Juridicização engajada da adolescência: sobre um caso de internação psiquiátrica compulsória

Engaged juridicization of adolescence: about a case of psychiatric compulsory admission

Resumo

Com o objetivo de compreender um caso de internação psiquiátrica compulsória (IPC) infantojuvenil, foi desenvolvida uma etnografia com agentes institucionais dos setores educação, justiça e saúde nos poderes executivo e judiciário. A metodologia de pesquisa consistiu em (1) entrevistas com defensoras, psicólogas, psiquiatras e peritos; (2) análise documental de ata escolar, autos processuais e prontuário médico. Frisamos que algumas pesquisas têm se centrado em “adolescentes drogaditos” internados compulsoriamente, apontando para uma “judicialização do cuidado em saúde mental”. Desse modo, visou-se responder à seguinte questão de pesquisa: as IPC às quais Clara fora submetida também poderiam ser compreendidas como parte desse processo? Procurou-se mostrar que a jovem é caracterizada pelas versões institucionais como uma “adolescente-psiquiátrica” por alguns, e “um risco para si e para terceiros” por outros. Assim, torna-se um “caso emblemático” para uma rede de cuidados, após episódios de “agressão”, “tentativas de suicídio” e “fugas” que suscitaram audiências, encaminhamentos, internações e abrigamentos. Por fim, os resultados apontam para um processo de juridicização engajada da adolescência.

Palavras-chave:
Judicialização; Saúde Mental; Adolescência; Internação Psiquiátrica Compulsória

Abstract

With the objective of understanding a case of psychiatric compulsory admission (IPC) of a child/adolescent, an ethnography was developed with institutional agents from the education, justice and health sectors, in the executive and judicial branches. The research methodology consisted of (1) interviews with public defenders, psychologists, psychiatrists and experts; and (2) documentary analysis of school minutes, procedural records and medical records. We emphasize that some researches have been focused on “teenage drug abuse” compulsorily hospitalized, pointing to a “judicialization of mental health care”. In this way, the aim was to answer the following research question: could the IPCs to which Clara had been submitted also be understood as part of this process? It was sought to show that the girl is characterized by the institutional versions as a “psychiatric-teenager” by some, and “a risk for herself and for others” by others. Thus, it becomes an “emblematic case” for a network of care, after episodes of “aggression”, “suicide attempts” and “escapes” that aroused hearings, referrals, hospitalizations and shelterings. Finally, the results point to a process of engaged juridicization of adolescence.

Keywords:
Judicialization; Mental Health; Adolescence; Psychiatric Compulsory Admission

Introdução

A internação psiquiátrica por mandado judicial, também denominada internação psiquiátrica compulsória (IPC), tem suscitado diversos debates políticos e alguns estudos científicos. Uma das discussões refere-se à prática desenvolvida pelos profissionais de saúde e sua interface com as instituições jurídicas no que concerne às estratégias institucionais para lidar com essa modalidade de internação psiquiátrica distinta da involuntária e voluntária, todas as três previstas na Lei nº 10.216/2001, conhecida como Lei Antimanicomial (Brasil, 2001BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abr. 2001. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/YRPuWo >. Acesso em: 5 mar. 2018.
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). Consideramos relevante conhecer também a atividade dos operadores das instituições jurídicas e sua articulação com os setores saúde, assistência social e educação, para compreender de modo mais abrangente essa modalidade de internação psiquiátrica na qual o protagonista não é o médico, mas o juiz.

O nosso objetivo é compreender os expedientes judiciais que determinaram de forma patente o destino de uma usuária da rede de saúde mental infantojuvenil de um município brasileiro, entre eles as IPC. Essa usuária frequentava um centro de atenção psicossocial infantojuvenil (CAPSi) quando começou a ser internada em hospitais psiquiátricos, a primeira vez aos 12 anos. Salgado (2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.) investigou as IPC de crianças e adolescentes e concluiu que elas seriam uma espécie de “proteção forçada”, fazendo-o por meio de quatro casos clínicos, entre eles o de uma usuária, chamada de Clara - nome fictício - pela autora. Clara também foi a motivação deste texto, de maneira que, como a mencionada autora, abordamos esse caso de IPC infantojuvenil considerado emblemático por uma rede municipal de saúde mental tendo como fonte documental seu prontuário médico, sendo que Magalhães (2012MAGALHÃES, T. “Eu vou ter que ficar aqui até dezembro?” A internação compulsória de crianças e adolescentes e os seus desafios para a saúde mental. 2012. 45 f. Monografia (Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.) e Rocha (2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.) também o fizeram.

Entretanto, nosso estudo não foi conduzido apenas com base nas informações contidas no prontuário médico, incluindo também as mencionadas nos autos do processo judicial e em ata escolar. A metodologia do nosso estudo inclui não só análise documental, como também a realização de entrevistas com curadores especiais (defensores públicos), psiquiatras, peritos e psicólogas, do mesmo modo que conversas informais com muitos outros profissionais das instituições que guardavam os citados documentos, tais como agentes administrativos, juízes, secretárias, assistentes sociais e educadoras em hospitais, varas, abrigos e escolas. A pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovada em Comitê de Ética em Pesquisa, podendo ser considerada uma etnografia com agentes institucionais sobre ações estatais, tais como as decisões judiciais (Schuch, 2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.).

Nenhum dos estudiosos do caso Clara conduziu sua pesquisa com base em tantas fontes orais e documentais e todos eles consideraram que ela passou apenas por IPC, nenhum tendo cogitado, como fomos levados a fazer com base em tais fontes, que Clara tenha passado também por uma internação psiquiátrica involuntária (IPI). Outra justificativa para conduzir mais um estudo do caso Clara diz respeito menos à amplitude fontes orais e documentais e mais à possibilidade de destacar a ação de agentes institucionais pouco visibilizados até então. Pretende-se destacar o papel do Poder Judiciário (PJ), do Ministério Público (MP) e da Defensoria Pública (DP) no itinerário institucional dessa usuária, sem deixar de registrar que ela vivenciou a intervenção da assistência social antes de experimentar a IPC, conhecendo o Conselho Tutelar (CT), o Comissariado de Justiça (CJ) e programas como Família Acolhedora (Faco) nesse percurso. Além disso, recente revisão da literatura científica nacional sobre IPC mostra que os estudos sobre o assunto se dirigem mais à população adulta, do sexo masculino e usuária de drogas (Rocha, 2016ROCHA, C. “Quadro de internação psicótica”: estudo de caso sobre a internação psiquiátrica compulsória infanto-juvenil no Rio de Janeiro. 2016. 197 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.), de maneira que pesquisas com adolescentes do sexo feminino e sem histórico de consumo de substâncias psicoativas ilícitas como Clara são menos comuns.

Na primeira parte do artigo, intitulada “Judicializações”, apresentaremos alguns conceitos relevantes para a compreensão do marco teórico a partir do qual essa etnografia foi desenvolvida, como judicialização, juridicização, medicalização e engajamento. Na segunda parte do artigo, intitulada “Institucionalizações”, descreveremos o processo de institucionalização ao qual a usuária foi submetida, na forma de uma narrativa das ações estatais ao longo de sua trajetória de vida. Na terceira parte, intitulada “Juridicização engajada”, apresentaremos nossa contribuição aos estudos sobre IPC, destacando determinadas ações estatais em particular e elaborando um conceito em especial. Após apresentar a relevância, o objetivo, a metodologia e a justificativa desta pesquisa, gostaríamos de - finalmente - colocar nossa questão. Reis (2012REIS, C. (Falência familiar) + (uso de drogas) = risco e periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória. 2012. 132 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.) triangulou métodos qualitativos e quantitativos ao investigar a IPC de “adolescentes drogaditos”, revelando como a rede de instituições envolvidas “operam na multiplicação das internações”, constituindo um processo de “judicialização do cuidado em saúde mental”. Desse modo, as IPC às quais Clara fora submetida também poderiam ser compreendidas como parte desse processo?

