Trabalho e autonomia dos trabalhadores em saúde: considerações sobre pressupostos teórico e metodológicos de análise do trabalho em saúde

Work and autonomy of health workers: considerations about theoretical and methodological assumptions of health work analysis

Resumo

As questões abordadas no artigo estão relacionadas com o tema do trabalho e autonomia no trabalho em saúde. Questiona-se sobre a possibilidade de criação de espaços de autonomia para os trabalhadores em contextos de padronizações e normatizações advindas das políticas públicas, mas também dos condicionamentos decorrentes dos processos históricos de reestruturação do trabalho em saúde. A perspectiva teórica adotada atenta para as condições de resistência, de lutas e de atuação ativa dos trabalhadores nos espaços de concepção e de execução dos processos de trabalho, mas não relativiza a importância dos condicionamentos estruturais nesse processo. Assim, afirma-se a importância de não se tomar a autonomia no trabalho como um dado, nem como um ausente, mas como uma construção social que decorre da experiência concreta dos trabalhadores em saúde. Sem negar a importância de estudos que enfatizam o protagonismo dos sujeitos no trabalho em saúde, a análise destaca, portanto, os condicionamentos estruturais na análise do trabalho e da autonomia (possível) dos trabalhadores em saúde.

Palavras-chave:
Trabalho em Saúde; Controle Sobre o Trabalho; Autonomia no Trabalho; Experiência no Trabalho em Saúde

Abstract

The issues addressed in the article are related to the topic of work and autonomy in health work. The possibility of creating spaces of autonomy for workers in contexts of standardization and norms from public policies is questioned, but also from the constraints arising from the historical processes of restructuring health work. The theoretical perspective adopted considers the conditions of resistance, struggles, and active action of the workers in the spaces of conception and execution of work processes, but does not relativize the importance of structural conditioning in this process. Thus, we affirm the importance of not taking autonomy at work as a given, neither as an absence, but as a social construction that stems from the concrete experience of health workers. Without denying the importance of studies that emphasize the protagonism of the subjects in health work, the analysis emphasizes, therefore, the structural constraints in the analysis of the work and the autonomy (possible) of health workers.

Keywords:
Work in Health; Control Over Work; Autonomy in Work; Experience in Health Work

Introdução

No Brasil, desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na década de 1980, diferentes questões relacionadas ao trabalho e aos trabalhadores em saúde ganharam importância. Sua proposta de descentralização dos serviços, numa perspectiva de maior presença local dos trabalhadores em saúde e de atendimento integralizado dos serviços nas regiões, por exemplo, colocou o desafio de estruturar mercados de trabalho em saúde capazes de atender as demandas municipais e regionais, em diferentes partes do País. A perspectiva de uma gestão participativa, de um trabalho em equipe, de uma concepção de saúde não voltada à doença, mas à promoção da saúde, colocou a necessidade de uma qualificação profissional dos trabalhadores em saúde comprometida com os pressupostos e com os objetivos do novo sistema de saúde. A própria estruturação do SUS, ocorrida num contexto histórico em que, no país, o neoliberalismo se tornou cada vez importante nas decisões governamentais (tanto no que diz respeito à amplitude de atuação do Estado quanto no que tange à natureza de atuação estatal), resultou em diferentes tipos de tensionamento relacionados ao financiamento do sistema de saúde, aos compromissos das diferentes escalas governamentais, à organização (racionalização versus autonomia) do trabalho.

As mudanças e desafios colocados pelo SUS ao trabalho e à organização do trabalho em saúde não são, evidentemente, estranhas para a bibliografia especializada. Pelo menos desde a década de 1990, vários pesquisadores vêm se preocupando com a análise de diferentes questões relacionadas a essas temáticas. Contudo, evidencia-se nessa bibliografia, com significativas repercussões inclusive nas discussões sobre a Política Nacional de Humanização, uma abordagem teórica focada na “micropolítica” do trabalho, que enfatiza a conformação do trabalho vivo em ato, o encontro entre o usuário e o trabalhador, tornando o local e o momento desse encontro como espaços de grande importância para a dinâmica de atuação dos trabalhadores em saúde.

Nessa perspectiva teórica, configura-se como o principal agente da dinâmica do trabalho em saúde, o trabalhador, esperando-se que este seja dotado de liberdades, visto como protagonista das suas ações e decisões, para que ele possa se autogovernar, desde que empoderado no seu microespaço de trabalho. Assim, por exemplo, Franco (2013bFRANCO, T. B. Prefácio. In: FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec , 2013b. p. 4-6.) observa “que o trabalho em saúde é centrado no trabalho vivo, como trabalho em ato”, ressaltando que os próprios trabalhadores têm uma “força extraordinária”, capaz de ser mobilizada para “mudança na saúde, pois, considerando que o principal atributo do trabalho vivo é a liberdade, o autogoverno do trabalhador sobre seu processo de trabalho o coloca na posição de ser o principal agente de mudança” (Franco, 2013bFRANCO, T. B. Prefácio. In: FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec , 2013b. p. 4-6., p. 4).

