Água e saúde no município de Igarapé-Açu, Pará11Financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Resumo

Este artigo visa analisar e compreender a relação entre água e saúde em comunidades rurais situadas na microbacia do igarapé Cumaru, município de Igarapé-Açu (PA), nordeste paraense. São avaliados a captação e o tratamento de água para o consumo humano, considerando as práticas de esgoto sanitário realizadas cotidianamente pela população rural dessa microbacia, visto que têm implicação direta na saúde da população local. Este trabalho baseia-se em pesquisa de campo com uma abordagem quali-quantitativa. Utilizou-se questionário fechado para o levantamento das fontes de captação, saneamento rural e usos de insumos agrícolas. Foram consideradas observações feitas por agricultores familiares da região ao focar o funcionamento do estabelecimento agrícola, a fim de observar de diversos ângulos a relação entre água e saúde no seu entendimento. Observou-se que a vulnerabilidade das fontes de água acessadas pela população é um fator que contribui para a contaminação das fontes, caracterizando consequentemente uma ameaça à saúde da população rural. Entretanto, nota-se a percepção da população quanto às fontes de água mais profundas, como poços tubulares, sendo estes prioritários para captação de água para ingestão.

Palavras-chave:
Recursos Hídricos; Saneamento Básico; Agricultura Familiar

Introdução

A Região Amazônica22Segundo o IBGE, a Região Amazônica detém a maior floresta tropical do planeta e abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e uma parte do Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. do Brasil é privilegiada ao se tratar de água. Rebouças (2004REBOUÇAS, A. Uso inteligente da água. São Paulo: Escrituras, 2004.) assinala que o Brasil figura na classificação de país rico em água, e que, desproporcionalmente à distribuição populacional, a Região Hidrográfica do Amazonas conta com 73% do total de vazões de rios brasileiros. Entretanto, a abundância do recurso nem sempre está relacionada à qualidade da água, e tal fato decorre da precariedade de abastecimento público e esgoto sanitário, uma vez que determinadas áreas não dispõem desse serviço, como grande parte do meio rural. Áreas urbanas de grandes centros como Belém se ressentem da precariedade do saneamento básico (Trata Brasil, 2012TRATA BRASIL. Belém entre os dez piores índices de saneamento básico do Brasil. 6 fev. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/belem-entre-os-dez-piores-indices-de-saneamento-basico-do-brasil-nied-formacao-online >. Acesso em: 1º set. 2015.
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).

No Brasil apenas 32,8% dos domicílios nas áreas rurais estão ligados a redes de abastecimento de água com ou sem canalização interna (Brasil, 2011bBRASIL. O desafio de universalizar o Saneamento Rural. FUNASA Notícias, Brasília, DF, dez. 2011b. Disponível em: <Disponível em: http://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/blt_san_rural.pdf >. Acesso em: 16 ago. 2015.
http://www.funasa.gov.br/site/wp-content...
). Na Região Amazônica como um todo, menos de 20% dos domicílios estão conectados a redes de esgotos. Um provável efeito disso é que, de acordo com estimativas, grande parte das fontes de captação de água para consumo humano está contaminada com poluentes de diversos tipos, de fezes humanas a metais pesados (Couto; Castro; Marin, 2002COUTO, R. C.; CASTRO, E. R.; MARIN, R. A. (Org.). Saúde, trabalho e meio ambiente: políticas públicas na Amazônia. Belém: NAEA, 2002.; Lisboa, 2002 apud Silva, 2006SILVA, H. P. A saúde humana e a Amazônia no século XXI: reflexões sobre os objetivos do milênio. Novos Cadernos NAEA, v. 9, n. 1, p. 77-94, 2006.).

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (IBGE, 2012IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: 2012. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. v. 32.), 67,2% da população rural captam água de chafarizes e poços protegidos ou não, em cursos d’água sem nenhum tratamento e em outras fontes geralmente insalubres. Na Região Amazônica, 17,5% dos domicílios rurais possuem coleta de esgoto ligada à rede geral e 25,3% possuem fossa séptica (ligada ou não à rede coletora). Fossas rudimentares e outras soluções são adotadas por 48,6% e 8,0% dos domicílios rurais, respectivamente. Destaca-se que essas soluções são inadequadas para o destino dos dejetos, como as já citadas fossas rudimentares, valas, despejo do esgoto in natura diretamente nos cursos d’água (Brasil, 2011bBRASIL. O desafio de universalizar o Saneamento Rural. FUNASA Notícias, Brasília, DF, dez. 2011b. Disponível em: <Disponível em: http://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/blt_san_rural.pdf >. Acesso em: 16 ago. 2015.
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).

O cenário caótico de esgoto sanitário33Tratamento dos resíduos sólidos e líquidos. e abastecimento público no meio rural reflete os potenciais riscos à saúde da população. No meio rural é comum encontrar mulheres que passam várias horas por dia transportando água para o consumo de suas famílias. Apesar do grande esforço dessas mulheres, a água obtida nem sempre é própria para o consumo. As condições de transporte e de armazenamento dessa água afetam sua qualidade, oferecendo riscos à saúde da população (Brasil, 2011bBRASIL. O desafio de universalizar o Saneamento Rural. FUNASA Notícias, Brasília, DF, dez. 2011b. Disponível em: <Disponível em: http://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/blt_san_rural.pdf >. Acesso em: 16 ago. 2015.
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).