Judicializações

A “regulação da sociabilidade e das práticas sociais” (Vianna et al., 1999VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999., p. 149) pelo PJ, isto é, a “judicialização das relações sociais”, tem proporcionado amplo debate acadêmico e social, especialmente após a redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988. Frisamos que o ato de apelar ao setor justiça diante de um conflito social, de modo a abordar tal situação de ordem social, moral e econômica por meio de recursos jurídicos, consiste no processo de judicialização. Por exemplo, uma situação que anteriormente seria considerada da esfera privada, atualmente pode provocar o acionamento da Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014, que estabelece “o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante” (Brasil, 2014BRASIL. Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014. Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jun. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/jaexao >. Acesso em: 5 mar. 2018.
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). Ou seja, o Estado abre a possibilidade que tanto agentes institucionais que atuam no campo infantojuvenil quanto adolescentes venham a recorrer ao PJ quando do aviltamento dos direitos que constam nesse diploma. Portanto, “o direito vem expandindo a sua capacidade normativa, armando institucionalmente o Judiciário de meios e modos para o exercício de uma intervenção” (Vianna et al., 1999VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999., p. 149) em planos antes considerados extrajudiciais.

Vianna et al. (1999VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.) frisam o protagonismo do PJ na reivindicação de direitos, embora DP e MP possam resolver conflitos no plano jurídico sem os reportar ao PJ, já que essas duas instituições também protagonizam ações que visam a garantia de direitos. O caráter juiz-centrado das análises sobre o processo de judicialização é denunciado por Asensi (2010ASENSI, F. Judicialização ou juridicização? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010., p. 43), segundo o qual haveria uma “supervalorização da dinâmica judicial” e uma “subvalorização metodológica e teórica em relação às demais instituições jurídicas e sociais”, obscurecendo a ação desses outros operadores, designada pelo autor “juridicização”. Além disso, Asensi e Pinheiro (2014ASENSI, F.; PINHEIRO, R. Lages/SC. In: PINHEIRO, R. (Org.). Estudo multicêntrico sobre as relações entre sociedade, gestão e judiciário na efetivação do direito à saúde. Rio de Janeiro: LAPPIS-UERJ, 2014. p. 4-15.) ressaltam a existência de experiências exitosas de parceria entre Judiciário e Executivo que demonstram o papel de uma gestão participativa que proporciona a resolução de conflitos de forma extrajudicial, movida por membros do próprio PJ. Em suma, o protagonismo em ações de efetivação de direitos não pode ser creditado apenas ao PJ, sendo também amplamente observado no MP e DP e, ainda, mesmo o PJ pode agir por modos extrajudiciais que visem o diálogo fora dos autos do processo.

No que tange à história de implantação do campo da assistência à infância e adolescência no Brasil, Rizzini (1995RIZZINI, I. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever: um histórico da legislação para a infância no Brasil (1830-1990). In: RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula , 1995. p. 99-168., p. 115) destaca que a “judicialização” dessa população se inicia no país a partir do processo de institucionalização de leis e um aparato médico-jurídico-assistencial protagonizada pelo PJ. Nessa perspectiva, as iniciativas de reforma institucional que se consolidam em 1927 com a promulgação do Código de Menores, assim como as práticas que implementaram tais rearranjos políticos, ideológicos e institucionais, teriam sido lideradas por atores do Judiciário, entre eles reformadores, cruzados e filantropos.

O papel de um juiz não está dado, é o que se evidencia nas palavras do ilustre desembargador Ataulpho de Paiva: “O antigo Juiz Penal somente tinha a preocupação de capitular o delicto e o applicar a respectiva pena ao caso ocorrente. Nada mais improprio nem menos apto para o exercício do moderno papel da Justiça” (Paiva, 1916 apud Rizzini, 1995RIZZINI, I. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever: um histórico da legislação para a infância no Brasil (1830-1990). In: RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula , 1995. p. 99-168., p. 113). É daí que decorre a grande translação no modelo de assistência infantojuvenil, pois essa afirmação demarca a aderência de vários reformadores ao projeto salvacionista da infância em detrimento de sua simples e pura punição. Assim, salvar o menor propiciava a instauração de uma “intricada rede de medidas jurídico-sociais” cuja consolidação foi guiada por juristas que “associaram-se às forças policiais, aos setores políticos, às cruzadas médicas, às associações caritativas e filantrópicas” (Rizzini, 1995RIZZINI, I. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever: um histórico da legislação para a infância no Brasil (1830-1990). In: RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula , 1995. p. 99-168., p. 114).

Esse “protagonismo jurídico” refere-se ao empreendimento moral de juristas em prol da constituição de uma rede específica de “profilaxia, educação, recuperação e correção” (Rizzini, 1995RIZZINI, I. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever: um histórico da legislação para a infância no Brasil (1830-1990). In: RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula , 1995. p. 99-168., p. 113) da infância pobre e desvalida, não ocorrendo apenas pela implantação das instituições jurídicas de atendimento à infância, mas também na execução das medidas judiciais à luz do código que acabara de ser incorporado. Em suma, a “cultura da judicialização das políticas sociais supletórias” (Méndez, 1991 apud Pilotti, 1995PILOTTI, F. Crise e perspectivas da assistência à infância na América Latina. In: RIZINNI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula, 1995. p. 11-45., p. 29) refere-se à “pretensão de enfrentar as deficiências das políticas sociais básicas por meio da aplicação das normas jurídicas do Direito de Menores” (Pilotti, 1995PILOTTI, F. Crise e perspectivas da assistência à infância na América Latina. In: RIZINNI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula, 1995. p. 11-45., p. 29).

A ideia de judicialização empreendida por Schuch (2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181.) sublinha não só o protagonismo do PJ, como também a liderança do MP e da DP na condução de políticas públicas na esfera infantojuvenil, considerando a preponderância desses órgãos jurídicos, mas não judiciais, na resolução de conflitos aproximando-a da perspectiva desenvolvida por Asensi (2010ASENSI, F. Judicialização ou juridicização? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010.) sobre a juridicização. Para a mencionada autora, “a ‘judicialização da política e das relações sociais’ pode ser descrita como o crescente protagonismo das leis, dos direitos e do sistema judiciário nas sociedades ocidentais democráticas, assim como uma relevância do judiciário como agente político das demandas por justiça social” (Schuch, 2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., p. 97). A chamada judicialização do “campo de atenção ao adolescente infrator” acontece em meio à promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um “engajamento” por parte dos agentes jurídicos nesse campo sendo constatado pela autora e apontado como característica necessária ao agente jurídico no exercício devotado de sua profissão.