Para os defensores da micropolítica, nesse sentido, o debate sobre a “liberdade” dos trabalhadores é fundamental. Sobre essa discussão, Franco (2013aFRANCO, T. B. O trabalhador de saúde como potência: ensaio sobre a gestão do trabalho. In: FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec, 2013a. p. 203-210.) afirma que o trabalhador tem liberdade no seu microespaço de trabalho e suas escolhas são influenciadas por sua intencionalidade, suas propostas éticas e políticas. No que tange às normas e aos protocolos instituídos pela gestão, o autor defende que o trabalhador usa da sua liberdade inclusive para se deixar capturar e disciplinar seu modo de agir (Franco, 2013aFRANCO, T. B. O trabalhador de saúde como potência: ensaio sobre a gestão do trabalho. In: FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec, 2013a. p. 203-210.). Ou seja, a análise atenta para o microespaço, com relativa desconsideração aos condicionantes históricos, sociais e de classe que perpassam as “escolhas” dos trabalhadores.

Nessa direção, inclusive, essa perspectiva teórica põe em diálogo de forma muito próxima pressupostos que estão presentes no documento da Política Nacional de Humanização, em especial quando esta enfatiza a necessidade de “comunicação entre gestores, trabalhadores e usuários” para se constituam “processos coletivos de enfrentamento de relações de poder, trabalho e afeto que muitas vezes produzem atitudes e práticas desumanizadoras”, inibidoras da autonomia e da “corresponsabilidade dos profissionais de saúde em seu trabalho e dos usuários no cuidado de si” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH). Brasília, DF, 2013., p. 7). O foco é “manter o trabalhador com alta potência para agir no mundo do cuidado” (Franco, 2013aFRANCO, T. B. O trabalhador de saúde como potência: ensaio sobre a gestão do trabalho. In: FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec, 2013a. p. 203-210., p. 209), seja lá o que de fato isso signifique e como se conseguiria fazer isso. Pensa-se, assim, em uma dita liberdade que se estabelece no encontro com o outro, uma microliberdade que seria potencializadora.

Esse modo de pensar e problematizar o trabalho em saúde ganhou grande visibilidade nas duas últimas décadas no Brasil, relativizando-se as análises das questões macrossociais, tais como o processo de reestruturação capitalista no trabalho e como essa reestruturação condiciona o trabalho em saúde. Ainda que por meio da micropolítica se encontre uma perspectiva que questiona análises que tomam as macrorrealidades como estruturantes das relações sociais, por outro lado é importante que suas teses sejam problematizadas, em especial a tendência de relativização dos condicionamentos externos do trabalho em saúde e a supervalorização do poder de transformação dos trabalhadores.

Entende-se, nesse sentido, que a compreensão do trabalho em saúde a partir da perspectiva da micropolítica encontra limitações que decorrem da ênfase dada ao “poder do trabalhador” e a possibilidade desse ser potencializado nos espaços de trabalho, garantindo-lhe maior autonomia. Ao enfatizar o olhar analítico do trabalho em saúde fundamentalmente no âmbito do momento do encontro entre trabalhador e usuário, apesar de ter mostrado avanços no campo da saúde, os teóricos que se inserem nessa perspectiva de análise desconsideram ou relativizam questões complexas que envolvem as situações políticas das relações sociais e que condicionam o trabalho e as ações dos trabalhadores em saúde. Ao atribuir ao “autogoverno do trabalhador sobre seu processo de trabalho” a possibilidade deste se colocar “na posição de ser o principal agente de mudança”, tal perspectiva teórica pode corroborar, inclusive, visões que tendem a individualizar as relações de trabalho em saúde, responsabilizando os trabalhadores pelos problemas cujas razões fundamentais estão relacionadas a condições que decorrem do modo como as políticas públicas e, por consequência, o trabalho em saúde está estruturado.

É importante destacar que os espaços concretos de trabalho em saúde configuram-se como espaços de tensões e de contradições para os trabalhadores. Se, por um lado, os trabalhadores se veem inseridos em dinâmicas de democratização das políticas e de ações legalizadas pelas políticas públicas, numa conformação normatizada de trabalhar, sendo vistos por alguns autores como “agentes de mudança”, por outro, convivem com a lógica de mercado que prioriza o lucro, introduz a visão econômica e administrativa ao trabalho em saúde, precariza as relações de trabalho e restringe o financiamento em saúde. Contraditoriamente, se por um lado a habilidade de trabalhar em equipe e de realizar um trabalho humanizado (seguindo os princípios norteadores do SUS) são prerrogativas básicas dos trabalhadores em saúde, por outra perspectiva tais exigências se inserem em um contexto de políticas de gestão centradas nos princípios da racionalização, da diminuição dos custos, de afirmação de padrões de qualidade que quantificam as relações, de incentivo à eficiência, à competitividade e ao individualismo.

Diante disso, como pensar uma perspectiva de democratização das ações em saúde numa lógica de precarização e de intensificação do trabalho? O que de fato isso significa? Existe alguma alternativa entre a visão que atribui aos trabalhadores alto grau de autonomia e a visão que pensa ser incompatível à coexistência de democracia institucional e o trabalho produtivo? É possível conceber espaços de autonomia no trabalho em saúde em contextos de padronizações e de normatizações advindas das políticas de saúde e, mesmo, dos condicionamentos decorrentes de processos históricos de reestruturação capitalista no e do trabalho?