Coincidentemente, na região Amazônica do país se constatam as maiores proporções para gastos com internações por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (Trata Brasil, 2010aTRATA BRASIL. Esgotamento sanitário inadequado e impactos na saúde da população. 2010a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/templates/trata_brasil/files/esgotamento.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2015.
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). Os efeitos do saneamento sobre a saúde e a qualidade de vida da população são extensos, o que acarreta em um custo maior para os órgãos municipais, estaduais e federais com internações, medicamentos e assistência médica para a população.

O instituto Trata Brasil, ao analisar a incidência de infecções gastrointestinais no país em municípios com mais de 300 mil habitantes e faixas etárias de incidência dessas doenças, considerando os dados do DATASUS, observou que em 2009 foram notificadas mais de 462 mil internações por infecções gastrointestinais em todo o país. Cerca de 210 mil foram classificadas pelos médicos como “diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível”, pouco mais de 10 mil casos como “amebíase, shiguelose ou cólera” e 246 mil como “outras doenças infecciosas intestinais” (Trata Brasil, 2010aTRATA BRASIL. Esgotamento sanitário inadequado e impactos na saúde da população. 2010a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/templates/trata_brasil/files/esgotamento.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2015.
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).

Destaca-se que a maior parte das internações se deu nas regiões Amazônica e Nordeste, coincidentemente as regiões de menor acesso ao esgoto sanitário. Na região Amazônica foram registrados 17% das internações, uma participação extremamente elevada, considerando a parcela dos brasileiros que habita na região. A taxa de incidência é de 5,25 casos por mil habitantes no ano, um valor 2,2 vezes a média nacional e 6,3 vezes a incidência na região Sudeste. Vale destacar que na Amazônia está o défice relativo de saneamento mais intenso do país, em que 88% das moradias não têm esgoto coletado (Trata Brasil, 2010aTRATA BRASIL. Esgotamento sanitário inadequado e impactos na saúde da população. 2010a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/templates/trata_brasil/files/esgotamento.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2015.
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).

A carência de água tratada e esgoto sanitário no meio rural colocam em risco não só a saúde dos agricultores, mas a população em geral, pois do meio rural provêm parte dos alimentos. A agricultura familiar constituída por pequenos e médios produtores representa a maior parte dos produtores rurais do Brasil, sendo responsável por 60% da produção de produtos básicos da dieta dos brasileiros como arroz, feijão, milho, hortaliças, mandioca e outros.

A procedência da água utilizada na agricultura para irrigação e higienização dos alimentos é preocupante, visto que doenças como amebíase, giardíase, gastroenterite, febre tifoide, hepatite infecciosa, cólera e verminoses são contraídas pela ingestão de alimentos e água contaminada, principalmente pela ausência de esgoto sanitário (Trata Brasil, 2010aTRATA BRASIL. Esgotamento sanitário inadequado e impactos na saúde da população. 2010a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/templates/trata_brasil/files/esgotamento.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2015.
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).

Os dados oficiais e a literatura disponível privilegiam os espaços urbanos, generalizando ou extrapolando as informações para as zonas rurais, presumindo serem piores os índices, uma vez que o tratamento formal com cloro é pouco utilizado, além de o tratamento da água, se ocorrer, nem sempre obedecer aos padrões estabelecidos. Nesse contexto, objetivou-se analisar e compreender a relação entre água e saúde em comunidades rurais presentes na Microbacia do Igarapé Cumaru, município de Igarapé-Açu (PA), nordeste paraense. As comunidades são constituídas por agricultores familiares que produzem frutas, verduras e hortaliças e abastecem os mercados e feiras do município, além das feiras da capital Belém. No entanto, problemas relacionados à qualidade da água nessa microbacia têm sido detectados por vários autores e atribuídos ao manejo agrícola, incluindo o uso do fogo para preparo de área de plantio e o uso de agroquímicos em geral (Costa; Figueiredo; Silva, 2008COSTA, F. F.; FIGUEIREDO, R. O.; SILVA, M. G. M. Efeitos do uso da terra na biogeoquímica fluvial da microbacia do igarapé Cumaru, Nordeste do Pará. In: SEMINÁRIO SOBRE AGRICULTURA SEM QUEIMA COM BASE NO MANEJO DE CAPOEIRA, 2., 2008, Belém. Anais… Belém: Embrapa Amazônia Oriental, 2008.).

O interesse em estudar as comunidades Cumaru e São José se deu pelo fato de se situarem nessa microbacia, onde problemas na qualidade da água foram detectados, e pelas condições estruturais que ambas possuem, como a ausência de abastecimento público, sendo necessária a captação de água em nascentes, igarapés e poços rasos, além da ausência de esgoto sanitário, em que predominam estruturas precárias de fossa negra nos estabelecimentos agrícolas.

Desta forma, pretendeu-se descrever como a população rural está captando e tratando a água para o consumo humano, considerando as práticas de esgoto sanitário realizadas no cotidiano pela população presente nessa microbacia, visto que essas práticas têm implicação na saúde da população local. Essa descrição traz, subjacente, a pergunta sobre o grau de qualidade da água e que medidas poderiam ser adotadas para diminuir ou controlar o seu grau de morbidade.