Dessa forma, juízes, defensores ou promotores têm em seu “capital militante” um importante fator que possibilitará sua legitimação reconhecida em campo: “os agentes judiciais investem em um conjunto de dispositivos para legitimar sua atuação que são absolutamente ancorados nos ideais de participação comunitária” (Schuch, 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181., p. 153). Portanto, a noção de uma “justiça engajada”, ou seja, “comprometida com processos de democratização social e modernização da sociedade” (Schuch, 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181., p. 153), seriam marcas constitutivas dessas instituições hodiernamente. Uma das alegorias mais interessantes trazidas pela pesquisadora que ilustra a questão do “engajamento” é a postura de um juiz da área infracional: “eu aconselho, procuro descobrir o que é que será melhor para o adolescente e ajo” (Schuch, 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181., p. 174). Essa posição distingue a atuação entre o campo de atenção à infância e adolescência e as outras esferas de ação tanto do PJ quanto do MP e DP, delimitando a necessidade específica da área infantojuvenil: um quase sacerdócio, uma ação devotada e alegadamente desinteressada.

Em etnografia realizada também no Sul do Brasil, Biehl (2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, Hoboken, v. 40, n. 3, p. 419-496, 2013.) sublinhou que na “litigação do direito à saúde” os papéis dos agentes institucionais estavam trocados: o médico agia como militante, o juiz como farmacêutico e a defensora como médica. No caso Edgar, um motorista aposentado “judicializava” um dos seus remédios - e não todos - em função de sua ataxia, sendo que seu médico considerava como parte do seu papel ajudar seu paciente a efetivar seus direitos à saúde, sendo apontado pelo referido autor como um “ativista”. A defensoria era vista como um “hospital” pela defensora, segundo a qual: “esta é a medicina que pratico aqui: ajudar as pessoas a sobreviver com dignidade” (Biehl, 2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, Hoboken, v. 40, n. 3, p. 419-496, 2013., p. 423). Portanto, a “litigação do direito à saúde”, isto é, a “judicialização do cuidado em saúde”, seria processo largamente vinculado ao ativismo no campo dos direitos difusos e coletivos. Na concepção da defensora, sem “judicialização […] a política estatal poderia permanecer populista e voltada apenas para objetivos eleitorais, falindo na defesa de responsabilidades [estatais] garantidas constitucionalmente” (Biehl, 2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, Hoboken, v. 40, n. 3, p. 419-496, 2013., p. 423).

Resta frisar que esse processo de “judicialização do cuidado em saúde” (Biehl, 2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, Hoboken, v. 40, n. 3, p. 419-496, 2013.) é observado em conjunto com um de “farmaceuticalização”, concebida como a dispensação de medicamentos em detrimento de uma política de saúde mais ampla. Do mesmo modo, pretendemos estudar processos de judicialização em conjunto com outros processos sociais, como medicalização. Pretendemos demonstrar que Clara não somente passou por um processo massivo de institucionalização, protagonizado por instituições judiciais, assistenciais e sanitárias, mas que esse processo pode estar correlacionado com a medicalização de sua conduta, no sentido de “transformação de comportamentos transgressivos e desviantes em transtornos médicos” (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014ZORZANELLI, R.; ORTEGA, F.; BEZERRA JÚNIOR, B. Um panorama sobre as verificações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, 2014., p. 1865). A história dos usos e sentidos do conceito de medicalização foi amplamente trabalhada por tais autores, que condensaram outros três sentidos para o termo: (1) “práticas massivas de intervenção sobre o espaço público”; (2) “controle social e imperialismo médico”; (3) “processo irregular que envolve agentes externos à profissão médica” (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014ZORZANELLI, R.; ORTEGA, F.; BEZERRA JÚNIOR, B. Um panorama sobre as verificações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, 2014., p. 1865).

Institucionalizações

Segundo Salgado (2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.), Clara teria sofrido sua primeira IPC a partir de eventos que culminaram com sua “tentativa de suicídio” em um “abrigo familiar” - onde estava acolhida junto com sua mãe e irmãos -, quando subira em um telhado dessa instituição e fora levada em caráter de emergência para um hospital psiquiátrico e de lá passando a ser acompanhada pelo CAPSi. Já segundo Rocha (2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.), essa “tentativa de suicídio” não se dera no “abrigo familiar”, mas em um “abrigo para adolescentes” em outro momento da trajetória institucional de Clara, sendo que o autor destaca que na mesma semana em que chegara ao CAPSi fora registrada no nome de seu pai via ordem judicial. De forma semelhante, ambas as versões concordam que tais eventos tiveram seu ápice em outubro de 2010, mas teriam sido precedidos por situações iniciadas em julho do mesmo ano, relacionadas a “desentendimentos familiares” entre Clara e seus responsáveis. Há ainda uma terceira versão do caso Clara, da qual se infere que os eventos que precipitaram sua “internação compulsória” - decidida a partir de uma audiência judicial que ocorreu em 21 de outubro de 2010 - teriam sido disparados após sua internação no hospital - que fora comunicada ao CAPSi em 15 de outubro de 2010 (Magalhães, 2012MAGALHÃES, T. “Eu vou ter que ficar aqui até dezembro?” A internação compulsória de crianças e adolescentes e os seus desafios para a saúde mental. 2012. 45 f. Monografia (Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.). Contudo, essa autora e os demais mencionados não fazem qualquer menção a uma mudança no estatuto da internação de involuntária para compulsória.

Segundo Salgado (2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.), a segunda IPC teria se iniciado entre janeiro e fevereiro de 2011, em meio a “pedidos de internação” ou “pedidos de abrigamento” realizados pela adolescente ao CAPSi e da articulação interinstitucional entre este e o CT, sendo encaminhada por este último para um “local de neuropatas” e lá se envolvendo em uma “briga” com outras adolescentes, na qual as teria “ameaçado” com uma foice. A narrativa desse acontecimento ressalta a utilização de “objeto cortante” (Rocha, 2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.) durante o conflito em vez de mencionar diretamente uma “foice” (Magalhães, 2012MAGALHÃES, T. “Eu vou ter que ficar aqui até dezembro?” A internação compulsória de crianças e adolescentes e os seus desafios para a saúde mental. 2012. 45 f. Monografia (Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.; Salgado, 2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.). De qualquer modo, os textos parecem concordar que foi nessa internação que Clara teria sido considerada um “risco social”, concebida como alguém que “não poderia conviver em sociedade” e, assim, estigmatizada como perigosa. Os diagnósticos atribuídos a Clara variam, ora o médico-psiquiátrico determina “psicose não orgânica não especificada” (Salgado, 2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.), ora o psicanalítico diz “neurótica” (Magalhães, 2012MAGALHÃES, T. “Eu vou ter que ficar aqui até dezembro?” A internação compulsória de crianças e adolescentes e os seus desafios para a saúde mental. 2012. 45 f. Monografia (Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.) ou ainda “estrutura histérica” (Rocha, 2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.), todos parecendo concordar que as “dificuldades de relacionamento” ou as “situações de crise” entre Clara e sua mãe precipitavam as ações sociojurídicas.

Por fim, uma terceira IPC teria se iniciado em 2011 a partir de questões sociais relacionadas aos conflitos entre tráfico de drogas, milícia e forças policiais na comunidade na qual Clara residia (Rocha, 2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.; Salgado, 2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.), os quais foram escamoteados ao longo desse processo de internação pelas instituições de acolhimento. Depois de ser encaminhada pelo CT para acolhimento, Clara acabou se envolvendo em outro conflito, agora com adolescentes do abrigo. Essa situação é narrada pelos profissionais da assistência social como se a adolescente fosse um “brinde” (Rocha, 2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.) ou tivesse “pago o pato” (Salgado, 2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.) desse desentendimento no abrigo, já que ela fora a única das três adolescentes a ficar internada no hospital, provavelmente devido a seu histórico. No entanto, quando os eventos foram reportados à vara11Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (Viji). , mais uma vez fora decidido que Clara deveria permanecer internada em caráter compulsório nesse mesmo hospital (Rocha, 2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.; Salgado, 2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.).