É a partir dessas questões que este artigo se dedica à análise da autonomia no trabalho, enfatizando a experiência concreta dos trabalhadores, tanto em seus cotidianos de trabalho quanto em suas lutas coletivas, na construção de espaços de autonomia.

A autonomia no trabalho em saúde: a construção de espaços dotados de liberdade na experiência de trabalho em saúde

A palavra autonomia (do grego, autônomo é “aquele que estabelece suas próprias leis”) refere-se, inicialmente, a experiências sociais fundamentadas no princípio da livre determinação (de um indivíduo, de um grupo) e, como indica Castoriadis (1992CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992., p. 43), implica “poder instituinte” e “explicitação reflexiva”, ou seja, atuação lúcida, deliberada e com capacidade criadora dos indivíduos e da coletividade. Nesse sentido, autonomia se contrapõe à heteronomia, uma condição em que é o outro (o estado, o aparato burocrático, os mecanismos de opressão e/ou cooptação, o proprietário da empresa etc.) quem define as condições de ação do indivíduo, limitando ou anulando neste a participação livre e consciente.

Nas ciências sociais e humanas, o tema da autonomia remete a diferentes perspectivas teóricas, afirmando-se também diferentes visões acerca do que é autonomia e das condições que definem uma “ação autônoma”. Autonomia pode aparecer como um conceito vinculado à participação social, “à ideia de ampliação da participação política no que tange à descentralização e desconcentração do poder”, mas, também, à capacidade de autocriação individual e coletiva (Martins, 2002MARTINS, A. M. Autonomia e educação: a trajetória de um conceito. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 115, p. 207-232, mar. 2002., p. 208).

No debate contemporâneo sobre o conceito de autonomia, tanto na filosofia quanto nas ciências sociais e humanas, o filósofo francês (de origem grega) Cornelius Castoriadis certamente tem uma contribuição significativa, não somente porque se ocupou com essa reflexão ao longo de sua trajetória intelectual, mas também porque oferece uma construção teórica na qual a autonomia é um pressuposto ontológico, político e social, na autotransformação da sociedade numa direção de maior capacidade de autocriação consciente e deliberada.

Dissertar sobre a construção filosófica de Castoriadis em torno do conceito de autonomia está num horizonte que transcende os limites deste artigo. No entanto, é importante ressaltar que Castoriadis se preocupou com o tema da autonomia já a partir da década de 1940, quando contribuiu para a crítica à experiência socialista da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mantendo essa preocupação até suas últimas publicações, no ano de sua morte (em 1997), mais especificamente nos seis volumes de sua série As encruzilhadas do labirinto.

Num primeiro momento, o conceito de autonomia em Castoriadis estava diretamente vinculado à ideia da autogestão, à reformulação do poder social de modo a garantir à comunidade dos trabalhadores liberdade e poder para a definição dos rumos e do sentido da produção e da própria sociedade. Situado no contexto da crítica à experiência socialista da URSS, com o conceito de autonomia Castoriadis criticava o stalinismo e a burocracia estatal do partido bolchevique no poder, afirmando a importância do resgate do projeto de gestão coletiva da produção e da vida social pelos trabalhadores, tal como percebia estar presente na obra de Marx (Castoriadis, 1979CASTORIADIS, C. Socialismo ou barbárie: o conteúdo do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1979.).

Sua trajetória de reflexão (sobre a ciência, a técnica, o capitalismo, a democracia etc.), no entanto, permitiu que problematizasse a relação entre autonomia e autogestão. “Autogestão e autogoverno de quê?”, pergunta-se Castoriadis, defendendo que “a auto-organização, a autogestão, só tem sentido quando ela combate as condições instituídas da heteronomia” (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 424). A noção de autonomia, então, passou a estar vinculada a um projeto societário em “que todas as condições da vida social devem ser postas em questão” (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 424) e no qual a capacidade de imaginação criativa dos indivíduos e da coletividade é de fundamental importância:

Chegamos assim à ideia de que o que define uma sociedade autônoma é a sua atividade de auto-instituição explícita e lúcida - o fato de que ela dá a si mesma sua lei, sabendo o que faz. […] A sociedade, menos ainda que o indivíduo, jamais poderá ser “transparente” para si própria. Mas ela pode ser livre e refletida - e essa liberdade e reflexão podem ser, elas mesmas, objetos e objetivos de sua atividade instituinte. (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 424)

Em seu livro A função imaginária da sociedade, Castoriadis (1995CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1995.) vincula a discussão da autonomia com os conceitos freudianos de consciente e inconsciente, defendendo a ideia de que a autonomia é uma nova relação entre esses dois conceitos, sendo o segundo o discurso do outro que foi incutido no eu, falando por este a partir de então. É essa regulação do outro sobre o eu que Castoriadis define como heteronomia ou alienação, que retira do sujeito a possibilidade de definição de sua realidade e de seus interesses/desejos. “A autonomia seria o domínio do consciente sobre o inconsciente” (Castoriadis, 1995CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1995., p. 123), quando se estabelece outra atitude do sujeito em relação a si mesmo, entre lucidez (do ego) e função imaginária (do Id); contudo, numa relação em que o consciente, sem eliminar as pulsões e os instintos advindos do inconsciente, tem o poder de decisão.