Procedimento Metodológico

Caracterização da Área de Estudo

O município de Igarapé-Açu localiza-se no nordeste do estado do Pará, região que abriga 49 municípios, distribuídos em cinco microrregiões: Bragantina, Cametá, Guamá, Salgado e Tomé-Açu. Igarapé-Açu pertence à Microrregião Bragantina, e dista 110 km da capital do estado do Pará, delimitado ao norte pelos municípios de Maracanã e Marapanim; ao sul pelo município de Santa Maria do Pará; a leste pelo município de Nova Timboteua e a oeste pelos municípios de Castanhal e São Francisco do Pará44IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2014..

O nordeste paraense é caracterizado como a área de colonização mais antiga da Amazônia. Esse fato histórico contribuiu para uma intensa exploração dos recursos naturais, através do extrativismo vegetal (madeira em tora, lenha e carvão) e da agropecuária, com o cultivo de culturas de subsistência, frutíferas, malva, pimenta-do-reino, coco, dendê, criação de gado bovino e bubalino (Baena; Falesi; Dutra, 1998BAENA, A. R. C.; FALESI, I. C.; DUTRA, S. Características físico-químicas do solo em diferentes agroecossistemas da região Bragantina do Nordeste Paraense. Belém: Embrapa CPATU, 1998.).

De acordo com o IBGE, em 2010, o município de Igarapé-Açu possuía 35.887 mil habitantes, estando 12.983 na zona rural do município. Detentor de uma área de 786 km² é o 47º município do estado do Pará em extensão territorial e apresenta uma densidade demográfica de 39,12 hab./km55IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2014..

O município de Igarapé-Açu surgiu com a criação da Estrada de Ferro de Bragança, iniciada em 24 de junho de 1883. Para Freitas (2005FREITAS, A. M. Memória de Igarapé-Açu. Belém: Supercores, 2005.), a Estrada de Ferro de Bragança foi fundamental no processo de assentamento de colonos no nordeste do Pará, sendo criado para Igarapé-Açu um padrão de ocupação expansionista.

Igarapé-Açu é uma palavra de origem tupi, e significa “igarapé grande” ou “caminho das canoas”. Existe ainda outra tradução enraizada no imaginário sobre as águas como caminho do senhor ou da senhora das águas (Freitas, 2005FREITAS, A. M. Memória de Igarapé-Açu. Belém: Supercores, 2005.). O nome dado ao município está relacionado ao curso d’água chamado Igarapé-Açu, afluente direito do rio Marapanim, que recebe pela margem direita igarapés de maior importância no município, como Pau Cheiroso, Do Colono e Santa Rita.

O município é delimitado topograficamente por uma bacia hidrográfica drenada pelo rio Maracanã, cuja extensão é de cerca de 50 km (Vanzin, 2014VANZIN, M. M. Avaliação do uso sustentável da água na produção agrícola: impacto da inserção de sistemas agroflorestais em unidades produtivas familiares do Nordeste Paraense. 2014. Dissertação (Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.), receptora de várias microbacias, dentre as quais a microbacia do Igarapé Cumaru, lócus do estudo.

A Microbacia Hidrográfica do Igarapé Cumaru apresenta uma área de 4.127,34 ha. Localiza-se entre as coordenadas geográficas 1° 12’ 00” a 1° 16’ 00” de latitude sul e 47° 32’ 00” a 47° 34’ 00” de longitude a oeste do meridiano de Greenwich (Da Silva et al., 2009DA SILVA, B. N. R. et al. Solos das mesobacias hidrográficas dos igarapés São João e Cumaru, municípios de Marapanim e igarapé Açu. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIA DO SOLO, 32., 2009, Fortaleza. Anais… Fortaleza: SBCS, 2009.). Ressalta-se que a Microbacia do Igarapé Cumaru já foi palco de estudos internacionais como o projeto Studies of Human Impacts on Forests and Floodplains in the Tropics (SHIFT), entre outros, e que mais recentemente, desde 2013, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e instituições parceiras têm desenvolvido nessa microbacia pesquisas relacionadas ao projeto “Monitoramento e caracterização quali-quantitativa dos recursos hídricos e sua relação com o uso da terra em bacias experimentais nos diferentes biomas brasileiros”.

As pesquisas já desenvolvidas na microbacia foram de suma importância para o conhecimento de seus recursos hídricos e desenvolvimento de práticas agrícolas no âmbito da agricultura familiar, entretanto, a temática “saúde rural” não foi abordada. Este estudo possibilitará o conhecimento sobre a sanidade rural e pretende auxiliar o poder público na tomada de decisão para assistir de forma concisa os agricultores.

Ponto da Coleta

Esta pesquisa foi desenvolvida tendo por base levantamentos bibliográfico, documental e observação participante em comunidades rurais localizadas na microbacia do Igarapé Cumaru no Município de Igarapé-Açu (PA). Essas comunidades são denominadas como Cumaru e São José, sendo sua localização apresentada na Figura 1.

Figura 1
Localização das comunidades Cumaru e São José na Microbacia do Igarapé Cumaru

As comunidades estudadas são diferenciadas pelo número de moradores e extensão territorial, sendo a do Cumaru a mais extensa e populosa, chegando a abrigar 105 famílias distribuídas em 12 km de extensão. A comunidade São José abriga 32 famílias, de acordo com os levantamentos realizados com os agentes comunitários de saúde (ACS).