A partir das fontes orais e documentais coletadas ao longo da etnografia com agentes institucionais sobre seus procedimentos administrativos, notamos não só que o conjunto das IPC foi precedido por uma IPI, como também que uma quarta IPC aconteceu durante 2014. A seguir, apresentaremos uma descrição do caso Clara permeada por uma análise desses expedientes em diálogo com os conceitos mencionados no tópico anterior, tais como judicialização. Vale dizer desde já que até 2016 Clara passou por quatro IPC em sua trajetória institucional, permanecendo ao todo 455 dias internada entre 2010 e 2014, ou seja, dos 12 aos 16 anos.

Aos 11 anos de idade, Clara se encontrava entre uma CP, a casa da mãe e de “mães sociais”, cadastradas no Faco, terminando por ser internada em um hospital psiquiátrico aos 12 anos22A mãe de Clara é caracterizada como alguém que sofreu violência doméstica na infância, tendo sido destituída do poder familiar algumas vezes, já que cinco de seus oito filhos – em 2012 foi mãe novamente – foram cedidos para adoção. Todo esse histórico adensado no processo judicial de Clara seria amplamente utilizado para desqualificar sua mãe ostensivamente, principalmente no período de sua terceira internação psiquiátrica em 2011, qual a mãe de Clara perdeu o poder familiar de todas as suas filhas.. Clara já conhecia instituições totais (Goffman, 1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.) antes de ser encaminhada para internação em um hospital psiquiátrico, pois viveu dos 0 aos 4 anos com a mãe e os irmãos33Em 2016, Clara tinha sete irmãos: uma criança do sexo masculino, que vivia e sempre viveu com a mãe; uma adulta do sexo feminino, que já viveu em abrigos e atualmente vive com a mãe; três do sexo masculino e duas do sexo feminino, que foram cedidos para adoção internacional. Em 2010, ano da primeira IPC da adolescente, os três irmãos do sexo masculino já tinham sido cedidos para adoção internacional, enquanto as duas irmãs não, sendo que a criança do sexo masculino que vivia e sempre viveu com a mãe nem tinha nascido ainda e a irmã adulta do sexo feminino era na época adolescente. Desse modo, gostaríamos de destacar que, embora nos autos conste a palavra “irmãos”, seguindo a norma da língua portuguesa, seria mais fidedigno afirmar que Clara estava vivendo com suas irmãs em 2010. em Centros de Acolhimento (CA) para famílias ou Centrais de Recepção de Famílias, Adultos e Idosos (Craf). Dos 5 aos 9 anos, viveu em companhia da madrasta e seus dois filhos, do pai e da avó paterna, voltando a habitar com a mãe e as irmãs por conta de “desentendimento familiar”, segundo documento do centro de acolhimento no qual a mãe se encontrava.

Quando a mãe se beneficiou do aluguel social, por um curto período, Clara conviveu com ela e as irmãs em uma residência, logo depois passando a habitar em uma das duas propriedades da avó materna. Ainda aos 11 anos de idade, por conta de outro provável desentendimento familiar, Clara foi inserida pela equipe do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) no Faco. A menina parecia incerta a respeito de com quem poderia morar, pois oscilava entre as “mães sociais” e os parentes, entre o Faco e sua casa, sentindo saudades da família muitas das vezes. Entretanto, Clara não retornou ao convívio materno e fraterno imediatamente, frequentando ao todo quatro famílias acolhedoras em 2010, antes que a juíza aceitasse uma sugestão do Creas de reintegração familiar. Enfim, poderíamos afirmar que Clara foi amplamente “judicializada” (Rizzini, 1995RIZZINI, I. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever: um histórico da legislação para a infância no Brasil (1830-1990). In: RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula , 1995. p. 99-168.), isto é, passou por processos de institucionalização protagonizados pelo PJ.

Segundo depoimentos orais, o Creas não só indica a inclusão de Clara no Faco, como também pressiona o “genitor” da adolescente para que este a registre como filha, obtendo sucesso. No entanto, o pai rompeu relações com ela após assumir oficialmente a paternidade. Clara foi acusada de furto pela primeira acolhedora, sendo transferida para uma segunda acolhedora. De acordo com um relatório informativo do Creas, entranhado tanto nos autos do processo judicial quanto no prontuário médico, Clara insistia em “sentir saudades” da mãe e brincar na rua, de maneira que recusa retornar para a casa da segunda acolhedora, apesar das tentativas de convencimento por parte de educadoras e assistentes sociais. A mãe de Clara decide “ficar” com ela, pedindo ao Creas para elas morarem juntas. Assim, a equipe técnica deste órgão “comunica o fato” à vara e solicita o “desligamento” da adolescente do Faco, sugerindo reintegração familiar.

Desse modo, no ano em que completou 12 anos de idade, ou seja, deslocou-se da infância para a adolescência do ponto de vista legal, Clara conheceu procedimentos judiciais e não apenas assistenciais. O relatório do Creas supracitado chegou ao conhecimento de uma juíza com a tal sugestão de desligamento e reintegração, o qual não foi acatado pela juíza, decidindo-se, assim, pela permanência da adolescente no Faco e transferência para outra acolhedora. No entanto, essa determinação pareceu manter Clara em um circuito de transferências e fugas das acolhedoras. Esse circuito institucionalizante expressaria o que denominamos judicialização (Asensi, 2010ASENSI, F. Judicialização ou juridicização? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010., 2013aASENSI, F. Judicialização da Saúde e Conselho Nacional de Justiça. Perspectivas e desafios. In: NOBRE, M.; SILVA, R. (Org.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2013a. p. 85-110., 2013bASENSI, F. Saúde, Poder Judiciário e sociedade: uma análise de Brasil e Portugal. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 801-820, 2013b.; Vianna et al., 1999VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.)? Dito de outra maneira, esses processos que situam Clara em um circuito de encaminhamento e reencaminhamento, internação e reinternação, são regulados preponderantemente pelo PJ?

Acatando-se a determinação judicial, proferida em audiência especial de 30 de agosto de 2010, Clara foi transferida para uma terceira acolhedora no mesmo dia dessa audiência. Todavia, no dia 2 de setembro acabou se apresentando “agressiva e decidida a evadir do local”, tendo sido “conduzida com segurança” pelos “educadores sociais” da instituição, segundo o citado relatório do Creas, inferindo-se que foi contida fisicamente por esses agentes institucionais. Ainda segundo esse documento, no final do mês de setembro o Creas mais uma vez realizou parecer em favor da reintegração familiar de Clara, já que “a genitora se apresenta segura em se responsabilizar pela adolescente”. Dessa vez, o Juízo acatou a sugestão de desligamento do Faco e reintegração familiar, por meio de guia expedida pela Vara em 23 de setembro, sublinhando que a mãe de Clara não estava abrigada em setembro de 2010, recebendo Clara em sua casa com o apoio do aluguel social e trabalhando como manicure.