O Outro, o qual Castoriadis menciona quando define a heteronomia, compreende não somente “outro indivíduo”, mas o outro encarnado na sociedade, na sua história e nas relações sociais. A autonomia, nesse sentido, se estabelece quando o “meu discurso tomar o lugar do discurso do Outro que é estranho a mim e me domina e fala por mim” (Castoriadis, 1995CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1995., p. 124).

Claro que, como “projeto político de instauração de uma sociedade autônoma”, a autonomia não pode ser apenas o objetivo (“um objetivo que queremos por ele mesmo”), mas também condição para que se possa projetar (autonomia “tanto por ela como para poder fazer coisas”) (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 425). E, nesse sentido, Castoriadis vincula sua discussão sobre a autonomia com a discussão dos “valores substantivos”, criticando, inclusive, as sociedades capitalistas (e os regimes democráticos nelas presentes) e a incapacidade dessas sociedades na criação de “novos conteúdos de vida”, de “novas orientações”, sincronizados estes com as tendências que (percebia Castoriadis em “muitos setores da sociedade”) afirmam o desejo e o interesse de autonomia, de uma “libertação face às regras simplesmente herdadas” (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 425).

Nesse ponto, então, a discussão sobre autonomia em Castoriadis se vincula com a própria ideia de democracia. Não a democracia presente nas sociedades capitalistas, que Castoriadis criticou largamente em sua obra, vinculando-a à crise de valores, ao vazio e à perda de significações imaginárias, à dominação do poder econômico e à hegemonia das relações sociais capitalistas. Mas a democracia que, “quando é verdadeira”, apresenta-se como um “regime que explicitamente renuncia a qualquer ‘garantia’ última e que não reconhece nenhuma limitação a não ser a sua autolimitação” (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 427). Ao contrário de outros regimes políticos (autoritarismo ou totalitarismo, por exemplo), em que não é possível arriscar-se, a democracia:

enfrenta permanentemente o problema de sua autolimitação, que nada pode “resolver” a priori; é impossível fazer uma constituição que impeça, por exemplo, que um belo dia 67% dos indivíduos tomem “democraticamente” a decisão de privar os 33% restantes de seus direitos. Poder-se-á inscrever, na constituição, que haja direitos inalienáveis dos indivíduos, mas não se poderá inscrever uma cláusula que vede absolutamente a revisão da constituição, e, se ela fosse inscrita, cedo ou tarde ela se acabaria mostrando inútil. A única limitação essencial que a democracia pode reconhecer é a autolimitação. E esta última, por sua vez, somente pode ser executada por indivíduos educados na, pela e para a democracia. (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 427)

Uma democracia que somente pode se estabelecer se os indivíduos e a coletividade tiverem condições de participar ativa e conscientemente da tomada de decisões coletivas. O que, por sua vez, requer um movimento da sociedade no sentido de “criar” indivíduos que possam pensar livremente, com a possibilidade efetiva de pensarem por si mesmos, através da instituição de um espaço público de pensamento aberto à interrogação, em que não há lei (instituição) imutável e que haja real e legítimo espaço de questionamento sobre as leis e seus fundamentos, enfim, uma “sociedade constantemente no movimento de sua auto-instituição explícita” (Castoriadis, 1979CASTORIADIS, C. Socialismo ou barbárie: o conteúdo do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1979., p. 33).

Castoriadis, portanto, analisa a autonomia partindo de uma visão macrossocial, porém, comprometido com a crítica a qualquer perspectiva determinista da história. A forma como (enquanto indivíduos) percebemos o mundo em nossa volta se relaciona com o agir coletivo na sociedade, e questões objetivas e subjetivas se integram constantemente em nossas percepções e em nossas ações (ambas são passíveis de modificações, tendo em vista que uma está entrelaçada com a outra em um constante movimento dialético). Contudo, como afirma Bittencourt (2008BITTENCOURT, J. B. M. O pensamento social como ferramenta de transformação política: um diálogo entre Pierre Bourdieu e Conélius Castoriadis. CSOnline: Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, ano 2, v. 5, p. 154-169, 2008.), analisando as produções teóricas de Castoriadis e o sociólogo francês Pierre Bourdieu, se torna impossível pensar em uma atitude ou conduta que possua autonomia em relação às condições sociais que as produziu e, da mesma forma, considerar a vida social como fruto de um determinismo, no qual não há possibilidade de uma ação potencial do sujeito ativo.