Inseriu-se no estudo o mínimo de 50% da população de cada comunidade e, para isso, aplicou-se questionário fechado contendo 22 perguntas, com a finalidade de coletar informações sobre a estrutura dos estabelecimentos agrícolas no que concerne ao saneamento rural. Realizaram-se entrevistas não diretivas (Michelat, 1987MICHELAT, G. Sobre a utilização de entrevista não diretiva em sociologia. In: THIOLENT, M. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 5. ed. São Paulo: Polis, 1987. p. 191-212.) com atores considerados chave para este estudo, como médico, enfermeiro, diretora da vigilância sanitária, agentes comunitários de saúde, e outros atores locais. Como forma de preservar a identidade dos entrevistados, estes são identificados no texto por numeração ou ocupações de trabalho. Escolheram-se as concentrações de residências para realizar as entrevistas, visto que por estarem aglomeradas são, em princípio, mais propícias à contaminação das fontes de água.

Seguiu-se a estratégia adotada por Galizoni (2005GALIZONI, F. M. Águas da vida: população rural, cultura e água em Minas Gerais. 2005. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005.), em que o método de percorrer o estabelecimento agrícola junto dos membros da família propiciaria a observação por diversos ângulos dos vários usos da água. Considerou-se que assim seria oportuno conhecer as fontes de água presentes no estabelecimento, as estruturas físicas que as rodeiam e a percepção dos usuários sobre essas fontes.

Optou-se por observar a estrutura dos estabelecimentos agrícolas, a fim de compreender como as famílias estão neles distribuídas, dado que foi notória a concentração de residências em um mesmo estabelecimento agrícola. Segundo dados dos agentes comunitários de saúde, 43% dos agricultores da comunidade São José são Parceiros/Meeiros (P/M) nas condições de posse da terra.

Na comunidade Cumaru, 74% dos agricultores são P/M na posse da terra. A porcentagem expressiva de agricultores que dividem o mesmo estabelecimento agrícola se dá em virtude do tamanho das famílias, normalmente com grau de proximidade parental de 1º e 2º grau, sendo comum encontrar casais de primos ou outro grau de parentesco que constituíram família, permanecendo no estabelecimento agrícola da família.

Apesar dos estabelecimentos agrícolas se caracterizarem pela presença de várias casas, cada morador possui um determinado espaço no lote para o cultivo da mandioca (Manihot esculenta Crantz,) ou outras culturas. Apesar de haver a delimitação nos espaços de plantio e moradia, quando se trata de água já não há limitação de pessoas para o uso do recurso. As fontes de água como igarapés, nascentes e poços são de usos comuns às famílias, seja para a agricultura, para animais, atividades domésticas ou para o consumo da família.

O compartilhamento das fontes de água ocorre sem restrição às famílias. Entretanto, há diferença na orientação para o compartilhamento de água entre as comunidades estudadas, pois na comunidade São José as fontes são liberadas para uso com a seguinte condição: Não pode haver briga por água.

Segundo a agricultora (entrevistada 1), uma das primeiras moradoras da comunidade São José, ao se compartilhar o poço é dada a seguinte orientação:

Vocês podem tirar a quantidade de água que quiser, só não quero que bote “seboseira” no poço. Meu pai dizia [que] quem sonegava água morria com sede! Pode tirar água, dou de todo gosto, só não quero que reclame para o poço não secar, pois dizem que poço que reclama é danado pra secar. Deus me deu água, pois então, eu dou pra todo mundo. (Entrevistada 1)

A entrevistada 1 relata que hoje não se tem muito problema com água, pois os moradores pagaram para construir poços tubulares, e através de encanações a água é compartilhada com outras residências, mas já houve tempo em que todos se serviam apenas do igarapé à margem da estrada. De acordo com o Gráfico 1, na comunidade São José 60% dos entrevistados disseram compartilhar as fontes de água com no máximo cinco famílias. Os 33% que disseram não compartilhar água são os moradores que estão mais isolados das demais famílias, não havendo outras residências no estabelecimento agrícola.

Gráfico 1
Compartilhamento de água nas comunidades São José e Cumaru

Na comunidade Cumaru, como mostra o Gráfico 1, do total de entrevistados, 50% afirmaram compartilhar as fontes de água com no máximo cinco famílias, mas há fontes que são compartilhadas por um número maior de famílias, ou seja, 13% dos agricultores afirmaram compartilhar água com no máximo dez famílias, enquanto os que não compartilham (37%) normalmente dispõem apenas de poços boca larga e se encontram na condição de caseiros em propriedades privadas ou isoladamente no estabelecimento agrícola.

Chama-se a atenção para as atitudes dos agricultores na comunidade São José que recebem água de algum vizinho. Estes se disseram preocupados com o aumento na conta de energia do morador que cede água. Procura-se regular o seu uso, priorizando o uso da água apenas nas atividades domésticas, sendo que para lavar roupas usa-se o igarapé, pois essa atividade exige mais água e, portanto, mais energia. Tal fato está associado às fontes de água que são compartilhadas, pois na comunidade São José a fonte compartilhada em destaque são os poços tubulares, enquanto na comunidade de Cumaru, a fonte compartilhada em destaque são os poços boca larga e igarapés.