Clara voltou a ser classificada como “agressiva” logo em seguida aos eventos no Faco, voltando da escola para casa em companhia de uma conselheira tutelar e dentro da viatura de polícia no início de outubro de 2010. Segundo a ata escolar, Clara “agrediu a diretora adjunta com pontapés [e] mordidas”, pois lhe fora “negada a saída” da escola antes do horário devido. Os registros que se seguiram nos autos do processo judicial e no prontuário médico distorceram essa informação, repetindo várias vezes que ela teria agredido a diretora da escola e não a diretora adjunta, sendo sublinhado o ataque dirigido a uma figura de autoridade, sem se atentar ao deslocamento que se operacionaliza em relação aos atos realizados pela adolescente44Clara “estava estudando e foi expulsa da escola ontem em função de agressão praticada pela mesma em face da Diretora” (Poder Judiciário, 2015a).. De acordo com a diretora adjunta, Clara teria sido transferida de escola após o episódio de “agressão”, embora para a diretora a ela tenha abandonado a instituição, ainda que no relatório do Creas e em sumário da CP conste que ela foi expulsa da escola e reitere esses episódios de “agressão”.

Em relação ao dito episódio de agressão, consta na ata escolar os seguintes procedimentos: a diretora teria entrado em contato com um educador social, já que o este constava como principal responsável pela aluna, o qual informou que não estava mais com essa responsabilidade; ele reportou o telefone de uma assistente social que estaria a acompanhando e, na ligação com esta, ela teria dito que a aluna não estava mais no Faco, mas sob os cuidados da mãe; essa profissional forneceu o telefone de uma vizinha, a qual teria comunicado o endereço da mãe. Vale ressaltar, seguindo a cronologia inscrita nos relatórios do Creas, ata escolar e sumário da CP, que há doze dias Clara tinha voltado a viver com a mãe e que a dois dias daquele instante seria encaminhada à CP.

Por fim, a diretora liga para uma coordenação regional, na qual uma assessora do órgão teria assumido o compromisso de entrar em contato com o CT, pois acreditava que competia este tomar as “medidas cabíveis”. Quase duas horas após a aluna apertar as mãos da diretora adjunta contra o portão da escola, segundo o relato da ata, essa assessora ligou para informar que a mãe da aluna estava chegando e que, se a agressão perdurasse, o Corpo de Bombeiros deveria ser chamado. Três horas e meia após o citado episódio de agressão, a aluna tentou fugir e foi resgatada por um policial, passando a jogar bancos nos portões e machucar quem tentava controlá-la, momento no qual a coordenação regional orientou a escola a chamar também o Corpo de Bombeiros, que chegou ao local quase uma hora depois e, “ao constatarem que não era o caso de levá-la a uma unidade de saúde, retiram-se”. Uma agente do CT pediu ajuda ao Batalhão de Polícia, pois constatou que o veículo desta instituição estava quebrado e, assim, a aluna terminou indo para casa na viatura policial. O setor de segurança atravessou à trajetória institucional de Clara, somando-se ao de assistência social já conhecido de longo prazo e ao recentemente presente Poder Judiciário, alimentando o estigma da perigosa construído em meio à sua classificação como “agressiva” na CP e na escola.

Clara não ficou em casa com sua mãe e irmãs após o episódio de agressão na escola, pois logo em seguida houve a audiência especial na qual a juíza determinou que ela permanecesse no Faco. Lembremos dos relatos anteriores nos quais a juíza não acatou a sugestão do Creas de uma reintegração familiar naquele instante. Portanto, uma quarta família a recebeu em regime de emergência, Clara não “aderiu” e voltou para a segunda família que a acolheu. Quando a mãe de Clara teve a oportunidade de se pronunciar perante a juíza em uma audiência especial de 7 de outubro de 2010, ficou decidida a permanência com a “genitora”, “até melhor avaliação pela equipe técnica” do Juízo. Entretanto, no momento em que Clara, sua mãe e suas duas irmãs estavam saindo do fórum, após a audiência, novo “desentendimento familiar” se seguiu, suscitando o retorno de Clara, sozinha, para o fórum e uma nova decisão da juíza: encaminhamento para a CP.

Em companhia de educadores e assistentes sociais da CP por uma semana, Clara diz ter saudades da mãe e das irmãs, como também com vontade de brincar na rua. Segundo o sumário psicossocial, documento da CP assinado por uma psicóloga, Clara quer visitar sua mãe no mesmo dia, embora os educadores tentem convencê-la a fazê-lo no dia seguinte, sendo que ela insiste e decide “evadir” da CP, “caminhando em cima do muro”. Segundo o citado documento, Clara ameaçava jogar-se do muro, “reagia de forma mais agressiva” e “dizia que iria se matar”. A psicóloga da instituição recomendou que o Corpo de Bombeiros fosse acionado para levá-la para uma avaliação psiquiátrica, ocasionando uma situação constrangedora no mínimo: os bombeiros não concordaram com a psicóloga, pois “apesar de terem sido acionados para tentativa de suicídio, tratava-se apenas de uma adolescente que queria ir embora de um abrigo, porque não gostara do local”. O posicionamento desses agentes institucionais parece ter se tornado mais firme quando souberam que a mãe da adolescente poderia “acolhê-la no núcleo familiar”. Como na situação de heteroagressão registrada na escola, os agentes do Corpo de Bombeiros não consideraram que cabia a eles intervir nesse episódio de potencial autoagressão registrado na CP.

Quando o Corpo de Bombeiros se colocou em retirada da CP, Clara “tentou escalar o alambrado da pista de alta velocidade, tendo sido retirada por um educador social que chegava para o plantão noturno; ameaçava jogar-se no fluxo de carros, que naquela hora estava mais intenso”. Ainda segundo o sumário psicossocial da CP, além de “agressiva”, Clara agora era considerada “em risco”, constando no parecer psicológico que o compunha o diagnóstico “transtorno de personalidade e de humor”. Quando da possível heteroagressão na escola, Clara foi conduzida para casa em uma viatura policial; quando da potencial autoagressão na CP, foi encaminhada para o hospital psiquiátrico, em outubro de 2010, iniciando assim a sua carreira moral de doente mental (Goffman, 1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.), no caso de “adolescente-psiquiátrica”, segundo os autos e as falas de alguns agentes institucionais.

Na sua primeira internação psiquiátrica, recebeu o diagnóstico “psicose não orgânica não especificada (CID-10 F29.9)”, tendo sido considerada “um risco para si e para terceiros” e sendo levada para o setor de emergência do hospital na viatura do Corpo de Bombeiros55Esclarecemos que, antes de irem embora da CP, por não concordarem de se tratar de um “caso de saúde mental”, a direção da CP ligou para um oficial superior do Corpo de Bombeiros que, por sua vez, retornou a ligação para os profissionais da ambulância ordenando que levassem a adolescente para a emergência psiquiátrica.. Apenas uma semana depois, quando o médico responsável recomendou sua “alta hospitalar”, configurou-se uma IPC, pois a mencionada juíza, em audiência de reavaliação, decidiu manter Clara internada. Ou seja, em um primeiro momento, o que se configurou é uma IPI realizada pelo psiquiatra do hospital naquela “situação de emergência”, como afirmou em entrevista. A IPI foi transformada pela juíza em IPC, já que Clara não adentrou a emergência por decisão judicial, apenas se manteve internada por conta dela.