A dimensão social deve ser entendida enquanto pertencente a um tempo histórico, o social-histórico (Castoriadis, 1995CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1995., p. 130), que abarca toda a formação social dada, estabelecida, instaurada; mas também como “o que estrutura”, “o que se institui”. A história das sociedades se apresenta de forma descontínua, intercalando momentos de criação intensa com fases de apatia ou regressão. Vivemos em uma sociedade heterônoma, segundo Castoriadis, mas que vislumbra dois caminhos possíveis na história: um de conformação com a situação, repetição de padrões, apatia; e o segundo, que abarca um despertar social e político, marcado pela vontade de liberdade e de recriação de um projeto de autonomia, o que exige um despertar da imaginação e do imaginário criador; um imaginário coletivo que tem potência de criação (criação de novas formas de ser), como um “imaginário social instituinte” (Castoriadis, 2004CASTORIADIS, C. Figuras do pensável: as encruzilhadas do labirinto IV. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004., p. 231).

Tal projeto transformador da sociedade só pode ressurgir no interstício dos próprios indivíduos que compõem essa sociedade, por meio de uma atividade autorreflexiva e de um grau maior de compreensão (autocompreensão) dos indivíduos que formam a sociedade. Não é possível, a partir de uma explicação racional e antecipada, prever de antemão os caminhos da sociedade, pois não há leis que regem o imaginário social. E essa condição histórica é um pressuposto da autonomia, que precisa ser apreendido pelos indivíduos, num processo educativo “na, pela e para a democracia” (Castoriadis, 1987CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 427).

Essa (mesmo que) rápida análise do conceito de autonomia em Castoriadis já permite que uma importante questão seja colocada: como falar de autonomia - enquanto poder instituinte; autodeterminação; atuação livre, deliberada e consciente; capacidade criadora dos indivíduos e das coletividades - no trabalho, se esse se objetiva enquanto trabalho assalariado, ou como atividade que é condicionada por lógicas organizacionais que visam racionalizar os processos produtivos, numa perspectiva de maior lucratividade ou, então, de maior “eficiência” e “qualidade”?

Certamente essa questão está presente no debate histórico que, em diferentes campos disciplinares das ciências sociais, se estabelece sobre trabalho e autonomia. Um debate no qual são encontradas tanto as teses que defendem que a autonomia no trabalho realizado sob relações capitalistas de produção é uma quimera (ou, então, uma forma ideológica de legitimar e mistificar relações sociais de exploração e de dominação), quanto as teses que defendem que a autonomia no trabalho traduz condições históricas de lutas, por parte dos trabalhadores, para não somente participarem, mas, acima de tudo, alcançarem poder de autodeterminação no trabalho, ou seja, liberdade para determinar o conjunto ou parte do conjunto das relações que se estabelecem entre os diferentes elementos que compõem um processo de trabalho.

O trabalho é uma atividade essencial para o ser humano. Não somente por sua importância sociológica, enquanto atividade que, para a maioria dos indivíduos, é a principal fonte de renda, está na base do desenvolvimento de aptidões e habilidades, proporciona o acesso a contextos que se diferenciam do contexto doméstico, permite ampliar o leque de contatos sociais, contribui para e na construção da identidade individual e coletiva (Giddens, 2005GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.). Mas também, e fundamentalmente, pela sua importância ontológica, enquanto atividade que estabelece a mediação entre a natureza e o ser humano, possibilitando que este, ao transformar a natureza, transforme a si mesmo (atividade, ao mesmo tempo, de transformação e de autotransformação, de criação e de autocriação) (Marx, 1989MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.).

Nas sociedades capitalistas, no entanto, a principal forma de trabalho humano é o trabalho assalariado e, enquanto tal, remete a uma condição histórica em que os trabalhadores (assalariados) vendem sua capacidade de trabalho (força de trabalho) aos proprietários dos meios de produção que, visando aumentar o excedente econômico que investiram no processo de produção, procuram manter o controle (fabril) sobre o processo de trabalho. Como o trabalhador tem uma capacidade variável de trabalho e “pode produzir mais do que consome” (mais do que recebe por uma jornada de trabalho), o controle sobre os trabalhadores torna-se fundamental para que haja o excedente econômico (os lucros) dos proprietários dos meios de produção.

Como indica Braverman (1981BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.), a necessidade de um controle sobre os trabalhadores é uma questão fundamental no sistema capitalista e os esforços, por parte dos proprietários dos meios de produção, no sentido de criar uma “disciplina fabril”, é uma condição histórica permanente nas sociedades capitalistas. Os diferentes modelos de organização do processo de trabalho no capitalismo colocam-se, nesse sentido, como esforços históricos de criação e de afirmação de diferentes estratégias de controle e de disciplina fabril.