O compartilhamento das fontes de água se dá em ambas as comunidades, visto que não dispõem de abastecimento público desse bem, sendo responsabilidade dos agricultores a captação, armazenamento e tratamento da água para o consumo e demais atividades.

Os aglomerados de residências e o acesso livre às fontes de água nas comunidades são fatores que contribuem para a contaminação das fontes, e isso ocorre por conta da precariedade de saneamento básico, da ausência de abastecimento público e esgoto sanitário.

Na ausência de sistema de esgoto sanitário, os agricultores improvisam estruturas precárias, como as fossas negras, que consistem em buracos escavados com três a quatro metros de profundidade por um ou dois de largura e/ou de comprimento, sem proteção interna, o que provoca preocupação, visto que a população rural se abastece de poços rasos com profundidades que variam de seis a doze metros em solos em geral arenosos. Segundo o estudo realizado por Lima, Souza e Figueiredo (2004LIMA, L. M.; SOUZA, E. L.; FIGUEIREDO, R. O. Análise do risco de contaminação das águas subterrâneas por agrotóxicos na microbacia hidrográfica do igarapé Cumaru - Município de Igarapé-Açu (PA). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ÁGUAS SUBTERRÂNEAS, 13., 2004, Cuiabá. ISSN 2179-9784. Cuiabá: ABAS, 2004.), na Microbacia Hidrográfica do Igarapé Cumaru, a população local se abastece por meio de poços rasos e também das águas superficiais, o que torna a fonte de água vulnerável a contaminações. Nesse aspecto, Pessoa et al. (2010PESSOA, M. C. Y. et al. Avaliação do potencial de riscos de contaminação de águas superficiais e subterrâneas por agrotóxicos aplicados na cultura do maracujá-amarelo na microbacia hidrográfica do igarapé Cumaru, estado do Pará. In: GOMES, M. A. F; PESSOA, M. C. P. Y. (Org.). Planejamento ambiental do espaço rural com ênfase em microbacias hidrográficas: manejo de recursos hídricos, ferramentas computacionais e educação ambiental. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2010. p. 201-225.) destacam que em cultivo de maracujá na agricultura familiar nessa microbacia o risco de contaminação das águas subterrâneas por alguns agrotóxicos é elevado, conforme aplicação de modelo matemático.

Comparando os tipos de sistema de esgoto sanitário adotado pelas comunidades, percebe-se que há a predominância das fossas negras. De acordo com o Gráfico 2, 67% dos agricultores da comunidade São José utilizam fossas negras. É provável que haja infiltração dos dejetos, contaminando os lençóis subterrâneos. Notou-se que os 33% que disseram adotar as fossas sépticas ainda resistem à inovação, mantendo a fossa negra no estabelecimento.

Gráfico 2
Esgoto sanitário nas comunidades São José e Cumaru

O mesmo ocorre na comunidade do Cumaru, onde 64% dos entrevistados afirmaram utilizar fossa negra para esgoto sanitário, e os 30% que utilizam fossa séptica também mantém a fossa negra no estabelecimento.

Aqui a gente tem fossa [séptica], o banheiro fica dentro de casa, a fossa fica lá naquela cerca [a 20 m da residência] […]! Mas e aquela casinha perto da cerca? Ah é o sanitário [fossa negra], esse é novo, aqui a gente não fica sem, a gente muda, vai tapando e construindo outro […]. Você tem preferência? Sim, a gente da roça prefere esse [fossa negra]. (Entrevistado 2).

Em ambas as comunidades, as fossas negras não são vistas como uma ameaça de contaminação dos mananciais; entretanto, se presume que a vulnerabilidade das fontes de água à contaminação por essas vias é uma ameaça real à saúde da população local.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 80% dos casos de doenças diarreicas são decorrentes do abastecimento de água insalubre, de esgoto sanitário inadequado e de higiene deficiente. A melhoria do abastecimento de água reduz entre 6% a 21% a sua morbidade; a melhoria do esgoto sanitário reduz a sua mortalidade em 32%; as medidas de higiene podem reduzir o número de casos em até 45% e, por fim, a melhoria da qualidade da água para o consumo, por meio de seu tratamento doméstico, pode reduzir de 35% a 39% os episódios dessa doença (Trata Brasil, 2010bTRATA BRASIL. Benefícios econômicos da expansão do saneamento brasileiro. 2010b. Disponível em: <Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/cms/files/trata_fgv.pdf >. Acesso em: 16 ago. 2016.
http://www.tratabrasil.org.br/novo_site/...
).

A incidência de doenças de veiculação hídrica está relacionada à ausência de tratamento que é destinado à água para ingestão, que por sua vez tem relação com a percepção da qualidade da água por seus usuários. Tal fato causa preocupação, visto que os agricultores das comunidades estudadas mostraram desconhecer a potabilidade do recurso, associando qualidade e potabilidade da água apenas aos aspectos de cor, cheiro e gosto. Para o Ministério da Saúde, a água potável deve atender a parâmetros microbiológicos, físicos, químicos e radioativos (Brasil, 2011aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.914, de 12 de dezembro de 2011. Dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 dez. 2011a. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2914_12_12_2011.html >. Acesso em: 10 ago. 2015.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

De acordo com o Gráfico 3, na comunidade São José 67% dos agricultores afirmaram que a água para beber é de boa qualidade, enquanto 27% afirmaram que a água que bebem não é adequada para o consumo, porém não há alternativas. 6% dos agricultores disseram que apenas no verão66Vivemos em um estado cortado pela linha do Equador, portanto com terras no hemisfério Norte (menor parte) e no hemisfério Sul. Clima equatorial com dois períodos bem distintos durante o ano, um chuvoso iniciando em dezembro e outro seco com início em junho. a água é apropriada para o consumo. A percepção dos agricultores sobre a qualidade da água para ingestão está associada a aspectos como cor, cheiro e gosto, além da profundidade do poço onde se capta água.