Essa sucessão de eventos poderia corresponder ao que fora descrito na literatura como sendo judicialização do cuidado em saúde mental (Reis, 2012REIS, C. (Falência familiar) + (uso de drogas) = risco e periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória. 2012. 132 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.; Reis; Guareschi; Carvalho, 2014REIS, C.; GUARESCHI, N. M. F.; CARVALHO, S. Sobre jovens drogaditos: as histórias de ninguém. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, p. 68-78, 2014. Número especial.)? Certamente a transformação dessa IPI em IPC caracteriza esse processo, inclusive em meio às entrevistas conduzidas com o médico responsável pela IPI da “paciente”, o qual afirmou que se “sentia como boneco nas mãos do juiz”!

Segundo o prontuário médico, seis dias após a internação psiquiátrica a alta de Clara estava prevista e o retorno dela para a CP estava sendo planejado, inclusive por não se considerar o hospital “local adequado” para a adolescente. Ainda assim, segundo a referida ata da audiência, sete dias após a internação psiquiátrica a determinação judicial fez que Clara permanecesse no hospital: agora uma adolescente caracterizada por um “surto psicótico”. Se em um primeiro momento essa ideia de “surto psicótico” fora sustentada, como demonstraram os autos, em informação prestada pela primeira psicóloga da Equipe Técnica do Juízo a atuar no caso, em um segundo instante essa frente seria explorada ao máximo pela juíza, que chegou a solicitar uma perícia médica para averiguar o quadro66O Poder Judiciário recuou perante a estratégia formal de categorizar Clara como “psicótica”, pois a perícia negou veementemente essa possibilidade, frisando se tratar de CID-10 F91.1 – “transtorno de conduta não socializado”. Algo consoante com o diagnóstico apresentado pelo hospital, de CID-10 F92.8 – “transtorno misto de conduta e emoções não especificado” – e bem diferente também do diagnóstico apresentado pelo médico que realizou a IPI no mesmo hospital, de CID-10 F29 – “psicose não orgânica não especificada”. É importante frisar que o diagnóstico de F29 foi conferido primeiro em relação à ideia de “surto psicótico” fornecida pela psicóloga da vara.. Em suma, poderíamos afirmar que à judicialização do cuidado em saúde mental se soma o esforço do PJ para cristalizar o processo de medicalização da conduta da adolescente promovido pelo psiquiatra que a atendeu no hospital psiquiátrico no sentido de “processo irregular que envolve agentes fora da profissão médica” (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014ZORZANELLI, R.; ORTEGA, F.; BEZERRA JÚNIOR, B. Um panorama sobre as verificações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, 2014.).

Enquanto Clara estava sendo mantida internada via IPC, os profissionais de saúde mental do CAPSi procuravam desinstitucionalizá-la. Sua alta da IPI foi impedida, sua “alta por decisão judicial” da IPC só aconteceu dois meses depois, em dezembro de 2010. Em 2011, dois meses após sua alta, determinou-se judicialmente seu retorno ao hospital em vista da sua segunda IPC. Nessa internação, destacamos que o Parquet vem opinar que deve “ser autorizada a alta hospitalar por ordem judicial” (Rio de Janeiro, 2015RIO DE JANEIRO (Estado). Ministério Público. Promotoria de Justiça. 18 fev. 2011. In: RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Processo Judicial. Decisões Judiciais. Rio de Janeiro, 2015.) e o PJ “acolhe integralmente a promoção do MP” (Poder Judiciário, 2015bPoder Judiciário. Vara da Infância, da Juventude e do Idoso. Decisão judicial. 18 fev. 2011. In: RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Processo Judicial. Decisões Judiciais. Rio de Janeiro, 2015b.). Desse modo, fica claro que o MP judicializa o caso e o PJ “acolhe” essa judicialização. Da mesma forma, uma terceira e uma quarta internações tomam curso, uma em 2011 abordada por Salgado (2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.) e Rocha (2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.) e outra internação psiquiátrica em 2014 não abordada pelos citados autores. A terceira IPC se justificou a partir de “conflito geracionais” na CP e a quarta IPC fora, inesperadamente, requerida no CJ pelo CAPSi em um plantão, segundo os documentos analisados.

Em síntese, alguns acontecimentos no segundo semestre de 2010 envolveram Clara com o setor de segurança, desembocando na IPI e posterior IPC de Clara. No ano em que passou da infância à adolescência, caminhando dos 11 aos 12 anos, Clara conheceu os procedimentos da juíza, policiais e bombeiros, após viver amplamente os efeitos da institucionalização promovida por agentes do setor assistência social durante sua trajetória institucional. A partir disso, Clara passou a ser considerada “agressiva” e atendida por psiquiatras, tendo sido alocada no setor saúde mental, seu cuidado tendo sido judicializado pelo PJ e o MP e sua conduta medicalizada no hospital psiquiátrico e no próprio PJ.

Juridicização engajada

Os relatos acerca do processo de institucionalização da usuária, além da participação do PJ, MP, CJ, CT e CREAS, evidenciaram a incidência de uma instituição singular: a DP, em especial, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA). Faz-se necessário marcar que o início das atividades dessa instituição teve como alvo intervenções voltadas para adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas de internação, mas com o passar do tempo seu escopo foi ampliado, voltando-se também para atendimentos às crianças e adolescentes em “situação de vulnerabilidade pessoal ou social”. Além disso, a solicitação desse atendimento ocorreu pela ação institucional do CAPSi de “referência” da adolescente em conjunto com a Assessoria Técnica da Área de Infância e Adolescência da Coordenação Municipal de Saúde Mental.

A ação militante do CAPSi e da Assessoria, pautada no ideário da Reforma Psiquiátrica, tornaram possível a entrada no caso da DP/CDEDICA, também “engajada” (Schuch, 2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181.) politicamente em prol da efetivação e garantia de direitos da adolescente. Essa “Justiça engajada” (Schuch, 2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181.) e “comprometida” com a proteção integral de crianças e adolescentes, acusados de ato infracional no caso da pesquisa da autora, está legitimada por seu capital militante e não apenas por seu capital jurídico. Como no caso descrito por Biehl (2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, Hoboken, v. 40, n. 3, p. 419-496, 2013.), no qual se conjugam judicialização e farmaceuticalização, a defensoria procura atuar visando a garantia da dignidade dos cidadãos e até cuidando destes, enquanto os médicos lutam pela garantia dos direitos de seus pacientes, agenciando assessoria jurídica inclusive.

Conta nos autos do processo judicial de Clara uma gama de ações propostas pela DP/CDEDICA, mas também pela DP Geral77Em termos analíticos, privilegiou-se um eixo de entendimento do caso neste artigo, que não dará evidência a diversidade de narrativas acerca do conflito interno à vara em questão no que concerne à ação institucional da DP Geral, que era recorrentemente rotulada de “apática”. Entretanto, os autos evidenciaram ações importantes desse ramo da DP, como agravos de instrumento que contestavam a perda do poder familiar da mãe da adolescente., que visavam libertar a adolescente da IPC. Essas intervenções iniciam-se por volta de junho de 2011, operacionalizadas pela DP Geral, sendo maximizadas em 2012 com a nomeação de Helena - nome fictício - para o cargo de curadora especial de Clara. Em abril daquele ano, Clara teve “alta judicial”88 Ressaltamos a presença de duas categorias no prontuário da adolescente: “alta judicial” ou “alta por decisão judicial” e “alta médica” ou “alta clínica”. e, finalmente, saiu do hospital em que estivera internada.