O modelo taylorista-fordista, por exemplo, é reconhecido por muitos autores como algo que aprimorou os mecanismos de controle fabril por meio “de um rígido sistema repressivo no interior das fábricas, tirando, do trabalhador, o domínio que ainda detinha sobre o seu próprio trabalho” (Franzoi, 1997FRANZOI, N. L. Controle e disciplina fabris. In: CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes ; Porto Alegre: Editora da Universidade, 1997. p. 43-47., p. 44). Para Taylor e para Ford estava claro que o aumento da produtividade do trabalho e do capital dependia do controle do processo de produção, tirando dos trabalhadores a capacidade de conhecer e de definir o processo de trabalho11 Henry Ford, por exemplo, entendia que o trabalho era fonte de riqueza e, em função disso, não poderia haver desperdício no processo produtivo, sendo a disciplina do trabalho um fundamento da produtividade. Em suas palavras: “Não há quase contato pessoal em nossas oficinas; os operários cumprem o seu trabalho e voltam logo para os seus lares. Uma fábrica não é um salão de conferências” (Ford apud Fleury; Vargas, 1983, p. 27).. Em decorrência, o modelo taylorista-fordista desenvolveu um sistema de controle sobre os trabalhadores, envolvendo a “coerção personalizada”, o “controle técnico” e o “controle burocrático” (Franzoi, 1997FRANZOI, N. L. Controle e disciplina fabris. In: CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes ; Porto Alegre: Editora da Universidade, 1997. p. 43-47., p. 46).

Os chamados “novos modelos de organização do processo de trabalho” não rompem com a perspectiva de controle sobre o trabalho e os trabalhadores presente no modelo taylorista-fordista. Novos mecanismos e novas estratégias de controle são desenvolvidos sem, contudo, romper com a natureza do processo de trabalho no capitalismo, enquanto processo subordinado à lógica de valorização do capital. O chamado modelo japonês, por exemplo, envolve um conjunto de estratégias de cooptação dos trabalhadores e, mesmo que suas propostas de organização do processo de trabalho compreendam a criação de espaços de participação dos trabalhadores (como é o caso dos Círculos de Controle de Qualidade - CCQ), esses não podem ser vistos como espaços que garantem autonomia para os trabalhadores (Laranjeira, 1997LARANJEIRA, S. M. G. Círculos de controle de qualidade. In: CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes ; Porto Alegre: Editora da Universidade, 1997. p. 40-43.).

Embora os defensores dessas novas estratégias de envolvimento dos trabalhadores no processo de trabalho, conforme apontado por Laranjeira (1997LARANJEIRA, S. M. G. Círculos de controle de qualidade. In: CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes ; Porto Alegre: Editora da Universidade, 1997. p. 40-43.), insistam que elas são formas de “democratizar o espaço de trabalho”, superando “a apatia e a insatisfação causadas pela alienação do trabalhador no processo de trabalho fordista-taylorista” (e no Japão os CCQ sejam identificados com “formas de autogestão”), de fato, elas “não se confundem com a organização da produção controlada pelos trabalhadores nem com os chamados grupos semi-autônomos” (Laranjeira, 1997LARANJEIRA, S. M. G. Círculos de controle de qualidade. In: CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes ; Porto Alegre: Editora da Universidade, 1997. p. 40-43., p. 41). Nesse sentido, portanto, são formas de cooptação dos trabalhadores e se inscrevem numa tradição histórica comprometida com a flexibilização e a descentralização do controle gerencial, adotadas pelas empresas capitalistas no contexto da mundialização do capital e de crescente competição capitalista. Argumentar que esses espaços de participação, criados pelas empresas com o objetivo de envolver os trabalhadores em dinâmicas que visam aumentar a produtividade do trabalho e do capital, se confundem com “autonomia no trabalho”, assim, é uma forma equivocada e redutora do significado de autonomia.

A referência à Autonomia, no sentido da autonomia no trabalho, também aparece […] como forma de destacar a possível capacidade de o indivíduo definir estratégias próprias no seio da empresa. Trata-se, de modo geral, de uma utilização equivocada e empobrecedora do conceito, na medida em que destaca os pequenos espaços de autodeterminação e de intervenção no processo de trabalho, colocando-os no mesmo nível do poder empresarial de controle e de definição do conteúdo e do destino da produção social. (Cattani, 1997CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 28-29)

No sentido apresentado até agora, portanto, o trabalho assalariado é sempre subordinado ou controlado - por um chefe, por um conjunto de regras, por estratégias que visam a valorização do capital - e, então, de fato é uma “quimera” falar de autonomia do trabalho sob relações sociais capitalistas. A autonomia no trabalho somente torna-se possível numa condição histórica de superação das relações sociais capitalistas e, nessa direção, pressupõe a autogestão, o controle operário sobre o processo de trabalho e de produção. Ou seja:

O princípio da autonomia supõe a reformulação do poder da empresa, do esquema tradicional da autoridade e do seu corolário (disciplina fabril). A propriedade privada, fonte de dominação é substituída pela propriedade social dos meios de produção. A comunidade de trabalho passa a ser livre e responsável pela definição dos rumos e do sentido da produção. Autonomia refere-se, portanto, às situações de enfrentamento às formas econômicas e sociais dominantes e não às experiências de auto-exclusão (comunidades alternativas), aquelas que se adaptam nos interstícios do sistema (cooperativas, setor informal), bem como não àquelas que não contestam a proeminência do poder empresarial (co-gestão). (Cattani, 1997CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 28)