Gráfico 3
Qualidade da água nas comunidades São José e Cumaru

Para exemplificar, podem-se usar os 6% de entrevistados que disseram ser no verão a água apropriada para o consumo. Esses captam água de nascentes ou poços rasos no verão. Durante o inverno, as nascentes ou poços rasos são invadidos pelas enxurradas provocadas pela chuva, o que condiciona o horário para captar água, normalmente antes da chuva. Durante a entrevista aberta, foi unânime a associação cor, cheiro e gosto à qualidade da água.

A entrevistada 3 (comunidade São José), que capta água para beber de um poço boca larga de seis metros de profundidade, descreve com orgulho a água que bebe:

Agora estão proibindo a gente de beber água do igarapé, mas a gente também não precisa beber água de lá, aqui tem poço e a água é bem branquinha. Meu poço nunca sujou, é uma água boa, limpa e nunca faltou. (Entrevistada 3).

Por esta última frase deduz-se que a perenidade do poço é outro elemento associado à qualidade da fonte.

Na comunidade Cumaru, 72% dos agricultores afirmaram que a água é de boa qualidade para beber, associando aos aspectos cor, cheiro e gosto. 2% afirmaram que a água não é de boa qualidade, apresentando gosto de raiz ou ferrugem e os 26% que disseram ser parcial a qualidade da água, associaram a qualidade ao período seco e chuvoso, uma vez que esses períodos podem alterar a cor, cheiro e gosto da água.

Diferente da comunidade São José, o fator profundidade da fonte de água não está associado à qualidade da água. Tal fato tem relação com as fontes onde é captada água para o consumo, dado que na comunidade São José 53% dos agricultores captam água de poços tubulares, pois acreditam que quanto maior a profundidade do poço, mais segura será a água para beber. Já os 27% que captam água para beber em poço boca larga construíram proteções laterais e superficiais para impedir a entrada de insetos e outros vetores de contaminação, mas afirmaram que gostariam de receber água tratada em suas residências, assim como os 20% que captam água em nascentes.

Os agricultores que captam água em nascentes estão satisfeitos com a sua qualidade, mas a distância da fonte à residência é o fator que motiva o desejo em receber água de abastecimento público.

Os dados revelados no Gráfico 4, se comparados à comunidade São José, mostram que a população da comunidade Cumaru tem preferência por poços boca larga, sendo 46% os entrevistados que afirmaram captar água em poço desse calibre. Esses poços, segundo dados das entrevistas abertas, têm em média de seis a doze metros de profundidade. Chama-se atenção para os 22% que captam água de nascente, visto que as fontes de água rasas e de livre acesso estão mais suscetíveis à contaminação do que as profundas e de acesso restrito.

Gráfico 4
Captação de água para beber nas comunidades São José e Cumaru

As contaminações ocorrem não só nas fontes de água, mas na sua captação e armazenamento. Durante a observação de campo, foi possível acompanhar a rotina dos agricultores que captam água em nascentes e notar que as mulheres criam estratégias para distribuir o peso das garrafas com água e garantir mais garrafas cheias em uma só “viagem77Termo utilizado pela entrevistada para indicar o deslocamento até a nascente.” à nascente.

A Figura 2 mostra o procedimento da captação e armazenamento de água para beber e cozinhar: garrafas plásticas de dois litros são preenchidas com água, apenas coada com tecido para retirada do material sólido em suspensão e posteriormente são alocadas na geladeira. Destaca-se a concepção de tratamento que os agricultores possuem, pois todos os entrevistados afirmaram tratar a água retirando o material em suspensão com auxílio de um coador, normalmente um pedaço de tecido. Há dois campos epistemológicos que conflitam: de um lado, a concepção e conhecimento dos agricultores, e do outro, o que preveem as normas do Ministério da Saúde, em que se recomenda a presença de cloro residual livre em qualquer ponto do sistema de abastecimento, estipulando limites para que o teor máximo seja de 2,0 mg/L (Brasil, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.469, de 29 de dezembro de 2000. Estabelece os procedimentos e responsabilidades relativos ao controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2001.).

Figura 2
Agricultora captando água da nascente

Apesar das recomendações do Ministério da Saúde, em que é prevista a presença do cloro residual em pontos de abastecimento, como seria atendida a população que não dispõe de abastecimento público, como as comunidades estudadas? O que tem sido oferecido e orientado aos agricultores é o uso do produto químico hipoclorito de sódio, repassado pela Secretaria de Saúde aos postos de saúde da zona rural e distribuídos pelos agentes comunitários de saúde aos agricultores.