Segundo Helena, não foram exclusivamente seus requerimentos que libertaram a “adolescente-psiquiátrica”, os quais se beneficiaram de contingências institucionais variadas. Depois da “alta judicial” da adolescente, esta voltou a residir com sua mãe e irmãs na comunidade em que habitavam, no entanto, em meados de janeiro de 2011 uma série de “queixas” da “paciente” em relação à sua mãe foram registradas pelos agentes do CAPSi. Os acontecimentos que se seguiram culminaram em “ameaças” de uma juíza (Rocha, 2013ROCHA, M. O trabalho de intersetorialidade na construção permanente de rede, através de um caso de internação compulsória, acompanhado pelo CAPSi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CAPSi, 1., 2013, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UERJ, 2013.) de que Clara seria internada em uma instituição socioeducativa, caso não fosse internada pela via da saúde. Segundo Helena, curadora especial da adolescente, desde o início da trajetória de Clara na saúde mental existiria um “empuxo à socioeducação” por parte dos órgãos coniventes (PJ, MP, CJ, CT e instituições de acolhimento no setor assistência social).

O engajamento da curadora especial da adolescente é notório nesse caso e deve ser analisado de forma precisa: o comprometimento de determinados agentes institucionais privilegiados parece ter incidência patente no caso em estudo, valendo ressaltar que sua militância deve ser posta em concorrência com outros tipos de capitais valorizados no campo jurídico e social mais amplo. Como lembra Schuch (2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181.), o engajamento por parte de profissionais ou operadores do direito é sobremaneira importante nas análises da constituição do campo, suas posições, seus conflitos e disputas internas e externas e, ainda, na formação de alianças.

Desse modo, faz-se importante frisar que a atuação da curadora especial era extremamente valorizada no CAPSi e hospital psiquiátrico, mas discretamente rechaçada em instituições de acolhimento, sejam elas CP, unidades de reinserção social ou centrais de regulação. Segundo a própria, da mesma forma que a “adolescente-psiquiátrica” estava situada em um “lugar fora do padrão”, a DP/CDEDICA também estaria para esse grupo de agentes da assistência social, pois ambas, adolescente e defensora, “tumultuavam” o cenário por onde passavam. Se a primeira era acusada de ser “agressiva”, possuir “transtorno de personalidade e de humor”, “irritada”, “dissimulada” e “fria”; a segunda requeria agravos e outros procedimentos, que implicavam, muitas vezes, as administrações dessas unidades de acolhimento até mesmo com repercussões jurídico-penais para seus agentes99 A simples presença da defensora nas instituições de acolhimento em algumas situações promovia denúncias relacionadas ao aviltamento dos direitos humanos e civis de pessoas sob proteção do Estado..

De forma semelhante com que Schuch (2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.) caracteriza seus interlocutores engajados, ou seja, com a manifestação dessa militância como sendo ampla e perpassando uma série de casos, Helena teceu depoimentos que deixaram patente que seu ativismo - calcada nos pressupostos do ECA, Constituição Federal de 1988 e no discurso dos direitos humanos - permeava toda sua prática profissional, não se reduzindo à ação no caso em análise. Do mesmo modo que em Biehl (2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, Hoboken, v. 40, n. 3, p. 419-496, 2013.), a defensoria tem um papel fundamental na efetivação dos direitos à saúde. Finalmente, como em Asensi (2010ASENSI, F. Judicialização ou juridicização? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010.), não é o PJ mas outro órgão que assume o protagonismo na garantia de direitos, a DP, apontando tanto para os mencionados processos de judicialização do cuidado em saúde mental e medicalização das condutas da usuária como também para o de juridicização desse mesmo cuidado, sendo do nosso ponto de vista uma juridicização engajada.

As situações vividas por Clara parecem apontar nessa direção, isto é, atores da DP teriam juridicizado o caso, pois tentavam a todo tempo, na realidade, desjudicializar a vida da adolescente. Assim sendo, também promoveriam paulatinamente uma desinstitucionalização, já que toda intervenção era no sentido de a “genitora” recuperar o poder familiar e a guarda de sua filha. Esse não foi o resultado do caso, mas ao menos as internações psiquiátricas foram juridicamente contestadas pela DP e a “paciente” não seria mais internada até o término da pesquisa em 2016.

Considerações finais

Empreendendo uma analogia com o conceito de medicalização, parece que a utilização do termo judicialização como crítica à expansão do poder judicial “obscurece diferentes níveis de sua ocorrência” (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014ZORZANELLI, R.; ORTEGA, F.; BEZERRA JÚNIOR, B. Um panorama sobre as verificações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, 2014., p. 1860), como: (1) a atuação extrajudicial do Poder Judiciário ou do Ministério Público, principalmente em uma contenda pré-processual; (2) também parece nublar as especificidades da ação da Defensoria Pública na busca pela efetivação de direitos difusos e coletivos de minorias; (3) a litigiosidade de dentro do processo, mas que visa articular outras estratégias que não poderiam ser rotuladas de judiciais stricto sensu, pois justamente visam resolver conflitos das mais diversas maneiras disponíveis e não necessariamente pela via burocrático-administrativa empreendida por um juiz (Asensi, 2010ASENSI, F. Judicialização ou juridicização? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010.; Asensi; Pinheiro, 2014ASENSI, F.; PINHEIRO, R. Lages/SC. In: PINHEIRO, R. (Org.). Estudo multicêntrico sobre as relações entre sociedade, gestão e judiciário na efetivação do direito à saúde. Rio de Janeiro: LAPPIS-UERJ, 2014. p. 4-15.).

Após etnografar documentos médicos, escolares e jurídicos, bem como de entrevistar agentes institucionais dos poderes Executivo e Judiciário, não consideramos Clara apenas um entre outros casos de IPC infantojuvenil e, por extensão, de “proteção forçada” (Salgado, 2014SALGADO, M. A. Como e por que as internações compulsórias de crianças e adolescentes são decididas? Uma análise de casos em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.), caminhando do particular para o universal, mas alguém que viveu uma situação na qual uma juridicização engajada da adolescência foi desencadeada, não só uma judicialização da vida, do cuidado ou da saúde como em outros casos de IPC, indo na direção inversa. Clara foi amplamente institucionalizada a partir do municiamento do Juízo com categorias médicas, contidas no prontuário da adolescente e que funcionavam como proteladores formais do tempo do internamento, pois indicavam, para o PJ e não para o setor saúde mental, a incapacidade de a “adolescente-psiquiátrica” retornar a conviver em sociedade, por exemplo: “impulsiva”, “baixo limiar a frustração”, “hipopragmática”, “heteroagressiva” e “sem noção de morbidade”. Dito de outra maneira, por vezes o PJ medicalizava os comportamentos de Clara, reportando-a ao setor saúde mental de forma compulsória, para enfim judicializar seus “conflitos familiares”. Essencialmente, era o PJ que sancionava a nomeação de Clara como “adolescente-psiquiátrica”. Entretanto, ressaltamos que esse processo decisório era operado com base em opiniões e informações de outros órgãos jurídicos e assistenciais, como o MP, o CJ, o CT, o CREAS, os abrigos e a escola.

Em relação aos limites relacionados ao nível empírico desta pesquisa, devemos sublinhar que o MP promoveu de forma indiscutível a estigmatização de Clara como uma pessoa incapaz de conviver em sociedade, sendo concebida como uma ameaça viva à paz social, porém essa ação institucional foi pouco explorada neste trabalho, assim como as ações do CJ e CT. Essas instituições deveriam ter seus papéis estudados de forma acurada para não obscurecerem a especificidade de cada uma na alocação de Clara no espaço social. Outra limitação diz respeito à análise da ação engajada do CAPSi, pois embora este tenha trabalhado em prol da desinstitucionalização da adolescente, verificou-se uma solicitação de IPC ao CJ por meio do plantão judiciário em 2014.

