direitos humanos em uma ideia abstrata e universal de igualdade, que exclui qualquer particularidade e singularidade das pessoas do mundo real, contradiz a condição humana da pluralidade e, consequentemente, a dignidade humana (Arendt, 1989ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.).

Nesse sentido, o acesso aos direitos humanos não pode privilegiar a abordagem abstrata, em detrimento do olhar para a dificuldade do exercício desses direitos pelas mulheres pretas e pobres que buscam atendimento ao parto. É então que o princípio da igualdade deve derivar para a noção de equidade, em que justiça é tratar desigualmente os desiguais, para minorar essas diferenças. Os resultados mostram que, para os grupos discriminados, a inferioridade de qualidade e de oferta de serviços em saúde, e também a carência quanto à equidade, ainda se mantêm, correspondendo às disparidades de renda. Desse modo, é inviável o exercício de direitos humanos em plenitude, e inexistente a distribuição equitativa da justiça.

Para promover esses direitos, deve-se considerar que tem havido nos últimos anos a realização de diversos eventos que denunciam e discutem a saúde da população negra no geral, e em particular a atenção à mulher negra (seminários, congressos, cursos, entre outros), inclusive com a elaboração do Pacto Nacional de Redução da Mortalidade Materna e Neonatal - Atenção à Saúde das Mulheres Negras, em 2005. Atendendo à reivindicação do movimento negro, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência (Sepir), pela Medida Provisória nº 111, de 21 de março de 2003, convertida na Lei nº 10.678. Além disso, a discussão sobre as iniquidades sofridas pela população negra tem ocupado a grande mídia, com a adoção das cotas nas universidades e nos concursos públicos. A institucionalização dessas políticas contribui para a diminuição das disparidades raciais mais amplas e para mais equidade, o que pode ter efeitos positivos na saúde de toda a população (Wilkinson; Pickett, 2009WILKINSON, R.; PICKETT, K. The spirit level: why greater equality makes societies stronger. New York: Bloomsbury Press, 2009.).

Conclusões

Ainda que importantes disparidades persistam, na última década houve alguma redução das diferenças sociodemográficas, com diminuição das disparidades raciais. Houve também uma redução relevante quanto às diferenças de acesso, com um aumento do número de consultas e do acesso aos exames; porém, as mulheres negras ainda têm menos consultas de pré-natal consideradas adequadas. Persistem diferenças importantes de acesso e da qualidade da assistência oferecida às mulheres negras, apontando a necessidade de que gestores e profissionais de saúde desenvolvam estratégias que garantam a equidade do cuidado.

Quanto à assistência ao parto, temos um quadro contraditório, com mais mulheres pretas ou pardas que entraram em trabalho de parto e que tiveram partos vaginais (considerados desfechos mais saudáveis), porém, tiveram menos acompanhantes e ficaram mais vulneráveis à violência na assistência. Diferentemente de estudos anteriores, não encontramos diferenças estatisticamente significativas quanto à peregrinação em busca de uma vaga para o parto, near miss do recém-nascido; near miss materno; chance de partos sem intervenções (parto natural), anestesia, manobra de Kristeller, posição da mulher durante o parto e episiotomia.

Isso pode indicar uma mudança em termos de maior homogeneidade na assistência, porém, em patamares inadequados, uma vez que no Brasil as boas práticas na assistência ao parto, conforme preconizadas internacionalmente, são a exceção, sendo a regra o uso desregulado de intervenções. Pode-se dizer que, em grande medida, temos uma democratização do sobretratamento (overtreatment), com uma expansão do uso não regulado da tecnologia para um conjunto mais amplo da população.

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  • 1
    Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Técnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pela bolsa de pesquisa de C.S. G. Diniz processo 2011/18534.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2014
  • Aceito
    04 Jul 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br