A perspectiva teórica adotada neste artigo, no entanto, atenta para as condições históricas de resistência, de lutas e de atuação ativa dos trabalhadores nos espaços comprometidos com a concepção e com a execução dos processos de trabalho, mesmo aqueles que estão subordinados à lógica de valorização do capital. Se é verdade que a superação integral da condição heterônoma imposta pelas relações sociais capitalistas de produção somente será alcançada com a superação dessas relações, também é verdade que através das lutas dos trabalhadores é possível construir espaços de participação e de autodeterminação no trabalho. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a autonomia no trabalho:

traduz-se por: autodeterminação do trabalhador, responsabilidade ou liberdade para determinar os elementos da tarefa, o método do trabalho, as etapas, procedimentos, programação, critérios, objetivos, o lugar, a avaliação, as horas, tipo e quantidade de trabalho. Autonomia remete ao controle sobre estes ou alguns destes elementos. (Rosenfield, 2005ROSENFIELD, C. L. Autonomia e trabalho informacional: o teletrabalho. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 29., 2005, Caxambu. Anais… Caxambu: Anpocs, 2005., p. 9)

A autonomia no trabalho, nessa perspectiva, compreende espaços (não isentos de conflitos e de lutas) de decisão e de intervenção no processo de trabalho, envolvendo, inclusive, as possibilidades de autocontrole e de participação na organização, bem como de influenciar no processo decisório que define mudanças ou não na organização do processo de trabalho e nas condições de trabalho em geral.

Trata-se de uma perspectiva que encontra inspiração nas análises que o historiador inglês Edward Thompson faz das maneiras pelas quais se constituem os modos de vida e de consciência dos grupos sociais que resistem às relações sociais capitalistas (e, nesse sentido, às formas heterônomas de organização do processo de trabalho). Para Thompson, as relações sociais de produção no capitalismo, ainda que condicionem em grande parte o fazer-se trabalhador, não estruturam completamente o que é a experiência de trabalho e de vida dos trabalhadores. Esta é tecida por meio de lutas sociais, em dinâmicas históricas em que os trabalhadores não são passivos (não estão ausentes nas dinâmicas que estruturam os modos de vida e de trabalho), mas, ao contrário, através de suas experiências constituem consciência, capacidade de pensar sobre suas condições de vida e de trabalho, criando possibilidades efetivas de intervenção histórica (Thompson, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.).

Para Thompson, atentar para as experiências de homens e mulheres reais permite que se compreenda a relação entre ser social e consciência social. É pela experiência histórica que homens e mulheres definem e redefinem suas práticas e seus pensamentos.

A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiências, velhos sistemas conceituais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua presença. (Thompson, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 17)

A partir da categoria experiência, portanto, Thompson critica a tradição estruturalista (em especial, na versão do filósofo francês e marxista Louis Althusser), para a qual os sujeitos têm pouca importância na história e os acontecimentos sociais tendem a ser reduzidos a fenômenos econômicos. Assim, a noção de experiência permite que Thompson compreenda os homens e as mulheres como sujeitos na história:

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência humana” […]. Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo - não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (Thompson, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 182)

Ao criticar as tradições estruturalistas, afirmando que essas negam a historicidade para elaborar argumentos de uma sociedade que em todo momento estrutura as ações dos indivíduos, Thompson defende que por meio de movimentos conflituosos e contraditórios surgem novas experiências e possibilidades que expressam as respostas humanas aos acontecimentos, e tais experiências são determinantes no sentido de exercerem pressão sobre a consciência social. Assim, na análise de Thompson o ser humano (os trabalhadores) é inserido como agente ativo do processo histórico, enquanto ser racional que se relaciona com as diversas instâncias e, apesar da formação de classe estar sujeita a condicionamentos históricos (das relações sociais de produção), ela se constrói num processo inacabado de lutas de classes no tempo e no espaço (Thompson, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.).

As estruturas sociais são vistas por Thompson como limites e pressões na sociedade, mas não como determinantes no processo de formação social. “As maneiras pelas quais qualquer geração viva, em qualquer ‘agora’, ‘manipula’ a experiência, desafiam a previsão e fogem a qualquer definição estreita da determinação” (Thompson, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 189). O autor faz um resgate cultural da sociedade inglesa e mostra como a religião e os costumes estão presentes nas lutas da sociedade e no cotidiano do trabalho, e vão se tornando elementos que tensionam os próprios condicionamentos históricos das relações de trabalho.

Thompson defende, assim, uma metodologia de análise a partir da “história vista de baixo”, no qual o objeto do conhecimento é a história real, cujas evidências são sempre incompletas e imperfeitas. Sua perspectiva teórica ressalta, nesse sentido, a experiência gerada na vida material, sendo a análise dessa experiência fundamental para a compreensão das formas diversas de organização da vida social e do próprio sentido histórico da vida dos trabalhadores. Tendo em vista a experiência concreta desses sujeitos, a construção de seus conhecimentos e de suas práticas (no trabalho e na vida), mantêm uma relação direta com a forma pela qual interpretam o mundo; suas experiências vividas, percebidas e modificadas são fontes históricas para a análise de sua formação (Thompson, 1987THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1987.).