Segundo a enfermeira responsável pelas comunidades Cumaru e São José, chega-se a receber mensalmente de 5 a 6 caixas contendo 50 frascos de hipoclorito de sódio, que são distribuídos durante as visitas diárias dos ACS e nas consultas médicas, realizadas mensalmente nas comunidades.

Os ACS afirmam que a população se recusa a utilizar esse método de tratamento, justificando que o mesmo altera o gosto e cheiro da água. Durante a entrevista aberta também se constatou a resistência dos agricultores em utilizar o produto químico hipoclorito de sódio.

Segundo a entrevistada 4 (comunidade do Cumaru):

Tem gente que quando recebe hipoclorito em casa, usa para lavar a casa, roupa e outros, pois se usado na água, o marido e filhos reclamam.

Outro dia enchi o pote com água para beber e coloquei algumas gotas, quando meu marido chegou, derramou toda a água. (Entrevistada 4)

Diante da rejeição em utilizar o hipoclorito de sódio, o que se tem percebido é a captação direta nas fontes de água, havendo apenas a retirada do material em suspensão. Importante reparar que os agricultores que captam água em nascente, por estar normalmente distante da residência, criam estratégias para melhorar o transporte de uma porção maior de água por meio de instrumentos como carro de mão, bicicletas e outros (Figura 3).

Figura 3
Instrumento utilizado para transportar água

A entrevistada 5 afirmou ir à nascente pelo menos duas vezes ao dia. Percorrendo 500 metros da residência à nascente, chega a transportar doze garrafas de dois litros e dois baldes de vinte litros, e potes reutilizados de margarina em que armazenam água para cozinhar. A fonte de captação (Figura 2) é utilizada por cinco famílias, distribuídas no estabelecimento agrícola, todas a utilizando apenas para captar água para beber e cozinhar.

Aqui moram cinco famílias, todos se servem da nascente e do igarapé, mas no verão a gente tem só a nascente, todo mundo é consciente que não pode lavar roupa lá, é só pra beber, daí um dia se arruma toda a “mulherada” e vai pra ponte do Cumaru lavar roupa. A gente que sempre limpa a nascente, a gente acorda cedo e vai pra lá, tira folha, galhos e toda a sujeira, mas isso tem que ser cedo, para no final da tarde a gente ter água na nascente. (Entrevistada 5, comunidade São José).

Na comunidade Cumaru, 22% dos agricultores bebem água de nascente, e se mostraram confiantes quanto à qualidade da água, mesmo sendo esta de livre acesso a animais silvestres e outros. Além disso, não reclamaram da distância da fonte até a residência. A agricultora (entrevistada 6) afirmou estar habituada a esta tarefa, indo pelo menos quatro vezes por dia à nascente para captar água para cozinhar e beber (Figura 4).

Figura 4
Agricultora transportando água para residência

Por ser a captação, transporte e distribuição da água de responsabilidade da população, perceberam-se alguns fatos preocupantes quanto ao transporte e armazenamento da água. Para exemplificar, pode-se citar a reutilização de recipientes de origem não recomendável, como embalagens de fertilizantes, tintas e outros, como mostra a Figura 5.

Figura 5
Armazenamento de água para cozinhar e beber na comunidade Cumaru

Associado ao uso de recipientes inapropriados para a reutilização está a ausência ou o tratamento precário e inadequado da água para ingestão. Quando perguntado sobre qual tipo de tratamento era dispensado à água para ingestão, obteve-se que 100% dos entrevistados da comunidade São José não fazem qualquer tratamento à água para beber. Esse dado expressivo revela a percepção de qualidade e potabilidade que os agricultores possuem sobre a água para ingestão. As águas de cor clara (branca) são as apropriadas para o consumo, e mesmo havendo foco de poluição próximo à fonte de captação da água, os agricultores não associam ao risco de contaminação, o mesmo ocorrendo com sintomas de doenças gastrointestinais que não vinculam à ingestão de água contaminada.

Gráfico 5
Tratamento à água para beber nas comunidades São José e Cumaru

Na comunidade Cumaru foram identificadas algumas formas de tratamento da água, sendo 20% dos entrevistados os que afirmaram utilizar o cloro como medida de tratamento. Os 4% que disseram ferver a água para beber estavam com crianças recém-nascidas em casa e por isso adotaram essa medida de prevenção a doenças de vinculação hídrica. Mesmo identificando algumas formas de tratamento, ainda é expressiva a porcentagem de pessoas que dispensam qualquer tratamento à água para beber, correspondendo a 72% dos entrevistados.

A ausência de tratamento da água para ingestão tem acarretado o aparecimento de doenças como giardíase, amebíase e verminoses. Segundo a enfermeira responsável pelas comunidades, o aparecimento de sintomas como dores no abdômen e diarreias ocorrem com mais frequência no período chuvoso, de janeiro a março, visto que nesse período as fontes de água como nascentes e poços rasos são invadidas por água da chuva.

Segundo Amaral et al. (2003)AMARAL, L. A. et al. Água de consumo humano como fator de risco à saúde em propriedades rurais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 510-514, 2003., nos períodos de chuva as fontes de água ficam suscetíveis a contaminações em decorrência da percolação rápida dos microrganismos em direção à água subterrânea, aliada ao fato de que o nível da água, durante esse período, aproxima-se da superfície do solo, diminuindo sua capacidade filtrante. Além disso, os autores ressaltam ser esse o período de oferta de frutas, como a manga. É também período de proliferação de insetos, como moscas, contribuindo para o aumento de doenças gastrointestinais por eles transmitidas.