Por outro lado, ao responder à pergunta inicial deste artigo, pudemos constatar que ocorreu ao mesmo tempo uma judicialização do cuidado em saúde mental (Reis, 2012REIS, C. (Falência familiar) + (uso de drogas) = risco e periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória. 2012. 132 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.; Reis; Guareschi; Carvalho, 2014REIS, C.; GUARESCHI, N. M. F.; CARVALHO, S. Sobre jovens drogaditos: as histórias de ninguém. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, p. 68-78, 2014. Número especial.) e uma juridicização engajada da adolescência. Parece que o caso Clara vem ensinar que o protagonismo judiciário (Schuch, 2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181.; Vianna et al., 1999VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.) torna-se incisivo ao moldar as práticas institucionais em campos extrajudiciais. Mesmo com “alta clínica”, Clara não sairia do hospital a partir de pressupostos médico-clínicos, mas apenas sob uma ordem judicial, como promoveu o MP. Será que o protagonismo “não premeditado” (Vianna et al., 1999VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.) do PJ seria equivalente à militância/engajamento desinteressado descrito por Schuch (2005SCHUCH, P. Práticas de justiça: uma etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2005. 345 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., 2010SCHUCH, P. A “judicialização do amor”: sentidos e paradoxos de uma justiça “engajada”. In: SCHUCH, P.; FERREIRA, J. (Org.). Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 151-181.)? Na realidade, o protagonismo do MP - que nos casos analisados por Asensi (2010ASENSI, F. Judicialização ou juridicização? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010.) possuem conotação positiva - está subsumido aqui nas ações do PJ. A hipótese sustentada é que o MP opinava em favor das IPC e, em seguida, o PJ ratificava seus pareceres.

O que os documentos parecem ensinar é como uma trama vai sendo tecida para fins de realocação espacial a partir da constatação nativa de que a adolescente “é agressiva”: qual é o “local mais adequado” para alguém “agressivo” e de “forte compleição física”, mas que possui 12 anos de idade? PJ e MP teceram uma narrativa que visava estigmatizar e desqualificar Clara para assumir de forma legítima sua tutela - ao tentar construir um “local mais adequado” para a adolescente, ou seja, aquele que garantisse a nomeação de um responsável pelas possíveis agressões perpetradas por ela. Sustentamos que tais estratégias de estigmatização da adolescente estariam vinculadas à trajetória institucional pretérita de sua “genitora” em conjunto com as equipes de assistência social do Creas.

Em suma, buscamos evidenciar os seguintes fatores: (1) a judicialização de Clara, uma adolescente que já estava alocada no setor assistência social, serviu para cristalizar o processo de institucionalização em questão e ao mesmo tempo deslocá-la para o setor saúde mental; (2) a juridicização engajada empreendida pela curadora especial de Clara se contrapôs de maneira reconhecida e legitimada no campo do direito na luta pelo monopólio da verdade sobre a adolescente. Resta destacar que a juridicização em questão tem como objeto a adolescência de Clara e não a infância, pois os órgãos que atuaram no caso o contemplavam a partir da delimitação do ciclo de vida inscrita no ECA: aos 12 anos de idade começa formalmente a adolescência no Brasil. No entanto, em poucos documentos Clara fora percebida como “criança”, mesmo tendo 12 anos na época, e em outras situações duvidou-se que fosse apenas “adolescente”, dada sua “forte compleição física”. Embora nunca se tenha afirmado explicitamente que seria adulta, a empurravam para o limite com a maioridade penal de 18 anos, que corresponde a uma faixa em que a punição é legalmente formalizada.

Referências

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  • 1
    Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (Viji).

  • 2
    A mãe de Clara é caracterizada como alguém que sofreu violência doméstica na infância, tendo sido destituída do poder familiar algumas vezes, já que cinco de seus oito filhos – em 2012 foi mãe novamente – foram cedidos para adoção. Todo esse histórico adensado no processo judicial de Clara seria amplamente utilizado para desqualificar sua mãe ostensivamente, principalmente no período de sua terceira internação psiquiátrica em 2011, qual a mãe de Clara perdeu o poder familiar de todas as suas filhas.

  • 3
    Em 2016, Clara tinha sete irmãos: uma criança do sexo masculino, que vivia e sempre viveu com a mãe; uma adulta do sexo feminino, que já viveu em abrigos e atualmente vive com a mãe; três do sexo masculino e duas do sexo feminino, que foram cedidos para adoção internacional. Em 2010, ano da primeira IPC da adolescente, os três irmãos do sexo masculino já tinham sido cedidos para adoção internacional, enquanto as duas irmãs não, sendo que a criança do sexo masculino que vivia e sempre viveu com a mãe nem tinha nascido ainda e a irmã adulta do sexo feminino era na época adolescente. Desse modo, gostaríamos de destacar que, embora nos autos conste a palavra “irmãos”, seguindo a norma da língua portuguesa, seria mais fidedigno afirmar que Clara estava vivendo com suas irmãs em 2010.

  • 4
    Clara “estava estudando e foi expulsa da escola ontem em função de agressão praticada pela mesma em face da Diretora” (Poder Judiciário, 2015aPoder Judiciário. Vara da Infância, da Juventude e do Idoso. Audiência especial, decisão judicial. 7 out. 2010. In: RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Processo Judicial. Decisões Judiciais. Rio de Janeiro, 2015a.).

  • 5
    Esclarecemos que, antes de irem embora da CP, por não concordarem de se tratar de um “caso de saúde mental”, a direção da CP ligou para um oficial superior do Corpo de Bombeiros que, por sua vez, retornou a ligação para os profissionais da ambulância ordenando que levassem a adolescente para a emergência psiquiátrica.

  • 6
    O Poder Judiciário recuou perante a estratégia formal de categorizar Clara como “psicótica”, pois a perícia negou veementemente essa possibilidade, frisando se tratar de CID-10 F91.1 – “transtorno de conduta não socializado”. Algo consoante com o diagnóstico apresentado pelo hospital, de CID-10 F92.8 – “transtorno misto de conduta e emoções não especificado” – e bem diferente também do diagnóstico apresentado pelo médico que realizou a IPI no mesmo hospital, de CID-10 F29 – “psicose não orgânica não especificada”. É importante frisar que o diagnóstico de F29 foi conferido primeiro em relação à ideia de “surto psicótico” fornecida pela psicóloga da vara.

  • 7
    Em termos analíticos, privilegiou-se um eixo de entendimento do caso neste artigo, que não dará evidência a diversidade de narrativas acerca do conflito interno à vara em questão no que concerne à ação institucional da DP Geral, que era recorrentemente rotulada de “apática”. Entretanto, os autos evidenciaram ações importantes desse ramo da DP, como agravos de instrumento que contestavam a perda do poder familiar da mãe da adolescente.

  • 8
    Ressaltamos a presença de duas categorias no prontuário da adolescente: “alta judicial” ou “alta por decisão judicial” e “alta médica” ou “alta clínica”.

  • 9
    A simples presença da defensora nas instituições de acolhimento em algumas situações promovia denúncias relacionadas ao aviltamento dos direitos humanos e civis de pessoas sob proteção do Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2017
  • Revisado
    23 Jan 2018
  • Aceito
    06 Fev 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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