Para Thompson (e nesse sentido se estabelece uma aproximação da perspectiva teórica adotada por Castoriadis em sua análise sobre a autonomia), “a luta política não se faz fora da história”, mas, antes, “é resultado das experiências criadoras concretas abrindo espaços autônomos que se instituem na sociedade” (Romani, 2013ROMANI, C. M. Experiências compartilhadas e autonomia popular na história social: aproximações entre E. P. Thompson e Castoriadis. Projeto História, São Paulo, v. 48, dez. 2013., p. 16). A história é o “resultado futuro de uma experiência coletiva pretérita, o qual não é dado a priori, e se constitui durante as lutas cotidianas da existência, no fazer-se” (Romani, 2013ROMANI, C. M. Experiências compartilhadas e autonomia popular na história social: aproximações entre E. P. Thompson e Castoriadis. Projeto História, São Paulo, v. 48, dez. 2013., p. 16).

Trata-se, portanto, de uma perspectiva teórico-metodológica de grande importância para a compreensão da autonomia (possível) no trabalho, no caso deste artigo no trabalho que é realizado pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras em saúde. A autonomia não é tomada como um ausente, como uma quimera que somente poderia existir com a condição histórica de superação das relações sociais de produção presentes nas sociedades capitalistas. Mas, ao mesmo tempo, não é um dado, uma condição presente que decorre da natureza do trabalho em saúde, como algo que está centrado no trabalho vivo e se opera com altos graus de incerteza, do que decorre a necessidade e a possibilidade dos trabalhadores, no ato mesmo de seu ofício, definirem/acordarem as condições de realização de suas atividades laborativas. A autonomia é uma possibilidade, que se constrói na experiência concreta do trabalho, condicionada pelas relações sociais de produção, pelas diferentes e complexas mediações políticas, econômicas, sociais, mas, ao mesmo tempo, pela capacidade ativa dos trabalhadores que, com sujeitos históricos, podem e desenvolvem consciência criativa e produtora de conhecimento e de ação.

Considerações finais

Trabalhadores, sejam da saúde ou atuando em outras atividades, agem de maneira (apenas) relativamente autônomas em seus locais de trabalho. Suas ações, nesse sentido, estão sempre sujeitas a algum grau de condicionamento, seja por dinâmicas de organização técnico-organizacional presentes nos locais onde atuam, por influência de relações sociopolíticas estabelecidas nos espaços de realização do trabalho, ou pelas relações sociais de produção predominantes numa dada formação social.

Considerar esse pressuposto é de grande importância para a compreensão das transformações que ocorreram, já nas últimas décadas do século XX, no trabalho em saúde, pois ele permite que se atente aos conflitos e às tensões que estão presentes no cotidiano de trabalho realizado nos diferentes locais de atuação dos trabalhadores, ao modo como as transformações científicas, tecnológicas e organizacionais definem (e redefinem) a organização do processo de trabalho, às questões que se vinculam às conjunturas políticas das diferentes formações sociais, às repercussões das mudanças estruturais no modo de produção capitalista sobre o trabalho em saúde.

Não se trata de negar a importância de análises que atentam às relações “micropolíticas”, que enfatizam o “protagonismo dos sujeitos” no trabalho em saúde e criticam as concepções que tomam como a priori da análise as “estruturas de formação social” como fatores que estruturam o processo de trabalho em saúde (Franco; Merhy, 2013FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec , 2013.). No entanto, é importante destacar que as condições estruturais remetem a limitações e desafios no trabalho que não podem ser ignorados ou relativizados quando se analisa o trabalho e a autonomia do trabalhador da saúde.

As possibilidades de autonomia no trabalho sempre existem, contudo, não apenas como desejo ou resultado de um empoderamento dos trabalhadores em saúde, pressupondo-se que o trabalhador pode assumir o protagonismo do trabalho e das relações, responsabilizando-se pela construção de espaços ativos de atuação e de realização do trabalho em saúde. A conquista de espaços de autonomia não é isenta de embates, lutas e tensões. Nesse sentido, como já referido anteriormente, a autonomia no trabalho não pode ser tomada como um dado, muito menos como um ausente, mas como uma construção histórica, vinculada à experiência concreta de trabalhadores e trabalhadoras em saúde, condicionada que é pelas configurações estruturais do trabalho. Autonomia, portanto, como um projeto inacabado, presente enquanto ação que se projeta diante de relações sociais que restringem a ação, mas, ao mesmo tempo, impulsionam o desejo e o interesse de uma ação livre e criativa.

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  • THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1987.

  • 1
    Henry Ford, por exemplo, entendia que o trabalho era fonte de riqueza e, em função disso, não poderia haver desperdício no processo produtivo, sendo a disciplina do trabalho um fundamento da produtividade. Em suas palavras: “Não há quase contato pessoal em nossas oficinas; os operários cumprem o seu trabalho e voltam logo para os seus lares. Uma fábrica não é um salão de conferências” (Ford apud Fleury; Vargas, 1983FLEURY, A.; VARGAS, N. Organização do trabalho. São Paulo: Atlas, 1983., p. 27).

  • 2
    Ambos os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2017
  • Revisado
    23 Jan 2018
  • Aceito
    21 Dez 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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