A consequência das doenças gastrointestinais tem reflexo no trabalho dos agricultores, no orçamento das famílias e no próprio serviço de saúde oferecido pelo município de Igarapé-Açu, já que as consultas médicas são realizadas apenas uma vez por mês, com o número limitado de 40 pessoas. Caso os agricultores não consigam consulta no atendimento feito na localidade, precisam se deslocar até a sede municipal para conseguir uma vaga no hospital municipal.

Segundo a enfermeira que atua na área urbana, participante da Estratégia de Saúde da Família, o município de Igarapé-Açu possui 12 postos de saúde, distribuídos nas áreas rurais e urbanas do município e possuem equipes compostas por um médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Os postos de saúde foram criados como estratégia de atendimento à população, uma vez que o município se destaca por sua extensa dimensão territorial e rural.

O município dispõe da vigilância sanitária que tem o papel de monitorar as fontes de água acessadas pela população rural. Porém, o défice de funcionários é a maior limitação para o desenvolvimento de ações eficazes no campo, conforme ressalta a diretora da vigilância sanitária de Igarapé-Açu. Apesar das inúmeras limitações, encarregar o próprio consumidor de controlar a qualidade da água é uma postura incorreta, pois o seu conhecimento quanto aos riscos que a água pode oferecer à saúde é praticamente inexistente (Amaral et al., 2003AMARAL, L. A. et al. Água de consumo humano como fator de risco à saúde em propriedades rurais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 510-514, 2003.).

Considerações Finais

Segundo Giatti (2007GIATTI, L. L. Reflexões sobre água de abastecimento e saúde pública: um estudo de caso na Amazônia brasileira. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 134-144, 2007.), para se discutir água na Amazônia é necessário contrapor e reavaliar a conceituação de disponibilidade de recursos hídricos na Amazônia brasileira. Apesar de a região ser conhecida mundialmente por sua abundância em recursos naturais, em especial a água, ainda há como desafio garantir água potável para toda população. Os maiores entraves estão no défice em saneamento básico que a região amazônica apresenta, associado à ausência de monitoramento das fontes de água.

A dificuldade em ter acesso à água potável está vinculada à precária infraestrutura e gestão do recurso, o que mostra a necessidade de proteção dos rios, a otimização da captação e tratamento das águas e o acesso às populações isoladas, como a população rural.

Apesar da carência de estrutura no acesso à água, os agricultores usam suas percepções para definir os usos da água de acordo com cada fonte. Tal fato pode ser exemplificado pelo acesso às nascentes que afloram no terreno, geralmente distantes da residência e do controle da família, consideradas como fornecedoras de água de qualidade confiável por suas características físicas (não ter cheiro, gosto e cor). Esses aspectos valorados pela percepção sensorial de consumidores e de técnicos que tratam do assunto demonstram que o investimento para o uso adequado da água passa por mudanças na percepção e na construção social do que sejam as condições de higiene que garanta a saúde do consumidor. Os poços (tubulares e boca larga) são formas de minimizar a penosidade do trabalho de transportar água de cacimbas, facilitando o acesso à água por meio de instalações feitas próximas às residências. Os igarapés vistos como fonte de acesso a todos os moradores não são apropriados para ingestão, sendo utilizada para atividades diversas como irrigação, lavagem de utensílios e para o asseio corporal.

Considerando que a água não está distribuída uniformemente, e na ausência dos órgãos competentes, faz-se necessário que os agricultores criem estratégias para garantir o seu abastecimento. Pode-se levar em consideração o caráter cultural das mulheres transportarem latas d’água na cabeça, entretanto, não se considera os riscos pela ingestão de água contaminada. Fazem-se necessárias medidas de prevenção, seja diretamente na fonte de água ou em tratamentos da água para beber, o que pode não ser uma tarefa fácil, tanto pela visão dos gestores quanto dos agricultores, que, dotados de uma carga de conhecimentos tradicionais, não se atentam para necessidade de tratamento à água, e talvez por isso recusem determinadas práticas como o uso do produto químico hipoclorito de sódio. Ações informativas e educativas nas escolas, por cursos, palestras, seminários e oficinas poderiam promover uma mudança no comportamento da população no sentido de cuidarem da melhoria higiênica para o uso desse recurso.

Referências

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  • 1
    Financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

  • 2
    Segundo o IBGE, a Região Amazônica detém a maior floresta tropical do planeta e abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e uma parte do Maranhão, Tocantins e Mato Grosso.

  • 3
    Tratamento dos resíduos sólidos e líquidos.

  • 4
    IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2014.

  • 5
    IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2014.

  • 6
    Vivemos em um estado cortado pela linha do Equador, portanto com terras no hemisfério Norte (menor parte) e no hemisfério Sul. Clima equatorial com dois períodos bem distintos durante o ano, um chuvoso iniciando em dezembro e outro seco com início em junho.

  • 7
    Termo utilizado pela entrevistada para indicar o deslocamento até a nascente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2015
  • Revisado
    09 Jun 2016
  • Aceito
    19 Jul 2016
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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